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Samuel Rutherford Sofrimento Testemunho

Cartas de Samuel Rutherford (21)

Para James Lindsay [1]

Aberdeen, 7 de setembro de 1637

Orações de réprobos

A santificação e a mortificação de nossos desejos são as partes mais difíceis do cristianismo. De certa forma, será tão natural para nós saltarmos quando virmos a Nova Jerusalém quanto rirmos quando nos fazem cócegas. A alegria não está sob um comando, ou segundo nosso assentimento, quando Cristo nos beijar. Mas, oh!, quantos de nós querem ter Cristo dividido em duas metades, para que possam pegar apenas uma metade Dele! Tomamos Seu ministério – Jesus e a salvação –, mas “Senhor” é uma palavra incômoda; e obedecer e desenvolver nossa própria salvação, e aperfeiçoar a santidade, é o lado incômodo e tempestuoso de Cristo; e isso nós evitamos e disso nos desviamos.

Quanto a teu questionamento, o acesso que os réprobos têm a Cristo (que é absolutamente nulo, porque eles não podem vir e nem virão ao Pai, em Cristo, pois Cristo não morreu por eles; mas, mesmo assim, pela lei, Deus e a justiça são muito mais do que eles): digo, antes de tudo, que há contigo pessoas mais dignas e instruídas que eu – os srs. Dickson, Blair e Hamilton – que podem satisfazer-te mais plenamente. Porém falarei de modo resumido o que penso disso nestas afirmações:

Primeira afirmação:

Toda a justiça de Deus com respeito ao homem e aos anjos flui de um ato de absoluto e soberano livre-arbítrio de Deus, que é nosso Formador e nosso Oleiro, e nós não passamos de barro; porque se Ele tivesse proibido comer de todas as outras árvores do jardim do Éden, e ordenado a Adão comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, essa ordem seria, sem dúvida, tão justa quanto esta: “Comei de todas as árvores, mas absolutamente não comais da árvore do conhecimento do bem e do mal.” A razão é que Sua vontade vem antes de Sua justiça, por ordem de natureza; e o que é a Sua vontade é a Sua justiça; e Ele não quer as coisas sem Ele só porque elas são justas. Deus não pode, não precisa buscar a santidade, a pureza ou a justiça em coisas sem Ele, nem tampouco de ações de homens ou de anjos, porque Sua vontade é essencialmente santa e justa, e é a primeira regra de santidade e justiça, assim como o fogo é naturalmente luz, e pende para o alto, e a Terra é pesada e pende para baixo.

Segunda afirmação:

Deus dizer aos réprobos: “Crede em Cristo (que não morreu para a salvação deles) e sereis salvos” é justo e correto porque Sua vontade eterna e essencialmente justa assim o determinou e decretou. Suponhamos que a razão natural fale contra isso, mas isso é o profundo e especial mistério do evangelho. Deus obrigou, terminantemente, a todos os réprobos da igreja visível crerem nesta promessa: “Aquele que crer será salvo”; porém, no decreto de Deus e em Sua intenção secreta, não há nenhuma salvação decretada ou intencionada aos réprobos. Mas o compromisso de Deus, vindo de Seu soberano livre-arbítrio, é justíssimo, como dito na primeira afirmação.

Terceira afirmação:

O justo Senhor tem o direito sobre os réprobos e sobre todas as criaturas pensantes que violam Seus mandamentos. Essa afirmação é evidente.

Quarta afirmação:

A fé que Deus procura nos réprobos é que eles confiem em Cristo, não tendo esperança em sua própria justiça, apoiando-se inteiramente e humildemente, como cansados e sobrecarregados, em Cristo, como a pedra fundamental colocada em Sião. Mas Ele não procura isso; sem estarem cansados de seus pecados, eles confiam em Cristo como o Salvador da humanidade; pois confiar em Cristo e não estar cansado do pecado é presunção, não fé. A fé sempre vem com um espírito quebrantado e contrito; e é impossível que a fé esteja onde não haja um coração abatido e contrito, em algum grau, pelo pecado. É certo que Deus não ordena ninguém a ser presunçoso.

Quinta afirmação:

Os réprobos não são formalmente culpados de desprezarem Deus, ou de descrença porque não aplicam Cristo e as promessas do Evangelho a si mesmos, particularmente; se aplicassem, seriam culpados de não crerem em uma mentira, o que Deus nunca os obrigou a crerem.

Sexta afirmação:

A justiça tem o direito de punir os réprobos, porque, de coração orgulhoso, confinados em sua própria justiça, eles não confiam em Cristo como o Salvador de todos aqueles que vêm a Ele. A isso Deus pode, com justiça, obrigá-los, porque em Adão eles tinham a perfeita capacidade para fazê-lo; e os homens são culpados porque amam sua incapacidade, e descansam em si mesmos e se recusam a negar sua própria justiça e ir a Cristo, em quem há justiça para os pecadores cansados.

Sétima afirmação:

Uma coisa é confiar, apoiar-se e descansar em Cristo, em humildade e cansaço de espírito, negando nossa justiça própria, crendo que Ele é a única justiça de pecadores cansados; e outra coisa é crer que Cristo morreu por mim, por João, por Tomás, por Ana, com a intenção e o decreto de nos salvar individualmente, por nome. Porque

  1. A assertiva anterior vem primeiro, e a segunda é sempre depois, em devida ordem.
  2. A primeira é fé, a segunda é o fruto da fé; e
  3. A primeira favorece os réprobos e todos os homens na igreja visível, e a segunda favorece somente os cansados e sobrecarregados, e assim, somente os eleitos e efetivamente chamados por Deus.

Oitava afirmação:

É uma conclusão vã: “Eu não sei se Cristo morreu por mim, João, Tomás, Ana, por nome; e portanto, eu não me atrevo a confiar Nele”. A razão é: porque não é fé crer na intenção de Deus e em Seu decreto de eleição primeiramente, antes de estar cansado. Olha primeiro para tua própria intenção e tua alma, e se achares que o pecado é um fardo, e se puderes e se, de fato, colocares esse fardo sobre Cristo; se isso ocorrer uma vez, agora vem e crê individualmente, ou aplica pelo sentido (porque em meu julgamento isso é um fruto da fé, não a fé) a boa vontade, a intenção e o grato propósito de Deus a respeito de tua salvação. Assim, porque há malícia nos réprobos, e desprezam a Cristo, culpados são; e a justiça tem a lei contra eles: e (o que é um mistério) eles não podem vir a Cristo, porque Ele não morreu por eles; mas o pecado deles é que eles amam sua incapacidade de vir a Cristo; e aquele que ama suas cadeias, merece as cadeias.


[1] James Lindsay, um desconhecido.

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Cartas de Samuel Rutherford (20)

Para Hugh M’Kail [1]

Aberdeen, 5 de setembro de 1637

A Lei

Tu sabes que os homens podem receber seu doce suprimento da amarga Lei com base na graça, e de entre os sentimentos do Mediador. E esse é o caminho mais seguro do pecador, pois há, no Novo Pacto, um leito para os pecadores cansados descansarem, embora não tenha sido cama feita para Cristo nela dormir. A Lei nunca será minha sentenciadora, pela graça de Cristo. Se eu não obtiver nenhum outro bem dela (eu irei encontrar um destino suficientemente dolorido no Evangelho para me humilhar e para me derrubar), ela será, eu concordo, um amigo bom e rude para seguir um traidor até o tribunal, e apoiá-lo até que ele venha a Cristo. Nós podemos nos culpar, por fazermos com que a Lei suspire por dívidas bem pagas, a fim de nos espantar para longe de Jesus, e brigar sobre nossa própria justiça, um mundo na lua, uma quimera, e um sonho noturno do qual o orgulho é mãe e pai. Não pode haver uma alma mais humilde que a do crente; não é orgulho para um homem que está se afogando segurar-se em uma rocha.

A segurança dos crentes

Eu me regozijo que as rodas desse mundo confuso girem nas engrenagens e são dirigidas de acordo com a vontade do Senhor. De qualquer quadrante do céu que o vento sopre, ele nos levará para o Senhor. Nenhum vento pode jogar nossas velas ao mar, porque a habilidade de Cristo e a honra de Sua sabedoria são estabelecidas como penhor e como fogueiras para os passageiros do mar de que Ele os colocará, com Suas mãos, a salvo na praia, nos limites conhecidos do Pai, nossa própria terra. Meu caro irmão, não tenhas medo da cruz de Cristo. Ainda não se vê o que Cristo fará por ti quando vier o pior. Ele manterá Sua graça até que chegues a um estreito, e então trará o decretado nascimento para tua salvação (Sf 2.2). Tu és uma flecha que Ele próprio fez. Deixa-O lançar-te contra um muro de bronze, pois tua ponta será mantida íntegra.


[1] Hugh M’Kail, ministro em Irvine, Ayrshire.

 

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Cartas de Samuel Rutherford (19)

Para os Paroquianos de Anwoth [1]

Aberdeen, 13 de julho de 1637

Palavras aos apóstatas

Ouvi dizer, e minha alma está entristecida por isso, que desde que me ausentei de vosso meio, muitos dentre vós voltaram-se do bom e velho caminho, novamente para o vômito dos cães. Vou falar a esses homens. Não foi sem a direção especial de Deus que a primeira sentença que minha boca vos proferiu foi esta, “E disse-lhe Jesus, Eu vim a este mundo para juízo, a fim de que os que não veem vejam, e os que veem sejam cegos” (Jo 9.39). É possível que meu primeiro encontro convosco seja quando vós e eu comparecermos perante o terrível Juiz do mundo; e no nome e na autoridade do Filho de Deus, meu grande Rei e Mestre, eu escrevo, perante estes presentes, intimações a esses homens. Prendo-lhes a alma e o corpo para o dia de nosso comparecimento na corte. Sua eterna condenação permanece subscrita e selada no céu pela escrita do grande Juiz dos vivos e dos mortos; e eu estou pronto a me levantar como um pregador testemunhando contra os tais, diante deles naquele dia, e a dizer “Amém” à sua condenação, exceto no caso de se arrependerem. A vingança do Evangelho é mais pesada do que a vingança da Lei. A maldição e a vingança do Mediador é duas vezes vingança, e essa vingança é a porção devida a tais homens. E ali eu os deixo como homens presos, sim, e até que eles se arrependam e se corrijam.

Vós fostes testemunhas de como passávamos o Dia do Senhor enquanto estive entre vós. Oh, sacrílego ladrão do dia de Deus, o que responderás ao Todo-Poderoso quando Ele procurar os muitos Sábados em ti? O que fará o amaldiçoador, o xingador, o blasfemador quando sua língua for torrada naquele grande e ardente lago de fogo e enxofre? E o que fará o bêbado quando sua língua, seus pulmões, fígado, ossos e tudo mais ferver e fritar no fogo torturante? Ele estará, então, longe de seus barris de bebida forte; e não haverá um poço de água fresca para ele no inferno. E o que será do desgraçado, do cobiçoso, do opressor, do enganador, do verme, cujo ventre nunca se enche de barro (Sl 17.4), quando, no dia de Cristo, o ouro e a prata devem se tornar em cinzas, e ele deve comparecer à corte, e responder ao seu Juiz, e deixar seu céu de barro que não tem valor?

Ai, ai, para sempre seja para o ateu que muda conforme o tempo, que tem um deus e uma religião para o verão, e outro deus e outra religião para o inverno, e o dia da limpeza, quando Cristo irá varrer tudo que está no chão de Seu celeiro; que tem a consciência de toda feira e mercado, e cuja alma corre sobre estas rodas oleadas: o tempo, os hábitos, o mundo e o comando de homens. Oh, se o ateu descuidado, e o homem que dorme, que se protege com “Deus perdoe nossos pastores, se eles estiverem nos conduzindo erradamente, mas precisamos fazer como eles nos mandam”, e deitam a cabeça sobre o seio do tempo e dá sua consciência a um representante, e dorme até a fumaça do fogo do inferno subir-lhe à garganta e o fazer sair de sua triste cama! Oh, se tal homem acordasse! Muitos ais são para os hipócritas excessivamente dourados, cobertos de ouro. Uma condenação pesada é para o mentiroso e para o bajulador; e o livro voador da temível vingança de Deus, de vinte côvados de comprimento por dez côvados de largura, que sai da face de Deus, entrará na casa e na alma daquele que rouba ou dá falso testemunho no nome de Deus (Zc 5.2,3).

Eu anuncio fogo eterno mais quente do que as chamas de Sodoma sobre os homens que fervem em concupiscências imundas de fornicação, adultério, incesto e iniqüidades semelhantes. Nenhum espaço, não, nem a largura de um pé, para tais cães vis dentro da imaculada Jerusalém. Muitos de vós suportam isso dizendo: “Deus nos perdoe, nós não conhecemos nada melhor”.

Eu renovo minha antiga resposta: o Juiz está vindo em labaredas de fogo com todos os Seus poderosos anjos para vingar todos os que não conhecem a Deus e Nele não crêem (2Ts 1.8). Muitas vezes já vos disse que a segurança irá vos destruir.

Todos os homens dizem que têm fé: tantos são os homens e mulheres agora quantos os santos no céu. E todos crêem (vós dizeis) que todo cão imundo é suficientemente limpo e suficientemente bom para a imaculada e nova Jerusalém no céu. Todo homem teve conversão e novo nascimento, mas isso não é genuíno. Eles nunca passaram uma noite de aflição por causa de pecado. A conversão é para eles como um sonho na noite. Com uma palavra, o inferno se esvaziará no Dia do Juízo, e o céu ficará lotado! Ai de mim!

Crer e ser salvo não é nem fácil nem comum. Muitos ficarão, no final, às portas do céu (Lc 13.25). Quando forem verificar sua fé, verificarão que têm um grande nada ou (como costumáveis dizer) um logro. Que frustração lamentável! E vos peço, eu vos rogo em nome de Cristo: apressai-vos na obra de Cristo e na salvação.

Intensa admiração por Cristo

Eu fico pensando se os homens podem viver apartados de Cristo. Eu me consideraria bem-aventurado se pudesse fazer uma proclamação aberta, e juntar todo os que vivem sobre a terra, judeus e gentios, e todos os que nascerão até o soar da última trombeta a fim de se reunirem em torno de Cristo com o propósito de contemplá-Lo, maravilhando-se e admirando-O e adorando Sua beleza e Sua doçura.

Porque Seu fogo é mais quente que qualquer outro fogo, Seu amor mais doce do que o amor comum, Sua beleza supera qualquer outra beleza. Quando estou sobrecarregado e triste, um de Seus olhares de amor me seria o mais vasto bem do mundo. Oh, se vós vos apaixonásseis por Ele, quão bem-aventurado eu seria! Quão satisfeita minha alma ficaria se eu vos ajudasse a amá-Lo.

Porém, entre nós todos, nenhum de nós poderia amá-Lo o suficiente. Ele é o Filho do amor do Pai e o deleite de Deus. O amor do Pai repousa todo sobre Ele. Oh, se a humanidade pudesse apanhar todo o amor que tem e depositá-lo sobre Ele! Convidai-O, e levai-O para vossa casa no exercício da oração matinal e da vespertina, como muitas vezes desejei que fizésseis; especialmente agora, não Lhe deixeis faltar morada em vossa casa, nem ficar nos campos quando Ele é retirado dos púlpitos e das igrejas. Se vós quiserdes conquistar o Céu ao sofrerdes violência, ou sentir o vento em vossa face por causa de Cristo e de Sua cruz, eu aqui sou um que provo da cruz de Cristo, e eu vos posso dizer que Cristo sempre foi bondoso comigo, mas Ele se supera (se é que posso dizer assim) em bondade enquanto sofro por Ele. Eu vos dou minha palavra quanto a isto: que a cruz de Cristo não é tão pesada quanto eles dizem; ela é doce, leve e confortável. A visitação de amor e o sorriso de deleite e os abraços de amor de meu Senhor por causa de meus sofrimentos por Ele, eu não os trocaria por uma montanha de ouro, ou por todas as honras, todos os cortejos e a grandeza de clérigos vestidos de veludo. Cristo tem a gema e o coração do meu amor. “Eu sou do meu Amado, e o meu Bem-Amado é meu.”

Oh, se vós segurásseis firme a mão de Cristo! Oh, meus mui amados no Senhor, que eu mudasse a voz, e tivesse eu uma língua afinada pelas mãos de meu Senhor e tivesse a arte de falar de Cristo, para que eu vos pudesse mostrar o valor e a magnitude e a grandeza e a excelência daquele lindo e renomado Noivo! Eu vos rogo pelas misericórdias do Senhor, pelos suspiros, pelas lágrimas e pelo sangue do coração de nosso Senhor Jesus, pela salvação de vossa pobre, mas preciosa alma: apresentai o monte no qual vós e eu possamos nos encontrar perante o trono do Cordeiro, entre os da congregação dos primogênitos. Que o Senhor permita que aquele seja o lugar do encontro! Que vós e eu venhamos a unir as mãos e colher e comer os frutos da árvore da vida, e que venhamos a festejar juntos e beber juntos daquele puro rio da água da vida que vem do trono de Deus e do Cordeiro!

Oh, quão pequena é vossa mão e curtos os vossos dias aqui! Vossa contagem de tempo é menor do que quando vós e eu começamos. A eternidade, a eternidade está chegando, voando com asas; e então, todos os homens, pretos e brancos, serão trazidos à luz. Oh, quão baixos serão vossos pensamentos sobre esse fruto de pele bonita, mas de coração podre, o mundo vão, vão e fútil, quando os vermes fizerem casa nos buracos de vossos olhos, e comerem as carnes de vossa face e fizerem de vosso corpo um monte de ossos secos!

Não pensem que a maneira comum de servir a Deus, como fazem os vizinhos e outros, vos levarão ao céu. Poucos, poucos são salvos. O cortejo do diabo é denso e numeroso. Ele tem a maior parte da humanidade como seus vassalos.

Eu sei que este mundo é uma floresta de espinhos no vosso caminho para o céu; mas vós tendes que passar por ela. Achegai-vos ao Senhor; firmai-vos em Cristo, ouvi tão-somente Sua voz. Bendizei Seu nome; santificai e guardai santo o Seu dia; guardai o novo mandamento: “Amai-vos uns aos outros”; deixai o Espírito Santo fazer morada em vosso corpo; e sede limpos e santos.

Não ameis o mundo; não mintais; amai e segui a verdade. Aprendei a conhecer a Deus. Tenhais em mente aquilo que eu vos ensinei, porque Deus vos pedirá conta disso quando eu estiver longe de vós. Abstende-vos de todo o mal e de toda aparência do mal. Segui o bem com esmero, e buscai a paz e segui-lhe os passos. Honrai vosso rei e orai por ele.

Um sonoro chamamento a todos

Muitas vezes vos disse, enquanto estava convosco, e agora novamente vos escrevo: pesado, triste e dolorido é o golpe da ira do Senhor que está vindo sobre a Escócia. Ai, ai, ai desta terra prostituída! Pois ela tomará do cálice da ira de Deus de Suas mãos e beberá e vomitará e cairá e não se levantará novamente. Entrem, entrem, entrem depressa para vossa fortaleza, vós, prisioneiros da esperança, e escondei-vos lá até que a ira do Senhor passe (Zc 9.12)! Não sigais os pastores desta terra, pois o Sol já se pôs sobre eles. Como vive o Senhor, eles vos afastam de Cristo, e do bom e velho caminho. Mesmo assim, o Senhor guardará a Cidade Santa, e fará esta Igreja murcha brotar outra vez, como uma rosa e um campo abençoado do Senhor.


[1] Paroquianos de Anwoth: Rutherford foi seu ministro de 1627 a 1638.

 

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Cartas de Samuel Rutherford (18)

Para James Hamilton [1]

Aberdeen, 7 de julho de 1637

O sobrecarregado devedor de Cristo

Quanto a qualquer coisa que eu faça em minhas cadeias, quando vez por outra sai de mim uma palavra – pobre de mim! –, é muito pouco. E fico muito entristecido que alguém pense que possa existir algo neste caniço quebrado e vazio. Que ninguém impute a mim que o vento da graça, não comprado (pois nada dei por Ele), sopre neste caniço vazio. Eu sou um sobrecarregado devedor. Eu grito: “Abaixo comigo; abaixo, abaixo com toda a excelência do mundo; e exaltado, exaltado seja Cristo!” Exaltado, exaltado Aquele que é belo, aquele que é Santo, nas alturas! Maldição esteja sobre os que não O amam.

Oh, como eu ficaria feliz se Sua glória crescesse e fluísse de minhas cadeias e de meus sofrimentos!

Certamente, quando me tornei Seu prisioneiro, Ele ganhou a gema e o coração de minha alma. Cristo até se tornou um novo Cristo para mim, e Seu amor ainda mais viçoso do que era. E agora eu não luto mais com Ele; Seu amor levará tudo isso embora. Eu me coloco sob Seu amor. Eu desejo cantar e bradar e proclamar, mesmo debaixo d’água, que estou em débito com Ele e sou eternamente devedor de Sua bondade. Eu nada oferecerei para estar quites com Ele (como costumávamos dizer), porque não será assim. Tudo, tudo para sempre seja de Cristo! Quais outras provações virão a mim, eu não sei, mas eu sei que Cristo fará de mim uma alma salva, lá do outro lado das águas, no lado além das cruzes, e além dos erros dos homens.


[1] James Hamilton, ministro do evangelho no Condado Down, na Irlanda do Norte. Por causa da perseguição, ele partiu para a Nova Inglaterra, porém tempestades o forçaram a retornar. Ele foi ministro em Dumfries e, mais tarde, em Edimburgo. Ele foi um homem “ousado pela verdade”.

 

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Cartas de Samuel Rutherford (17)

Para Alexander Colville (de Blair) [1]

Aberdeen, 23 de junho de 1637

Pesar por estar calado no ministério

Graça, misericórdia e paz estejam contigo.

Gostaria de saber como meu senhor recebeu a carta que eu lhe enviei, e como ele está. Não desejo nada além de que ele esteja firme e seja honesto com meu nobre Mestre e Rei. Estou bem em todos os sentidos – todo louvor seja dado a Ele, em cujos livros eu permaneço para sempre como Seu devedor.

Somente o meu silêncio me dói. Eu tinha uma alegria do céu, depois de Cristo, meu Senhor, e era pregá-Lo a esta geração sem fé; e tiraram isso de mim. Para mim, foi como o único olho de um pobre homem, e eles tiraram esse olho. Eu sei que a violência que fizeram a mim e à noiva desolada desse pobre está perante o Senhor; e suponho que eu não veja o outro lado da minha cruz, ou o que o meu Senhor trará disso. Mas eu creio que essa visão não permanecerá, e que Cristo está a caminho para o meu livramento. Ele não vem devagar, mas passa por cima de dez montanhas em um só passo.

Desejos por Cristo

Entrementes, sofro com Seu amor, porque desejo a posse real. Quando Cristo vem, Ele não fica por longo tempo. Mas certamente Seu sopro sobre uma pobre alma é o céu na terra; e quando o vento se torna para o norte, e Ele se vai, eu morro até o vento se voltar para o oeste e Ele visitar Seu prisioneiro. Mas Ele não me mantém muitas vezes à Sua porta. Eu sou ricamente recompensado por sofrer por Ele. Oh, se toda a Escócia fosse como eu, exceto por minhas algemas! Oh, que grande dor eu tenho por não poder louvá-Lo por meus sofrimentos.

Oh, se o céu, por dentro e por fora, e a terra fossem papel, e todos os rios, fontes e mares fossem tinta, e eu pudesse escrever em todo aquele papel, frente e verso, todos os Seus louvores, e Seu amor, e Sua excelência, para ser lido por homens e anjos!

Não, isso é pouco demais; eu devo o meu céu a Cristo, e realmente desejo, mesmo que não pudesse entrar pelos portões da Nova Jerusalém, enviar meu amor e meus louvores por cima de seus muros a Cristo. Ai de mim, porque o tempo e os dias estão entre Ele e mim, e adiam nosso encontro! A minha parte é gritar: “Oh, quando a noite estiver passada e o dia alvorecer, nós nos veremos um ao outro”.


[1] Alexander Colville, um Ancião presbiteriano de Blair, na paróquia de Carnock, Fifeshire. Ele tinha alto cargo legal, e se tornou amigo de Rutherford quando este se apresentou perante a Corte de Alta Comissão em 1630. Ele foi um eminente membro da Igreja Presbiteriana Escocesa durante um longo período.

 

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Cartas de Samuel Rutherford (16)

Para John Henderson (de Rusco) [1]

Aberdeen, sem data

Avisos práticos

Eu sinceramente desejo tua salvação. Conhece o Senhor e busca-O. Tu tens uma alma que não morre. Procura uma morada para tua pobre alma, pois essa casa de barro irá cair. É o céu ou nada! Ou Cristo ou nada! Faz uso da oração em tua casa e põe freqüentemente teus pensamentos perante a morte e o julgamento. É perigoso seres leniente quanto à questão de tua salvação.

Poucos são salvos; as pessoas vão para o céu em pequeno número, e o mundo inteiro jaz no pecado. Ama os teus inimigos e fica ao lado da verdade que eu te ensinei em todas as coisas. Não temas os homens; antes, deixa Deus ser o teu temor.

Teu tempo não será longo; faz da busca a Cristo a tua tarefa diária.

Tu podes, quando estiveres no campo, falar com Deus. Busca ter um coração quebrantado pelo pecado, pois, sem isso, não há encontro com Cristo. Digo isso tanto para tua mulher como para ti mesmo. Eu desejo que tua irmã, nos temores e dúvidas dela, se agarre firmemente no amor de Cristo. Proíbo-a de duvidar, pois Cristo a ama e tem o nome dela escrito em Seu livro. A salvação dela vem logo. Cristo, o Senhor dela, não se demora em vir. Ele não negligencia a Sua promessa.

 


[1] John Henderson, de Rusco, um paroquiano que desperdiçou a propriedade de Rusco (Anwoth). [Possível tradução da nota de rodapé original, A parishioner who fanned the ‘hoine-steading’ of Rusco (Anwoth), pois não foi possível encontrar o significado de hoine-steading. (N. E.)]

 

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Cartas de Samuel Rutherford (15)

Para William Gordon, de Kenmure [1]

Aberdeen, 1637

Testemunho para Cristo

Graça, misericórdia e paz estejam contigo.

Há muito tenho desejado responder a tua carta, que chegou em boa hora. É meu alvo e desejo do coração que meu fogo, aceso pelo Senhor, ateie-se também nos que estão por perto para aquecer-lhes o coração com o amor de Deus. Até a poeira que cai dos pés de Cristo, Seus velhos andrajos, Sua cruz negra e nodosa, são para mim mais doces do que as coroas de ouro dos reis e seus prazeres consumidos pelo tempo. Eu seria um mentiroso e uma falsa testemunha se não desse a meu Senhor Jesus, com toda a minha alma, um testemunho justo.

Minha palavra, eu sei, não O exaltará; Ele não necessita de tais adereços sob Seus pés para elevar ainda mais alto Sua glória. Mas, oh!, como eu gostaria de exaltá-Lo à altura do céu, e da largura e do comprimento de dez céus, na estimativa dos jovens que O amam! Pois todos nós concebemos Cristo estreito e pequeno demais, e concebemos Seu amor, com nossos próprios conceitos, de modo muito indigno dele. Oh, se os homens pudessem compreender a beleza e a formosura Dele! Eles desistiriam de brincar com os ídolos, nos quais não há lugar para o amor de uma alma se expandir. O amor do homem é de coração faminto por roer ossos descarnados e sugar peitos secos.

É bem merecido que os ídolos queiram quem não venha a Ele, Ele que tem um mundo de amor e bondade e recompensas para todos. Nós procuramos descongelar o coração na fumaça fria das criaturas de curta duração, e nossa alma não consegue nem calor, nem vida, nem luz, pois essas criaturas não nos podem dar o que não têm em si mesmas.

Oh, se pudéssemos passar por esses espinhos e por essa multidão de amantes bastardos, e ser tomados de paixão por Cristo! Nós iríamos encontrar firmeza e um lugar, e uma doce calma no Senhor para nossa alma cambaleante e tola. Eu quero que esteja em meu poder, depois deste dia, depreciar todo tipo de amor, exceto o amor de Cristo, e acabar com todos os deuses, exceto Cristo, todos os salvadores, exceto Cristo, todos os bem-amados, exceto Cristo, e todos os pretendentes de almas e mendigos do amor, exceto Cristo.

Marcas da graça na convicção do pecado e no conflito espiritual

Tu reclamas que queres uma marca do trabalho sadio da graça e do amor em tua alma. Como resposta, considera, para tua satisfação (até que Deus te mande mais), 1João 3.14. E, quanto às tuas reclamações de apatia e dúvidas, Cristo irá, espero, tirar tua apatia e a ti, junto. Eles são corpos cheios de buracos, de furúnculos e de ossos quebrados que precisam da cura que Cristo, o Médico, pode assumir; os vasos inteiros não servem para a arte do Mediador. Os publicanos, os pecadores, as prostitutas, mulheres da vida são os artigos de mercado para Cristo.

A única coisa que trará os pecadores a um molde dos braços acolhedores de Cristo é aquilo sobre o que tu escreves: algum sentimento de morte e pecado. Isso traz murmurações, e, sem sentido, murmuram mais, e ficam mais acostumados com câimbras, dores e desfalecimentos da alma que te incomodam. Quanto mais dor, mais noites sem dormir, mais febre, tanto melhor. Uma alma que sangra de verdade, até que Cristo seja solicitado e que clame por Cristo com toda urgência para vir e estancar o sangue e fechar a ferida com Sua própria mão e com Seu bálsamo, tem uma doença muito boa, quando muitos estão morrendo com um coração íntegro. Assim, todos nós temos muito pouco das dores do inferno e de seus terrores. Não, que Deus me envie tal inferno porque Cristo prometeu fazer dele um céu!

Ai de mim, eu ainda não cheguei nesse ponto, como para dizer: “Senhor Jesus, grande e soberano Médico, aqui está um paciente de dores para Ti.”

Mas o que nós mal interpretamos é a falta de vitória. Nós achamos que essa é a marca de quem não tem a graça. Não, digo eu; a falta de luta é que é a marca de quem não tem a graça; mas eu não direi que a falta de vitória seja essa marca. Se meu fogo e a água do diabo crepitam como um trovão no ar, eu sou o que menos teme; porque onde há fogo, essa é a parte de Cristo, que eu entrego a Ele e confio Nele para manter a brasa, e peço ao Pai que minha fé não falhe, se eu, enquanto isso, estiver lutando, e fazendo, e brigando e lamentando. Pois a oração não colocou para fora logo de início o demônio de Paulo (o espinho na carne, mensageiro de Satanás); mas nosso Senhor usa isso para testar a cada um, e deixou Paulo se defender, com a ajuda de Deus, moderando o jogo.

E fazes bem em não duvidar, se o alicerce for firme, mas certifica-te se é, de fato, assim; porque há uma grande diferença entre duvidar que temos a graça e testar se temos a graça. O primeiro pode ser um pecado, mas o último é bom.

Nós ficamos perdidos quando tentamos nos libertar de Cristo e de Sua obra. O temor santo é a procura do campo em que não haja inimigo no nosso íntimo para nos trair, e a visão de que tudo esteja firme e seguro. Porque eu vejo muitos vasos que vazam ante o vento, e crentes professos que tomam confiadamente a conversão daqueles, e aqueles vasos seguem seguros, e não vêem o que está sob as águas, até que uma tempestade os naufrague. Todo homem necessita duas vezes por dia, ou mais, ser examinado completamente, e sondado com velas [2].

 


[1] William Gordon, de Kenmure. Nada se sabe sobre essa pessoa.

[2] No sentido de uma luz próxima, que permita ver detalhes. Nos anos 1600, em que viveu Rutherford, velas eram o máximo que havia de luz para iluminar uma área pequena, específica.

 

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Cartas de Samuel Rutherford (14)

Para Earlston (o Jovem) [1]

Aberdeen, 1637

Sofrimentos

Que a graça, a misericórdia e a paz estejam contigo.

Eu desejo muito ter notícias tuas. Eu ainda permaneço um prisioneiro da esperança, e julgo ser um serviço para o Senhor esperar com calma e submissão, até que a aurora do Senhor rompa e Seu amanhecer de verão surja. Pois estou persuadido: é parte da tarefa principal de nossa vida Deus ter-nos enviado por alguns anos a esta terra, entre demônios e homens, às marcas de fogo do diabo e às tentações, para que soframos por um tempo aqui entre os nossos inimigos. De outra forma, Ele faria o céu nos esperar logo que saíssemos do ventre, e teria nos levado para o lar em nosso país, sem nos deixar colocar os pés nesta vida complicada e cheia de espinhos.

Mas, estando conscientes de que o sofrimento é cinzelado em cada um de nós – em uns, mais, em outros, menos –, de acordo com o que a Infinita Sabedoria pensa ser bom, nossa parte é endurecer e habituar essa nossa natureza de pele fina a suportar o fogo e a água, os demônios, os leões, os homens, as perdas, o coração triste, como pessoas que são observadas por Deus, anjos, homens e demônios.

Oh, que loucura é sentar e chorar sobre um decreto divino que é mudo e surdo a nossas lágrimas, e que deve permanecer quieto e inamovível como o Deus que o fez! Pois quem poderia vir após nosso Senhor, a fim de alterar ou melhorar o que Ele decretou e fez? Teria sido melhor fazer janelas em nossa prisão, e olhar para Deus e para o nosso país, o céu, e gritar como homens acorrentados que ardentemente desejam o ar livre de rei: “Senhor, venha o Teu reino; oh, venha o Noivo! E oh, dia! Oh, belo dia, oh, infindável dia de verão, amanheça e brilhe, surja de sob o negro céu e brilhe!”

Esperança do livramento final

Estou persuadido de que, se a cada dia uma pequena pedrinha das paredes da prisão é quebrada, pelo que a certeza é dada ao prisioneiro acorrentado, que está deitado sob vinte pedras de ferro sobre os braços e as pernas, que, por fim, sua cadeia deva se quebrar em dois pedaços, e que um buraco seja, por fim, feito amplo o suficiente para ele sair em segurança para a sua tão desejada liberdade, pela qual esperou pacientemente, até que o tempo abrisse um buraco na parede da prisão e quebrasse suas correntes.

Os prisioneiros esperançosos do Senhor, sob suas provações, estão neste caso: anos e meses tirarão aos poucos as pedras desta casa de barro e, por fim, o tempo abrirá a largura de uma bela porta liberando a alma aprisionada para o ar livre no céu; e o tempo irá retirar, um por um, nossos parafusos de ferro que agora estão nos braços e nas pernas e ultrapassar e desgastar as amarras de nossos problemas, desgastando-as até que se tornem nada; porque o que sofri ontem, eu sei, nunca mais voltará a me perturbar.

Oh, que respiremos nova esperança, e nova submissão, cada dia, no colo de Cristo! Pois certamente, um peso de glória, bem pesado, sim, crescendo para um peso mais excedente e eterno, recompensará tanto o peso como o comprimento de cruzes leves e fugazes. Nossas águas não passam de marés vazantes, que não chegam ao nosso queixo, nem tomam nosso fôlego. Eu posso ver (se tomar emprestado os olhos de Cristo) a terra seca, e de perto; por que, então, não haveríamos de rir da adversidade, e desprezar as tentações que nascem e logo morrem?

O crente em segurança

Eu me regozijo na esperança a ser revelada, pois não é incerta a glória que procuramos.

Nossa esperança não está firmada em fios soltos, tais como: “Eu imagino que”, ou: “É provável que”; mas o cabo, a forte corrente de nossa âncora firme, é o juramento e a promessa Daquele que é a verdade eterna. Nossa salvação está amarrada pelas próprias mãos de Deus, e com a força do próprio Cristo, ao pilar da natureza imutável de Deus. “Eu, o Senhor, não mudo; por isso vós, ó filhos de Jacó, não sois consumidos” (Ml 3.6).

Nós podemos brincar, e dançar e saltar em cima da Rocha digna e inamovível; o solo é bom e firme, e subsistirá aos ataques do inferno e do mundo.

Oh, que nossa fé sobreviva, contra os ventos e as ondas altas e orgulhosas, quando nossos mares parecerem estar todos em chamas! Oh, como eu me deixo levar freqüentemente! Eu sou posto a nadar quase afundando. Eu acho que o diabo tem a vantagem do terreno nessa batalha, pois luta em terreno conhecido: em nossa natureza corrupta. Pobre de mim! Ela é uma amiga parente dele, de sangue próximo, e não deixará de cair sobre nós. E, conseqüentemente, Ele que salva ao extremo, e leva muitos filhos à glória, ainda está defendendo minha salvação.

Dependência em Cristo para a perseverança

Vinte vezes por dia eu embaraço o meu céu, e aí tenho de chegar a Cristo com meu trabalho todo embaraçado para preocupá-Lo (como se pudesse) a fim de que Ele o desembarace; e procurar de novo o final certo da linha, e dobrar novamente minha glória eterna com as mãos Dele e dar uma palmada apropriada de Sua mão santa e graciosa à minha salvação arruinada e estragada.

Certamente é penoso cuidar para que uma criança tola não caia e fira o supercílio, e que chore por esse ou aquele brinquedo, ou que corra descuidada, ou pegue doenças infantis. E, antes que essa criança passe por tudo isso, ela precisa de muito cuidado e preocupação de seus cuidadores por causa de uma multidão de pequenas coisas. E assim é um crente: um trabalho penoso e um novelo embaraçado (como costumávamos dizer) para Cristo. Mas Deus seja louvado, pois a muitas salvações estragadas e a muitos novelos embaraçados Cristo consertou, desde que Ele passou a ser preceptor da humanidade perdida.

Oh, o que nós, crianças, faríamos sem Ele! Logo iríamos arruinar tudo! Mas, quanto menos peso sobre nossas pernas fracas e mais peso sobre Cristo, a Rocha forte, melhor para nós.

É bom para nós que Cristo sempre tenha tomado o estorvo de nós; é nosso céu poder colocar os muitos pesos e cargas sobre Cristo, fazer Dele tudo o que temos, da raiz ao topo, começando e terminando nossa salvação. Senhor, segura-nos aqui.

[1] Earlston, o Ancião e o Jovem (Alexander Gordon), descendentes da casa de Gordon de Lochinvar, que foi influenciado pelos ensinamentos de John Wycliffe. A casa de Earlston ficava perto de Carsphairn nas ilhas de Kirkcudbright. Alexander Gordon foi um presbiteriano convicto que compareceu perante o Tribunal da Alta Comissão em defesa de seus princípios (1635). Ele foi multado pesadamente. Mais tarde, ele representou Galloway no Parlamento Escocês. Seu filho mais velho, que herdou a propriedade da família em 1655, foi morto em 1679 enquanto dava assistência à causa da Aliança.

 

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Samuel Rutherford Sofrimento Testemunho

Cartas de Samuel Rutherford (13)

Para John Stuart [1]

Aberdeen, 1637

Auto-submissão

Oh, se minha vontade se calasse como “uma criança desmamada dos seios” (Sl 131.2). Mas, pobre de mim! Quem tem um coração que dará a Cristo a última palavra na prova, e ouvirá e não falará outra vez? Oh! Provas e respostas queixosas, como “eu faço bem ficar indignado até a morte” (Jn 4.9), têm o mau cheiro de forte corrupção. Oh, bendita a alma que pode sacrificar sua vontade, e ir para o céu, tendo perdido sua vontade e ter resignado a ela por Cristo!

Eu não desejaria mais nada além de que Cristo fosse o rei absoluto sobre a minha vontade, e que minha vontade fosse uma sofredora em todas as cruzes, sem ter de se encontrar com Cristo e perguntar-Lhe: “Por que isso é assim?”

Eu ainda desejaria que meu amor ficasse apenas ao lado do lindo Jesus, e recebesse a graça de olhar para Ele, e arder por Ele, supondo que não pudesse tê-Lo até que meu Senhor dobrasse as folhas e os dois lados das tendas de barro dos pequenos pastores.

A estabilidade da salvação

Aquele que disse “Cristo em vós, a esperança da glória” (Cl 1.27) – pois nossa esperança e o alicerce e seus pilares são Cristo-Deus – sabia que os pecadores estão ancorados e estabilizados em Deus; de tal forma que, se Deus não mudar, o que é impossível, então, minha esperança não oscilará. Oh, doce estabilidade da salvação bem alicerçada! Quem poderia ganhar o céu, se não fosse assim? E quem poderia ser salvo se Deus não fosse Deus, e se Ele não fosse o Deus que Ele é? Oh, que Deus seja louvado porque nossa salvação é abordada e aportada e firmada em Cristo, que é o Mestre dos ventos e das tempestades! E quais são os ventos dos mares que, ao soprar, podem tirar a costa ou a terra de seu lugar? Os baluartes muitas vezes são derrubados, mas a costa não é removida; no entanto, mesmo se fosse, ou pudesse ser, mesmo assim Deus não pode oscilar nem ser removido.

Oh, que nos afastemos deste Senhor forte e inamovível, e que nos libertemos, se estiver em nosso poder, Dele! Ai de nós! Nosso amor jovem e imaturo não alcançou Cristo, não O conhece. Ele é de tal largura e amplidão, profundidade e altura e de doçura insuperável, que nosso amor é pequeno demais para Ele; mas, oh, que nosso amor, pequeno como é, una-se à enorme doçura e à transcendente Excelência Dele! Oh, três vezes benditos, e benditos eternamente sejam aqueles que deixam a si mesmos: que estejam em amor unidos a Ele!


[1] John Stuart, Reitor de Ayr. “Um cristão piedoso e zeloso de muito tempo, desde os seus tenros anos.” Ele usou seus bens deste mundo para aliviar os oprimidos. Ele estava entre aqueles que inutilmente se esforçaram para imigrar para a Nova Inglaterra.

 

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Francisco Nunes Testemunho Testemunho

Um pensamento sobre a comunhão cristã

O que expressamos quando estamos com outros cristãos?

Recentemente, num domingo à tarde, rodeado de muitos amados irmãos, enquanto eu lavava louça me vieram ao coração dois pensamentos.

1) Nosso ajuntamento cristão não tem aquilo que o mundo tem.

Quando cristãos – e aqui me refiro a cristãos sérios, bíblicos, que levam a santidade a sério, que têm temor do Senhor, que honram Seu nome por meio do viver prático que têm – estão juntos, em ambiente informal (num almoço ou numa convivência, por exemplo), não há aquilo que caracteriza eventos mundanos semelhantes: bebedeira, palavrões, insinuações maldosas, piadas de baixo calão, fofocas, adultérios, crianças largadas a si mesmas, etc. Cristãos que honram a Deus em todos os aspectos da vida, começando com a linguagem, reúnem-se e conversam amenidades, trocam idéias sobre as questões mundiais, dicas sobre educação de filhos, riem de si mesmos, buscam orientação profissional, trocam receitas, dicas de tratamento médico, corujices sobre os filhos… É aquilo que chamam de ambiente saudável.

Isso é, sem dúvida, para quem teme a Deus, mil vezes melhor do que um ambiente mundano típico. (Infelizmente, há muitos cristãos que se sentem completamente à vontade em ambientes mundanos, que os preferem àqueles “crentes”, que estão plenamente conformados a este mundo, pensando, falando, rindo, comendo, bebendo e vivendo como se a ele pertencessem.) Há ali segurança, respeito mútuo, alegria saudável, domínio próprio, ambiente propício para as crianças e tantas outras vantagens. É muito bom, é muito vantajoso estar em um lugar assim. E eu estava alegre com essa percepção e grato a Deus por estar ali.

Mas algo mais me veio ao coração:

2) Mas será que nosso ajuntamento cristão tem aquilo que o mundo não tem?

Isso me foi um choque instantâneo. O que há de distintivo, único, exclusivo dos cristãos? O que há nos cristãos que não há, de modo algum, naqueles que não obedecem à fé? A presença do Senhor Jesus, por meio do Espírito; a vida de Cristo Jesus habitando naqueles que Lhe pertencem. E é isto que faz a verdadeira e prática comunhão cristã: Cristo ser “servido” pelos cristãos uns aos outros. Quando Cristo é nosso centro e a esfera de nossa comunhão, podemos dizer que, de fato, estamos em comunhão. Do contrário, teremos, talvez, apenas um bom ajuntamento cristão (que, repito, em princípio é muito melhor do qualquer similar mundano).

Mas, tenho de reconhecer, é tão difícil termos genuína comunhão! É tão difícil sairmos da esfera natural, das coisas desta vida, e partilharmos das celestiais, daquilo que é nossa rica herança em Cristo, das riquezas insondáveis Daquele que nos salvou! Parece pouco espontâneo (perdoem-me se generalizo; falo, em primeiro lugar, de mim mesmo) voltar-se de um assunto desta vida para a Bíblia, como se fosse possível mantê-los separados, como se fossem antagônicos.

Como cristãos, temos algo único: um relacionamento vivo e real com Deus por meio de Seu Filho, Jesus Cristo! Isso nenhum ajuntamento secular tem. No entanto, é possível que um ajuntamento de cristãos também não o tenha, caso não falemos entre nós “com salmos, e hinos e cânticos espirituais”, que é o modo de nos enchermos do Espírito (Ef 5.19); se não tivermos um falar que denuncie que estivemos com Jesus (At 4.13). Os primeiros discípulos não podiam deixar de falar do que tinham visto e ouvido (4.20). E nós, cristãos do século 21, por que deixamos tão facilmente? É possível que seja resultado de vermos e ouvirmos pouco nosso Senhor, de termos pouca comunhão com Ele, por Sua Palavra não habitar em nós ricamente (Cl 3.16), e, como a boca fala do que está cheio o coração…

Os primeiros cristãos caíram na graça de todo o povo (At 2.47), pois seu viver diário e prático não tinha aquilo que o mundo tinha ― era distinto, atraente. No entanto, “dos outros [os não-cristãos], porém, ninguém ousava ajuntar-se a eles” (5.13), certamente porque naquele ajuntamento havia algo que no mundo não havia: Deus mesmo, real, manifestado palpavelmente por meio de Seus filhos ― um Deus tão santo que não tolerava mentira entre eles (vv. 1-11). As pessoas de fora viam, naquele novo grupo, características que as atraíam, mas percebiam que havia também uma realidade interior, um padrão dela derivado, que impedia que qualquer um se achegasse e por ali ficasse se não fosse um “deles”, um discípulo, um nascido do alto, um filho de Deus.

No que depender de mim e de você, que tipo de ajuntamento cristão o mundo verá?

 

Publicado originalmente em 7.2.15; atualizado em 1.8.18.

 

(Fonte da imagem)

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