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Perseverança T. Austin-Sparks

Capítulo 8: O significado dos levitas em relação à plenitude celestial

E ordenaram ao povo, dizendo: Quando virdes a arca da aliança do Senhor, vosso Deus, e que os sacerdotes levitas a levam, partireis vós também do vosso lugar, e a seguireis.

(Js 3.3)

Em primeiro lugar, vamos tomar este fragmento – “os sacerdotes levitas a levam”, levam a arca –, que é a chave para nossa consideração nesse momento.

Vemos muitas referências aos levitas no livro de Josué, indicando sua importância. Temos, inclusive, um capítulo inteiro dedicado a eles. Meu desejo, com a ajuda do Espírito Santo, é tentar apresentar-lhes o sentido dos levitas em relação à plenitude celestial. Apesar de muitos de nós estarmos bastante familiarizados com sua história, acredito ser necessário inicialmente tratar dela, ainda que de forma breve.

Os levitas são apresentados de três maneiras em Josué. Em primeiro lugar, como acabamos de ver, eles são vistos levando a arca da aliança para o leito do Jordão e permanecendo ali com ela, a uma distância de dois mil côvados do povo – uma distância muito grande, como já abordamos no capítulo 5. Então, em segundo lugar, é declarado, em Josué 14, que os levitas não receberiam herança. Ou seja, na divisão da terra, ao contrário das outras tribos, eles não receberiam uma porção específica, não receberiam uma herança na terra. Mas, em terceiro lugar, no capítulo 21, que é focado nos levitas, descobrimos que todas as tribos precisaram conceder a eles um lote, um espaço. Os levitas foram distribuídos entre todas as tribos, e seu lugar e sua porção não estavam limitados a um só lugar; eles foram distribuídos por todo o país, ou seja, os levitas foram espalhados por toda a terra, por todos os lugares, em meio ao restante do povo. Esses são três pontos relacionados aos levitas neste livro, plenos de maravilhoso significado.

Os levitas representam o propósito de Deus

O que os levitas representam? Voltemos um pouco na história. Lembre-se de como os levitas se tornaram uma tribo. Isso aconteceu quando Israel retrocedeu, quando o bezerro de ouro foi feito, quando o povo clamou: “Este é o teu deus, ó Israel” (Êx 32.4), abandonando o Senhor. Então, Moisés desceu do monte, ouviu e viu tudo aquilo, destruiu o bezerro, pôs-se à porta do arraial e disse: “Quem é do Senhor, venha a mim. Então se ajuntaram a ele todos os filhos de Levi. E disse-lhes: Assim diz o Senhor, Deus de Israel: Cada um ponha a sua espada sobre a sua coxa; e passai e tornai pelo arraial de porta em porta, e mate cada um a seu irmão, e cada um a seu amigo, e cada um a seu vizinho. E os filhos de Levi fizeram conforme à palavra de Moisés” (vv. 26-28). Todas as considerações terrenas foram sacrificadas a favor dos interesses celestiais; todos os relacionamentos terrenos foram cortados pelo propósito celestial; tudo aquilo que envolvia sentimentos e emoções naturais, tudo o que era da mera alma, foi morto pelos interesses daquilo que governava o próprio surgimento do povo de Deus. Isso porque o propósito de Deus era que eles fossem um povo celestial, e não deveriam se envolver no sistema espiritual que governa este mundo. Nesse ponto específico, os levitas representam o propósito celestial de Deus. Aquilo que tiveram de fazer era muito drástico e absoluto, não é mesmo?

Lembre-se de que o Senhor jamais se esqueceu disso. No final do Antigo Testamento, no seu último livro, Malaquias, vemos uma referência à questão de Baal-Peor, quando Finéias sustentou uma posição a favor dos interesses celestiais que foram originalmente assumidos naquela ocasião do bezerro de ouro (Nm 14), e o Senhor disse: “Minha aliança com ele [Levi] foi de vida e paz” (Ml 2.5). “Não conheceu seus irmãos” (Dt 33.9): isto é, ele não se compadeceu da própria carne quando ela se afastou dos elevados propósitos de Deus. Deus estabeleceu Sua aliança com Levi. Assim, logo no início, os levitas foram selecionados e separados do restante de Israel, tomando o lugar dos primogênitos em Israel, tornando-se a tribo dos primogênitos. Podemos imediatamente remontar à Epístolas aos Hebreus: “Chegastes ao monte Sião […] à universal assembléia e igreja dos primogênitos, que estão inscritos nos céus” (12.22,23). Aqui vemos o celestial entrando em cena novamente: o primogênito arrolado no céu, os levitas, o propósito celestial.

No capítulo 5, mencionamos o espaço de, pelo menos, dois mil côvados que foi estabelecido entre o povo e a arca – não podemos determinar hoje qual dos três tipos de côvado foi adotado, mas a distância poderia ser estimada em, no mínimo, 300 metros, podendo facilmente atingir um quilômetro. Esse grande espaço entre a arca e o povo indicava a imensa distância entre Cristo e qualquer outra pessoa na obra de salvação, de redenção, de libertação. Entretanto, vemos levitas carregando a arca. Você pode questionar: “Isso não é uma contradição? Cristo permanece único, separado de tudo.” Veja o princípio do levita: ele representa aquilo que é celestial.

Este é o Cristo celestial, e esse é o princípio dos levitas que carregam a arca. Este não é apenas o Cristo terreno, o Jesus da história, um Homem entre os homens, ainda que infinitamente superior. Este é o Cristo Celestial.

Se você desejar uma prova desse princípio, lembre-se do incidente nos dias de Davi, quando ele consultou os anciãos de Israel a fim de trazer a arca até Jerusalém e fez um carro com esse propósito. Ele aprendeu isso na terra dos filisteus, onde vivera durante o reinado de Saul, quando os viu fabricando carros. Quando a arca foi posta em um carro, uma tragédia logo se seguiu: Uzá morreu diante do Senhor. Davi ficou muito triste com o Senhor, porque Ele abrira uma rotura em Uzá [2Sm 6.8]; mas, sendo o homem que era, sempre ajustável ao Senhor – uma das coisas gloriosas sobre Davi era sua ajustabilidade –, ele não se alongou na controvérsia com o Senhor, nem o Senhor com ele. Davi se voltou para o Senhor e provavelmente tentou argumentar, mas o Senhor venceu a discussão. O Senhor o conduziu de volta às Escrituras e mostrou-lhe que os levitas deveriam carregar a arca – não máquinas, nem organizações, mas um povo celestial deveria levar o testemunho de Jesus.

Então, os levitas estavam carregando a arca. O fator celestial é o princípio da função levita, e isso, claro, é o cerne da questão de eles não receberem uma herança na terra. Eles não pertencem à terra: pertencem ao céu. Eles não serão enraizados aqui; mas, ainda assim, como homens que representam as coisas celestiais, eles serão distribuídos entre todo o povo de Deus para manter o povo de Deus em contato com o céu. O povo de Deus está sempre inclinado a se tornar terreno. Este tem sido o perigo e a tragédia da Igreja ao longo dos séculos: sempre gravitar em torno desta terra, tornando-se algo daqui segundo os conceitos do homem e os critérios deste mundo.

O Senhor precisa de levitas entre Seu povo

Agora, chegamos ao ponto que desejamos destacar. O Senhor precisa daqueles que passaram pelo sofrimento, pela Cruz e pelo sacrifício mediante uma profunda obra de separação; daqueles que não fizeram concessões, não consideraram seus sentimentos ou interesses terrenos. Ele precisa daqueles que se levantaram e estão totalmente firmados, a qualquer preço, a favor de Seu pleno propósito celestial em relação a Seu Filho e à Igreja. O Senhor precisa ter esses, e precisa distribuí-los por toda parte, trazendo-os a um relacionamento vital com Seu povo, a fim de evitar que este sucumba a esta tendência terrena: de se tornarem ligados ao mundo.

Centro de operações celestial

Não foi exatamente isso que aconteceu no Novo Testamento? É fascinante perceber isso. Quando chegamos ao Novo Testamento, deixamos os tipos e figuras para trás (imagino que alguns de vocês estejam um pouco cansados de tipos e figuras; já receberam muito deles). É maravilhoso ver a realidade! Quando chegamos em Atos, descobrimos que tudo se repete. O que aconteceu? Iniciamos com o Senhor Jesus posicionado no céu: o centro de operações celestial, cada detalhe do governo agora no céu; e então o Espírito Santo vem para tornar tudo celestial, para governar tudo em relação ao céu. Foi disto que falamos no último capítulo: o Capitão do exército do Senhor chegando para encaminhar tudo em relação ao céu e, depois, tudo se move a partir do céu.

O primeiro movimento do céu foi em Jerusalém, um poderoso movimento do céu, e as coisas estavam acontecendo. Mas observe a tendência depois de certo tempo (é claro que a história é contada em poucas frases, mas abrange um período considerável). Depois de um tempo, Jerusalém começou a gravitar em torno da Terra, e tendeu – não apenas tendeu, mas realmente começou – a se tornar a sede terrena da Igreja. De acordo com o mandamento do Senhor, Jerusalém deveria ser apenas o começo, o ponto inicial: “Começando em Jerusalém” [Lc 24.47]. Nunca fora planejado que Jerusalém se tornasse em algo final e inclusivo, mas ela se constituiu em uma espécie de centro de operações para governar a Igreja, e veremos esse tipo de coisa se desenvolvendo à medida que avançamos no livro de Atos. Olhe um pouco para Paulo, o homem celestial, e veja como ele repudiou Jerusalém.

Quando chegamos ao sétimo capítulo do livro de Atos, temos o apedrejamento de Estêvão, e então vemos o fim de Jerusalém. A partir desse ponto, o céu reivindica: “Não; nada de um centro ou sede terrena; a sede fica no céu”; e daquele ponto em diante, os irmãos começaram a ser dispersos de Jerusalém. Eles foram agitados e jogados fora do ninho, seguindo em todas as direções. Independente do lugar para onde fossem, Filipe ou quem quer que fosse, eles testificavam do Senhor celestial por toda parte, apresentando o lado celestial das coisas. Sim: esses levitas foram colocados por toda parte, no mundo inteiro, com o propósito de manter as coisas no caminho celestial. Tudo se desenvolveu assim.

Ao chegar no capítulo 9, vislumbramos um dos mais extraordinários movimentos do céu. Saulo seguia de Jerusalém para Damasco – e Jerusalém era seu centro de operações, com certeza. Ele recebera autoridade do sumo sacerdote, dos governantes, e o governo estava em Jerusalém, naquilo que lhe dizia respeito. Mas Paulo descobre, antes de chegar ao fim da jornada, que o governo estava no céu, não em Jerusalém. Os céus foram rasgados, ele viu uma luz do céu e ouviu uma voz do céu. E esse é o fim do mundanismo de Saulo de Tarso. Dali em diante, ele é um homem celestial – e veja como a partir daquele ponto esse homem sempre se movia em relação ao céu. Poderíamos seguir com mais detalhes, mas o fato é que aqui temos um poderoso levita. E não mais vemos Jerusalém, mas Antioquia. O Senhor se moveu de Jerusalém. Antioquia representa algo espiritualmente puro. Jerusalém se tornou o centro do oficialismo cristão, mas não há nada de oficial em Antioquia. O que temos ali, que agora suplanta Jerusalém, é um grupo de homens jejuando e orando. Então, o céu irrompe e o Espírito Santo diz: “Apartai-me a Barnabé e a Saulo” (At 13.2). Vemos algo relacionado ao céu. Isso é maravilhoso.

Poderíamos continuar evidenciando isso. Mas qual é o ponto central? Não ficou muito claro que, do ponto de vista de Deus, de acordo com Sua mente, tudo deve ser relacionado ao céu e governado a partir de lá? A plenitude celestial é Seu objetivo para Seu povo: torná-lo um povo celestial, cheio de Sua plenitude celestial. Bem no final do registro da Palavra de Deus vemos a nova Jerusalém – não a antiga, mas a nova Jerusalém – descendo do céu da parte de Deus, em grande plenitude celestial. Aquela nova Jerusalém é imensa – doze mil estádios em todas as direções (Ap 21.16). Vemos enorme plenitude ali. Todas as nações irão derivar seus recursos a partir dela. O fruto da sua árvore da vida e as águas do seu rio da vida são para todas as nações. Sua luz é para todas as nações. “E as nações andarão mediante a sua luz” (v. 24, ARA). Eis a plenitude celestial, aquilo em que o Senhor tem trabalhado todo o tempo.

Ele está trabalhando em nós agora. Às vezes imagino que somos duas pessoas: uma na terra e outra no céu. Naturalmente estamos aqui, mas existe algo de nós “subindo” o tempo todo, quando o Senhor implanta em nós algo mais do céu. Isso está sendo armazenado lá. Não seria talvez isso que o Senhor quis dizer quando se referiu a Si mesmo como “o Filho do homem, que está no céu” (Jo 3.13), mesmo enquanto ainda estava aqui na Terra? Existe um aspecto nosso que está crescendo no céu. Não pense no céu como um planeta remoto. Estamos crescendo nesse conceito celestial das coisas. Algo de nós está “subindo”.

Acredito que a Igreja seja assim. A verdadeira Igreja é algo invisível. Não sabemos, exceto pelo Espírito, o que a Igreja realmente é. Você não pode dizer que as pessoas que freqüentam determinado lugar são a Igreja. Você não pode dizer que as pessoas que professam certas doutrinas e verdades cristãs são a Igreja. Elas podem ser ou não. Mas se você se encontra no Espírito – e isso é algo intangível –, ali você tem a Igreja. A Igreja é assim, esse é seu caráter celestial – e isso está “subindo”, por assim dizer, o tempo todo, e dentro em pouco irá descer em plenitude do céu. Ela está sendo edificada dessa forma agora. É a vontade de Deus que seja assim.

O ponto que desejo enfatizar é que o Senhor precisa desse tipo de representação, seja ela em indivíduos ou em grupos, para estabelecer ao lado de Seu povo a fim de mantê-lo em contato com o céu, mantendo as coisas celestiais sempre em vista. Uma das funções dos levitas era ensinar a Palavra de Deus – ou seja, manter o povo do Senhor em contato com os Seus pensamentos. Isso é funcional, não oficial. Não precisamos ser chamados de levitas, nem mesmo de “reverendos”. Não assuma títulos, mas apreenda os princípios. Se aqui na Terra nós estamos mantendo as pessoas em contato com o céu, se estamos ligados às coisas celestiais, se as pessoas são edificadas por nossa presença – ainda que não seja necessariamente por meio de nossa pregação ou por afirmarmos: “Veja isso ou aquilo…”; não, apenas por nossa presença, pela encarnação da vida, da natureza e da plenitude celestiais em nós –, se as pessoas são levadas a ver o pensamento mais pleno de Deus quando estão perto de nós, somos levitas sem adotar esse título, e é disso que o Senhor precisa.

Isso pode acontecer conosco como indivíduos. O Senhor é quem ordena a disposição de Seu povo. No livro de Josué foi o céu que estabeleceu e ordenou as tribos, afirmando: “Você ficará aqui, este é o seu lugar”. Soberanamente o Senhor vai dispor Seu povo: colocará alguns na Alemanha, outros, na Holanda, na Inglaterra ou na América; e, quando Ele estabelecer você em um lugar, saiba que está ali por indicação do céu, para ser um elo com o céu, para impedir que as coisas se acomodem espiritualmente no nível terreno.

Esse, é claro, também é o significado das igrejas no Novo Testamento. Este é o conceito Divino: ter grupos do povo do Senhor plantados aqui, ali e por toda parte, como um ministério levítico corporativo, mantendo o céu próximo e as coisas perto do céu. Oh, que cada igreja fosse assim, mantendo as coisas perto do céu!

Bem, esse é o começo. Muito mais poderia ser dito a esse respeito. Podemos começar agora a considerar todas as cartas do Novo Testamento e observar o resultado. Começando com Romanos 12, pois aí temos um princípio levítico: “Rogo-vos, pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso serviço racional [espiritual]. E não sede conformados com este mundo” [vv. 1,2]. Isso é levítico: um sacrifício vivo não conformado com este mundo. Poderíamos continuar fazendo isso ao longo do Novo Testamento. Mas o grande ponto de nossas meditações é que nossa vida aqui precisa estar relacionada ao céu, debaixo do seu governo, trazendo à luz as coisas celestiais, ministrando em relação ao céu. Isso precisa ser verdadeiro para nós, dentro de nossa medida e de nosso chamado; da mesma forma que aconteceu com Paulo, precisamos de uma visão celestial e não podemos ser desobedientes a ela. Quanto devemos àquele querido homem por todo o sacrifício e sofrimento que ele experimentou pelas coisas celestiais! E quão fiel ao céu ele foi até o fim – lançado na prisão, acorrentado, e não falando sobre nada além dos lugares celestiais.

Você diz que sua situação é tão difícil que não consegue introduzir o céu nela? Bem, existem situações difíceis. A situação de Daniel e seus três companheiros era difícil, mas eles introduziram o céu nela. Uma grande frase no livro de Daniel é “o céu reina” (4.26). E eles provaram essa verdade. O quartel-general está no céu, não na Babilônia, não em Roma, não em Jerusalém ou em qualquer outro lugar, mas no céu. O Senhor nos ajude a viver à altura e a partir do céu.

Agora que estamos chegando ao fim, trazemos mais uma vez o objeto específico dessas mensagens.

Deus tem apenas um objetivo, e só isso Lhe trará completa satisfação: a Plenitude de Cristo. Essa plenitude deve ser encontrada em um povo tomado das nações. Por meio desse povo, nessa plenitude, o Senhor tem o propósito de governar a criação nas eras vindouras. Isso não será alcançado independente de nossa cooperação, mas apenas pagando um alto preço e travando severo conflito hoje.

Nem todos os que “saem” [do mundo] “entram” neste propósito. Muitos não irão até o fim, cumprindo todas as condições, “tornando mais firme a vocação e eleição” [cf. 2Pd 1.10], ainda que entrem no Reino para receber sua herança em medidas diferentes, menores ou maiores.

Os pioneiros são necessários para a plenitude do propósito, e o caminho trilhado por eles é peculiar, repleto de experiências, sofrimentos, perplexidades e provações, pouco conhecidos pelos demais.

Mas Deus precisa de Seus pioneiros, indivíduos ou grupos; e estes são aqueles que “perseveram em seguir ao Senhor [cf. Js 14.8].


Para ler o capítulo 1, clique aqui; capítulo 2, aqui; capítulo 3, aqui; capítulo 4, aqui, capítulo 5, aqui, capítulo 6, aqui, capítulo 7, aqui.

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Capítulo 7: Tomando posse da terra celestial

E sucedeu que, estando Josué perto de Jericó, levantou os seus olhos e olhou; e eis que se pôs em pé diante dele um homem que tinha na mão uma espada nua; e chegou-se Josué a Ele, e disse-Lhe: ‘És tu dos nossos, ou dos nossos inimigos?’ E disse ele: ‘Não, mas venho agora como príncipe do exército do Senhor.’ Então Josué se prostrou com o seu rosto em terra e O adorou, e disse-Lhe: ‘Que diz meu senhor ao seu servo?’ Então disse o príncipe do exército do Senhor a Josué: ‘Descalça os sapatos de teus pés, porque o lugar em que estás é santo.’ E fez Josué assim.

(Js 5.13-15)

Tendo iluminados os olhos do vosso entendimento, para que saibais qual seja a esperança da sua vocação, e quais as riquezas da glória da sua herança nos santos.

(Ef 1.18)

Gostaria de deixar claro desde já que não é meu propósito tratar da correspondência entre o livro de Josué e a carta aos efésios. Estamos ocupados nesses estudos com um assunto em particular, ao redor do qual tudo se reúne, o qual é o centro, a saber: o objetivo de Deus de ter a plenitude celestial expressa nessa Terra e por meio de um povo. Todas as Suas atividades ao longo dos séculos, desde o tempo em que estabeleceu os céus sobre a Terra foram, e ainda são, se tomadas a partir do ponto de vista do homem, como uma peregrinação, um movimento espiritual em direção ao céu. Isso não significa necessariamente um movimento literal para algum lugar, mas é um progresso dentro da esfera do propósito de Deus – é aquilo que o Senhor Jesus denominou “como no céu” (Mt 6.10) quando se referia à vontade de Deus, uma correspondência na terra daquilo que está no céu. Existe um caminho, uma jornada celestial nessa direção, e estamos buscando, entre outras coisas, ver sua natureza. Assim, vimos que, uma vez que na conversão muitos não sabem muito além do início desse caminho, o Senhor levanta instrumentos com o objetivo de serem os pioneiros do caminho para os demais, e nesses vasos aprofunda bastante Sua obra em relação ao céu.

Vamos prosseguir um pouco mais. Nessas duas passagens que acabamos de ler chegamos a um ponto particular nesta questão de atingir a plenitude celestial. A segunda metade do livro de Josué se concentra no povo recebendo a herança: a herança é dividida, distribuída e Israel toma posse dela. Estranhamente vemos a ordem invertida em Efésios, a epístola correspondente a Josué. Ali se fala da herança de Deus em Seu povo: “As riquezas da glória da Sua herança nos santos” (1.18). Gostaria mencionar algo a esse respeito antes de prosseguirmos, pois não se trata de algo diferente, mas da mesma coisa vista por outro lado.

O Senhor só recebe Sua herança quando, e somente quando, Seu povo se torna de fato um povo celestial. Para que o Senhor tenha Sua herança, Seu povo deve estar na posição em que é visto na Epístola aos Efésios.

Quando Seu povo de fato toma a posição e a posse [descritas no livro de Josué], então se torna verdadeiramente um povo celestial, e o Senhor recebe Sua herança. Ver “as riquezas da glória da Sua herança nos santos” significa, por esse outro lado, que chegamos ao ponto onde Ele pode ver isso em nós. O Senhor não pode ver Sua herança nos santos até que Ele os veja posicionados no lugar que Ele designou, até que Ele os veja realmente como o povo que responde a Seu propósito como um povo celestial. Digo isso para esclarecer qualquer possível dificuldade mental advinda de falarmos do povo possuindo uma herança e dessa menção ao Senhor possuindo Sua herança.

O ponto que queremos destacar não é apenas essa verdade de existir uma herança em Cristo, seja para nós ou para o Senhor. Não nos referimos apenas a essa verdade, demonstrada na Palavra, de que quando estamos em união com Cristo por meio de Sua morte, de Seu sepultamento e de Sua ressurreição, entramos na esfera de plenitude Divina. O ponto que estamos enfatizando nesse momento é de realmente nos tornarmos um povo celestial, de fato tomar posse disso – não doutrinária, não teórica, não biblicamente, mas em verdade. Tenho certeza de que vemos essa verdade, a contemplamos, reconhecemos que é uma apresentação maravilhosa. Estou certo de que abraçamos essa idéia no coração, mas o problema é que tudo isso é tão familiar e amplamente difundido por meio de ensino, e ainda assim poucos vivem essa experiência. Eles ainda não chegaram realmente àquela posição onde sua vida corresponde a esse conhecimento, e qual é a utilidade ou o benefício de toda a nossa doutrina, do nosso ensino, da nossa interpretação, da contemplação e tudo o mais se não desfrutamos disso? Portanto, precisamos olhar para o caminho de maneira que, eu diria, possamos chegar lá, para que aquilo se torne realidade.

O senhorio do Espírito Santo

A primeira coisa que acontece depois daquela obra preparatória que mencionamos anteriormente – o Jordão, o deixar algo no leito do Jordão, nosso velho homem crucificado e deixado ali; após deixá-lo ali e deixá-lo ser coberto pelas águas e deixá-lo para trás; depois disso e depois de Gilgal, que representa o lado negativo desse fato, o despojamento – é o lado positivo, o revestir-se, a tomada de posse ou a entrada na terra de fato, é o tornar-se aquilo que sempre esteve em vista. Isso sempre esteve em vista, pelo menos desde que o povo saiu do Egito, e vemos que isso foi mencionado no cântico de Moisés. Sim, isso foi prenunciado na libertação do povo, do outro lado do Mar Vermelho, naquela grandiosa canção profética. Sempre foi uma noção, mas tratava-se de algo remoto, em algum ponto distante, mais ou menos vívido, conforme os dias passavam; era algumas vezes algo forte, claro, positivo e envolvente; em outras, esmaecido, fraco, distante e abstrato.

Mas toda essa questão veio à tona como algo presente: a preparação fora feita. Chegamos à passagem que acabamos de ler em Josué 5.13-15. Josué, diante de Jericó, “levantou os seus olhos e olhou; e eis que se pôs em pé diante dele um homem que tinha na mão uma espada nua”. O espírito guerreiro em Josué evidentemente se elevou, e ele desafiou o homem: “És Tu dos nossos, ou dos nossos inimigos?” – provavelmente indicando que, se o homem respondesse sim à última parte da pergunta, seria pior para ele –, pois naquele ponto Josué via apenas um homem. A resposta dada revelou que Ele era mais do que um homem. Josué capitulou, deixou a atitude desafiadora de lado, curvou-se, adorou, confessou-se servo desse Homem e pediu-Lhe instruções.

Quem é este Homem? Como eu disse em um capítulo anterior, minha convicção particular é que este Homem representa, nesta porção específica da Bíblia, o Espírito Santo no Novo Testamento. Isso, acredito eu, poderia ser confirmado por muitas evidências, mas, sem argumentar a esse respeito a partir das Escrituras, vamos ver como a coisa se desenrola de fato.

Vemos diversas mudanças tomando lugar a partir deste ponto. Até aqui o curso, o caminho, o governo do povo tinham sido regulados pela coluna de nuvem e pela coluna de fogo. Todos concordamos que isso era o Espírito Santo. Trata-se de algo objetivo, evidente para os sentidos, algo característico do deserto. Quando chegamos aos lugares celestiais, tudo provém do Espírito; mas, apesar de neste ponto Ele ter assumido uma forma visível, isso nunca mais aconteceu no futuro. Ele desapareceu da percepção sensorial, apesar de permanecer presente nos acontecimentos, sempre ali, o Príncipe invisível do exército do Senhor. Essa é uma mudança importante, e ainda há muitas outras acontecendo. Não há mais o maná, mas o fruto da terra, pães e espigas tostadas, que são, em outro sentido o pão da vida, o alimento celestial [conf. Js 5.11,12]. Tudo isso pertence a outra esfera: Cristo em ressurreição, não mais o pão partido, Cristo em humilhação. Temos Cristo em ressurreição, o alimento de um povo celestial. Um alimento pertencia ao deserto, mas esse pertence à terra. E assim podemos continuar observando essas diferenças. Veja, nesta esfera tudo é essencialmente celestial, toma um novo sentido; em outras palavras, é essencialmente espiritual; não mais sensorial, temporal, mas essencialmente espiritual.

Paulo diz que o Espírito Santo é o “penhor da nossa herança” (Ef 1.14), de forma que a chegada do Espírito Santo neste ponto torna-se a garantia de que o propósito de Deus será cumprido. Apesar de invisível a partir deste ponto, Ele é a segurança absoluta de tudo o que está prestes a acontecer. Em nosso último estudo mencionamos que a presença do Espírito Santo na unção para o propósito Divino positivamente garante a realização desse propósito, não é apenas uma fonte para a capacitação, mas é a própria base que garante sua realização. Como isso se torna realidade? Algo mais do que apenas uma doutrina, uma verdade, um preceito, mas se concretiza como uma realidade presente?

Deus nos deu o Espírito como um penhor: a garantia, a segurança. O aspecto positivo se inicia com este fato: o Espírito Santo é apresentado como Senhor. Perceba que a Escritura o denomina “como príncipe”. “Como Príncipe do exército do Senhor”: Ele é apresentado em Seu Senhorio. O lado positivo das coisas começa aqui, com o Senhorio absoluto do Espírito Santo entre o povo de Deus. Ele é assim apresentado e reconhecido, e algo relacionado a isso é feito. Não se trata de uma verdade objetiva, mas de algo que é positivamente realizado em relação a ela. Josué se prostrou em absolutas rendição e sujeição.

A Cruz conduziu a isso. A Cruz sempre nos dirige ao Senhorio do Espírito Santo. Deixamos o Jordão com direção a Seu Senhorio. A Cruz demanda isso. Se Ele não estiver em Seu lugar como Senhor, e se não houver rendição, melhor retornar à Cruz – volte e dê outra olhada nas águas, veja aquelas pedras que devem representar você. Algo errado aconteceu; se Ele não for o Senhor você não está sendo fiel ao fato da Cruz.

Mas aqui, na interpretação espiritual, assumimos que a Cruz já é realmente um fato estabelecido. Embora existam as falhas e as fraquezas na vida humana – e as vemos em Josué –, e, apesar dessas faltas e fraquezas e imperfeições ainda existirem em nossa humanidade, consideramos que a Cruz já quebrantou e abriu caminho para o Espírito Santo no que diz respeito ao nosso coração, a nossa vontade e a nossa mente. Isto é o que a Cruz representa: o caminho do Senhorio do Espírito aberto, e, mediante esse Senhorio, o caminho para a plenitude celestial está aberto.

Que profunda diferença encontramos entre as “conquistas” (?) do homem – eu diria, os avivamentos produzidos pelo homem – e a obra do Espírito Santo! Que diferença! Josué é o livro das poderosas diferenças. A diferença aqui é tal que acaba tirando o homem de cena. O homem não pode enfrentar essa coisa, ele não tem espaço aqui, pois tudo está muito além de sua capacidade de fazer estimativas. O Senhor lançou Seu povo numa esfera onde tudo é absolutamente diferente do modo do homem fazer as coisas. Quando o Espírito Santo é o Senhor, não precisamos organizar as coisas para que elas funcionem. Não precisaremos planejar, imaginar e formular a fim de realizar alguma coisa, fazer a obra de Deus, ter um avivamento. Tudo simplesmente acontece. Esse é o caminho do céu. E isso requer que estejamos naquela posição, requer esse governo absoluto do Espírito Santo. Encontramos o “toque terreno” em todas as atividades realizadas pelo homem – meios, métodos, pessoas, toda aquela parafernália usada para garantir o sucesso –, e as coisas prosseguem com muito barulho e rangido, demandam por uma quantidade enorme de suporte humano, e estão prestes a desaparecer a qualquer momento; se não forem sustentadas com alguma coisa, tudo entrará em colapso.

Nunca é assim em uma obra do Espírito. A questão é esse toque terreno, pois ele sempre representa a morte, a prisão. O Senhorio absoluto do Espírito Santo demanda que esse toque terreno seja terminado – e esse é o sentido da ordem que Josué recebeu de tirar os sapatos dos pés. “Que diz meu senhor a seu servo?” [Js 5.14,15]. “Vá e conquiste a terra. Vá e tome posse dela. Vá e conduza o povo para dentro”? De jeito nenhum. “Tire seus sapatos.” “Tire os sapatos, Josué, e tudo mais acontecerá. Destrua o toque terreno e veja o que se seguirá. Você só precisará rodear Jericó. Os homens não a conquistariam dessa maneira. Imagine a tremenda campanha militar que teria sido organizada se fosse delegada aos homens a tarefa de conquistar Jericó! Não! Tire os sapatos e veja o que acontecerá.”

Se você questionar essa interpretação, veja o que aconteceu quando Josué, ou Israel, calçaram os sapatos um pouco mais à frente. O que aconteceu em Ai? O que aconteceu com os gibeonitas? Israel voltou a calçar os sapatos, a tocar na terra, e logo veio o resultado: prisão, transigência, limitação. Descalce os sapatos e deixe-os ali. O princípio do celestial é o princípio do mover do Espírito Santo, é o princípio da plenitude espiritual. “Tire os seus sapatos, porque o lugar em que está é terreno celestial.” Não temos uma posição ali; a Terra não tem lugar ali; o mundo não tem lugar ali; os homens não têm lugar ali. Esse é um solo sagrado e santificado para o céu. A partir desse ponto, o céu assumirá o controle. Sim, mesmo usando aquele grande instrumento levantado para servir ao Senhor, o céu assumiu o controle. A soberania na escolha de um instrumento nunca significa que essa soberania cede espaço à força humana, e o Senhor nunca desculpa os erros desse instrumento. Isso e válido para Josué e Israel, pois Josué, como já mencionamos, é o representante de todos os santos e todos os servos do Senhor.

O Espírito Santo comprometido com o propósito de Deus

Observe a resposta à pergunta de Josué: “És Tu dos nossos, ou dos nossos inimigos?” [v. 13]. “De qual deles? Por nós? Por eles? Por isto? Por aquilo?” “Não. Não sou por isto ou por aquilo, não sou por vós nem por eles: Eu sou pelo propósito do Senhor.” Este é o conteúdo real de Sua resposta. “Não sou por pessoas, sejam elas quem forem: Eu sou pelo propósito do Senhor. Não sou a favor desta ou daquela obra que estejam tentando fazer para o Senhor. Sou pelo propósito do Senhor, estou comprometido com o propósito de Deus, o Seu propósito eterno.” “Não, mas…” [v. 14]. Oh, se pudéssemos compreender a força dessa expressão com respeito a tudo! Queremos que o Espírito Santo patrocine nossos movimentos, nossa obra, nosso ministério. Estamos perguntando ao Espírito Santo se Ele é “por nós”. Ele nunca atestará isso. Há um sentido em que o Senhor é por Seu povo. “Se Deus é por nós…” [Rm 8.31]. Mas há outro sentido em que o Senhor diz: “Não sou por vocês, mas por Meu propósito em e por meio de vocês; não sou propriamente por vocês, como indivíduos, ou por Israel, ou por Josué, aquele que foi soberanamente escolhido e ungido. Não sou por você, mas estou comprometido com o propósito de Deus”.

O que quero enfatizar é que devemos identificar a base e o objeto do compromisso do Espírito Santo. Precisamos saber com que o Espírito Santo está comprometido. Temos muito planejamento e arranjos para o Senhor, mas o Senhor não assume e concretiza nossos planos. Quantas coisas têm sido arranjadas, planejadas e programadas hoje no mundo para o Senhor. Ainda assim, não vemos um progresso. O Senhor parece não se comprometer com elas. Esse é exatamente o ponto. Devemos identificar o objetivo do Espírito Santo. O objetivo do Espírito Santo não é fazer alguma coisa e produzir alguma coisa na Terra, não é estabelecer algo nela e em contato com ela, como “sapatos”. Estabelecer algo aqui não é, de maneira alguma, Seu objetivo. O Espírito Santo está comprometido com algo que é absolutamente celestial, e Seu objetivo pleno é separar cada coisa deste mundo, de modo espiritual e interior. Isso será ampliado mais adiante, mas observe que é muito importante saber com o que Deus se compromete. Ele não se comprometerá com nada que esteja ligado a esta Terra. Ele só se comprometerá com aquilo que estiver ligado ao céu.

O Espírito Santo com uma espada nas mãos

Uma vez que isso foi estabelecido, há algo que se segue, que é também extraordinário. Este Príncipe do exército do Senhor está de pé com Sua espada nua, desembainhada, na mão. Oh, isso indica um combate, não é? Trata-se de uma batalha, não é mesmo? Imediatamente o Espírito Santo assume o comando, e vemos uma completa rendição a Ele. Não se engane: a batalha acaba de começar. Qualquer que seja seu conceito a respeito de ser batizado com o Espírito Santo e suas implicações, seja qual for o sentido disso para você, saiba que isso significa conflito imediato e incessante. Isso pode representar outras coisas também, mas significa que entramos em uma guerra sem direito à dispensa, alistamo-nos em um exército sem direito a aposentadoria. Nunca mais nos aposentaremos. Estamos nisso até o fim.

Não foi assim com o Senhor Jesus? Tudo começou no Jordão: o céu aberto, o Espírito Santo, o deserto, o diabo. Imediatamente “foi conduzido Jesus” (Marcos usa as palavras “levado” ou “impelido”) “pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo” (Mt 4.1). Assim que os céus foram abertos para o advento do Espírito, naquele dia chamado Pentecostes, a guerra começou, a Igreja nela entrou e nunca mais saiu. Se saiu foi para seu próprio prejuízo espiritual. De alguma forma, este Senhorio do Espírito Santo resulta imediatamente nisso. A espada está à mão e não será embainhada novamente até que a tarefa do dia termine.

Sim, mas devemos lembrar que essa é uma linguagem espiritual. O Espírito Santo não está muito interessado em uma guerra literal ou carnal. A guerra, o conflito no qual Ele está envolvido é segundo Sua própria natureza: espiritual. Tudo será segundo o espírito, porque forças espirituais tomaram posse do território; e, portanto, é em um combate espiritual que elas serão despojadas. Essa é uma das razões que tornam essa batalha tão real e verdadeira. Nem precisamos elaborar muito sobre isso: nós sabemos do que se trata. Sabemos que não daremos um passo sequer no sentido da conquista espiritual sem que sejamos contestados; encontraremos conflito antes de fazermos qualquer movimento ou um gesto com direção a um aumento espiritual. Essa é uma verdade. Estamos em uma guerra espiritual, e sua natureza está além de nosso poder de compreensão. Imaginamos que ela vai ocorrer de uma maneira, mas será de outra. Os ataques nunca vêm de onde esperamos e nem em formas que supomos que poderíamos reconhecer. O fato é que raramente reconhecemos o diabo quando ele desfere seus ataques. Eles parecem estar cobertos por acaso, ou infortúnio, ou algo que parece ter dado errado, mas basta julgarmos seu efeito com relação à nossa vida espiritual, e descobriremos que há algo mais de projeto e inteligência ocultos nele do que meras circunstâncias da vida. Trata-se de uma guerra espiritual, e foi o Espírito Santo quem a precipitou.

Entenda isso, pois explica muita coisa. Como o inimigo atua com freqüência usando nosso “ponto cego”! Acho que provavelmente a principal causa do sucesso dele hoje é devido aos pontos cegos do povo do Senhor. O preconceito é denominado “cautela”, a suspeita é considerada “vigilância” – bons nomes para coisas ruins. O inimigo é um mestre nesse quesito há tempos. O preconceito que você tem pode ser seu ponto cego criado pelo diabo. Ele encontrou a possibilidade de criar isso, e é o impedimento que está no caminho de sua plenitude espiritual e celestial. O povo do Senhor está preso nessa armadilha hoje, por todo o mundo. A ampliação e o aumento espirituais, de maneira celestial, estão sendo resistidos e frustrados por preconceitos e suspeitas do povo de Deus. “Um inimigo é que fez isso” [Mt 13.28].

Por que será que na Epístola aos Efésios, com toda aquela apresentação da plenitude celestial, e tendo-a em vista, e o correspondente conflito espiritual, o Apóstolo ora para que “os olhos do entendimento sejam iluminados”? [1.18]. Por que isso é necessário? Devido a esses pontos cegos, esse processo de cegueira, porque tudo pode ser perdido devido a um preconceito, uma mente algo fechada, um pouco de suspeita e de falso medo, em vez de confiar no Espírito Santo e de conhecer a unção dentro de nós que irá “ensinar todas as coisas” (1Jo 2.27) e mostrar o que é certo e errado. Podemos acreditar que estamos nos fortalecendo “preventivamente” e podemos estar nos fortalecendo contra o Espírito Santo. Isso é o que muitos estão fazendo. Essa é a esfera do conflito. Espiritualmente as coisas acontecem assim. Isso é muito sinistro e sutil.

Mas temos outro aspecto desse conflito espiritual. Por que o Espírito Santo traz isso à tona? Por que Ele precipita tudo isso? Podemos pensar que isso provém naturalmente do inimigo, mas, então, por que é o Espírito Santo que sempre inicia isso tudo, fazendo de Si mesmo a ocasião desse combate? Vimos isso no caso do Senhor Jesus. Isso aconteceu de forma deliberada conforme vemos na declaração definitiva, positiva e precisa: “Então foi conduzido Jesus pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo” – o Espírito Santo tomou a iniciativa, trouxe isso à luz [Mt 4.1]. Ele fez isso com a Igreja – de modo deliberado, sabendo exatamente o que fazia. Com efeito, é como se o Espírito Santo dissesse: “Vou conduzi-los à batalha agora mesmo, imediatamente”. Por quê?

Bem, por uma razão: porque isso é uma questão espiritual, uma herança espiritual, porque há forças espirituais que se apossaram dessa herança e devem ser expulsas. Mas também é porque só crescemos espiritualmente por meio do conflito, e o Senhor tem interesse em nosso progresso. Talvez isso fosse muito difícil de compreender se alguém subisse em uma plataforma e dissesse: “Você está passando por maus momentos porque o Senhor está interessado em você. Ele está dando ao diabo permissão para atacá-lo porque tem Seus maiores interesses focados em seu bem-estar”. Talvez fosse difícil para nós aceitar essa declaração. Da próxima vez que o inimigo vier contra nós e iniciar sua obra terrível, seremos os últimos a dizer: “Oh, como o Senhor me ama!” Nós não reagimos dessa maneira.

Mas não podemos atestar que um fato verdadeiro em nossa experiência e história – e, portanto, verdadeiro ao princípio – é que nunca fazemos nenhum progresso espiritual, não aumentamos, crescemos, nem avançamos, exceto por meio do conflito? Essa é a verdade. O único caminho para crescermos é ter algo a vencer, é quando nossa vida espiritual se depara com algo a superar. Essa é uma lei na natureza e na graça. Não há progresso sem combate. Queira Deus que vejamos as coisas dessa maneira sempre que encararmos dificuldades! Acreditamos nessa verdade como um fato, mas, oh!, não gostamos de estar envolvidos nela!

Isso não será suficiente. O Senhor deseja que as pessoas realmente tomem posse; não teórica e doutrinariamente, nem com base em uma leitura da Bíblia, mas Ele deseja que realmente entrem na sua possessão. Entramos no caminho da realidade quando realmente nos sujeitamos ao Senhorio do Espírito Santo, e o Senhor considera tudo isso real e muito prático.

Jericó é um lugar representativo: o grande exemplo de como as coisas acontecerão de acordo com esse princípio. Em primeiro lugar, como já dissemos, precisaremos estar em uma posição celestial, não em uma posição terrena, não fazendo as coisas da maneira humana. Vemos o resultado daquele princípio primeiramente em Abraão, quando ele tentou agir e acabou provocando uma terrível confusão por ter tocado a Terra. E isso aconteceu outra vez quando Moisés tomou as coisas nas próprias mãos e atacou o egípcio e o hebreu, causando uma impressionante confusão. Josué toma toda aquela história espiritual, e vemos ali o resultado da disciplina do Senhor. Em Jericó descobrimos que não existem armas carnais – nada da razão humana, nada restou para o homem ali. Se não for celestial, não é nada. Não é assim que as coisas acontecem na Terra. Podemos rodear a cidade, não só por sete dias, por toda a vida, e nada acontecerá se não estivermos em uma posição celestial, a menos que haja uma intervenção dos céus. Jericó representa o homem deixado de lado, totalmente excluído. É algo celestial.

Bem, essa é a base. Então, imediatamente depois disso, descobrimos que se o inimigo não conseguir sucesso por meio de resistência declarada, tentará usar táticas mais sutis. Se estivemos firmes em uma posição celestial, o inimigo não terá sucesso por meio de uma resistência aberta. Jericó significa a manutenção dessa posição celestial. O povo não conquistou a cidade no primeiro dia, mas sustentou, guardou e ratificou sua posição, e no último dia ainda o confirmaram por sete vezes, mantendo sua posição celestial, sem retrocesso. Nem sempre alcançamos o objetivo no primeiro ou no segundo dia. Deve haver um apego a essa posição em fé, e o inimigo será completamente derrotado quando essa posição for realmente sustentada dessa forma. Quando ele for derrotado nessa linha, ele precisará assumir a derrota, mas, se puder, vai tentar trabalhar usando meios sutis.

Não é isso que vemos no caso dos gibeonitas? Eles agiram de maneira sutil para introduzir um “toque terreno” em algum lugar [Js 9.4-6]. O mesmo aconteceu com Acã e Ai, a capa babilônica e a cunha de ouro – vemos nisso um toque terreno [Js 7.21]. Os gibeonitas e a aliança feita com eles se constituíram em outro toque terreno. Não devemos imaginar que nossa guerra espiritual sempre será aberta, clara e declarada. Devemos perceber o toque terreno sendo manobrado pelo inimigo na tentativa de introduzir algo que tenha contato com o que é amaldiçoado e com o qual Deus não poderá prosseguir.

Como isso acontece? Sabemos, é claro, que eles haviam saído de Gilgal – Gilgal, o lugar do rolar [1], o lugar onde a carne foi deixada de lado. Mas eles não retornaram para Gilgal depois de Jericó. Eles seguiram diretamente para Ai; embora o costume fosse sempre retornar para Gilgal após um avanço ou uma conquista – retornar para Gilgal e sair novamente de lá. Desta vez, eles não fizeram isso, mas continuaram em frente.

Vamos nos manter perto da cruz e nunca presumir que, como o Senhor nos abençoou, nos levou a prosperar e a ter sucesso, podemos prosseguir sem ela. Nunca, por um momento sequer, devemos nos afastar da Cruz. A Cruz não é algo que fica para trás, a ser deixado. É algo para estar conosco todo o tempo. É nossa segurança. Esse é o caminho celestial, essa é a natureza do caminho celestial, é o caminho para o fim proposto por Deus. Que o Senhor nos mantenha nele.

[1] A palavra Gilgal significa “uma roda, um rolo”.


Para ler o capítulo 1, clique aqui; capítulo 2, aqui; capítulo 3, aqui; capítulo 4, aqui, capítulo 5, aqui, capítulo 6, aqui.

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Perseverança T. Austin-Sparks

Capítulo 6: O caminho para o objetivo final de Deus

Apesar de não lê-lo nesse momento, usaremos o livro de Josué como referência à medida que prosseguirmos.

O final do caminho

É necessário vislumbrar o objetivo final logo no início da jornada, antes mesmo de considerar o caminho para chegar até lá. Iniciamos por observar que Deus começou com os céus e, então, prosseguiu para a Terra, e que no final da Bíblia aquilo que desce do céu indica a consumação de todo o processo de Suas atividades através dos tempos. Desse modo, no fim teremos uma expressão completa e plena daquilo que é celestial. Esse é o fim. Dissemos inicialmente que os céus governam tudo. Como ocorre na natureza, também acontece nas coisas do Espírito. Tudo é governado pelos céus, e a Terra e tudo o que é terrenal deve considerar aquilo que é celestial e a isso responder.

Entenda isso como uma verdade espiritual. Aquilo que é verdadeiro na esfera da criação natural é simplesmente uma expressão da mente espiritual de Deus. E isso significa que, assim como este mundo, esta Terra, é governado e controlado por forças celestiais e corpos celestes, de tal modo que, se ele escapasse do correto ajuste ou relacionamento com esses corpos, se desintegraria, congelaria, queimaria, deixaria de funcionar como um todo orgânico. O mesmo ocorre na esfera espiritual. A Bíblia toda indica este fato: que tudo o que temos aqui se relaciona com o que está no céu, e que tudo tem origem no céu, devendo responder e se ajustar a ele. Eu me refiro a tudo em nossa vida, pois o Espírito Santo, tendo descido do céu, é o elo entre o que está aqui e o que está lá.

Essas não são apenas idéias abstratas, mas são os fatores que estão por trás de tudo o que temos da revelação Divina nas Escrituras. Toda a Bíblia, do primeiro ao último versículo, pode ser resumida nisto: que o céu está desafiando esta Terra, e esta Terra deve responder ao céu. Isso abrange inúmeros detalhes, mas é um fato: o fim de todas as coisas resultará simplesmente na plena concretização do céu na criação e, especialmente de forma espiritual, no povo de Deus. Essa é a visão inicial do objetivo final.

Mas devemos notar outra verdade governante em relação a esse fim. Vou primeiramente abrir um parêntese para dizer uma coisa. Algumas dessas frases nos são muito familiares, e sempre temo que a familiaridade com a fraseologia possa tirar-nos um pouco do foco. Vamos pausar para compreender a força da expressão “verdade governante”. Quando estamos debaixo do governo de uma lei, não poderemos escapar dela. Temos as leis da natureza em nosso corpo, neste mundo. Elas estão aqui, e, se as desrespeitarmos, isso não as tira de operação. Descobriremos, no longo prazo, que elas nos destruirão, elas nos alcançarão. Mas, se entrarmos em consonância com elas, então, essas leis serão nossa salvação, nossa vida. Elas estão “governando”, quer isso nos agrade ou não. Assim, “tudo o que o homem semear, isso também ceifará” (Gl 6.7). Essa é uma lei, e dela não escaparemos. Existem inúmeras leis assim. Portanto, quando falamos de uma lei ou verdade “governante”, referimo-nos a algo que devemos conhecer e a que temos de obedecer, pois foi estabelecido por Deus em Seu universo.

Deus escolhe soberanamente Seus vasos

Vamos, então, seguir para a próxima verdade governante relacionada ao objetivo final de Deus: que Ele escolhe vasos, tanto individuais como coletivos, ou corporativos, conduzindo-os soberanamente, de maneira peculiar, a uma relação com Seu objetivo pleno, e faz isso realizando neles aquilo que deseja obter em um grupo muito maior. O Senhor soberanamente escolhe vasos – sejam indivíduos ou grupos de pessoas, conforme é amplamente indicado na Bíblia – e, então, Ele começa a trabalhar com esses vasos a fim de fazer algo extraordinário, de maneira muito completa, para que alcance muitos outros por meio desse processo que faz nos vasos que elegeu. Esta é uma verdade governante: Ele faz algo em um vaso eleito, que está destinado a uma abrangência bem maior.

Valores representativos

Vamos então fazer uma pausa, porque sempre precisamos ajustar nossa inclinação mental. Pode ser que muitos, ao ler essas linhas, digam: “Bem, não consigo me ver como um vaso eleito, dessa maneira específica”. Nós pensamos naqueles homens a quem nos referimos como os pioneiros deste caminho celestial: Abraão, Moisés e outros. Então, afirmamos: “Não sou um Moisés ou um Abraão; não vejo como me encaixar nessa categoria”.

Bem, embora possa haver entre nós indivíduos escolhidos por Deus para algo dessa natureza extraordinária, existe outro lado: podemos ser parte de um vaso coletivo ou corporativo. Poderia até ir mais longe, afirmando que provavelmente somos. Então, se o Senhor o tomou e implantou em você esse senso de destino, essa convicção de ter sido chamado para algo maior do que apenas “ser cristão”, esse forte senso de vocação, se isso estiver em você, pode se considerar relacionado a um propósito maior. Se isso for verdade, não considere suas experiências e seu relacionamento com Deus individualmente, de forma pessoal, como se você fosse muito especial.

Deixe-me explicar isso de outra forma. Você pode estar passando por situações que se relacionam a algo que Deus está fazendo em um vaso coletivo sem perceber como o significado do que está passando tem relação com sua vida individual e pessoal. “Por que estou passando por isso?” Bem, a resposta é: porque você é parte de um todo. Freqüentemente, sentimos que uma grande pressão é colocada sobre nós como indivíduos. Quando começamos a comparar nossas anotações sobre isso, descobrimos que outras pessoas espiritualmente relacionadas a nós estão passando pela mesma experiência. Esta é a grande lei do Corpo: “Se um membro sofre, todos os membros sofrem com ele” (1Co 12.26). Mas, o que isso quer dizer?

Veja, trata-se de algo coletivo, corporativo; e, embora não possamos acompanhar tudo para ver como as coisas estão se desenrolando, Deus está fazendo algo de uma maneira relacionada, e nós fazemos parte dela. Estamos sofrendo o impacto de algo muito maior. Esse relacionamento espiritual nos envolve nesse propósito maior de Deus, que se relaciona aos lugares celestiais, é muito maior do que esta Terra. É isso que nos faz um. Nossa unidade não se deriva de uma associação com alguma coisa, de ter nosso nome em um rol de membros ou de sermos reconhecidos publicamente como membros de determinado grupo. Não é isso. Podemos estar a centenas ou a milhares de quilômetros de distância, afastados, e ainda assim sentir as repercussões, porque estamos ligados a essa coisa celestial que Deus está fazendo. Isso porque, quando estamos na esfera celestial, todas as coisas terrenas saem de cena: geografia, distâncias e tempo se vão. Essas coisas não são lá de cima.

Se ao menos pudéssemos receber a concepção celestial da Igreja! Oh, quão tolas são nossas concepções terrenas da Igreja! Quando tratamos daquilo que chamamos Igreja, devemos sair desta Terra e de tudo o que aqui está. Perceberemos que tudo se resume apenas a uma unidade no céu. Tudo isso que temos aqui não tem correspondência lá. Esse é o ponto onde paramos quando falamos sobre a passagem do Jordão no último capítulo. No Jordão, algo foi deixado para trás. O povo se mudou da base terrena para a base celestial. Falaremos mais disso a seguir. Essa deve ser uma realidade espiritual, uma consciência na qual entramos.

Embora não possamos explicar e entender por que podemos estar passando por um momento tão ruim, a explicação celestial é que estamos envolvidos em algo relacionado ao propósito maior de Deus, e estamos sofrendo, ou passando por essa experiência de uma maneira relacionada.

Isso é muito maravilhoso, pois de vez em quando encontramos outras pessoas com quem desfrutamos de comunhão espiritual e descobrimos que elas têm passado exatamente pela mesma experiência. O Senhor tem falado a elas e feito algo com elas, que não é comum ou usual, mas é algo muito especial.

Valores intrínsecos

Como mencionamos anteriormente, tudo isso está relacionado com o fato de que Deus escolhe vasos individuais ou coletivos e faz neles algo destinado a um grupo muito maior. Esses vasos, sejam eles individuais ou coletivos, são representativos de algo que Deus busca em maior e mais ampla escala, em uma esfera mais ampla. Tudo tem início neles. Acho que é isso que Paulo tinha em mente quando disse: “Para que em mim, que sou o principal [o primeiro] […] para exemplo” (1Tm 1.16). Acredito que Paulo quis dizer que aquilo que Deus faria por meio dele seria algo representativo. Tudo aquilo que o Senhor faria por meio dele em esferas mais amplas, nas igrejas, nas províncias e nas nações, seria representativo, simbólico. Deus iria operar em uma escala mais ampla por meio desse homem realizando algo nele, não apenas concedendo a ele palavras para compartilhar.

É aí que costumamos nos perder. Deus começa fazendo algo. Ele traz à existência, em um vaso, uma representação viva de Seu pensamento mais pleno, usando para isso meios peculiares, incomuns e extraordinários. Veremos poucas experiências comuns da vida desse vaso; pelo contrário, suas experiências terão um caráter extraordinário, incomum. Esses vasos representativos, individuais ou coletivos, são escolhidos para que neles sejam estabelecidos valores intrínsecos e essenciais, destinados a uma esfera e a um reino mais amplos. Tudo deve ser passível de expansão, de disseminação, de amplo alargamento e extensão.

Em química, chamamos isso de “tintura-mãe”, uma substância que pode ser ampliada e distribuída; é uma essência pura e concentrada. Mas produzir esses valores intrínsecos e concentrados em qualquer vaso é um trabalho extraordinário. Não haverá nada de comum nesse processo. Alguns de vocês entenderão isso a partir da própria experiência. Os tratos de Deus com vocês não são nada comuns. Às vezes acreditamos que essa concentração é forte demais em nossa experiência! Nós nos questionamos se conseguiremos passar por esse trato específico do Senhor conosco.

Estou tentando permanecer bem próximo da Bíblia. Não pense que estou falando de algo que não está contido ali. Faço referência ao pano de fundo daquilo que está revelado na Palavra de Deus. Esta foi a experiência de Abraão: uma experiência incomum, uma forte concentração de Deus sobre esse homem. Pense na numerosa multidão que derivou seus valores de Abraão. Mas ele chegou ao limite mais de uma vez, chegando a um ponto onde não poderia mais suportar. E nessas horas Deus precisou intervir para levá-lo adiante. O valor intrínseco celestial é a prova mais difícil que alguém pode atravessar.

Em nossa natureza, somos totalmente terrenos, em todos os sentidos. Temos necessidade de ver as coisas – isso é terrenal. Temos necessidade de sentir coisas – isso é terrenal. Desejamos todas as evidências – precisamos de tantas coisas terrenas. Mas Deus nos tira dessa Terra, arrebata-nos daqui – refiro-me a um aspecto espiritual – e nos suspende, por assim dizer, em pleno ar. Esse é um tipo de existência muito precário, extremamente penoso. Não sabemos onde estamos, não temos as explicações, não conseguimos firmar solidamente os pés no chão nem sentir que temos certeza de coisa alguma. Deus está desestabilizando todas as nossas faculdades de análise e interpretação, e tornando absolutamente necessário possuir outro tipo de sabedoria e entendimento que não pertencem, de modo algum, a essa Terra ou ao mundo ou ao homem natural. Trata-se de algo celestial. Essa foi a experiência desses pioneiros do caminho celestial. Ouça-os clamando de sua natureza terrena, às vezes até murmurando com o Senhor. Ouça Jeremias, veja tudo aquilo estava além da sua compreensão. Deus buscava valores intrínsecos intensivos ali.

Ministério espontâneo

Prosseguindo um pouco mais, temos o ministério espontâneo. Grifo a palavra espontâneo, pois não me refiro a um ministério organizado. Quando o ministério é dessa natureza, só precisaremos ser, e tudo acontecerá. Vocês me entendem? As coisas acontecem naturalmente, se formos espontâneos. Assim como não podemos apagar o Sol, não poderemos silenciar esse ministério.

Era isso que o Senhor Jesus buscava no início de Seu ministério. Em primeiro lugar, Ele tomou um grupo de homens, de indivíduos, e os conduziu a um processo. Nem tudo ocorreu de forma tão simples como lemos na história. Podemos ler nos Evangelhos os registros do período que cobre a história de três anos de companheirismo do Senhor com aqueles discípulos, e também podemos ler a respeito daqueles últimos dias do Senhor na Terra e, então, da Sua Cruz. Bem, só essa história já é extraordinária, mas não temos o registro de tudo o que se passou no interior daqueles homens, pois não seria possível registrar isso. Ao longo daqueles três anos, atrevo-me a dizer que eles foram repetidamente conduzidos ao fim dos próprios recursos: não sabiam onde estavam, para onde iam e o que tudo aquilo representava. Eles freqüentemente tentavam compreender as coisas a partir de seus próprios conceitos, de sua mentalidade, interpretando os fatos à luz da profecia, e assim por diante. Tentavam decifrar as coisas e adaptá-las a seu manual de instruções. Entretanto, o Senhor continuamente os desafiava; era para eles um contínuo enigma, um Homem impossível de perscrutar. O Senhor nunca fez coisas de acordo com o manual, nem mesmo de acordo com Moisés. Ele transtornou todas aquelas coisas. O que o Senhor estava fazendo? O que Ele queria dizer com tudo aquilo?

E, então, temos a Cruz. Não podemos compreender plenamente por meio da leitura a profundidade da angústia e da perplexidade da alma deles naqueles dias. Só poderemos compreender essas coisas por meio de nossa própria experiência, quando o Senhor começar a fazer coisas como essas conosco: tirando-nos de nossa zona de conforto e contradizendo todas as nossas expectativas, parecendo tomar o sentido extremamente oposto do que esperávamos ter o direito de esperar Dele. Ele não faz as coisas dentro de nossas expectativas. Às vezes, nós nos sentimos acuados e sem saída nesses tratos do Senhor conosco. O Senhor tomou aqueles homens para Si e os conduziu a tudo isso por meio de uma experiência muito profunda.

E, por meio daqueles homens, o Senhor obteve igrejas, obteve grupos de crentes, e a coisa toda começou. Existe um tipo peculiar de disciplina e treinamento relacionado à vida corporativa, quando deixamos de ser tratados individualmente, mesmo como cristão, e passamos a viver uma vida conjunta, entrando em um relacionamento com outros crentes e vivendo uma vida corporativa, uma vida celestial na Terra. O Novo Testamento nos mostra que isso não é nada fácil. Podemos pensar, olhando objetivamente, que é adorável ser parte de uma assembléia, mas nem sempre é. Esse grupo aqui pode estar passando por tal coisa. Algo está acontecendo, existe um agir de Deus ali que às vezes é tão profundo e terrível que é impossível de compreender o que Ele quer com aquilo; ainda assim todos o percebemos.

Esse caminho é profundo, cheio de sofrimento, e juntos passamos por essas dores de parto, como assembléia. Assim nasceram aquelas igrejas, e elas passaram por tudo isso. Eles também receberam instrução, mas, independente de tudo que receberam na forma de instrução e ensino, havia sempre a paralela e correspondente disciplina do Espírito Santo. O Espírito Santo sustentava Sua mão sobre elas e tratava com elas de forma drástica. Coisas estavam acontecendo.

Você pode me pedir um exemplo. Observe todos os acontecimentos em Corinto. O que Paulo disse aos cristãos ali? “Por causa disto há entre vós muitos fracos e doentes, e muitos que dormem [que morreram]” (1Co 11.30). Vemos ali uma história espiritual secreta. O Espírito Santo assumira o controle da situação. Provavelmente eles viam as coisas pela ótica natural. “Alguém está doente, chamem o médico.” Mas, espere: será que existe algum fator espiritual atrelado a isso? Será que isso não tem alguma relação com o Espírito Santo? Paulo diz: “Sim!” Isso não significa que todo mundo que está doente tenha alguma falta no sentido espiritual, mas o princípio está aí. A Igreja está sendo tratada pelo Espírito Santo em relação ao propósito pleno de Deus.

O ponto é muito claro. Deus toma primeiro os indivíduos e depois as assembléias, e Ele estabelece esse ministério espontâneo fazendo algo nas pessoas, não somente concedendo a elas uma mensagem ou uma verdade. Tudo apenas acontece, e isso é tudo. As coisas acontecem de forma inexplicável, e tudo que poderemos dizer é que o Espírito Santo tomou aquilo e está o usando. Ele mesmo se encarrega da expansão daquilo que fez, Ele amplifica o alcance. Tudo apenas acontece. Paulo disse a respeito da igreja em Tessalônica: “Por vós soou a palavra do Senhor, não somente na Macedônia e na Acaia, mas também em todos os lugares” (1Ts 1.8). Será que isso significa necessariamente que eles enviaram evangelistas? Eles podem ter feito isso, mas não é isso que o texto diz. Observe o contexto. Paulo está dizendo: “Em todo lugar as outras igrejas falam sobre vocês; eu nem preciso fazer isso – todos conhecem vocês.” Esse é o ministério espontâneo que brota de algo que Deus fez. Deus toma as coisas em Sua mãos para obter esses valores intrínsecos, e Ele não irá desperdiçá-los.

Assim, o propósito almejado por Deus governa todos os Seus tratos com Seus instrumentos. A plenitude celestial é Seu propósito final e motiva todos os Seus tratos com os vasos que Ele escolheu em relação àquele fim. Ele os está conduzindo à plenitude celestial.

Devemos perceber que nada que Deus faz é um fim em si mesmo. A conversão não é um fim em si mesma. É trágico considerá-la assim e se acomodar e se satisfazer só com ela. Contente-se com a conversão apenas e em breve verá o que lhe acontecerá. O que resultará disso? Todo o senso de propósito será apagado, toda a vitalidade da conversão diminuirá ao ponto de haver apenas um monte de pessoas convertidas. Elas são convertidas; elas creram no Senhor Jesus, mas não passam disso. Provavelmente, o nosso maior problema hoje seja esse monte de pessoas apenas convertidas sobre a Terra. Elas estagnaram; sua conversão se tornou um fim em si mesma.

A vida de assembléia não é um fim em si mesma. Reúna um grupo dentre o povo do Senhor em uma expressão corporativa, permita que as pessoas estabeleçam seus limites, que se tornem eminentes aos próprios olhos, desfrutem de bons momentos em conjunto, e logo verá a mesma coisa acontecer. Isso também ocorre com a chamada obra do Senhor: se ela se tornar um fim em si mesma – ou seja, se ela se tornar alguma coisa –, novamente teremos uma tragédia. Nós passamos a assumir, de alguma forma, a obra do Senhor, seja a assim chamada obra missionária, ou qualquer outra obra específica, e então aquela coisa particular começa a ser limitada, até aquela esfera ser firmemente limitada ou trazida ao fim. Logo será necessário começar tudo de novo, pois tudo foi perdido. A obra se tornou algo em si mesma.

Vamos relembrar: se o Senhor fez algo com essa essência concentrada do celestial em você, em mim ou em um grupo de pessoas, isso não será um fim em si mesmo. A esfera e a forma podem mudar, mas aquilo permanecerá. Deus tem o que Ele quer e encontrará um caminho para obtê-lo, se aquilo for de fato celestial. Nós só cortamos nossa própria utilidade e nosso ministério quando os trazemos para a Terra. Este é um ditado verdadeiro: faça disso o seu ministério, o meu ministério, e ele será limitado à Terra, não mais se moverá, não cumprirá o propósito designado por Deus.

Oh, essa tentativa de tomar posse das coisas na esfera de Deus e torná-las particularmente nossas! Digo que se você tem um mandato de Deus, se foi ungido pelo céu, se tem um ministério dado por Ele, então, não precisará sustentá-lo como algo propriamente seu ou empenhar-se por sua realização como isso partisse de você. Esse ministério se cumprirá, e nem a Terra nem o inferno poderão detê-lo. O céu cuidará dele. Mas isso precisa ser mantido em relação ao céu. A unção e tudo o que ela envolve vêm do céu e deve ser sustentado a partir do céu, e o próprio céu vai sustentar tudo. Coloque Paulo na prisão, e ainda assim seu ministério será cumprido. Ele está relacionado ao céu. “O céu reina” (Dn 4.26). Mas, se trouxemos esse ministério para qualquer lugar na Terra, então o céu não irá patrociná-lo. Temos muitos exemplos disso na história.

Percebendo que o objetivo de Deus é plenitude espiritual e celestial, e que ela ocorre por meio de um alargamento progressivo, devemos ter profundo interesse em saber qual é esse caminho. Devemos ter real interesse em conhecer esse caminho do céu, o que é o caminho do céu para chegar ao propósito final de Deus. “Tudo o que dantes foi escrito, para o nosso ensino foi escrito” (Rm 15.4). O livro de Josué é parte dessas coisas que dantes foram escritas para nosso ensino, e nele recebemos muita luz sobre esse assunto do caminho celestial, que é tão contrário ao caminho terreno. Não sei o que você espera que aconteça ou espera experimentar quando falamos que o objetivo de Deus é a plenitude espiritual e que é algo em que Deus está operando. O que você espera que aconteça? Acredito que a primeira parte deste livro traz luz a esse respeito.

O espírito de servo

Olhemos para Josué. Lembre-se de que Josué representa o propósito de Deus para todos os Seus santos e todos os Seus servos, e que aquilo que Deus fez em Josué é o que Ele fará com todos aqueles a quem vai ministrar. O que Deus fez com Josué relacionava-se a um grupo maior. Bem, como isso teve início? O livro começa assim: “E sucedeu, depois da morte de Moisés, servo do Senhor, que o Senhor falou a Josué, filho de Num, servo de Moisés” [Js 1.1] – a palavra “servo” significa “assistente”. Pensando em tudo que está diante de nós nesse livro, talvez pensemos que ele deveria ter um início melhor. Moisés, o servo do Senhor, e Josué apenas seu assistente? Ele não é apresentado com um título oficial, como “o servo do Senhor”, mas apenas como um assistente. Vamos seguir essa palavra e ver onde ela nos conduzirá. A mesma palavra é usada com referência a João Marcos: “E tinham também a João como seu cooperador” (At 13.5). O que é um assistente, um cooperador? Bem, um ponto importante a respeito de um assistente, com certeza, é que ele conhece aquele tipo de sujeição que torna possível fazer o que lhe é exigido. Aqui temos o início daquele poderoso Josué que haveremos de ver mais à frente.

Conhecemos a grande importância de Eliseu. Que lugar notável Eliseu veio a ocupar, recebendo uma porção dobrada do espírito de Elias e realizando obras ainda maiores do ele fez! Você se lembra do que foi dito sobre Eliseu. “Eliseu […] derramava água sobre as mãos de Elias” (2Rs 3.11). Ele era seu assistente. Foi aí que Eliseu começou.

No capítulo 10 de Josué, quando ele ordena ao Sol: “Sol, detém-te”, está escrito: “E não houve dia semelhante a este, nem antes nem depois dele, ouvindo o Senhor assim a voz de um homem” [vv. 12,14]. Este homem estava tocando nas coisas celestiais. Isso é impressionante. Onde isso começou? Como assistente de Moisés! Ele aprendeu a sujeição: fazer o que lhe era dito, realizar coisas triviais, ser obediente e assumir uma posição humilde. E não pense que isso foi fácil para Josué. Ele tinha uma alma, assim como qualquer um de nós. Houve uma ocasião em que outros profetizavam no acampamento, e Josué é quem foi a Moisés e disse: “Moisés, meu senhor, proíbe-o”. E Moisés replicou: “Tens tu ciúmes por mim? Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta” (Nm 11.26-30). Josué tinha uma alma, suas próprias idéias. Naquela ocasião, ele era um jovem. Mas, aqui, finalmente, ele inicia a grande obra de sua vida, e está prestes a emergir no verdadeiro propósito do chamado soberano de Deus, e a narrativa começa assim: “Moisés, servo do Senhor […] Josué, filho Num, servo de Moisés”. Esse não seria um princípio? Temos algo aqui. Devemos sempre nos lembrar que foi o Espírito Santo quem escreveu a Bíblia – e o Espírito Santo é constante com os princípios espirituais. Não importa qual a forma deles; não importa quando, onde ou como: o princípio permanece exatamente o mesmo.

Os levitas começavam seu ministério aos 25 anos, mas não lhes era autorizado assumir plena responsabilidade até os trinta anos. Eles permaneciam debaixo da coordenação de levitas experimentados por cinco anos. Esse princípio do Assistente é sustentado ao longo das Escrituras. Sempre existe um período ou uma fase probatória antes da plena aprovação. A plenitude será suspensa até que o propósito específico de aprendizagem naquele período como Assistente seja alcançado. Ali será inculcada a habilidade de obedecer, receber ordens, permanecer em sujeição, servir. Não devemos presumir que somos alguma coisa. Aquilo que viremos a ser deve fluir naturalmente daquilo que pouco a pouco nos tornamos. Não devemos esperar que ocorra uma imediata e inevitável demonstração grandiosa do poder e da plenitude de Deus logo que Ele nos chamar para servi-Lo. Josué foi o Assistente de Moisés por muito tempo antes de ser tornado em seu sucessor, e bem antes que a manifestação do espírito de Moisés fosse percebida nele.

Deus cava fundo; Ele não tem prazer na superficialidade, e a medida de nossa utilidade em relação a Seu propósito pleno será equivalente à medida de nossa disciplina, por meio de provas. Nunca seremos líderes espirituais enquanto não tivermos aprendido a mansidão, como Assistentes fiéis.

Devemos nos lembrar, então, que sucessão nas coisas celestiais não se trata de algo oficial. Nunca acontecerá por meio de seleção humana, e nunca será presumida por causa das pessoas envolvidas. Não podemos assumir que somos os sucessores daquilo que Deus tem feito. Não podemos presumir que temos um lugar ali, e certamente ninguém poderá nos estabelecer nisso. Se essa for uma sucessão celestial, será soberana e espiritual. Nunca saberemos como a soberania Divina vai agir, mas podemos estar bem cientes de que o propósito Divino vai agir ao contrário de nossas expectativas e idéias.

Graça soberana

O próximo movimento foi enviar espias. Josué os enviou. Qual foi o resultado? “Toda a terra está adiante: Eu a dei a vocês.” “Hoje começarei a engrandecer-te perante os olhos de todo o Israel” [Js 3.7]. Temos uma imensa plenitude à vista. Bem, então, certamente veremos muita dignidade ao longo de todo o processo? Não. Raabe, uma prostituta, é a chave de toda a situação. Uma mulher sem uma boa reputação, ou de má fama, sem posição social alguma no conceito do mundo: tudo está ligado a isso. Isso reflete a soberania e a graça: não entraremos na terra da plenitude celestial sem essas duas coisas. Até mesmo o promissor Josué descobre que tudo depende de uma mulher de má fama.

Deus tem estranhas maneiras de nos humilhar. Quantas vezes buscamos algo maravilhoso, grandioso, glorioso, nobre e renomado em relação às grandes coisas de Deus. Então, Ele nos reduz nos levando a aceitar algo sem nenhum qualquer reconhecimento, sem aceitação alguma, exatamente aquilo que vai barrar nossa expectativa de receber louvor e admiração, se for isso que estamos buscando.

Se estivermos desejando ser introduzidos numa esfera de influência e utilidade, bem, não será dessa forma. Não haverá a possibilidade de chegar a lugar nenhum nesse mundo tomando esse caminho. Veja a influência que aquela mulher tinha em Jericó. Será que sua palavra teria algum peso ali? De jeito nenhum. Não houve envolvimento de altos escalões. Se isso não for algo dado pelo céu, não temos mais nada a nosso favor, não recebemos nenhuma ajuda externa. Não, não temos nenhuma outra base, nenhum caminho, nenhum outro ponto de apoio, que não seja do céu. Não podemos contar com pessoas influentes na corte nessa questão. Tudo deve vir do céu: será fruto da soberania ou nada teremos.

E tudo é fruto da graça, pois Raabe está na genealogia de Jesus Cristo. Maravilhoso! Quando chegamos à genealogia do Novo Testamento: Raabe! Oh, graça! O que poderia recomendar Raabe? O que poderia colocá-la no registro inspirado, nas Sagradas Escrituras, na linhagem de Jesus Cristo? Nada além de graça, e isso vem do céu. É assim que tudo funciona. Se algo deve ter valor real, será derivado da graça soberana, e nada mais; não haverá lugar para recebermos elogios. Estamos fora da corte, não temos nada que sustente nossa reivindicação, nada natural que possa nos apoiar. Estamos bem no nível de Raabe. Imagine o grande Josué aceitando isso. Mas esse é um princípio constante ao longo da Palavra de Deus. Se ao menos pudesse mostrar-lhes como ele se repete. Vocês diriam: “Ora, Deus parece sair de Seu caminho em detrimento de Seus próprios interesses, arriscando prejudicar o sucesso de Seus propósitos, tornando-os realmente difíceis de alcançar. Ele poderia ao menos ter escolhido uma pessoa respeitável, ainda que não fosse importante ou proeminente.” Mas Ele toma uma pessoa de má reputação, e faz de tudo para manter essa situação fiel a Seus princípios. Se não for fruto do céu, será menos que nada. Aquela mulher é a chave de Jericó, e Jericó é a chave da terra. Esse é o tipo de chave que o Senhor usa.

O homem natural banido

Quando chegamos ao fim da travessia do Jordão, Josué ordena que seja escolhido um homem representante de cada tribo de Israel, e que esses homens tomem doze pedras, colocando-as no leito do Jordão e deixando-as ali. Todo Israel, cada homem em Israel foi deixado no leito do Jordão. Assim é o homem aos olhos de Deus: uma pedra deixada no fundo do Jordão, deixada para trás. Aquilo que atravessa o Jordão e sai do outro lado é um testemunho de que algo foi deixado para trás, porque logo a seguir temos Gilgal. Algo havia sido deixado para trás. Não poderemos trazer isso para a terra, deve ser deixado no Jordão, não tem suporte aqui no céu. Este homem natural, esse conceito coríntio do homem, ficará ali, no fundo do Jordão, Deus deixou lá. As águas o cobriram e voltaram a correr, e ele está lá no fundo, enterrado para sempre. “E ali estão até ao dia de hoje” (Js 4.9). Esse é o caminho do alargamento.

Mas Deus precisa nos mostrar isso, e me parece que Gilgal foi a aplicação prática do princípio implícito naquelas pedras que ficaram no leito do rio. Aquelas pedras representavam a união do povo de Deus com Cristo em Sua morte e em Seu sepultamento – o homem natural que estava em evidência no deserto estava sendo tirado de vista. Gilgal toma essa verdade e a aplica perpetuamente. Colossenses 2.11,12 confirma isso. Precisaremos experimentar isso em nossa alma – em nossa carne –: a obra cortante da Cruz, a morte de Cristo. Podemos crer em toda a doutrina de Romanos 6 e, ainda assim, é possível que estejamos vivendo de modo grandemente contrário a isso em nós mesmos. O céu não se comprometerá com a carne ou com a vida natural. Se estivermos ocupados com nós mesmos, falando sobre nós, sobre nosso trabalho, sobre como temos sido usados, e coisas assim, não estaremos nos valores plenos de um céu aberto. É tão fácil deslizar inconscientemente de dar glória a Deus para gloriar-se na própria obra ou em parte dela. Quando isso acontece, a atmosfera muda e as pessoas espiritualmente sensíveis sabem que algo aconteceu, que uma nuvem desceu. O céu é tão transparente que nenhum vapor dessa Terra pode chegar lá, e a plenitude celestial demanda por transparência em nosso espírito.


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Capítulo 5: Jordão, uma mudança de posição

Leitura: Josué 3; 4.1-9.

Essas passagens que lemos a respeito da travessia do Jordão são uma perfeita apresentação do que o Senhor está nos falando nessa série de estudos. À medida que lemos, deve ficar bem claro para nós que esse ponto representou um momento muito crítico na história daquele povo: a travessia do Jordão representou a conclusão de um longo processo de preparação e o início de uma nova e maravilhosa fase em sua vida. Além disso, tomando como base o suporte abundante provido pelo Novo Testamento, vemos que esse momento foi uma representação da vida dos que são ou viriam a ser filhos de Deus em nosso tempo. O Novo Testamento retoma esse incidente na vida de Israel e declara que foi um tipo ou uma figura, tendo seu sentido espiritual verdadeiro e permanente atrelado ao cristão ou ao futuro cristão.

De modo que nós, que vivemos no tempo e na situação atuais, nos posicionamos exatamente nesta parte do livro de Josué. Ela se aplica a nós. Não estamos apenas lendo algo que ocorreu tantos séculos atrás, meramente como uma idéia a respeito de algo que aconteceu na vida dos filhos de Israel, quando eles saíram do deserto e entraram na terra de Canaã. Estamos lendo a partir dali até os dias de hoje. Estamos recapitulando aquele evento e afirmando: “Isso não aconteceu outrora, acontece agora; hoje as coisas são assim, ou pelo menos deveriam ser”. O maravilhoso é que aquele fato pode acontecer agora, neste exato momento, em nossa experiência. A ordem de Josué: “Santificai-vos, porque amanhã fará o Senhor maravilhas no meio de vós” [Js 3.5], nos é possível agora, pode ser atualizada para nossos dias. Portanto, vamos meditar nisso, pois estamos atentos a tudo que consideramos nos capítulos anteriores: o pioneirismo do caminho celestial.

O objetivo em vista nessa transição

Em primeiro lugar, lembremos do objetivo, o objeto em vista nesta transição, na travessia do Jordão. Já recebemos a interpretação espiritual desse incidente. Ele indica uma ilustração da vida em ressurreição e em união celestial com Cristo. Esse é o objetivo para o qual Deus chamou Seu povo. É precisamente para isto que o Senhor nos chamou, por Sua graça: para uma união em ressurreição com Cristo, união com Cristo baseada na vida de ressurreição. E não apenas isso, mas também uma união com Cristo em Sua vida celestial, por meio do Espírito Santo: unidade com Ele como no céu, e tudo o que ele representa.

Esse é o objetivo, o mínimo irredutível da vontade de Deus para Seu povo. Se não entramos em uma união com o Senhor Jesus em ressurreição, não chegaremos à união alguma. Isso quer dizer que nada sabemos realmente do sentido e do valor prático de sermos “unidos ao Senhor”. Muitos sabem algo do que é estar em união com um Cristo vivo, mas talvez saibam muito pouco e não o suficiente a respeito da união celestial com Ele e todas as implicações disso. Até que cheguemos a essa experiência, não atingimos o objetivo da salvação, nem chegaremos a satisfazer Deus por ter-nos salvo. Devemos ver o que isso significa.

Transição

(a) Para a autoridade de Cristo

Tornando nosso objeto bem claro diante de nós, examinaremos mais de perto essa transição, que teve dois aspectos. Em primeiro lugar, ela representou uma transição da autoridade das trevas para a autoridade de Cristo. Até aquele ponto, essas pessoas ainda estavam debaixo a autoridade das trevas, apesar de terem deixado o Egito há muitos anos. O fato é que, embora tivesse decorrido um tempo considerável desde que saíram do Egito, o Egito acabava de sair delas. É possível que sejamos salvos do mundo de maneira exterior e ainda assim não termos sido salvos dele de maneira interior. O Egito preservou uma força dentro do povo durante os anos de deserto. Aquela geração constantemente se voltava para o Egito. “Quem dera tivéssemos morrido por mão do Senhor na terra do Egito” (Êx 16.3). “Oh, que tivéssemos ficado no Egito!” Vemos que o Egito ainda estava no interior deles exercendo um domínio; eles ainda sonhavam e imaginavam que encontrariam satisfação ali. Eles não haviam chegado completa e totalmente àquela emancipação que conduz a um estabelecimento claro, de uma vez por todas, de que não existe absolutamente nada mais naquele mundo; o apenas pensar que poderia haver é repugnante e odioso, representa desolação. Vemos que eles não tinham chegado a esse ponto. Isso acontece mesmo com os cristãos, quando, às vezes, debaixo de tensão e pressão, pensam que estariam melhor, que teriam um tempo mais fácil se voltassem para o mundo. Mas o Jordão resolveu isso. O que quer que tenha permanecido os espreitando por todos os anos do deserto acabou no Jordão. Essa autoridade, esse controle interior, foi finalmente quebrado no Jordão. Aquela foi uma transição total da autoridade das trevas para a autoridade de Cristo, tipologicamente falando.

Vou repetir mais uma vez algo que já disse muitas vezes:

É possível que tenhamos e conheçamos a Cristo como nosso Salvador sem conhecê-Lo como nosso Senhor.

Ou seja, podemos conhecê-Lo apenas como nossa fonte de salvação: como Salvador da condenação, do juízo vindouro, do inferno, e podemos até receber algumas bênçãos positivas desse Salvador resultantes dessa posição. Oh, mas existe ainda tanto conhecimento possível e real diante de nós! Temos um intervalo muito longo entre o êxodo e o eisodos [1], entre a saída e a entrada; existe um grande intervalo entre essas duas coisas. São tantos os cristãos que participam de uma convenção e aceitam Jesus Cristo como Senhor apesar de serem salvos há tanto tempo, para então descobrir que isso podia ter ocorrido há muito tempo, que o intervalo que se passou entre essas duas coisas foi longo demais. O Jordão nos fala de encontrar Cristo como Senhor, não só como nosso Salvador do julgamento e da morte – o Jordão representa tudo que envolve Seu senhorio. Enquanto Ele não for o Senhor, não começaremos a descobrir as riquezas insondáveis que Nele estão, como vemos nas riquezas da terra de Canaã.

(b) Para uma vida frutífera no Espírito

O Jordão também representou a transição da desolação e da esterilidade da natureza para a fecundidade da vida no Espírito. Aquelas pessoas viveram muito tempo em si mesmas; a vida do ego, a vida natural, havia se estabelecido. Vemos como seus interesses pessoais, considerações sobre vantagens ou desvantagens ocuparam muito espaço em sua perspectiva de vida. Se as coisas alinhadas ao propósito de Deus não fossem fáceis, mas contrariassem a natureza, então começavam as murmurações. Quando tudo corria bem, era natural o transbordar de alegria. Tudo isso se baseava na vida natural. Era natural se alegrar quando as coisas eram fáceis. Da mesma forma, era esperado resmungar porque as coisas estavam difíceis. Essa era a vida natural, e como o deserto foi árido para eles, um deserto exterior e interior. O Jordão daria fim a essa vida, representando uma transição daquela vida estéril e desolada na carne, na natureza, para uma vida no Espírito.

Aquele Homem que confrontou Josué como representante de Deus, era, acredito eu, ninguém menos que o Espírito Santo, o Espírito de Deus, o Capitão do exército do Senhor. Ele é aquele “Príncipe do exército do Senhor” (Js 5.14), como a Si mesmo se denominou. Quando o profeta usou estas palavras que tanto citamos ― “Não por força nem por violência, mas sim pelo Meu Espírito, diz o Senhor dos Exércitos” (Zc 4.6) ―, o sentido literal seria: “Não por um exército […] mas pelo Meu Espírito”. Aqui está o Capitão do exército do Senhor, o Espírito, e a partir desse ponto Ele assumirá o comando, e como a situação será diferente! Será uma vida no Espírito. Sim, agora teremos fecundidade; não será uma vida sem escorregões e erros ― eles acontecem ―, mas será uma vida ajustada ao Espírito. Essa será uma vida de progresso, de expansão, de constante enriquecimento, uma vida de entrada na herança. “Todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo” (Ef 1.3). Da esterilidade da natureza para a fecundidade da vida no Espírito: esse foi o significado da transição do Jordão.

O grande Pioneiro vai à frente

Chegamos, então, ao ponto central de tudo: o grande Pioneiro ― aqui registrado com letra maiúscula ―, o grande Pioneiro representado pela arca do Senhor de toda a terra. Mais uma vez reforço que essa não é uma interpretação imaginativa. O Novo Testamento garante, por meio de afirmação definida, que aquela arca era um tipo do Senhor Jesus. Não vamos parar nesse momento para provar isso nas Escrituras, mas é um fato. A arca tipifica Cristo. A grande transição estava prestes a ocorrer. Como isso aconteceria? “A arca da aliança do Senhor de toda a terra passa o Jordão diante de vós” (Js 3.11). “Haja, contudo, entre vós e ela, uma distância de dois mil côvados” (v. 4). Não podemos estimar exatamente essa medida porque temos três diferentes côvados registrados na Bíblia, e não sabemos qual deles foi usado em Josué (e, ainda que soubéssemos, não saberíamos sua medida exata); mas tomando por base a menor medida do côvado para estimar a distância entre a arca e o povo sabemos que era maior, muito superior a trezentos metros.

Por que essa distância? “Mantenha essa distância; não se aproxime; preserve aquele espaço poderoso entre você e a arca”; ou poderíamos dizer: “Entre você e Ele”? Por que esse grande espaço?

(a) A grandeza de Cristo em Sua morte

Isso não nos fala, em primeiro lugar, da grandeza de Cristo em Sua morte? Pois está escrito, como explicação entre parênteses: “Porque o Jordão transbordava sobre todas as suas ribanceiras, todos os dias da ceifa” (v. 15), e aquele foi o momento da travessia. “O Jordão transbordava sobre todas as suas ribanceiras” em uma grande inundação que se espalhava em todas as direções além de seu canal, e sabemos muito bem que isso fala das águas da morte e do julgamento. Fala da Cruz do Senhor Jesus. O Senhor permanece bem ali, no dilúvio, na inundação avassaladora do poder da morte. Ele permanece ali, bem no centro dela, em toda a sua profundidade, comprimento e largura; tragando tudo.

Quão grande é Cristo na morte! A morte não é pouca coisa: é uma inundação poderosa e avassaladora. O Senhor sondou e mediu suas profundezas e, ao morrer, destruiu a morte. Ali Ele está. Ele permanece na própria morte. A morte perdeu seu poder, a morte foi afastada, a morte foi proibida de prosseguir. Essa descrição é maravilhosa. Enquanto de um lado vemos a poderosa parede de água erguida, do outro lado, descendo para o Mar Morto, tudo o que falava de morte havia secado. Quão grande é Cristo na morte! Incomparável! Ele permanece sozinho ali. Ninguém mais poderia fazer isso.

(b) A exclusividade de Cristo em Sua morte

Vemos ali também a exclusividade de Cristo. Não apenas a grandeza, mas também a exclusividade de Cristo na morte. “Não havia ninguém mais que fosse bom o suficiente”. Oh, que blasfêmia comparar a morte, por mais heróica que seja, de um soldado que dá a vida pela pátria, com a morte de Jesus! Não. Qualquer heroísmo que possa existir ― e pode haver muito a ser honrado, valorizado e apreciado ―, por maior que seja o heroísmo e o sacrifício dos homens, “não chega nem perto” de dois mil côvados do sacrifício do Senhor. Existe um espaço ali. Deus estabeleceu essa distância e disse:

“Isso é inviolável: Ele está à parte, nada pode se aproximar desta poderosa obra de Jesus Cristo. Ninguém mais o fez e ninguém poderá fazê-lo; isso deve ser feito só por Ele.”

(c) A solidão de Cristo em Sua morte

Sozinho. Veja a solidão daquela figura ― esquecendo por um momento dos levitas que carregavam a arca nos ombros, pois a descrição tem como foco destacar a arca, não eles ―; vamos contemplá-la de longe, como aconteceu ali. O espaço era grande. Naquela distância considerável de trezentos metros seria como contemplar um pequeno objeto sozinho, um pequeno objeto solitário ali. Quão sozinho o Senhor esteve em Sua morte! “Todos os discípulos, deixando-O, fugiram” (Mt 26.56). Ele disse: “Vós […] me deixareis só” (Jo 16.32), e eles de fato o fizeram. E, então, a dor mais profunda de todas: “Deus Meu, Deus Meu, por que Me desamparaste?” (Mt 27.46). Sua solidão na morte é retratada por aquela arca. Contemple-O: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo 1.29).

Por que essa solidão? Bem, “não havia ninguém mais que fosse bom o suficiente para pagar o preço do pecado”. Não havia ninguém comparável em excelência e grandeza, que fosse capaz de suportar o pecado do mundo. Ele foi o único apto a fazer isso, e isso O estabeleceu nessa extrema solidão. Quem suportaria saber, em plena consciência, o que é ser totalmente abandonado por Deus? Graças a Deus, nunca precisaremos saber disso. Não nos é necessário ter a consciência de que Deus nos abandonou, nem por um momento. Na verdade, não seríamos capazes de sobreviver a isso. Mas o Senhor o experimentou. Foi necessário que Ele, o Filho de Deus, passasse por isso. Esse foi o preço que Ele pagou como o Pioneiro ― o Pioneiro da nossa salvação, o Pioneiro da nossa herança, o Pioneiro da nossa possessão de tudo aquilo para o que Deus nos chamou pela união com Ele. O Pioneiro precisou pagar o preço dessa solidão definitiva e absoluta. Isso não reflete algo do suspiro, do brado, de Isaías 53? Sim, Ele foi o único naquela posição, ferido por nossas transgressões, ferido de Deus e oprimido, entregando a alma feita por Deus como oferta pelo pecado; mas Ele “verá Sua posteridade, prolongará Seus dias” [v. 10], e dessa solidão surgirão, em uma multidão poderosa, os filhos de Sua orfandade (49.20).

Identificação com Cristo pela fé e pelo testemunho

A próxima coisa, e a palavra final para o momento, é a identificação com Ele pela fé e pelo testemunho. Não, não podemos entrar nisso verdadeira e literalmente. Graças a Deus, isso não é necessário. Quero dizer que não somos chamados a passar por tudo o que Ele passou, mas somos chamados a assumir uma posição de fé, atestando isso de uma forma muito prática. Não seria apenas entrar e tomar tudo como nosso, mas reconhecer que só é nosso por causa Dele, só é nosso Nele. Existe uma identificação de vida com Ele.

Essa identificação pela fé e pelo testemunho é vista no mandamento de Deus quanto ao que devia ser feito. Pedras deveriam ser tiradas do leito do Jordão, daquele lugar onde tudo havia sido conquistado pelo grande Pioneiro da redenção e ― observe ― por doze homens, “de cada tribo um homem” (Js 4.2). Com efeito, cada homem de cada tribo está representado ali, tornando isso uma questão pessoal para cada um. “Cada um levante uma pedra” [v. 5]. Tudo deveria ser pessoal: um testemunho pessoal, uma apropriação pessoal de tudo aquilo, algo a ser tomando sobre os ombros, posicionando-nos debaixo de tudo o que isso significa: nosso compromisso com o Senhor Jesus, com Sua morte, com o fato de que Nele morremos; nosso compromisso com Seu sepultamento. “Fomos sepultados com Ele” (Rm 6.4). Então, temos nosso compromisso com Sua ressurreição. As pedras do Jordão significam nossa união com Ele na morte e no sepultamento; as pedras tiradas do Jordão e tomadas como memorial do outro lado representam nossa união com Ele na ressurreição.

Mas deve haver uma transação prática, pessoal e individual. “Cada um levante uma pedra.” Você tomou a pedra nos ombros, de forma pessoal? Você já fez isso de modo definitivo? Sabemos como o apóstolo Paulo diz que o testemunho é prestado (isso nos é muito familiar). “De sorte que fomos sepultados com Ele pelo batismo na morte; para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos, pela glória do Pai, assim andemos nós também em novidade de vida” (Rm 6.4). Temos essa história de forma clara e simples. Sim, pelo batismo declaramos que tomamos a pedra sobre os ombros, assumimos essa responsabilidade, estamos definitivamente comprometidos com tudo isso.

Deixe-me repetir: não fomos salvos apenas do julgamento, da morte e do inferno, não fomos salvos apenas de, mas para tudo aquilo que está no coração de Deus. As coisas não se relacionam mais com aquilo que vamos obter, como isso vai nos afetar; essa é a velha tirania; nossas circunstâncias não são mais pessoais. Agora o que importa é o que o Senhor deseja, o que O satisfaz e glorifica. Essa é a paixão de um coração verdadeiramente comprometido; e, quando Ele nos ajudar nesse sentido, nos transportando acima da cerca do interesse próprio, dos interesses mundanos, do governo carnal, para uma terra onde tudo está relacionado ao Senhor e ao que Ele deseja, teremos encontrado a terra que mana leite e mel, nós teremos encontrado as riquezas de Cristo, nós estaremos debaixo de um céu aberto. Grande parte de nossa vida e obra cristã é egoísta. Enquanto não formos tirados da esfera do ego e tenhamos sido movidos para o Senhor, de forma plena e completa, nada saberemos a respeito da vida celestial e sua plenitude espiritual. É isso que está representado aqui.

Que o Senhor nos encontre a todos fazendo esta grande transição, esta declaração: “Cada um levante uma pedra”. Que o Jordão, com tudo o que ele representa, repouse sobre nossos ombros.


[1] A palavra grega eisodos representa uma entrada, ao contrário de êxodos, que significa “saída”. A palavra é usada em Hb 10.19; 2Pd 1.11; 1Ts 1.9; 2.1.

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Capítulo 4: Moisés

Leitura: Hebreus 11.24-27, 13, 16.

Deus tem um grande desejo: ter aquilo que poderia ser chamado de “um povo desfrutando do Seu melhor”. Enquanto Ele não tiver esse povo, nunca estará plenamente satisfeito. Pode haver aqueles que aceitarão Seu “segundo melhor” – pois Ele certamente permite um segundo melhor –, mas apenas um povo voltado para o Seu melhor vai verdadeiramente satisfazer Seu coração. Mas, como o processo para obter o Seu melhor é repleto de conflito, custo e disciplina, e tudo isso é absolutamente contrário ao curso da natureza, nem todos – na verdade, apenas uns poucos – continuarão com Ele na busca de Seu melhor. Esse princípio é visto ao longo das Escrituras, e existem algumas ilustrações notáveis dele. Elas são encontradas em todas as dispensações.

Não devemos dizer que a geração que pereceu no deserto, e que fora tirada do Egito pela virtude do precioso sangue e pela fé inicial – pois “pela fé passaram o Mar Vermelho” (Hb 11.29) – representa a perda absoluta e final da salvação. No entanto, fica muito claro que aquela geração perdeu aquilo que Deus intencionava para ela, e foi uma perda grande e dolorosa, sempre apresentada nas Escrituras como um exemplo de tragédia, fracasso e decepção. Não devemos dizer que a maior parte daqueles que foram para o exílio na Babilônia, na Caldéia, e nunca mais retornaram, perderam eternamente a salvação de Deus. Mas sabemos que a minoria voltou e, ao fazer isso, cumpriu o verdadeiro propósito de Deus. Esses são apresentados como aqueles de quem particularmente Deus não se envergonha. Em certo sentido Deus se envergonha dos demais, tanto no deserto como na Babilônia. Isso acontece em todas as dispensações. O chamado continua soando, inclusive aqui, para que o povo de Deus não se satisfaça com uma segunda opção que não seja o melhor de Deus.

Mas, como já dissemos, isso não é apenas um chamado para uma realização. Esse é um chamado para o pioneirismo em favor de outros, pois muitos do povo do Senhor não conhecem o caminho celestial. Eles estranhamente não conhecem o caminho celestial, apesar de serem nascidos do alto. Essa é uma verdade, ainda que não apresentaremos todas as provas dela. Talvez muitos de nós tenham tido essa atitude por um período da vida cristã. Tudo era essencialmente terreno. Nossas atividades eram relacionadas à terra, de uma maneira cristã. Então, chegou um momento de crise, quando entendemos o sentido de um céu aberto e fomos elevados a um nível inteiramente novo de vida espiritual; a partir daí começamos a aprender as coisas celestiais de uma nova maneira. Tudo isso são fatos, e o movimento de todos aqueles que são chamados por Deus para trilhar esse caminho celestial não envolve apenas sua própria medida espiritual, mas essas pessoas são chamadas a abrir caminho para aqueles que não o conhecem, até mesmo entre o povo do Senhor. Isso não significa que devem pregar sobre um caminho celestial ou possuir uma interpretação especial das Escrituras, alguma doutrina ou fraseologia. Significa que eles são chamados a viver pelo benefício desse chamado, viver de acordo com ele, e, por meio daquilo que eles sabem e experimentam, são capazes de ajudar os outros a se elevarem dos níveis mais baixos da vida espiritual.

Portanto, vamos examinar novamente a questão do pioneirismo no caminho celestial, centrando nossos pensamentos em outro grande pioneiro: Moisés. Existem, é claro, muitos outros aspectos de sua vida além do pioneirismo, mas acredito que este aspecto realmente é o que torna Moisés significativo: o fato de que ele foi o pioneiro de um caminho celestial.

Se olharmos para a vida de Moisés a partir de um ponto de vista terreno, vemos muito desapontamento, fracasso e tragédia, pois, apesar de ter palmilhado o caminho celestial e aprendido muito dele por oitenta anos – que foram oitenta longos, difíceis e escrutinadores anos de disciplina e sofrimento –, nem ele nem o povo que ele tirou do Egito entraram na terra. Isso nos soa como decepção, na verdade, como tragédia. Jamais poderei ler aquele registro de Moisés implorando a Deus para deixá-lo entrar em Canaã, e a recusa absoluta, final e conclusiva de Deus, sem ser profundamente tocado. É algo comovente.

Dessas pessoas que foram constituídas numa nação pelas mãos de Moisés, e que instrumentalmente deviam a ele sua existência como nação, vemos que além do fato daquela primeira geração não ter entrado na terra e na herança, toda a história da nação desde então se tornou uma tragédia. Houve momentos e períodos brilhantes nessa história; houve tempos de glória, mas, olhando o todo até nossos dias, lembrando o quanto falam sobre Moisés, o que atribuem a Moisés e o quanto sempre apelam para Moisés, essa tem sido uma história muito decepcionante. Reitero que, sob certos pontos de vista, a vida de Moisés indica muito do que podemos considerar fracasso, decepção e tragédia. Mas, por outro lado, quando observamos o próprio fato da vida de Moisés e a natureza de sua conclusão, o fato da geração que pereceu no deserto, o fato dessa nação ter fracassado e desapontado ao longo das eras, vemos que esse é o argumento mais conclusivo para outro aspecto, qual seja: a verdade Divina do que é celestial. É claramente enfatizado que, se tudo se resumir nas coisas daqui de baixo, então é muito pobre. Deve haver algum outro caminho, alguma outra sequência para isso, aquilo não pode ser tudo. Não; existe outro ponto de vista: o ponto de vista celestial, onde o tudo é interpretado e governado pelo céu.

Bem, vamos olhar para Moisés: em primeiro lugar para ele e seu treinamento e, em segundo lugar, para Israel debaixo de sua liderança.

1. O treinamento de Moisés

(a) Captura soberana

Começaremos com a pessoa e o treinamento de Moisés, não com seu nascimento. Vamos iniciar a partir de onde lemos sobre ele na Epístola aos Hebreus: quando estava no Egito. Nesse ponto, encontramo-nos novamente diante de algo que já mencionamos nessas meditações: aquele senso inato de destino. Não poderemos fugir disso. Quando tratamos do pleno propósito de Deus e tudo que envolve a obra, o serviço, o ministério e o pioneirismo relacionados a ela, este sempre será o ponto inicial, isto sempre estará ali: esse sentimento profundo da soberana captura Divina para algo.

Aqui está este homem no Egito, cercado por tudo o que o Egito oferece. Os estudantes de história sabem que a glória e o encanto do Egito não eram pouca coisa nos dias de Moisés. Ele estava cercado por tudo isso. O escritor de Hebreus aqui fala dos “tesouros do Egito”. Seus prazeres, suas amenidades, sua erudição, sua educação: todos os seus privilégios, inclusive a casa do rei – tudo estava ao comando e à disposição de Moisés. Ele era “instruído em toda a ciência dos egípcios” (At 7.22) e tinha todos os “tesouros” do Egito nas mãos. Isso não era pouca coisa. Você diria que isso era algum sem qualquer valor para ser desprezado? Isso era o poderoso “tudo” deste mundo – mas aquele senso de destino o transformou em nada. Embora Moisés pudesse desfrutar de tudo, tanto quanto podia, havia uma sombra constante sobre esse prazer, algo dentro dele o impedia de ficar plenamente satisfeito com aquilo. Havia uma inquieta sensação de descontentamento e insatisfação em Moisés, o que de fato era uma ação da relutância de Deus de se satisfazer com qualquer coisa aquém de Seu pleno propósito. Moisés talvez não conseguisse explicar ou definir esse estranho anseio, mas aquilo o fez saber que o “tudo” do Egito não era de forma alguma o tudo de Deus, e que o Egito nunca poderia responder a esse chamado e o levar para cima e além.

Isso não é exagero, não são apenas palavras. Isso está nas Escrituras, e isso é bastante comprovável. Pois aqueles que são chamados para o caminho do pleno propósito de Deus, Seu mais elevado e Seu melhor, serão assim também. Não importa se temos popularidade, posição no mundo, sucesso, meios e recursos – tudo ao nosso alcance: se formos verdadeiramente chamados de acordo com Seu propósito, estaremos desassossegados em meio a isso tudo, insatisfeitos, e teremos a sensação: “Afinal, tudo isso vale a pena? Existe algo mais além disso.” Provem seu coração com isso. Isso não é ficção, é um fato.

Pode ser que esse fato esteja oculto hoje enquanto você lê essas palavras. Você poderia obter muita coisa neste mundo se desejasse se empenhar para alcançá-las. Você poderia ter um caminho no mundo, em seus prazeres e outras coisas, se realmente quisesse. Sim, e talvez você pudesse obter aceitação e posição até mesmo no mundo religioso, mas isso se tornou secundário para você. Há algo em você – que talvez não possa definir, nem mesmo descrever o que é –, mas você sabe que existe algo, e, a menos que descubra o que é e consiga obtê-lo, sua vida será uma decepção, tudo não passará de escárnio. Se isso for verdade em seu caso, é uma grande esperança, algo maravilhoso: o sentido do céu desceu e capturou você. É claro que, se você não tiver essa percepção, ficará satisfeito com todo tipo de coisas inferiores a isso, e estará correndo atrás delas. Mas, observe, se você conseguir viver assim, essa é uma acusação terrível, pois significa que de alguma forma, no que diz respeito a você, aquela poderosa captura celestial fracassou.

(b) Uma crise

Assim, algo começou a tocar interiormente Moisés, e essa coisa interior levou-o a uma crise definitiva, a crise entre o terreno e o celestial. O Senhor tem maneiras maravilhosas de produzir essa crise. Ela nem sempre é produzida e precipitada por algum êxtase – se é isso que você busca –, pela glória de uma grande luz e visão, pelo arrebatamento da alma, por alguma experiência celestial tremendamente maravilhosa. Nem sempre essa crise acontece assim. Não foi dessa forma que aconteceu com Moisés, nem com outros. Como ela ocorreu, então? Um dia, ele saiu e viu um egípcio maltratando um hebreu; então, esse senso de destino se apoderou dele e o governou, e, como se deduz, ele era fisicamente forte, ali mesmo atacou o egípcio e o matou. Essa foi a crise que precipitou tudo. Às vezes, apenas acordamos para o celestial ou somos colocados face a face com essa esfera devido a uma contravenção ou uma falha terrível; pois, quase imediatamente depois disso, a permanência de Moisés no reino do Egito se tornou insustentável, e ele precisou partir.

Mas o que havia dentro dessa crise, qual era seu sentido, por que Deus permitiu que ela acontecesse? Moisés poderia ter dito: “Por que o Senhor me permitiu fazer isso? Por que o Senhor, que me conhecia de antemão e, em Sua própria presciência, me chamou para Seu grande serviço me deixou fazer essa bagunça? Por que Ele permitiu que eu me envolvesse em algo como um assassinato, para ter minhas mãos manchadas por um crime? Eu, que fui chamado para ser o emancipador do povo de Deus! Por que o Senhor permitiu isso?” A resposta teria sido: “Não é assim que o céu faz as coisas, Moisés. Essa é a maneira do mundo, é o modo da carne fazer as coisas. Não é a maneira como o céu faz as coisas. Você, Moisés, nunca pode trazer um povo celestial a um lugar celestial por meio de métodos e meios terrenos. Aprenda isso de uma vez por todas. Essa pode parecer uma maneira terrível de lidar com a situação, mas ela aí está, de forma clara e simples. Esse povo, que você foi escolhido para liderar pela presciência, por um ato soberano de Deus e por meio desse senso de destino em você, esse povo foi escolhido para ser um povo celestial. Como você pode conduzi-lo para um nível de vida celestial se esse não for seu nível de vida?” Voltaremos a isso em um minuto. O céu irrompe e afirma enfaticamente: “Não, Moisés. Armas carnais para fins carnais, mas não armas carnais para fins espirituais; meios terrenais para fins terrenais, mas não meios terrenais para fins celestiais. O céu governa aqui, e que isso fique registrado assim.” Que lição de vida! Que fundamento!

Bem, você pode nunca ter cometido um assassino, mas não tenho dúvidas de que pelo menos alguns dos que lêem essas linhas aprenderam lições muito profundas dessa natureza: que você simplesmente não pode prosseguir com Deus neste nível, você não pode seguir em frente com Deus nesta linha, não pode servir a Deus em Seu propósito celestial desta forma: na força da carne. Isso é muito fiel ao princípio divino. O céu não aceitará nada desse tipo, mas demandará por sua própria vida e natureza. Essa foi a crise entre o celestial e o terrenal no treinamento de Moisés.

(c) Quarenta anos no deserto

Então, temos a próxima fase: a ida para o deserto, para um “deserto remoto” pelos próximos quarenta anos. Oh, certamente isso não tem lugar na economia de Deus! Sim, os desertos sempre representam e significam uma coisa, onde quer que você os encontre. Eles significam o esvaziamento pessoal. Pense sobre isso. Você não poderá ser uma pessoa muito importante, autossuficiente e autoconfiante em um deserto. Um deserto nos esvazia de tudo isso. Não é somente você que está no deserto: o deserto entra em você, tornando-o estéril, desolado, incapaz, inútil. Você não acha que em quarenta anos no deserto isso não foi injetado em Moisés? O que estava acontecendo?

Esse é o lado negativo do treinamento, representando o cancelamento do Egito e do mundo. O Egito apontava para autossuficiência, sempre foi o sinônimo de independência – e o Egito precisava ser tirado de Moisés. Ele precisou ser esvaziado do espírito e dos princípios do mundo. O Egito havia entrado em Moisés e agora estava sendo posto para fora, enquanto exatamente o contrário do Egito estava entrando. Esse lado que chamamos de negativo é uma parte integrante da escola do caminho celestial. Isso nos leva interior e espiritualmente ao lugar onde vemos de modo claro que em nós não habita bem algum, e que não seremos capazes de produzir e realizar nada. Esse é o deserto. Não entenda mal nem falhe em reconhecer isso. Isso é verdadeiro com relação à vida, à experiência e é alinhado aos princípios celestiais. É necessário que haja uma abertura de espaço em nós para o céu, pois não há lugar para o céu em nós por natureza.

(d) A difícil prova de emancipação

Então, temos o próximo passo depois disso: Moisés é trazido de volta ao Egito para a difícil prova da emancipação. Agora é o Senhor, não mais Moisés. Ou tudo vai ser o Senhor agora, ou nada acontecerá. Mas será o Senhor. “Agora verás o que hei de fazer” (Êx 6.1). Certo dia, Moisés disse: “Agora você verá o que eu farei”, e o egípcio sentiu o peso disso, e, no dia seguinte, o hebreu. Mas isso acabou, e o Senhor agora diz: “Agora verás o que hei de fazer”. “Eu vou agir, agora que você parou.” A posição é alterada, tudo agora se torna possível. Houve uma transição do negativo para o positivo. A grande e difícil prova da emancipação desse povo tem início.

O primeiro estágio relaciona-se com a vara e a mão. Vemos em Êxodo 4: “Que é isso na tua mão?” “Uma vara.” “Muito bem; por meio daquela vara as coisas serão realizadas.” “Põe agora a tua mão no teu seio” [vv. 2,6] “Retire-a” – branca e leprosa. “Torna a pôr a tua mão no teu seio”. “Retire” – limpa e íntegra.

A vara

O que a vara representa? Sabemos que a vara usada por Moisés se tornou a vara usada por Arão, aquela que brotou quando o sacerdócio foi posto à prova (Nm 17). Doze varas foram colocadas na tenda do testemunho durante a noite, representando as tribos. De manhã, havia onze varas mortas e uma viva – o emblema de um sacerdócio vivo. E não se esqueça: o sacerdócio se relaciona com o espiritual. Eles teriam de lidar com todos os deuses dos egípcios. Eles são impuros, corruptos, maus, comitiva do diabo. Se faz necessário o grande poder de um sacerdócio santo para lidar com essa situação impura. É a vara da palavra da Cruz. A palavra da Cruz é uma vara poderosa.

Qual é a questão relacionada a toda essa provação? É a afirmação do Senhor: “Os egípcios saberão que eu sou o Senhor” (Êx 7.5). Essa é a questão. Vamos então começar a aplicá-la de maneira prática por meio da palavra da Cruz, a palavra do sacerdócio vivo.

Aplique-o primeiro a toda a esfera da natureza, da criação. “Eu, o Senhor, as criei” (Is 45.8). O Senhor do Calvário é o Senhor da criação, e a primeira aplicação da palavra da Cruz ocorreu no Egito. Com um toque do Senhor da criação, o mundo dos seres vivos é trazido a julgamento. Eis a questão: “Eu sou o Senhor” [Êx 7.5].

A segunda aplicação é em relação aos céus – pois o Senhor fez os céus assim como fez a terra –, e os elementos são tocados por meio de Sua palavra. Se olhar para o Calvário, você verá ali todas essas características. Quando Ele, o grande Pioneiro do caminho celestial, foi à Cruz, toda a criação foi afetada. O céu e a terra estavam envolvidos. Houve um grande terremoto, e houve “trevas sobre toda a terra, até a hora nona” [Mt 27:45]. A criação e os próprios elementos sofreram o impacto Daquele que é a Palavra na Cruz. Isso aconteceu tipologicamente no Egito.

Então, em terceiro lugar, temos a aplicação para o inferno. Qual é a maior arma do inferno? A morte, “o último inimigo” (1Co 15.26). A morte não é nossa amiga, é o último inimigo, e a morte foi o último juízo do Egito. A fortaleza do inferno foi invadida, o poder da morte foi conquistado para a emancipação de um povo. Foi isso que Cristo fez na Cruz. Esta é a palavra da Cruz: o inferno foi invadido e a morte foi capturada para servir aos fins determinados por Deus, em vez de frustrá-los. No Egito, a palavra, por meio da vara, tocou o primogênito com a morte, e o inferno foi picado em seu âmago com seu próprio ferrão. Mas isso não é tudo. Aquela mesma vara guiou o povo para fora, executando a redenção do Egito através do Mar Vermelho. “E tu, levanta a tua vara, e estende a tua mão sobre o mar” (Êx 14.16). A palavra da Cruz é a palavra da vida triunfante sobre a morte. A morte é vencida, a vida e a incorrupção são trazidos à luz [2Tm 1.10]. Por meio da vara da palavra da Cruz, por meio dessa provação maravilhosa de emancipação, Moisés aprendeu uma coisa: que o céu governa.

O céu governa esta criação, o céu, o inferno. O céu também governa os reinos dos homens para a emancipação dos eleitos. Essa é a história da intervenção do céu.

Você se pergunta porque tudo foi gradual, não acontecendo de uma só vez. O efeito da vara foi apenas parcial no início, mas ganhou força e poder à medida que avançava.

Temos dois lados. Por um lado, existe o caráter progressivo dessa educação: ela é gradual. Não vamos ver e conhecer todo o poder do céu instantaneamente. Aprendemos um pouco de cada vez. É uma coisa gradual. Esse poder se manifesta até um ponto uma vez, vai um pouco além na próxima. Não é isso que estamos aprendendo? Aprendemos esta lição de maneiras simples: como o céu é maior do que a terra, do que o homem, a natureza, o inimigo. Estamos aprendendo cada vez mais, passo a passo, o significado dessa tremenda e infinita ascendência do céu.

Mas existe outro lado. Deus, progressivamente, está ampliando as forças contrárias, estendendo-as gradualmente. “Eu lhe endurecerei o coração”; “Eu, porém, endurecerei o coração de Faraó”; “Eu endurecerei o coração de Faraó”; “o Senhor endureceu o coração de Faraó” [Êx 4.21; 7.3; 14.4;8]. Deus poderia tê-lo eliminado com um só golpe, mas Ele estendeu isso ao limite máximo. O poder deste mundo será ampliado em toda a sua extensão para encontrar o poder infinito do céu, e então, ao final de tudo, a superioridade do céu será muito clara.

Já dissemos isso tantas vezes, e é verdade. Embora não possamos compreender, ver ou calcular, a verdade é que “o poder que em nós opera” é “a sobre-excelente grandeza do Seu poder” (Ef 3.20; 1.19). Não sabemos, somos incapazes de mensurar a imensidão das forças que operam contra a salvação de uma alma, que se opõem ao propósito de Deus para Seu povo. Sabemos um pouco a respeito, e saberemos mais e mais à medida que avançarmos, mas quando a Palavra menciona “a sobre-excelente grandeza do Seu poder”, isso não é apenas um figura de linguagem, mas é uma tentativa, apenas uma tentativa, por meio da linguagem, dos superlativos, de tudo o que a linguagem humana pode fazer, de transmitir a realidade. “E qual a sobre-excelente grandeza do Seu poder sobre nós, os que cremos, segundo a operação da força do Seu poder, que manifestou em Cristo, ressuscitando-O dentre os mortos” (Ef 1.19,20). E essa palavra é direcionada a nós.

Temos algo extraordinário aqui. Temos a superioridade do céu sobre toda essa situação de trazer um povo para fora e conduzi-lo através. Estamos nessa escola. Moisés esteve nessa escola. Ele foi submetido a essa provação para que pudesse progressivamente, mas de forma bastante firme e definitiva, reconhecer que tudo o que está aqui no Egito, representado por faraó, será drenado até a última gota de sua vitalidade e morrerá. Moisés às vezes ficava apreensivo, voltava do desafio desapontado. Ele sentia: “Ainda não chegamos lá, ainda falta alguma coisa”. “Tudo bem”, dizia o Senhor; “nós teremos algo mais.” O Senhor estava educando Moisés, e este estava vendo mais e mais progressivamente. Você não acha que, se Deus fizesse tudo de uma vez, em um ato, perderíamos alguma coisa, tomaríamos as coisas como garantidas, não teriam tanto valor para nós, seriam apenas um milagre do passado? No entanto, ao longo de nossa vida, Deus está estendendo as forças opositoras que operam contra nós para provar que Suas forças são superiores. É uma longa escola, mas esse é o caminho do propósito celestial.

A mão

Agora vamos falar da mão. “Põe agora a tua mão no teu seio” [Êx 4.6]. Que mão? Aquela mão que havia assassinado o egípcio, manchada de sangue, a mão da força natural, da autossuficiência. Aquela mão representava o velho Moisés e seu fracasso, fracasso debaixo da energia e do impulso da própria vontade. “Ponha essa mão no teu seio. O que está ali, Moisés? Isso é aquilo que provém de você. Você acha que pode manejar a vara de Deus? Acha que com isso pode trazer a autoridade celestial? Oh não! Essa mão precisa ser limpa antes que você possa empunhar aquela vara. Esse seio precisa ser limpo, aquela mancha deve ser removida, toda aquela energia do ego e da autossuficiência deve ser eliminada. Moisés, aquela mão leprosa é aquilo que você é em si mesmo.”

Não é isso que estamos descobrindo? Como é nosso coração? Como nós somos? Exatamente assim. Quanto mais nos conhecemos e vemos a nós mesmos, mais clara é a semelhança com a lepra. Mas, bendito seja Deus, existe uma purificação.

Um ato Divino de purificação ocorreu em Moisés. Naquele instante, todo o significado da Cruz, da palavra da Cruz, entrou em vigor na vida de Moisés, em tipo, em figura. A partir daí é possível receber a palavra da Cruz, a palavra de autoridade, quando temos uma mão purificada, ou seja, um coração circuncidado, uma vida interior separada da força e da suficiência carnais. As coisas devem acontecer assim. Não teremos poder no reino dos deuses dos egípcios, aquelas forças espirituais que atuam neste mundo, não teremos nenhuma autoridade nessa esfera, nem mesmo temos esperança de dominar essa força a menos que algo tenha acontecido para nos libertar de nossa própria força, de nossa suficiência, de nosso próprio coração.

(2) Israel sob a liderança de Moisés

Depois entramos naquela fase, que é tão longa que mal ouso tratar dela agora, que foi Israel debaixo da liderança de Moisés. Foi uma prolongada controvérsia entre o celestial e o que é terrenal. Todos aqueles quarenta anos da nação no deserto se resumiram nisto: a controvérsia entre o celestial e o terrenal. Eles foram tornados um povo celestial para ter todos os seus recursos, apoio e socorro vindos do céu. Deveriam estar neste mundo, mas não pertencer a ele. Essa verdade é muito clara em um deserto: estar no mundo, sem pertencer a ele.

O propósito Divino era criar um lugar mais amplo para o céu. Ali naquele deserto havia muito espaço para o céu. Tudo que viesse do lado Divino precisaria ser celestial. O povo foi constituído segundo princípios celestiais. Moisés no monte estava assegurando aqueles princípios celestiais para a constituição da nação. Tudo estava sendo recebido do céu. De acordo com o padrão mostrado no monte, todo o relacionamento do povo de Israel com Deus no deserto, que era centralizado no tabernáculo, veio do céu. Tudo era celestial, nada havia sido deixado para o homem e seu próprio julgamento. Sua caminhada dia a dia dependia de meios celestiais: da coluna de nuvem e de fogo [cf. Êx 13.21]. Tudo era celestial. Que combate celestial: Moisés no cimo do outeiro, com as mãos levantadas, a batalha acontecendo no vale. O céu estava dirigindo essa guerra: um combate celestial [cf. Êx 17]. Tudo se resumia em aprender o significado do caminho celestial, em cada um de seus aspectos.

Mas eles falharam em aprender essas lições, desceram à terra, rejeitaram o celestial. Aquele caminho era muito árduo, era muito difícil para a carne, era muito incerto. Demandava tanta dependência, tornando o ego absolutamente incapaz. Eles não poderiam fazer nada por si mesmos – e nós desejamos muito ajudar a nós mesmos nessas condições. Tudo era tão celestial, apesar de ter sido muito real. Aqueles que conhecem alguma coisa a esse respeito bem sabem que as coisas celestiais são extremamente reais, muito mais reais do que as outras coisas. Mas eles não adotaram e repudiaram o caminho celestial, optando pelo terrenal, e todos pereceram, na terra, no deserto.

Josué e Calebe aprenderam todas aquelas lições da escola de Moisés e de Israel por si mesmos. Eles aprenderam as lições, compreenderam a verdade celestial e tomaram a próxima geração: uma geração celestial.

Bem, tudo isso pode ser considerado história, assim como tudo que está na Bíblia. No entanto, tenho certeza de que muitos de vocês estão lendo sua própria história. Consideramos esse princípio muito fiel à nossa experiência, àquilo que Deus está fazendo conosco: derrotando-nos, confundindo-nos, levando-nos a um fim, a um vazio e ao absoluto desamparo? Ainda assim, por meio de um grande poder que não sentimos, do qual não temos consciência, continuamos “sendo arrastados para a frente e para cima”. Essa é a história da sobrevivência de tantos, quando tudo parecia ter se perdido, quando falhamos, fomos quebrados, desapontamos o Senhor; e acreditamos não haver mais futuro diante de nós.

Mas existe um futuro. Nós continuamos em frente. Existe algo do além que nos sustenta o tempo todo, e talvez hoje nosso coração esteja mais voltado para o que é de Deus do que ocorria antes. E por que isso acontece? Não porque tivemos mais sucesso, nem porque somos menos cheios de fraquezas e falhas. Não; aprendemos a lição de nossa própria fraqueza. Sabemos hoje, melhor do que nunca, que “em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum” (Rm 7.18) – e hoje o Senhor tem uma influência ainda mais forte sobre nós. Como isso é possível? Esse é um mistério. Oh, graças a Deus isso é verdade! Agradeça a Deus por Sua graça soberana! Essas são as evidências de que Ele nos chamou com um grande chamado e que não ficará satisfeito até que nos conduza a Seu propósito final. Que sigamos em frente, custe o que custar.


Para ler o capítulo 1, clique aqui; capítulo 2, aqui; capítulo 3, aqui.

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Perseverança T. Austin-Sparks

Capítulo 3: Abraão, um grande pioneiro

Todos estes morreram na fé, sem terem recebido as promessas; mas vendo-as de longe, e crendo-as e abraçando-as, confessaram que eram estrangeiros e peregrinos na terra. Porque, os que isto dizem, claramente mostram que buscam uma pátria. E se, na verdade, se lembrassem daquela de onde haviam saído, teriam oportunidade de tornar. Mas agora desejam uma melhor, isto é, a celestial. Por isso também Deus não se envergonha deles, de se chamar seu Deus, porque já lhes preparou uma cidade.

(Hb 11.13-16)

Vamos voltar a falar de Abraão como um dos pioneiros representativos do caminho celestial. Começamos reiterando um aspecto que foi muito real em Abraão: seu senso profundo e inato de destino. Isso também precisa ser verdadeiro, e sempre será, no pioneiro celestial que está avançando na descoberta e na exploração do reino celestial. Estevão nos disse, a respeito de Abraão, que “o Deus da glória apareceu a nosso pai Abraão” (At 7.2) quando ele estava em Ur dos caldeus. Não sabemos como o Deus da glória apareceu para ele. Pode ter sido por meio de uma daquelas teofanias comuns ao Antigo Testamento, e ocorridas mais adiante na vida de Abraão, quando Deus veio até ele em forma humana [cf. Gn 18.1,2]. Nós não sabemos como aconteceu. Todavia, ao considerarmos toda a sua vida, sabemos que o efeito dessa aparição trouxe à luz esse tremendo senso de destino que o desenraizou de toda a vida passada, criando uma profunda inquietação, uma inquietação do tipo correto, um descontentamento profundo e santo.

O descontentamento pode ser uma coisa absolutamente errada, mas existe um tipo correto de descontentamento. Queira Deus que muitos mais cristãos o tenham! Em Abraão se iniciou um desejo que cresceu sucessivamente ao longo dos anos, tornando impossível para ele se estabelecer e aceitar qualquer coisa menor do aquilo que fosse o pleno propósito de Deus. Abraão não poderia aceitar uma segunda opção naquilo que se relacionava a Deus. Sim, essa consciência precisava crescer. Ele foi compreendendo progressivamente o que aquilo significava. Acontecia assim: ele chegava a certo lugar, e talvez pensasse que ali era o lugar, e então descobria que não era, e tinha de se mudar. Talvez ele tenha pensado: “Agora, é aqui… mas não, não é. Ainda não sei o que é… não posso definir, explicar, mas lá dentro sei que Deus tem algo mais”. “Não que já a tenha alcançado, ou que seja perfeito; mas prossigo” (Fp 3.12). Esse é o desejo, ao longo das eras, e que foi tão real no caso do homem cujas palavras acabo de citar. Paulo nunca foi capaz de aceitar o segundo melhor de Deus. Deus tem um segundo melhor. Vemos repetidamente ao longo da história ocasiões em que Deus percebe que é impossível obter Sua “primeira escolha”, Seu melhor. As pessoas não continuariam em frente. Então, o Senhor diz: “Tudo bem; vocês terão meu segundo melhor”, e elas o obtinham. Mas os pioneiros nunca fazem isso. Abraão não poderia fazer isso.

Não podemos entender ou interpretar de modo equivocado a atitude de Abraão, considerando-a fruto de uma natureza instável ou temperamental. Não pense que você ser uma pessoa que nunca está satisfeita é sinal de descontentamento Divino. Esse descontentamento pode refletir instabilidade. Você pode ser uma daquelas pessoas que nunca consegue se fixar em nada por muito tempo, sempre pulando de uma coisa para outra. Nesse caso, você será um completo desajustado, tanto no mundo quanto no reino de Deus. Não foi esse tipo de coisa que aconteceu com Abraão. Havia algo do céu operando nele, e a prova disso foi que eles estava em movimento continuamente ascendente. Abraão não caminhava na horizontal, mas sempre para cima. Ele progredia continuamente no âmbito terreno, bem como na esfera celestial.

Podemos observar que Ló estava junto com Abraão, mas Ló era um homem que sempre buscava segurança aqui. Ele buscou uma cidade, uma casa; ele não gostava da vida de tenda. Ló desejava se estabelecer neste mundo, e foi isso que ele buscou. Mas por essa razão Ló era o homem fraco. Abraão, que sempre se movia em uma tenda, era o homem forte. Isso não era natural, mas espiritual. Esse impulso do céu, esta poderosa operação de uma força espiritual em Abraão, levou-o a ingressar nessa difícil escola do celestial. Para aquilo que é natural e terreno, para a carne, a escola celestial é muito difícil, e Abraão foi trazido a ela por meio desse impulso do céu.

Conflito entre o espiritual e o temporal

Em primeiro lugar, temos o conflito entre o espiritual e o temporal, o visível e o invisível – e esse é um conflito muito feroz. Às vezes, vemos esse conflito em questões muito delicadas da vida de Abraão. Por um lado, Abraão foi abençoado pelo Senhor, o Senhor lhe deu prosperidade, havia sinais de que o Senhor estava com ele. Houve aumento, ampliação essa tão grande ao ponto de ser constrangedora. Seus rebanhos e manadas se multiplicaram; Abraão era um verdadeiro príncipe na terra. Ainda assim, ainda assim, aquela mesma bênção do Senhor às vezes chegava ao ponto de estar prestes a ser eliminada por uma fome aguda e devastadora. Por que Deus abençoou, aumentou e ampliou, e então permitiu algo que poderia acabar com tudo aquilo que havia lhe concedido? Esse é um problema complicado, não é? Não teria sido melhor permanecer pequeno e limitado a ver tudo isso ameaçado? Abraão achou o problema muito sério. Essa foi a razão de um de seus fracassos. Ele desceu para o Egito [cf. Gn 12.10-20].
Era uma escola difícil.

O que isso significa? Parece que Deus dá com uma mão e tira com a outra. Concede prosperidade e bênção, e então permite que algo aconteça que ameaça destruir a própria bênção que Ele concedeu. Seria Deus contraditório assim? Estaria negando a Si mesmo? Você conhece a tentação de tentar interpretar as coisas nessas ocasiões. Afinal de contas, seríamos apenas peões em um jogo? Seríamos apenas filhos do acaso, da fortuna ou do infortúnio? Estaria o Senhor nisso, afinal? Essas circunstâncias podem realmente explicar o Senhor, que é um Deus constante?

Essa é uma escola difícil. Mas perceba que está totalmente de acordo com aquilo que Deus está fazendo.

O que Ele está fazendo?

Bem, se Ele abençoa, existem duas coisas atreladas a essa bênção. Em primeiro lugar, as bênçãos, a prosperidade, o aumento e expansão de Abraão precisavam encontrar seu apoio no céu, não na terra. Deus está introduzindo o grande princípio celestial. Oh, o Senhor pode abençoar e alargar, mas Deus nos livre de supor que a partir daí podemos nos sustentar, continuar sozinhos, seguir em frente por nosso próprio impulso. O Senhor arranjará as coisas de maneira que quando Ele abençoar – independente de quão grande, ampliada e aumentada essa bênção for – aquilo poderá perecer a qualquer momento se o céu não for o sustento dela. Essa é uma lição. Não seja presunçoso, nem tome nada como garantido. Viva cada momento dependendo do céu. Agarre-se ao céu, tanto no dia da bênção como no dia da adversidade.

E existe, a seguir, outro fator. Deus estava treinando Abraão para que fosse seguro abençoá-lo, e isto é algo importante: ser confiável para receber a bênção. Que disciplina, que prova de fé, que teste! E, ainda assim, independente do quanto Deus abençoasse Abraão, Ele não permitia que as bênçãos obscurecessem a visão celestial do patriarca e o detivessem no caminho. Esse foi um triunfo notável. Oh, os perigos devastadores da bênção! Talvez você considere que ainda não sabe muito a respeito deles. Mas Deus quer nos tornar confiáveis para Seu reino celestial, para o crescimento espiritual, para sermos usados poderosamente; e nunca estaremos seguros se algo menor do que o melhor de Deus puder nos enredar. Nunca estaremos seguros se o bom for inimigo do melhor. Em Abraão fica perfeitamente claro que, fosse na prosperidade ou na adversidade, a ele nunca foi permitido se estabelecer e sentir que tinha alcançado seu objetivo. Se em algum momento ele sentia que tinha atingido o alvo, rapidamente via aquilo explodir. “Todos estes morreram na fé, sem terem recebido as promessas; mas vendo-as de longe”.

Outra coisa sobre Abraão é que ele nunca permitiu que as dificuldades aparentes, por maiores que fossem, impedissem definitivamente sua marcha espiritual para a frente e para o alto. Voltaremos a isso em um momento. Você percebe como tudo isso foi adotado por Josué e Calebe? Pense novamente em Josué e Calebe. Eles certamente haviam frequentado aquela escola; caso contrário, nunca teriam levado a próxima geração para a Terra Prometida. Só Deus sabe o que aqueles homens passaram. Perceba que a história sobre a saída dos espias, o relatório da minoria, a tomada de pedras para apedrejar esses homens e matá-los, ou, pelo menos, a proposição de fazê-lo, é contada em pouquíssimos versos. Mas devemos acrescentar os longos anos passados enquanto aquela geração inteira morria, e apenas dois homens permaneciam agarrados à visão celestial. Essa é uma escola difícil. Eles poderiam facilmente perder o ânimo, desistir e dizer: “É uma perspectiva sem esperança”; mas não o fizeram: o celestial havia conquistado a parte mais profunda de seu ser e os sustentou. Aquilo os capturou, levando-os a superar até mesmo a maior adversidade; eles “venceram o mundo”.

O conflito entre o espiritual e o carnal

Vemos então, mais uma vez, esse conflito entre o espiritual e o carnal em Abraão: não apenas entre o espiritual e o temporal, mas entre o espiritual e o carnal. Esse conflito surgiu dentro do que podemos chamar de contexto doméstico, em sua família, no sangue. Aconteceu com Ló. Refiro-me aqui ao sentido espiritual disso. Interpreto que Ló representava algo mais do que aquilo que vemos objetivamente na família cristã (o que é, sem dúvida, muito verdadeiro), mas como algo presente em nossa própria natureza, subjetivamente: o conflito daquilo que é carnal contra o espiritual, do terreno com o celestial.

Aqui está Ló, e ele compartilha do mesmo sangue de Abraão, mas bem no sangue, no meio da família – se você preferir, bem no meio da família cristã – existe esse traço de carnalidade: Ló e seu mundanismo, sua mentalidade, visão, ambição e desejos mundanos. Não vemos visão celestial em Ló, ainda que estivesse bem ao lado, tão perto de Abraão. Abraão encontra a ameaça desse questionamento a seu curso espiritual em meio ao seu próprio sangue. Está ali: presente em nós e na família cristã. Está ao lado, muito próximo o tempo todo: esse desejo de se estabelecer, de obter as coisas aqui e agora, o anseio por retornos rápidos, coisas visíveis, a gratificação da alma; aquele descanso que acreditamos ser descanso, mas não é.

Muitos de vocês sabem do que estou falando. Sabemos como às vezes ansiamos naturalmente por descanso, tentamos obtê-lo, e não o obteremos enquanto não chegarmos ao Senhor. Encontramos nosso verdadeiro descanso nas coisas do céu, não em feriados. Mas a carne está aí, sempre tentando nos arrastar para longe, afastar-nos, fazer-nos fugir. “Ah, que vontade de sair dessa situação! Se ao menos pudéssemos viver em alguma ilha sozinhos, quão sossegado seria, quanta paz! Permanecer afastado de tudo isso!” E isso nunca acontece. Nosso descanso está nas coisas celestiais. Só encontramos nossa verdadeira satisfação nas coisas do Senhor. Você, cristão, vá, farte-se do mundo; você sabe que quando voltar dirá: “Chega dessas coisas!” Você sabe que não pode fazer isso. Mas esse desejo está em nós o tempo todo. A influência carnal está no nosso sangue. E essa também é uma verdade em toda a família cristã: temos o lado de Ló, que deseja um Cristianismo deste mundo, sempre puxando tudo para baixo e para longe do celestial. Abraão conhecia tudo a esse respeito.

Isso constitui a própria base dessa obra pioneira, do pioneirismo nas coisas do Espírito. É essa guerra contra as coisas da carne, como se estivéssemos sempre carregando um cadáver, alguma coisa sem vida que deve ser arrastada e subjugada diariamente. Precisamos dizer a nós mesmos: “Vamos, deixa disso!” Esse é o caminho do pioneiro. Você pode se estabelecer, mas perderá a herança celestial. O carnal tem caminhos muito, muito sutis – caminhos muito “espirituais”.

Será que tudo isso é uma contradição? Essa é uma espiritualidade espúria interpretada como espiritualidade. Imagino o grande combate que Paulo, o homem celestial, enfrentou com os coríntios, a igreja terrenal. No entanto, os coríntios eram considerados espirituais. Eles possuíam todos os dons espirituais: tinham os milagres, a cura, as línguas. Mas Paulo disse: “Eu […] não vos pude falar como a espirituais, mas como a carnais” (1Co 3.1). O carnal pode adotar caminhos aparentemente muito “espirituais”. O fato é que a carnalidade deles estava se apoderando das coisas espirituais e usando-as a serviço de sua carnalidade, concedendo-lhes gratificação espiritual por meio de exibições, mostras, demonstrações, puxando os céus para a terra. Não vamos culpar os coríntios. O quanto nós ansiamos por ver coisas, desejamos evidências e provas! Por que essas coisas atraem tantos seguidores? Porque existe algo na natureza humana que é gratificado nessas coisas, e é infinitamente mais difícil andar no caminho celestial onde você não vê e não entende; mas esse é o caminho do pioneiro espiritual que conquista a herança para os demais.

A prova da realidade da visão celestial

Finalmente, qual foi a prova de que essa visão e esse senso de destino de Abraão eram reais, verdadeiros, genuínos, vindos realmente de Deus, e não apenas fruto de sua imaginação? Que prova lhe foi dada?

(a) Fé no Deus do impossível

Vemos essa prova, em primeiro lugar, na atitude de Abraão com relação ao impossível. Como dissemos no capítulo anterior, temos a história completa no Novo Testamento. No Antigo Testamento, parece que Abraão cedeu, esmoreceu diante do impossível.

Já vamos chegar a esse ponto. O Novo Testamento nos diz de modo enfático que Abraão olhou diretamente para o impossível e creu ser possível. Sua atitude com respeito ao impossível quanto a Isaque provou ser algo mais do que apenas sua imaginação; havia algo poderoso em seu senso e em sua consciência de destino. Este é o teste final para saber se realmente está registrado em nós um senso de vocação celestial: se vamos desistir quando uma situação começar a parecer impossível. O fato é que, apesar de desejar desistir, você não tem consentimento para isso. Algo dentro de você simplesmente não permite. Você esteve a ponto de redigir sua carta de demissão centenas de vezes. Repetidamente, disse: “Vou sair dessa situação; não posso prosseguir nem mais um passo, estou arruinado”; mas você prosseguiu, ainda prossegue e sabe muito bem que existe algo dentro de você mais forte do que todas as suas resoluções de renunciar. Quão necessário é esse sentido em nós – algo indiscutivelmente dado por Deus, não vindo de nós mesmos. “Segundo o poder que opera em nós” (Ef 3.20) – é isso.

(b) Capacidade de ajustes quando cometia erros

Vamos então considerar a capacidade que Abraão tinha de fazer ajustes quando cometia erros. Esse homem, esse pioneiro, cometeu erros, e eles foram grandes. Qual é a tentação de um servo de Deus quando comete uma grande mancada, quando alguém com responsabilidades comete um erro terrível? Qual é a reação imediata? “Oh, evidentemente não fui talhado para isso, não fui chamado para isso. Deus tomou a pessoa errada, nunca fui destinado para isso. Melhor encontrar outra atividade, é melhor desistir.” É preciso enfatizar que os erros cometidos por Abraão foram muito ruins, lapsos e falhas graves jamais desculpadas na Bíblia, mostrados exatamente como eram, e nunca foram apagados do registro da Palavra escrita, nem da história, por Deus: olhe para Ismael [os povos árabes] hoje! Ainda assim, apesar de Abraão ter cometido esses erros que foram claramente expostos, havia algo nele que reagia para se ajustar. “Cometi um erro ao descer para o Egito, mas não desistirei movido pelo desespero e não me recusarei a voltar; voltarei. Cometi esse erro com respeito a Ismael: voltarei e recuperarei meu terreno.” Abraão foi um grande homem quando se faziam necessários restauração e ajuste depois de uma desoladora decepção consigo mesmo.

(c) A operação do poder celestial no interior

O que tudo isso nos indica? Que havia uma operação do poder celestial nesse homem. Isso não é natural, não é o caminho da natureza. Se conhecêssemos a tensão, o estresse, a dureza daquela escola em que Abraão estava! Nunca deixo de me maravilhar ao ler as palavras de Paulo a respeito de Abraão: “E não enfraquecendo na fé, não atentou para o seu próprio corpo já amortecido, pois era já de quase cem anos […] E não duvidou da promessa de Deus por incredulidade, mas foi fortificado na fé, dando glória a Deus, e estando certíssimo de que o que Ele tinha prometido também era poderoso para o fazer” (Rm 4.19-21). “Da fé que teve Abraão, o qual é pai de todos nós […] perante Aquele no qual creu, a saber, Deus, o qual vivifica os mortos” (v. 17). Ele provou sua fé ao amarrar o único filho e tomar a faca para sacrificá-lo. Um instante mais e aquele filho, em quem se centravam todas as promessas, estaria morto. Digo isso e fico maravilhado. Uma coisa é Deus fazer algo assim: tirar; outra coisa é nós termos de fazer isto: entregar a Deus – mas Abraão o fez. Vemos aqui algo que não é natural. Esse não é o jeito do mundo, da terra. É o jeito, o caminho celestial. Abraão estava pioneirando o caminho celestial. E por isso ele ocupa essa posição tremenda, não apenas na velha dispensação, mas nesta, e para sempre. Um grande pioneiro das coisas celestiais – é isso que ele representa.

Isso pode explicar muito de nossa experiência pessoal. Deus precisa de pessoas como Abraão neste dia de terrível movimento espiritual de declínio, descendente na direção do mundo, por parte de Sua Igreja. Com todas as suas boas intenções, talvez até mesmo motivações puras, a Igreja está, contudo, adotando a estrutura e a forma deste mundo para fazer a obra do céu. Uma reação a isso se faz necessária, e precisam existir vasos que possam provar que não é necessário voltar a este mundo. O céu é suficiente para todas as coisas.


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Perseverança T. Austin-Sparks

Capítulo 2: Uma crise entre o que é terreno e o que é celestial


Leitura: Nm 13.1-3, 17-23, 27-33; 14.1-3.

Estamos considerando o fato e a natureza do caminho celestial. A Bíblia inicia com a criação e o governo dos céus, e termina com a revelação do céu por meio daquilo que ele formou de acordo com princípios celestiais: a cidade santa, a nova Jerusalém, descendo de Deus, do céu, cumprindo a palavra de Hebreus 11.16: “[Deus] já lhes preparou uma cidade.”

O conflito entre o que é terreno e o que é celestial

Relembremos que uma característica de cada estágio do Antigo Testamento é o choque e contraste entre dois mundos, entre duas ordens: a ordem celestial e a ordem terrena. Temos esse elemento ao longo de todo o registro do Antigo Testamento: o céu desafia este mundo e apreende um objeto neste mundo; a partir daí, esse objeto é retirado do mundo e começa a ser constituído de acordo com a natureza e a ordem celestiais. Não é necessário um conhecimento muito profundo do Antigo Testamento para confirmar isso. Ao repassarmos rapidamente sua história, perceberemos que estamos diante de um constante choque, um conflito, um conflito entre o céu e a terra. O céu não está satisfeito com este mundo – muito pelo contrário. O céu é contrário a tudo o que está aqui, e tenta retirar o que puder deste mundo para reconstituir de acordo com seus próprios padrões. Então, apesar de vislumbrarmos a oposição e o desafio do céu, vemos, ao mesmo tempo, desde o início, o céu tomando pessoas, tanto indivíduos como uma nação, com o objetivo de separá-los do mundo, apesar de residirem nele. A partir desse chamado, um processo profundo é iniciado, visando torná-los um tipo, uma espécie de pessoas completamente diferentes das demais; apreendendo-as, em outras palavras, para propósitos celestiais.

Os homens do Antigo Testamento foram os pioneiros do caminho celestial. Já vimos um pouco do que isso envolve, mas é sobre esse ponto em particular que queremos focar nossa ênfase agora. O fato não é apenas que existe um caminho celestial que é diferente, pois sabemos no coração, se nascemos do alto e temos aprendido nesse caminho, que o caminho do céu é diferente dos demais. Mas nosso ponto focal será o pioneirismo que envolve trilhar esse caminho celestial. Esse pioneirismo representa ser chamado a um relacionamento com o céu para abrir caminho, tomar posse e tornar possível que a intenção plena de Deus seja compreendida, interpretada. Esse ministério é dirigido para outros que seguirão por esse mesmo caminho. Já mencionamos que, em certo sentido, todo aquele que nasce do alto é um pioneiro, porque esse caminho é sempre pessoal e intransferível; ninguém pode trilhar esse caminho no lugar de outrem. Nesse momento, trataremos do aspecto vocacional relacionado a isso.

Não há dúvida de que a maioria dos filhos do Senhor sabe pouco, muito pouco, sobre o caminho celestial. O cristianismo organizado se tornou preponderantemente terreno, adotando padrões, conceitos e recursos terrenos, tornando-se consequentemente muito limitado espiritualmente. Este mundo é uma coisa muito, muito pequena, se comparado com os céus. Digo isso espiritual e ilustrativamente. O reino dos céus é vasto, muito maior do que qualquer concepção humana. Os pensamentos de Deus são amplos como os céus em seu alcance, muito mais elevados que os pensamentos da terra; ultrapassam todas as concepções terrenas. Enquanto não sairmos da esfera terrena não perceberemos que, por um lado, somos miseravelmente pequenos e, por outro, que existe um reino muito maior, e que podemos nos mover espiritualmente nele. A grande, grande necessidade de nosso tempo é que o povo de Deus, a Igreja de Deus, chegue à sua verdadeira posição celestial, possuindo visão e vocação celestiais.

Bem, existe muita coisa envolvida nessa declaração, mas, resumidamente, ela significa que alguém, algumas pessoas, deverá ser pioneiro no caminho de trazer a Igreja de volta à esfera inicial de sua concepção que foi perdida quando ela sucumbiu à persistente tendência direcionada à terra. Por isso, um instrumento pioneiro se faz necessário, e o caminho que ele deve seguir envolve um alto preço.

Reafirmo que os homens do Antigo Testamento foram os pioneiros do caminho celestial. Isso é explicitamente afirmado pelo escritor nesta carta aos hebreus, particularmente na passagem referida. A terra não pode prover nada que atenda aos padrões e ao fundamento do céu. Uma das grandes palavras-chave do Antigo Testamento é “santificar”, que significa “separar, tornar santo, consagrar”, que se refere em sua essência a algo espiritual e interior, que provoca uma divisão entre o céu e a terra. Deus dividiu, separou essas duas coisas, e essa separação deve ocorrer de forma espiritual, interiormente, também. Vemos, então, que esses homens do Antigo Testamento foram separados neste sentido: algo foi feito no âmago de seu ser que os separou deste mundo, colocando-os em um caminho que era totalmente diferente dos caminhos terrenos e a eles contrários. Se aqueles homens chegavam a tocar esta terra quando estavam sob pressão e tensão, fosse por engano, inadvertidamente, consciente ou inconscientemente, ficavam atrapalhados. Imediatamente percebiam em seu interior que estavam fora do caminho, e a única coisa a fazer era retornar. Isso é repetido diversas vezes no relato bíblico. O céu testemunhava contra a posição deles, eles estavam em problemas. Só depois de retornarem ao curso correto poderiam prosseguir. Aquelas pessoas estavam sendo governadas por outro padrão, e quão diferente e difícil de entender era esse padrão!

Considere Caim e Abel. Do ponto de vista deste mundo, o procedimento de Caim foi muito válido. Na ótica do homem religioso deste mundo, é difícil ver o que estava errado com Caim ou muito certo com Abel, ou quão absolutamente certo e quão absolutamente errado cada um deles estava. No entanto, vemos como Abel estava absolutamente certo quanto a isso. Um deles conseguiu tocar o céu. Isso é um fato. Abel tocou Deus e o céu, e Caim estava diante de um céu fechado e da rejeição de Deus.

Mas qual é o padrão? Apenas a diferença entre o céu e a terra. A base e o padrão para acesso ao céu é totalmente diferente do terreno – diferente mesmo do que há de religioso na terra. O homem religioso pode ter o mesmo Deus, adorar o mesmo Deus, trazer sua oferta para o mesmo Deus, e ainda assim não conseguir um caminho para o céu, na estrada celestial. O céu tem seus próprios padrões, bases e provisões, e a terra não pode encontrá-los ou produzi-los, pois é diferente do céu. Esse é o fato que enfrentamos quando se trata de tocar o céu. Não me refiro a uma localização geográfica, mas falo de tocar Deus, de encontrar um caminho aberto para o céu. Só é possível chegar ali com a provisão originada pelo próprio céu, e isso transtorna todos as nossas estimativas naturais. Precisamos de algo que a natureza não pode produzir. Se você, como Caim, raciocinar de acordo com a razão religiosa e tomar essa base, não chegará a lugar nenhum. “Pela fé Abel ofereceu a Deus maior sacrifício do que Caim, pelo qual alcançou testemunho de que era justo, dando Deus testemunho dos seus dons, e por ela, depois de morto, ainda fala” (Hb 11.4). Vemos aí uma atestação do céu.

Não estou tratando da natureza e de todos os detalhes dessas coisas, apenas aponto para um fato: que os padrões e os julgamentos celestiais são absolutamente diferentes dos terrenos. Ficaremos totalmente confundidos se tentarmos tocar o céu, ainda que utilizemos artifícios religiosos para isso. Nicodemos pode ser a representação perfeita do sistema religioso, e, ainda assim, não chegou a lugar algum no que diz respeito ao céu. O céu estabeleceu seu próprio meio de acesso, e precisaremos dele para chegar lá. Você pode questionar mil vezes “por quê?”, mas é o fato.

Pioneiros são líderes

Vamos retornar ao texto que lemos em Números. Registra a ocasião em que os espias foram enviados, e o ponto focal desse registro está sobre dois homens: Josué e Calebe. Notemos que os doze cabeças das cadas paternas, príncipes em Israel (um termo cheio de significado), eram homens tipicamente representativos. Eles foram chamados para serem os pioneiros do caminho celestial. O princípio de sua liderança e de sua realeza estava centrado em serem pioneiros, pois esse é o princípio do pioneiro. Se formos verdadeiros pioneiros, seremos líderes, teremos um caráter de príncipes. Todavia, apenas dois deles justificaram seu chamamento, tornando-se aquilo que todos os outros deveriam ter sido: pioneiros. Muitas vezes, é isto que ocorre: a minoria, uma minoria muito destacada, faz o trabalho. Os outros têm o nome, mas não fazem jus a ele; os outros têm uma posição oficial, mas não vivem de acordo com ela. A questão principal é: onde a coisa está sendo feita? Ali estavam Josué e Calebe.

Uma conexão com o passado

Vamos tomar um tempo considerando o significado destes dois homens: Josué e Calebe. Para começar, vamos considerá-los como um elo com o passado. A intenção original de Deus que eles adotaram remetia à aliança divina com Abraão, de modo que em Josué e Calebe vemos Abraão posto muito em evidência. Somos compelidos a olhar para trás e reavaliar o significado de Abraão, à luz da posição tomada por esses dois, uma vez que o momento em que Josué e Calebe surgiram era crítico, a hora de uma crise muito grande. A questão suprema era: o propósito de Deus seria ou não cumprido naquele povo? Essa pergunta é extremamente relevante; uma verdadeira crise veio à tona. E Josué e Calebe foram o fator decisivo.

Vemos três características de Abraão manifestadas nessa situação.

Uma semente espiritual e celestial

Em primeiro lugar, vemos uma semente espiritual e celestial. Retenhamos isto: uma semente espiritual e celestial. Hoje estamos em uma posição muito vantajosa. Temos a compreensão do pleno significado de Abraão por meio da instrução do Espírito Santo. Temos o Novo Testamento, e nele temos tudo o que é dito a respeito do patriarca. O apóstolo Paulo nos apresenta uma revelação completa disso no Novo Testamento; não precisamos voltar ao Antigo Testamento para obter conhecimento, podemos ver o pleno sentido de Abraão agora no Novo Testamento que temos em mãos. Quanto a isso, recebemos muita luz adicional.

Uma semente espiritual e celestial. Perceba essa semente espiritual e celestial em Josué e em Calebe, percebam como eles apontam para ela. No entanto, temos outra semente de Abraão que não é espiritual nem celestial, pois desceu à terra. Vemos no registro de Números 13 e 14 as reações do povo, tão grosseiras, tão terrenas, totalmente carentes de visão, vida e aspiração espirituais! Aquelas pessoas foram inteiramente influenciadas pelo terrenal, pela visão natural, pelas coisas visíveis como dificuldades, pessoas e montanhas. A conclusão delas foi que não havia solução. Para Josué e Calebe, as montanhas eram um caminho, não um obstáculo. Havia um caminho celestial. Mas os outros não viram nada disso; eles eram terrenais.

O pensamento de Deus em Abraão, que fica claro para nós no Novo Testamento, era obter uma semente celestial e espiritual.

Uma semente especial

Será que podemos receber mais luz em relação a essa semente? Essa semente era algo especial, exclusivo. Paulo afirma isso em sua Epístola aos Gálatas. “Ora, as promessas foram feitas a Abraão e à sua descendência. Não diz: E às descendências, como falando de muitas, mas como de uma só: E à tua descendência, que é Cristo” (3.16). Aquela semente era singular. Um ponto importante era que Abraão estava inseparável e exclusivamente ligado a Sara. Naquela época, era permitido ao homem ter mais de uma esposa, mas Deus restringiu Abraão à Sara. Quando estava sob pressão, Abraão tentou uma solução alternativa com Agar, mas, como já mencionei, aquela foi uma falha, um deslize, um erro, uma tolice cometida durante um período de severa provação, pressão e coação. Naquele momento Abraão abandonou o caminho celestial e o resultado foi lastimável – a história lamenta isso até hoje. Abraão precisou retornar para Sara. Deus não permitiria outra opção, pois aquele assunto era peculiar e exclusivo. Sua realização não se daria por meio de Agar e de ninguém mais, mas exclusivamente dentro do caminho proposto pelo Senhor.

Nascimento e sustento sobrenaturais

Aquela semente trazia consigo as marcas do celestial. Seu nascimento foi sobrenatural, pois era absolutamente impossível que ocorresse pelas linhas naturais. A semente era Isaque, que representava uma limitação, pois Abraão dependia de uma intervenção do alto para gerar esse filho. Isaque não teria sido trazido à existência se o céu não tivesse assumido a situação. Deus foi muito específico a esse respeito. Por vezes, para compreender a importância que a coisa certa tem para Deus, Ele nos permite ver quão terrível é a coisa errada. Deus não permite que um erro, que um deslize nosso simplesmente passe desapercebido. Às vezes seremos atormentados até o fim da vida pelas consequências de nossas escolhas erradas. Deus permitirá isso para que vejamos com clareza que o caminho certo é muito importante; ele não é só uma opção. O caminho precisa ser celestial, e qualquer alternativa não será tolerada como se ela não fizesse diferença. Descobrimos que isso de fato importa, como aconteceu no caso de Isaque. Se o céu não fizer esse milagre, nada acontecerá, pois esse é o caminho celestial. Como precisamos aprender, e estamos aprendendo, sobre esse princípio! Isso explica muitos acontecimentos de nossa vida. Deus nos tem em Suas mãos.

O princípio de morte e ressurreição

Além de Isaque ter sido um produto celestial, fruto de uma intervenção dos céus, por meio de um milagre, Deus ainda foi mais longe quando pediu a oferta dele como sacrifício. Ainda que seu nascimento tivesse sido miraculoso, por meio de um ato direto dos céus, algo mais precisava acontecer: Isaque deveria morrer e ressuscitar dos mortos. Esse poderoso ato de Deus precisaria ocorrer e referendar tudo isso. A afirmação de Paulo em Romanos 1.4: “Declarado Filho de Deus em poder, segundo o Espírito de santificação, pela ressurreição dos mortos”, poderia ser traduzida “homologado Filho de Deus […] pela ressurreição”. Isto é o que Isaque representa: algo aprovado, homologado, referendado pelos céus.

Esse fato explica muito de nossa particular história espiritual. Não apenas nascemos de novo por meio de um milagre e da intervenção do céu, mas isso tem sido continuamente homologado pelo céu. Deus demanda que sejamos sustentados pela vida de ressurreição, e para saber o que é essa vida precisaremos conhecer um pouco do que é a morte. Deus nos sustenta em uma base celestial. Este é o significado de Isaque: não fomos apenas colocados sobre uma base celestial, mas somos sustentado nessa posição por constantes manifestações de ressurreição, em momentos em que somente a ressurreição pode resolver a situação.

Afinal, independente de como foi o início de nossa vida cristã – ainda que tenhamos tido uma experiência maravilhosa de conversão, e tenhamos registrado em um caderno quando e onde isso aconteceu –, essa experiência precisa ser ratificada continuamente pela manifestação da ressurreição. Precisaremos ser sustentados nesse terreno. Esse é o caminho do pioneiro. Esse pioneirismo no caminho celestial é conhecer vez após vez o significado da morte e suas terríveis consequências, a fim de saber o verdadeiro significado da ressurreição e sua grandiosidade. Esse é o caminho pioneiro, que foi seguido inicialmente pela Igreja, por muitos filhos de Deus e onde muitas revelações divinas sobre ele foram concedidas. Foi dessa maneira que o caminho celestial foi preservado vivo e longe da “podridão” [cf. Os 5:12] das coisas terrenas que sempre tentam minar a vida cristã. Sabemos quanto isso é verdade.

Abraão progressivamente descobriu que sua verdadeira herança estava no céu. Considero maravilhoso este aspecto da vida e da experiência de Abraão sob a mão de Deus: que ele, sem dúvida, quando iniciou sua jornada de obediência, interpretou as promessas do Senhor de forma terrena e limitada. Certamente ele imaginava que aquelas promessas se cumpririam dentro de suas expectativas racionais e tangíveis, mas, quanto mais o tempo passava e sua vida se desenrolava, mais Abraão se dava conta de que as coisas não aconteceriam dentro de suas concepções, e que tudo aquilo se referia a algo superior e diferente de sua idéia original. Ele prosseguiu, e mais adiante vemos que foi incluído no registro de Hebreus 11: “Todos estes morreram na fé, sem terem recebido as promessas; mas vendo-as de longe […] Mas agora desejam uma melhor, isto é, a celestial” [vv. 13,16]. A primeira impressão que Abraão teve do chamado inicial de Deus: “Eu o levarei a um país” (cf. Gn 12.1), pode ter sido atrelada a algo terreno, mas, por fim, ele percebeu que não se tratava disso. Pelas palavras do Senhor Jesus, sabemos que a visão e a percepção de Abraão foram alargadas: “Abraão, vosso pai, exultou por ver o meu dia, e viu-o, e alegrou-se” (Jo 8.56). “Mas vendo-as de longe”. Paulo também reforça isso em sua Epístola aos Gálatas, ao afirmar: “Não diz: ‘E às descendências’, como falando de muitas, mas como de uma só: ‘E à tua descendência’, que é Cristo” [3.16]. Cristo era a resposta para tudo que se relacionava à herança de Abraão.

Mas Cristo, o Cristo celestial, é a encarnação de tudo o que é celestial. Não conhecemos a Cristo segundo a carne; Ele é essencialmente celestial. Podemos ver a natureza celestial dessa semente, e podemos reunir tudo isso em Josué e Calebe. Quem herdará, prosseguirá e possuirá a herança? Certamente não será essa multidão de pessoas que tem uma mentalidade terrena e está arraigada a essa terra. Aqui mesmo elas perecerão: a terra se tornará sua prisão e sepultura. Essas pessoas serão substituídas por uma geração com uma nova constituição – representada por Josué e Calebe, as primícias de uma nova geração – que possuirão a herança [cf. Nm 14.29-32]. Eles foram os pioneiros do caminho e da plenitude celestiais. Mas como precisaram sofrer por isso! “Toda a congregação disse que os apedrejassem” (v. 10). O pioneirismo é sempre um caminho que envolve sofrimento e um alto preço, e isso não apenas entre as pessoas do mundo, mas também entre aqueles que atendem pelo nome de povo de Deus.

Os pioneiros desse caminho sempre serão como uma semente celestial, e sua constituição celestial será continuamente homologada pela necessidade de repetidas intervenções do céu para possibilitar que tenham liberação, libertação e progresso. Esse é o processo da vida espiritual. Se o céu não interviesse a nosso favor teríamos parado, não avançaríamos, de fato seríamos aniquilados se Deus não tivesse ratificado este fato: pertencemos ao céu. E Ele continua ratificando isso.

Podemos ver claramente como tudo isso é cumprido em Cristo, a Semente Celestial. Seu nascimento aconteceu por meio de uma intervenção do céu, um milagre. No Seu batismo, o céu irrompeu novamente, atestando: “Este é o meu Filho amado” [Mt 3.17]. E o que diremos a respeito de Sua Cruz? Ela não se parece muito com uma intervenção do céu. Mas espere um pouco: não se esqueça que o Novo Testamento nunca se refere apenas ao aspecto da morte, ao mencionar a Cruz de Cristo. No Novo Testamento, a Cruz tem dois lados gêmeos: morte, ressurreição. “A este que vos foi entregue pelo determinado conselho e presciência de Deus, prendestes, crucificastes e matastes pelas mãos de injustos” (At 2.23,24). O mundo fez tudo o que podia contra Ele, usou todas as suas armas. Os poderes do mal exauriram suas forças. O que mais poderia ser feito? Então, o céu entrou em cena, despojando esses poderes e ressuscitando a Jesus: ratificando assim que Ele pertencia ao céu, e não a este mundo. O Senhor Jesus não era propriedade, nem brinquedo do mundo e dos poderes malignos que o governam. Ele pertence ao céu, e o céu interveio, não apenas O levantando, mas também O conduzindo para as alturas, acima deste mundo, sujeitando tudo a Seus pés [cf. Ef 1.19-22; Cl 2.15].

A história espiritual do Senhor Jesus é a história espiritual do pioneiro do caminho celestial. O Senhor é o Pioneiro, conforme registrado na Epístola aos Hebreus: “Penetra até ao interior do véu, onde Jesus, nosso precursor, entrou por nós” (6.19,20).

Uma conexão entre fracasso e realização

Enquanto vislumbramos os aspectos demonstrados em Josué e Calebe, que podem ser diretamente ligados a Abraão, ainda temos outro ponto a considerar antes de encerrar. Eles foram pioneiros, como Abraão, e foram um elo entre o fracasso e a realização. Contemple o mundo no tempo em que “o Deus da glória apareceu a nosso pai Abraão” (At 7.2), em Ur dos caldeus. Se buscar ali alguma coisa que seja do céu, onde encontrará? Onde podemos encontrar o propósito de Deus de obter algo celestial? Parece que isso mais uma vez desapareceu. Não parece existir nenhum testemunho deste pensamento celestial de Deus: um povo celestial, um testemunho celestial, algo que representasse e expressasse o pensamento dos céus. Onde encontraremos isso? “O Deus da glória apareceu a nosso pai Abraão”, e esse homem se tornou o elo entre o fracasso e a realização.

Josué e Calebe assumiram essa posição. Temos a história do fracasso no deserto. Onde veremos aquilo que é celestial em meio a esse fracasso? Para eles, onde está o propósito de Deus? Deus não desistiu. Pode parecer que Seu propósito tenha quase desaparecido, e isso tem ocorrido repetidas vezes. Todavia, o céu interveio e assegurou um elo entre o fracasso na terra e o triunfo do céu. Esse elo é o pioneiro. O Senhor precisa ter um instrumento como esse para enfrentar o fracasso e possibilitar mais uma vez a abertura do caminho celestial para a realização.

Você provavelmente se pergunta: “O que isso tem a ver comigo?”, e afirma: “Sim, são idéias maravilhosas, vejo que é uma verdade e que está bem clara na Bíblia, mas como isso me afeta?” O fato é que ela afeta. Algumas pessoas não gostam de meditar muito de maneira crítica a respeito de uma situação, e, independente do que for dito a esse respeito, falando de maneira bem geral, ainda assim o Senhor terá espaço para algo valioso na terra. A grande necessidade dos cristãos hoje é serem restaurados ao pleno propósito celestial de Deus, pois se envolveram com coisas diferentes e inferiores, contentando-se com menos. Isso sempre aconteceu. Foi por essa razão que a maior parte do Novo Testamento foi escrito. O povo do Senhor está sempre em perigo de agir assim. Quando os cristãos gravitam espiritualmente em torno deste mundo, acabam, de alguma forma, perdendo seu testemunho celestial. Sempre haverá uma pressão para baixo, e o Senhor precisa de pessoas com visão, que se tornarão como aquelas pessoas mencionadas em nossa última meditação, para quem o centro de gravidade da vida foi transferido deste mundo para o céu, nas quais há essa percepção. Independente de possuírem ou não a capacidade de interpretar ou de estabelecer um sistema de verdades, de doutrinas ou de ensino bíblico a esse respeito, existirá a percepção de que a vida está atrelada a um destino grandioso e superior àquilo que este mundo pode prover. Essas pessoas foram capturadas por algo que só podem traduzir como um chamamento celestial, o qual as sustêm.

Vamos aprofundar isso mais adiante. O Senhor precisa de um povo assim, que simplesmente não pode se satisfazer com as coisas como elas são. Não se trata apenas de uma questão da mente, da razão, afinal. Algo aconteceu no interior essas pessoas; elas têm a consciência de que Deus fez algo. Por causa disso, elas estão comprometidas com algo muito superior às pobres coisas limitadas dessa vida e desse mundo. Elas foram ligadas interiormente a algo tremendo. Vou reiterar que essas pessoas terão consciência disso, ainda que não sejam capazes de pregar essa mensagem. Nunca seremos úteis para Deus além de nossa visão – visão essa forjada interiormente por Deus –, além de nossos próprios sentimentos. A medida de nossa visão determinará a medida de nossa utilidade. Oh, como seria bom haver uma medida incomensurável do céu no coração de um povo! Essa é a necessidade de nossos dias.

Concluo reafirmando que, embora o apóstolo fale tanto dessa vocação celestial, esse é um caminho muito difícil e repleto de todo tipo de dificuldade. Todavia, é o caminho real, verdadeiro e supremo, pois o céu é uma natureza, um poder, uma vida, uma ordem, e está destinado a encher este mundo e este universo.


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Perseverança T. Austin-Sparks

Capítulo 1: O fato e a natureza do caminho celestial

Todos estes morreram na fé, sem terem recebido as promessas; mas vendo-as de longe, e crendo-as e abraçando-as, confessaram que eram estrangeiros e peregrinos na terra. Porque, os que isto dizem, claramente mostram que buscam uma pátria. E se, na verdade, se lembrassem daquela de onde haviam saído, teriam oportunidade de tornar. Mas agora desejam uma melhor, isto é, a celestial. Por isso também Deus não se envergonha deles, de se chamar seu Deus, porque já lhes preparou uma cidade.

(Hb 11.13-16)

Um tempo antes dessas mensagens serem compartilhadas fui para o interior em busca de quietude e distanciamento, dirigindo meu coração para o Senhor e Sua Palavra. Certo dia, nas primeiras horas da manhã, foi como se os céus tivessem sido abertos e tudo tivesse se tornado claro, descortinando-se maravilhosamente em torno de um tema: “Pioneiros no caminho celestial”. Essas palavras resumem os versos que acabamos de citar. Enquanto vamos meditar e, talvez, compartilhar muito sobre o caminho celestial, meu principal foco será a questão do pioneirismo nessa jornada. Para tanto, é necessário iniciar nossa consideração um pouco extensa sobre o caminho celestial, mas reitero que essa impressionante questão do pioneirismo deve ser, a meu ver, o ponto central da mensagem. Acredito que esse seja o interesse central do Senhor neste momento, e deve ser o nosso.

A Terra relacionada ao céu

A Bíblia se inicia com os céus: “No princípio criou Deus os céus e a terra” (Gn 1.1). A ordem da criação não foi “a terra, então os céus”; os céus vieram em primeiro lugar. A Bíblia se encerra com a santa cidade, a nova Jerusalém, descendo de Deus do céu (Ap 21.2). Vemos no início e final da Palavra de Deus que tudo se origina do céu e se dirige novamente para lá. Todo o conteúdo restante das Escrituras obedece a esse princípio. Assim como aconteceu na esfera natural, ocorre na espiritual. O céu governa a terra e tudo que é terreno, e as coisas terrenas têm de responder às celestiais. O céu é o ponto de referência: tudo deve estar à sua luz, responder ao céu e ter sua origem ali. Essa é uma síntese da Palavra de Deus, o inteiro conteúdo das Escrituras.

Esse mundo, essa Terra, não está isolado, abandonado. Ainda que a Terra seja importante dentro dos arranjos divinos, não pode ser vista de forma separada, mas se relaciona ao céu e todo o seu sentido se deriva desse relacionamento. De fato, a Terra é um objeto de grande interesse celestial, pois talvez as coisas mais grandiosas do universo tenham tomado lugar aqui: Deus veio em carne, viveu, deu-se pelo mundo; o grande drama dos conselhos eternos se relaciona com a Terra. Ainda assim, devemos atentar para o fato de que seu sentido e sua importância estão atrelados a ela estar relacionada a algo maior que ela mesma: os céus.

A Bíblia nos ensina que é lá nos céus que Deus se encontra, conforme está escrito: “Deus está nos céus” (Ec 5.2). Aprendemos que existe um sistema, uma ordem suprema e verdadeira nos céus. No final de tudo, a consumação de todos os conselhos de Deus será, na Terra, uma reprodução da ordem celestial. Cristo desceu dos céus e para lá retornou. O cristão, como filho de Deus, nasce do céu e tem sua vida centrada ali. A vida do filho de Deus terá sua consumação no céu. A Igreja, a obra-prima de Deus, tem origem, chamamento e destino celestiais. Em todas essas coisas, e em muitas outras “o céu reina” (Dn 4.26). Tudo é governado por esse elemento do céu.

Filhos de Deus relacionados ao céu

Se somos filhos de Deus, então, toda a nossa educação e nossa história estão relacionadas aos céus. Esse assunto será tratado com mais detalhes adiante. No entanto, é importante afirmar, para que fique claro na compreensão de todos, que toda a nossa história e nossa educação como filhos de Deus estão relacionadas aos céus, e com digo isso não me refiro apenas a que vamos para o céu. Estamos relacionados ao reino dos céus por nascimento, por seu sustento a nós e por nossa eterna vocação. Toda a nossa educação, eu disse, está relacionada aos céus. Tudo o que temos de aprender está em saber como as coisas são feitas ali, como o Senhor disse ao afirmar: “Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu” (Mt 6.10). Quando o Senhor iniciou com “Pai nosso, que estás nos céus” [v. 9], ficou claro que esse fragmento da oração é muito abrangente, englobando toda a educação dos filhos de Deus. As coisas devem ser aqui como são no céu; mas se faz necessário passar por uma vida inteira de educação, um profundo e drástico treinamento para essa conformidade ao céu de fato acontecer.

A Bíblia dos cristãos do Novo Testamento era o Antigo Testamento. Quando lemos o Novo Testamento, como fazemos com frequência, vemos citações a respeito das Escrituras: “Para que se cumprisse o que foi dito” [Mt 1.22; 4.14; 8.17]; “Como está escrito” [Mc 7.6], fazendo referência ao Antigo Testamento. O Antigo Testamento era tudo o que os cristãos possuíam em termos de Escrituras, a única Bíblia dos primeiros cristãos que viveram nas primeiras décadas da história da igreja, pois eles ainda não tinham o Novo Testamento. Para eles, o Antigo Testamento era a Bíblia, e era tomado continuamente como fonte de consulta e como referência para exemplificar a experiência espiritual dos cristãos. Isso ocorreu na Epístola aos Hebreus, de onde extraímos nossa citação inicial. Essa carta está repleta de referências ao Antigo Testamento, do início ao fim. O Antigo Testamento era usado com frequência para ilustrar e demonstrar o sentido da vida espiritual de um cristão do Novo Testamento.

Uma peregrinação relacionada ao céu

O que encontramos no Antigo Testamento é uma peregrinação, ao longo de todo ele: uma peregrinação para o céu. Vamos voltar ao início do registro bíblico. A intenção Divina na criação foi que houvesse uma harmonia entre o céu e a Terra que possibilitasse a Deus estar nesse mundo com prazer, alegria, descanso, da mesma forma que Ele podia estar em Seu céu. Ele fez a Terra para Seu prazer, Ele a fez para Si mesmo, Ele a fez para visitá-la quando desejasse em total satisfação, descanso e alegria. Vemos, como primeira imagem diante de nós, a satisfação de Deus ao visitar o mundo que criou. Ele o moldou, foi feitura Sua, e é dito que Ele entrou no Seu descanso quando concluiu essa obra. Ele encontrou Seu descanso enquanto estava aqui, em Sua criação.

Entretanto, desde a tragédia da queda, os céus e a terra entraram em divergência, perdendo a harmonia. Esse mundo permanece em conflito com o céu; tudo na Terra mudou. No que diz respeito ao mundo, Deus não tem prazer em visitá-lo ou de estar aqui. Sua presença aqui é encontrada por meio de um testemunho, não mais em sua plenitude. Esse testemunho de Sua presença atesta que esse é Seu lugar de direito, que “do Senhor é a terra e a sua plenitude” (Sl 24.1) e que Ele tudo criou para Seu prazer. Mas Deus permanece aqui apenas por meio de um testemunho, como um sinal, que se faz necessário uma vez que Ele não mais está presente em Sua plenitude. Em um sentido muito real e amplo, Deus está fora desse mundo, e existe um conflito entre o céu e a Terra. Embora haja esse testemunho, o próprio testemunho está aqui e não está. Em certo sentido, o testemunho está fora, pois o próprio vaso que testemunha da presença de Deus não pertence a este mundo. Não existe aqui uma habitação permanente, uma cidade. Apesar de estar ‘dentro’, não ‘pertence’ a esse mundo, é um estrangeiro. Isso ocorre desde a queda.

Se atentarmos para a história individual ou corporativa dos instrumentos divinamente apreendidos para expressar esse testemunho, veremos uma história de pioneirismo espiritual em relação ao céu. Vocês compreendem isso? Vou enfatizar mais uma vez. Toda a história desses vasos, individuais ou corporativos, escolhidos e capturados por Deus para expressarem Seu testemunho, é o relato de pioneiros fazendo picadas, abrindo caminho, fazendo algo que é novo no que diz respeito ao mundo, conquistando terreno novo, inovando e fazendo descobertas relacionadas ao céu ― pioneiros na esfera celestial. Quanta história pode ser agregada nessa afirmação!

Para os pioneiros, o centro de gravidade é o céu

Vamos observar uma ou duas características dessa vocação para o pioneirismo. Primeiramente, aqueles que são chamados e capturados pelo céu para servir a um propósito celestial percebem que o centro de gravidade foi interior e espiritualmente mudado e transferido desse mundo para o céu. Há uma sensação profundamente arraigada de não mais pertencer a esse mundo, de que este não é nosso lugar de repouso, que não é nosso lar e não é mais nosso centro de gravidade. Não somos mais atraídos interiormente para o mundo. Uma sensação de conflito com o que está aqui, de haver uma divergência interior e de não poder aceitar o mundo permanece no espírito de um pioneiro. Repito: o centro de gravidade, interior e espiritualmente, foi transferido deste mundo para o céu. Essa é uma consciência inata, e é a primeira coisa nesse chamamento celestial, o primeiro efeito, o primeiro resultado de nosso chamamento do alto. Esse assunto será tratado mais adiante.

Podemos adotar isso como um teste. É claro que isso é verdadeiro até mesmo para o mais simples dos filhos de Deus. A primeira consciência de que alguém nasceu, verdadeiramente nasceu, do alto é percebida pela mudança em seu centro de gravidade. De uma forma ou de outra, interiormente, saímos de um mundo e entramos em outro. De uma forma ou de outra, as coisas com as quais éramos relacionados por nossa natureza não nos seguram mais: elas não são mais nosso mundo. Essa deve ser nossa consciência, e se isso não acontecer, existe algo bem duvidoso nessa profissão de fé no Senhor Jesus. O senso inato de um novo centro de gravidade deve crescer progressivamente ao ponto de se tornar cada vez mais impossível para nós aceitar esse mundo em qualquer aspecto. Mais uma vez afirmo que este é um teste para nosso progresso espiritual, de nossa peregrinação e de quanto avançamos nela. No entanto, isso, afinal de contas, ainda é algo elementar.

A esfera celestial é-nos desconhecida por natureza

Essa outra esfera, a respeito da qual recebemos a consciência em nosso coração, essa gravitação que se iniciou em nosso espírito, é um mundo absolutamente desconhecido da nossa natureza. Para a nossa natureza humana trata-se de um reino totalmente outro: diferente, nada familiar, inexplorado. Para cada indivíduo essa jornada corresponde a um mundo completamente novo que só pode ser conhecido por meio da experiência, independente de muitas pessoas já terem iniciado essa caminhada e terem nela permanecido por um longo tempo. Podemos extrair valores das experiências dos outros, e graças a Deus por isso, mas essas experiências não podem nos levar nem um passo adiante nesse caminho. Trata-se de um novo, completamente novo e estranho caminho para nós. Precisaremos aprender tudo a respeito dele, desde o início.

Isso torna o pioneirismo ― algo que o pioneirismo sempre foi ― um caminho solitário. Ninguém pode nos transmitir essa herança. Precisaremos conquistar nossa própria herança nesse mundo desconhecido e estranho, e isso vai demandar, basicamente, uma nova constituição de acordo com ele, capacidades que não há em nós pela natureza. Nenhum homem pode desvendar a Deus por meio de investigação (Jó 11.7) ― não temos essa capacidade. Isso precisa nascer em nós vindo do céu. Precisaremos descobrir isso tudo por nós mesmos. Precisaremos conhecer a Deus por nós mesmos, em cada detalhe da Sua disposição de se relacionar com o coração humano.

Podemos receber luz por meio de testemunhos, por meio das Escrituras; podemos também ser ajudados por conselhos, receber inspiração de outros que desbravaram esse caminho antes de nós. Todavia, em última análise, precisaremos tomar posse de nosso próprio terreno nesse país celestial; precisaremos conquistar, cultivar e explorar. Se você está seguindo esse caminho em sua vida espiritual, sabe do que estou falando, porque está precisando descobrir as coisas sozinho. Oh, como desejaríamos ter alguém que nos tomasse nos braços e nos delegasse o benefício de suas experiências! O Senhor nunca permitirá isso. Se estamos verdadeiramente e de fato prosseguindo na estrada celestial, se não apenas começamos e, então, desanimamos ou desistimos ao longo do caminho, somos todos pioneiros. Se formos pioneiros, poderemos compartilhar valores com outros, mas, em certo sentido, todos que estão nessa jornada precisarão fazer as próprias descobertas, e é melhor que seja assim. Em última análise, não existe nada de segunda mão na vida espiritual.

Pioneirismo repleto de custo e conflito

Chegamos à terceira característica desse pioneirismo. Todo o pioneirismo é repleto de custo e sofrimento. Como essa jornada, ou caminho, é espiritual, compreendemos que o preço a ser pago pelo pioneirismo será principalmente interior.

Perplexidade, sim, perplexidade. Li a tradução de uma mensagem do nosso irmão Watchman Nee, na qual ele afirmou: “No passado, eu tinha um conceito elevado a respeito da vida cristã imaginando que um cristão estar perplexo era absolutamente errado. Um cristão ser humilhado? Um cristão em desespero? Isso está totalmente errado; afinal, que tipo de cristão seria esse? Quando li as palavras de Paulo dizendo que estava perplexo, em angústia e desespero, isso se tornou um problema real para mim, considerando meu conceito daquilo que um cristão deveria ser. Então, por fim vi que não havia nada errado nisso” [cf. 2Co 4.8,9]. Sim, um cristão como o apóstolo Paulo perplexo, humilhado e em desespero. Esse é o caminho dos pioneiros.

Perplexo. Mas o que essa perplexidade implica? Ela implica a carência de faculdades ou habilidades para compreender o que se passa em determinada esfera a respeito da qual, no momento, não as temos. Encaramos algo que está além de nossa capacidade. Isso não quer dizer que ficaremos sempre perplexos na mesma medida em relação às mesmas coisas. Sairemos da perplexidade em determinado assunto e o entenderemos; todavia sempre encontraremos alguma medida de perplexidade, simplesmente porque o céu é maior que este mundo, mais vasto que essa vida natural, e precisamos continuar a crescer. Perplexidade é a porção dos pioneiros.

Fraqueza. O irmão Nee questionou: “Um cristão em fraqueza e confessando ser fraco? Que tipo de cristão é esse?” Paulo discorre muito sobre fraqueza, sua própria fraqueza, indicando, certamente, existe outro tipo de força diferente da nossa a ser descoberto, algo que não conhecemos naturalmente. Este é o caminho dos pioneiros: chegar à sabedoria que está além de nós, a qual, por ora, significa perplexidade; obter uma força que está além de nós, a qual, por ora, significa fraqueza em nós mesmos. Estamos em um processo de aprendizado ― é tudo. Esse é o caminho dos pioneiros, mas existe um preço alto, como esse, a ser pago em nosso interior, das mais variadas formas.

Mas, apesar desse preço ser interior, ele é também exterior. A Epístola aos Hebreus tem diversas indicações desses dois aspectos de nossa peregrinação. “Todos estes […] confessaram que eram estrangeiros e peregrinos na terra” (11.13). O apóstolo escrevia sobre uma jornada espiritual, uma transição do terrenal para o celestial, indicando o aspecto interior. Mas houve também o aspecto exterior no testemunho daquelas pessoas, e acontece o mesmo conosco. Toda a inclinação da natureza tende para baixo, se for deixada por conta própria. Isso acontece em todas as esferas da natureza, se deixarmos que elas sigam sua tendência natural, não é? Um belo jardim logo se torna em desolação, desordem e caos, se pararmos de cultivá-lo. E isso também é verdade a nosso respeito, nessa jornada espiritual: nossa gravitação natural se dirige para a Terra, sempre buscaremos um lugar para nos estabelecer, sempre ansiaremos pelo fim do conflito e do combate, buscando uma saída dessa atmosfera de tensão na vida espiritual. Toda a história da Igreja é uma longa história dessa tendência de acomodação a essa Terra, de conformar-se a esse mundo, de busca por aceitação e popularidade e para eliminar os elementos de conflito e de peregrinação. Essa é a nossa inclinação, a tendência natural. Assim o pioneirismo tem um alto preço, exterior e interiormente.

Estaremos assumindo uma posição contrária à inclinação religiosa. Voltemos à Epístola aos Hebreus. Ali vemos uma inclinação descendente e retrógrada para a Terra, tornando o cristianismo um sistema religioso terreno com todas as suas externalidades, suas formas, seus rituais e suas vestimentas. Todo esse sistema precisava ser visível e deveria responder aos sentidos naturais. Isso exercia uma grande atração àqueles cristãos; fazia um grande apelo à alma deles, à sua natureza, e essa carta foi escrita para admoestar: “Deixemos essas coisas para trás e prossigamos. Somos peregrinos, estrangeiros; aquilo que é celestial é que tem importância”. Relembremos do grandioso parágrafo sobre a nossa chegada à Jerusalém celestial (12.18-24).

Mas tomar uma posição contrária ao sistema religioso “acomodado” envolve um alto preço e um grande sofrimento. Por vezes parece-me que isso é bem mais difícil do que se posicionar contra o próprio mundo. Isso porque o sistema religioso pode ser ainda mais cruel, implacável e amargo, por sofrer influência de coisas malignas e desprezíveis como preconceitos e suspeitas, que são encontradas até mesmo nas pessoas decentes do mundo. Uma progressão ascendente para o céu tem um alto preço, é dolorosa, mas é o caminho do pioneiro, e precisa estar bem claro que isso é assim. Nessa carta temos a seguinte afirmação: “Saiamos, pois, a Ele fora do arraial” (13.13). Deixo a seu critério determinar o que é esse arraial, mas não é o mundo. “A Ele fora do arraial” representa banimento, suspeita.

“Todos estes morreram na fé, sem terem recebido as promessas; mas vendo-as de longe, e crendo-as e abraçando-as” [11.13]. Não seria esta a visão de um pioneiro: sempre ver e saudar de longe aquele dia da concretização de sua fé, ainda que esteja além da curta duração de sua vida? “Confessaram que eram estrangeiros e peregrinos na terra. Porque, os que isto dizem, claramente mostram que buscam uma pátria. E se, na verdade, se lembrassem daquela de onde haviam saído, teriam oportunidade de tornar. Mas agora desejam uma melhor, isto é, a celestial. Por isso também Deus não se envergonha deles, de se chamar seu Deus, porque já lhes preparou uma cidade.” Deus não se envergonha do povo que peregrina com Ele em direção a Seu propósito, Ele considera Seus os desse povo, é chamado “seu Deus” e preparou-lhes “uma cidade” (vv. 13-16).

Quando meditamos nesse texto, vemos que é um resumo maravilhoso. “Todos estes” [v. 13] ― que afirmação abrangente! Percebemos nessa afirmação que todas essas pessoas viram alguma coisa e não mais descansaram depois dessa visão, até chegarem ao fim de seus dias e darem seu último suspiro nessa Terra. Elas ainda eram peregrinas e não puderam mais descansar, pois receberam aquele chamado do invisível. Precisamos receber isso dos céus, para sermos conduzidos para lá. Isso ficou claro?

Como podemos ver, essa é a chave e a explicação para tudo. Essa é a garantia de que tudo o que ansiamos, desejamos, buscamos e foi originado no Espírito de Deus será realizado. Oh, bendito seja Deus por isso! Que mais pessoas do povo do Senhor experimentem, com poder, essa convicção!

Você tem fome disso? Anseia por isso? Está insatisfeito? Esse anseio é como uma profecia de que existe algo mais. Você está acomodado? Você se conformou? Sua visão é curta e estreita? Você só consegue ir até aqui? Você aceitando as coisas como elas são? Muito bem, é isso que você irá alcançar ― não espere chegar muito longe. Deus se intitula o Deus daqueles peregrinos [11:16]. Ele é o Deus dos peregrinos. Vamos abandonar essa mentalidade literal a respeito dessa peregrinação literal ― ou, como preferem alguns, de um céu literal. De fato, apesar de desconhecer onde o céu está, sei que existe uma ordem celestial e que os tratos de Deus para comigo são relacionados a essa ordem, diariamente. Deixemos o literal e vejamos o lado espiritual, que é muito real. Vamos pedir ao Senhor para plantar poderosamente em nós esse espírito de peregrino.

Você descobrirá, à medida que prosseguir, que, apesar de ter havido momentos de sua vida espiritual em que acreditava estar tudo tão maravilhoso e pleno, ao ponto de acreditar que havia chegado ao ápice, em outros momentos, essas maravilhas irão parecer insignificantes. Ao fazer uma retrospectiva, vai considerar tudo aquilo meninice. Olhará para algumas de suas leituras daquela ocasião que o alimentavam e dirá: “Como é que eu encontrava alguma coisa nisso?” Não me entenda mal: não é que houvesse alguma coisa errada naquelas coisas; elas eram adequadas para aquela ocasião, mas você prosseguiu e precisará de algo mais agora. Precisamos amadurecer em todas as coisas, prosseguir. Precisamos ser um povo do além. Esse é provavelmente o sentido da palavra “hebreu”. Essa carta é chamada de Epístolas aos Hebreus, e fala de peregrinos e estrangeiros. Se a palavra “hebreu” significa “pessoa do além”, podemos afirmar que somos um povo do além, que nossa morada e nossa gravitação estão além. Somos peregrinos nessa Terra, peregrinos do além.

Que o Senhor torne essa mensagem útil, tirando-nos da condição de letargia, do falso contentamento ou do desejo indevido de alcançar um fim aqui. Por outro lado, que o Senhor mantenha nossos olhos e nosso coração unidos aos daqueles que foram pioneiros antes de nós, vendo, saudando, e, se necessário morrendo em fé.

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