Dr. Martin Lloyd-Jones

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Em nossa consideração destas doutrinas bíblicas, chegamos agora a uma nova seção da doutrina particular com que estivemos tratando, ou seja, a doutrina sobre Deus. Vocês se lembrarão de que temos considerado o que a Bíblia nos diz sobre o ser, a natureza e o caráter de Deus, como aprouve a Ele nos revelar essas particularidades nas Escrituras. Consideramos, igualmente, os nomes que Deus aplicou a Si próprio como uma parte desta revelação de Seu ser essencial, bem como Sua relação com a criação. E isso, por sua vez, nos trouxe à consideração da grande, poderosa e inescrutável doutrina da bem-aventurada santíssima Trindade.

Agora, considerando ainda a doutrina sobre Deus, chegamos à próxima seção, que é obviamente a seguinte: as obras de Deus; a atividade de Deus; o que Deus fez. Esta é uma espécie de subseção ou ramo da doutrina geral concernente a Deus. E a pergunta é: o que vem a seguir? Que é que vamos considerar? Estamos para considerar as obras de Deus; portanto, se lhes fosse formulada a seguinte pergunta: “O que vocês pensam vir a seguir na seqüência bíblica e na ordem lógica?” Sinto-me curioso em saber a resposta que vocês dariam. Posso estar equivocado, mas acredito que, se eu fosse fazer a pergunta, muitos provavelmente diriam que obviamente nos dirigiremos imediatamente à doutrina da Criação.

Ora, é evidente que há um sentido em que essa seria a resposta correta, mas, francamente, a minha impressão é que não é, embora descobrirão, se examinarem certos livros que tratam destes assuntos, que é precisamente isso o que eles fazem. Vocês poderiam citar um bom número de autoridades que vão diretamente da doutrina da natureza e caráter de Deus à questão da Criação. Mas tal procedimento parece-me completamente errôneo. E antibíblico, e portanto não é a coisa certa e própria a fazer.

Antes de abordarmos a doutrina sobre a Criação, há algo que devemos considerar primeiro, e procedemos assim porque a Bíblia nos fala sobre ele, ou seja, a Bíblia, antes mesmo de dizer-nos o que Deus fez, nos conduz ao caráter de todas as atividades de Deus. Há muito na Bíblia, como pretendo mostrar-lhes, sobre o modo como Deus faz as coisas, e é importante que consideremos isso antes de considerarmos exatamente o que Deus fez.

Há seguramente grandes princípios que sublinham e caracterizam todas as obras de Deus. Noutras palavras, antes de Deus criar o mundo e o homem, Ele ponderou, Ele intentou e determinou certas coisas. Daí, esta abordagem deve entrar neste ponto. Certas coisas foram decididas na mente e no conselho eterno de Deus, antes que Ele fizesse qualquer coisa no âmbito da Criação, e a impressão que tenho, portanto, é que esta é a seqüência obviamente cronológica (se podemos usar tal termo), certamente a seqüência obvia e lógica que deve ser seguida.

Ora, a descrição que é apresentada na Bíblia referente ao modo ou ao método de Deus operar consiste no que comumente se chama a doutrina dos decretos eternos de Deus. Essas são coisas que Deus determinou e ordenou antes que tivesse feito qualquer coisa. Ora, quero admitir muito francamente que estou chamando sua atenção outra vez para um tema extremamente difícil. Não peço desculpas por isso porque, como lhes mostrarei, esta não é uma questão de escolha. A obrigação de alguém, ao expor a Bíblia, é a de expor toda a Bíblia. Todavia admito que este é um tema muito difícil, e creio que é por isso que muitos dos livros não o incluem. Mas ele é tão escriturístico, que precisa ser encarado. É como a doutrina sobre a santíssima Trindade – em certo sentido, se acha além de nossas mentes. Entretanto, segundo vimos acerca dessa doutrina, não devemos evitá-la só pelo fato de ser difícil.

Para o encorajamento de vocês, contudo, creio poder prometer-lhes que algumas destas doutrinas primárias e preliminares são mais difíceis em razão de estarmos tratando com a mente do Eterno, e de estarmos, portanto, considerando algo que se acha além do nosso finito entendimento e da apreensão de nossos débeis e ínfimos intelectos. De certo ponto de vista, as doutrinas do homem, da criação e da salvação são, necessariamente, muito mais fáceis.

“Mas”, alguém poderá dizer, “em vista da dificuldade e inescrutabilidade dela, por que é preciso considerá-la? Por que não entramos diretamente nas doutrinas da Criação, do homem e da Queda? É nisso que estamos realmente interessados; é isso que queremos saber.” Muito bem, é preciso que apresentemos algumas respostas a uma objeção como essa. Minha primeira razão para chamar sua atenção para esta doutrina, como já me expressei, é que ela se acha revelada na Bíblia; e diante desse fato, ela exige obviamente a nossa consideração e estudo.

Posso colocá-lo assim: não seria bastante surpreendente observar e considerar quão inclinados somos nós a ler apenas certas porções da Bíblia? Gostaria de saber se vocês lêem o nono capítulo da Epístola aos Romanos com tanta freqüência como lêem o oitavo. Se porventura vocês são daqueles que lêem a Bíblia a esmo, então não o fazem. Ora, não temos o direito de escolher e selecionar somente o que queremos da Bíblia. Já concordamos que ela é a Palavra inspirada de Deus. Se creio nisso acerca da Bíblia, do começo ao fim, então devo levar em conta toda a minha Bíblia. O fato de haver porções que me deixam perplexo, não é motivo para afastar-me delas. Devo lê-la inteiramente, apegar-me a ela toda; devo tentar compreendê-la totalmente. E desde que esta eminente doutrina dos decretos de Deus está na Bíblia, então é minha obrigação estudá-la.

Eis outra razão – e creio que vocês concordarão comigo quando tivermos concluído: ela nos revelará inusitados aspectos da glória do próprio Deus. Ela nos oferecerá, por assim dizer, uma maior e mais excelente concepção de Deus, o que, por sua vez, promoverá nossa adoração a Deus. jamais me canso de dizer que a real dificuldade da evangelização moderna é que não empregamos tempo suficiente com a doutrina a respeito de Deus.

Sentimo-nos tão interessados numa experiência subjetiva, e numa salvação subjetiva, que nos esquecemos desta doutrina do próprio Deus; e tal fato é responsável por muitos de nossos conflitos e problemas. Quanto mais conhecermos sobre Deus e Sua infinitude, tanto mais O adoraremos.

Outra razão, portanto, para considerarmos esta doutrina está no fato de que ela nos poupará de muitos erros. A maioria dos erros em que homens e mulheres têm caído ao longo dos séculos, e em muitas outras questões que se tem suscitado, tem sido em razão do fato de nunca terem chegado a compreender, como deviam compreender, o ensino da Bíblia no tocante aos decretos eternos de Deus.

E minha última razão para chamar sua atenção para ela é que, quanto a mim, não conheço nada que me transmite maior consolação do que esta doutrina particular. Não hesito em dizer que nada me transmite conforto mais Profundo do que saber que por trás de mim, ínfima criatura que sou, transitando por este mundo momentâneo, existe esta doutrina dos decretos eternos do próprio Deus.

Muito bem, se essa é a razão por que a estamos considerando, então deixem-me dizer apenas uma palavra sobre como a consideraremos, e como tal coisa é tão importante. A primeira coisa que temos a fazer, quando estamos considerando esta doutrina, consiste em livrar-nos de nossos preconceitos e de todo e qualquer gênero de espírito partidário. Pelo termo “espírito partidário” quero dizer que todos nós somos inclinados a assumir certas posições e, inconscientemente, estamos às vezes muito mais preocupados em defender o que pensamos ser aquilo em que temos sempre crido, do que em descobrir a verdade.

A outra forma negativa é que não devemos aproximar-nos deste tema filosoficamente. Sei que continuo falando sobre isso! A filosofia é uma grande maldição na esfera da fé cristã porque, por implicação, a filosofia é sempre algo que se inclina a entender todas as coisas como um todo. Esse é o intento da filosofia -avaliar tudo com a mente humana. Mas estamos agora tratando de algo para o qual a mente é completamente inadequada.

Portanto, devemos compreender que, quando nos aproximamos deste tema, há aspectos dele que, por implicação, não conseguiremos entender.

E então, positivamente, devemos aproximar-nos deste tema com humildade; devemos aproximar-nos dele com reverência; devemos aproximar-nos dele pela fé e com uma pronta admissão de nossas próprias limitações. Devemos aproximar-nos dele com uma mente aberta, buscando e inquirindo pelo ensino das Escrituras. Devemos achegar-nos num espírito infantil, prontos a receber o que nos é revelado, e prontos, devo acrescentar, a não fazer perguntas que vão
além da revelação das Escrituras.

Aliás, estou cada vez mais convencido de que fé é a disposição de alguém submeter-se aos limites bíblicos. É a disposição de não fazer perguntas sobre coisas que não se acham reveladas nas Escrituras. Fé consiste em dizer: “Muito bem, levarei em conta tudo quanto é registrado na Bíblia, e não quero saber de nada mais além disso. Estou satisfeito com a revelação.” Devemos aproximar-nos desta grande doutrina dessa forma.

Acima de tudo, é preciso que compreendamos que há certas coisas que, com nossas mentes finitas, não seremos capazes de conciliar umas com as outras. Ora, estou tentando evitar o uso de termos técnicos o quanto posso, todavia aqui devo introduzir a palavra antinomia – não antimônio. O que é uma antinomia? E aquela posição em que nos são dadas duas verdades, as quais, por nós mesmos, não podemos conciliar. Há certas antinomias finais na Bíblia, e, como pessoas de fé, devemos estar dispostos a aceitar tal fato. Quando alguém diz: “Oh, mas você não pode conciliar esses dois”, você deve prontamente dizer: “É verdade, não posso. Não presumo ser capaz de fazê-lo. Eu não sei. Só creio no que me é dito nas Escrituras.”

Pois bem, aproximamo-nos desta grande doutrina assim: à luz das coisas que já consideramos sobre o ser, a natureza e o caráter de Deus, esta doutrina dos decretos eternos deve ser deduzida como uma necessidade suprema e absoluta. Devido Deus ser quem é e o que Ele é, Ele tem de operar da maneira como Ele opera, Como temos visto, todas as doutrinas na Bíblia são consistentes umas com as outras, e quando estamos considerando alguma doutrina específica, devemos lembrar que ela deve ser sempre consistente com todas as demais. Portanto, quando decidimos estudar o que a Bíblia nos afirma sobre o modo como Deus age, devemos tomar cuidado para não dizermos algo que contradiga o que já afirmamos sobre Sua onisciência, Sua onipotência e todas as demais coisas, que juntos temos concordado estarem nas Escrituras.

Ora, tendo dito tudo isso, permitam-me fazer uma afirmação positiva da doutrina e, a fim de torná-la clara, pô-la-ei na forma de uma série de princípios.. O primeiro é que, desde a eternidade, Deus tem tido um plano imutável com referência às Suas criaturas. A Bíblia está constantemente fazendo uso de uma frase como esta: “Antes da fundação do mundo” (Vejam Ef 1:4). Como o apóstolo Paulo disse sobre o nascimento de nosso Senhor: “Mas, vindo a plenitude dos tempos…” (Gl 4:4).

Podemos colocá-lo em termos negativos: Deus jamais faz algo com indiferença. Nunca há algo incerto em Suas atividades. Poderia pô-lo ainda noutra forma: Deus jamais tem uma segunda reflexão. Lembrem-se de que já concordamos que Ele é onisciente e onipresente, que Ele conhece tudo desde o princípio ate o fim, Portanto Ele não pode ter uma segunda reflexão. Nada é acidental, casual, incerto ou fortuito. Deus tem um plano, um propósito definido sobre a criação, sobre os homens e as mulheres, sobre a salvação, sobre a vida neste mundo na sua totalidade, sobre o fim de tudo, sobre o destino final. Tudo o que Deus tem feito e causado é segundo o Seu próprio plano eterno, e esse é fixo, certo, imutável e absoluto. Essa é a primeira afirmação.

A segunda consiste em que o plano de Deus compreende e determina todas as coisas e eventos, de toda espécie, que acontecem. Se vocês crêem que Deus determinou certos fins, então precisam crer que Ele determina tudo o que conduz a esses fins. Se crêem que Deus decidiu criar num dado ponto, que Ele decidiu que o fim do mundo, de acordo com o tempo, deve suceder num dado ponto, seguramente, se o fim é determinado, tudo o que conduz a esse fim deve ser também determinado; e vocês compreendem que há também uma espécie de interrelação entre todos os eventos e coisas que acontecem, e que todos estão se dirigindo para esse fim. Desse modo, a doutrina dos decretos eternos de Deus declara que todas as coisas são finalmente determinadas e decretadas por Ele.

Por conseguinte, se tudo está determinado por Deus, devem-se incluir, necessariamente, as ações livres, as ações voluntárias de agentes livres e voluntários. Ora, essa é uma afirmação fundamental.. Deixem-me fragmentá-la um pouco e apresentar-lhes a evidência escriturística. Com respeito ao sistema como um todo, isso é colocado muito claramente pelo apóstolo Paulo. Diz ele: “De tornar a congregar em Cristo todas as coisas, na dispensação da plenitude dos tempos, tanto as que estão nos céus como as que estão na terra; nele, digo, em quem também fomos feitos herança, havendo sido predestinados, conforme o propósito daquele que faz todas as coisas, segundo o conselho da sua vontade” (Ef 1:10,11). Com efeito, isso se aplica a todas as coisas. Paulo está falando ali do cosmo como um todo sendo unido em Cristo, e ele diz que Deus irá realizar isso dessa maneira.

Em seguida temos mais evidência escriturística a demonstrar que Deus, dessa maneira, governa, controla e determina os eventos que aparentam aos nossos olhos ser totalmente fortuitos. No livro de Provérbios, lemos: “A sorte se lança no regaço, mas do Senhor procede toda a sua disposição” (Pv 16:33). Chamamos “sorte” uma questão de probabilidade e casualidade, não é verdade? Vocês “lançam” a sorte. Sim, diz essa passagem das Escrituras: “mas do Senhor procede toda a sua disposição”. Também no Novo Testamento lemos que nosso Senhor diz: “Não se vendem dois passarinhos por um ceitil? E nenhum deles cairá em terra sem a vontade de vosso Pai” (Mt 10:29). Um pequeno pardal estatela-se morto e cai por terra. Acidente, diz você. Casualidade. Absolutamente, não! “Nenhum deles cairá em terra sem a vontade de vosso Pai.” A vida de um pequeno pardal está nas mãos de Deus. Ele, porém, prossegue: “E até mesmo os cabelos da vossa cabeça estão todos contados” (v. 30). Há eventos que parecem ser totalmente acidentais, no entanto são controlados por Deus.

Em seguida, tomem nossas ações livres. Leiam Provérbios 21:1: “Como ribeiros de águas, assim é o coração do rei na mão do Senhor; a tudo quanto quer o inclina.” O rei parece estar livre, porém Deus está controlando-o como controla os próprios rios. Efésios 2:10 nos declara: “Porque somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus preparou para que andássemos nelas.” E Filipenses 2:13 nos diz: “Porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade.”

Não obstante, chegamos a algo mais extraordinário e surpreendente: as Escrituras nos ensinam que até mesmo as ações pecaminosas estão nas mãos de Deus. Ouçam Pedro pregando no dia de Pentecoste, em Jerusalém: ‘A este que vos foi entregue pelo determinado conselho e presciência de Deus, tomando-o vós, o crucificastes e matastes pelas mãos de injustos” (At 2:23). Em seguida, Pedro o coloca nestes termos: “Porque verdadeiramente contra o teu santo Filho Jesus, que tu ungiste, se ajuntaram, não só Herodes, mas Pôncio Pilatos, com os gentios e os povos de Israel” – prestem atenção – “para fazerem tudo o que a tua mão e o teu conselho tinham anteriormente determinado que se havia de fazer” (At 4:27,28). O terrível pecado daqueles homens fora determinado de antemão, pelo conselho de Deus.

Temos também um tremendo exemplo disso no livro de Gênesis, aquela famosa declaração de José a seus irmãos. José, rememorando os fatos de sua história, virou para seus irmãos e disse: “Assim não fostes vós que me enviastes para cá, e sim Deus…” (Gn 45:8). Do nosso ponto de vista, foram eles que o fizeram. Eles haviam agido perversamente, haviam feito algo muito ímpio, movidos por motivos mercenários e como resultado de sua própria inveja. “Mas”, disse José, “não fostes vós que me enviastes para cá, e sim Deus”. Estas ações pecaminosas emanaram deste grande e eterno decreto de Deus.

Ora, sejamos bem explícitos sobre isto. Em vista do que já concordamos sobre a santidade de Deus, devemos uma vez mais dizer o seguinte: Deus não causa o mal em nenhum sentido, em nenhum grau. Deus não aprova o mal. Ele, porém, permite que os agentes perversos o realizem, e então o administra para Seus próprios fins sábios e santos.

Ou avaliem-no assim, se o preferirem: o mesmo decreto de Deus que ordena a lei moral, que proíbe e pune o pecado, também permite sua ocorrência. Limita-o, porém, e determina o canal específico ao qual ele será restringido, bem como a finalidade exata para a qual ele será dirigido, e controla suas conseqüências para o bem. A Bíblia nos ensina isso claramente. Ouçam novamente aquele relato sobre José e seus irmãos em Gênesis 50:20. Disse José: “Vós bem intentastes mal contra mim, porém Deus o tornou em bem, para fazer como se vê neste dia, para conservar em vida a um povo grande.” E creio que, em muitos aspectos, o exemplo mais chocante de todos se encontra na traição de Jesus por Judas: uma ação livre e voluntária, e no entanto um componente do grande e eterno propósito e plano de Deus.

Assim sendo, isso me conduz à minha terceira proposição geral, ou seja: todos os decretos de Deus são incondicionais e soberanos. Eles não dependem, em nenhum sentido, das ações humanas. Não são determinados por alguma coisa que a pessoa possa ou não fazer. Os decretos de Deus não são nem ainda determinados à luz do que Ele sabe que as pessoas irão fazer. Eles são absolutamente incondicionais. Não dependem de nada, a não ser da própria vontade e da própria santidade de Deus.

Entretanto – quero deixar isto bem claro – não significa que não exista o que se chama causa e efeito na vida. Isso não significa que não exista o que se chama ações condicionais. Sim, existe aquilo a que se chama, na natureza e na vida, causa e efeito. O que a doutrina afirma, porém, é que cada causa e efeito, bem como as ações espontâneas, são componentes do decreto do próprio Deus. Ele determinou agir dessa maneira particular. Deus decretou que o fim que Ele tem em vista será cumprido, certa e inevitavelmente, e que nada poderá impedi-lo nem frustrá-lo.

Deixem-me apresentar-lhes agora a minha evidência para tudo isso. Tomem a profecia de Daniel: “E todos os moradores da terra são reputados em nada; e segundo a sua vontade ele opera com o exército do céu e os moradores da terra: não há quem possa estorvar a sua mão, e lhe diga: que fazes?” (Dn 4:35). Nada pode impedir a mão de Deus, nem mesmo questioná-la. Ou então ouçam a nosso Senhor afirmar este mesmo fato em Mateus 11:25,26: “Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, que ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim te aprouve.” Por que Deus tem escondido estas coisas aos “sábios e entendidos” e as revelado aos “pequeninos”? Só existe uma resposta – “porque assim te aprouve”, porque assim pareceu bem aos Seus olhos.

Paulo também afirma a mesma coisa: “E nos predestinou para filhos de adoção por Jesus Cristo, para si mesmo, segundo o beneplácito de sua vontade” (Ef 1:5). Recomendo-lhes um cuidadoso estudo da primeira metade do primeiro capítulo da Epístola aos Efésios. Atentem bem para tudo o que ela diz, e saberão que tudo o que Deus tem feito é sempre “segundo o beneplácito de Sua vontade”. Nada mais, absolutamente. E inteiramente pela graça.

Mas, naturalmente, vocês encontrarão esta doutrina afirmada ainda mais claramente naquele grande e poderoso capítulo nove da Epístola aos Romanos. Desejo, neste momento, enfatizar especialmente o versículo 11. Vocês descobrirão que ele é um versículo entre parênteses; porém, que grandioso versículo! Que declaração! “Porque, não tendo eles ainda nascido, nem tendo feito bem ou mal (para que o propósito de Deus, segundo a eleição, ficasse firme, não por causa das obras, mas por aquele que chama).” O argumento de Paulo consiste em que Deus decretara que o mais velho servisse ao mais jovem, porque, mesmo antes que houvessem nascido, Ele havia dito: ‘Amei Jacó, e aborreci Esaú” (v. 13).

“Por que”, vocês perguntam, “Deus amou Jacó, porém odiou Esaú? Foi em razão do que eles fizeram?” Não. Antes que nascessem, antes mesmo que fossem concebidos, Deus escolheu Jacó e não Esaú. Não tinha nada a ver com suas obras, em sentido algum.

O propósito de Deus é incondicional e absolutamente soberano. Ouçam a Paulo dizer novamente: “Que diremos, pois? Que há injustiça da parte de Deus? de maneira nenhuma” (Rm 9:14). Que Deus os livre de chegarem a tal conclusão! É impossível – “Pois diz a Moisés: compadecer-me-ei de quem me compadecer, e terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia. Assim, pois, isto não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deus, que se compadece. Porque diz a Escritura a Faraó: para isto mesmo te levantei; para em ti mostrar o meu poder, e para que o meu nome seja anunciado em toda a terra. Logo, pois, compadece-se de quem quer, e endurece a quem quer” (Rm 9:15-18).

Deixem-me apresentar o quarto princípio, o qual é que: os decretos de Deus são eficazes. Ora, isso, naturalmente, se deduz necessariamente. Visto que Deus é um Senhor soberano, em virtude de Sua onipotência e de Sua grandeza, Seus propósitos jamais podem fracassar. O que Deus determina e decreta, infalivelmente devera ser cumprido. Nada pode impedi-lo. Nada pode frustrá-lo.

E isso me traz ao quinto princípio: os decretos de Deus são em todos os aspectos perfeitamente consistentes com Sua própria natureza muitíssimo sábia, benevolente e santa. Creio que não é necessário que eu argumente tal fato. Noutras palavras, não existe contradição em Deus. Nem pode haver. Deus é perfeito, como temos visto, e Ele é absoluto, e tudo quanto estou expressando agora se entrosa perfeitamente com tudo quanto já consideramos antecipadamente. Conforme já os adverti na introdução, vocês e eu, aqui na terra, com nossas mentes finitas e pecaminosas, somos confrontados com um problema. Ei-lo: por que Deus decretou permitir o pecado? E há somente uma resposta a essa pergunta: simplesmente não sabemos. Sabemos que Ele decretou permitir o pecado, do contrário o pecado jamais teria acontecido. Por quê, não sabemos. Eis aqui um problema insolúvel. Veremos, porem, tudo claramente quando estivermos na glória e face a face com Deus.

De duas coisas podemos estar certos e devemos sempre asseverar: primeira, Deus jamais é a causa do pecado. Em Habacuque 1: 13, vocês encontrarão expresso: “Tu és tão puro de olhos, que não podes ver o mal.” Tiago diz: “… Deus não pode ser tentado pelo mal, e a ninguém tenta” (Tg 1: 13). Segunda, o propósito de Deus é, em todas as coisas, perfeitamente consistente com a natureza e o modo de agir de Suas criaturas. Noutras palavras, ainda que não possamos conciliá-lo, há uma conciliação final. Os decretos de Deus não negam a existência de agentes livres. Tudo o que sabemos é isto: ainda que Deus concedeu esta liberdade, Ele, não obstante, a tudo governa a fim de que Seus fins determinados possam ser concretizados.

Como pode Deus decretar tudo e ainda manter-nos responsáveis pelo que fazemos? Eis a resposta:

“Mas, ó homem, quem és tu, que a Deus replicas? Porventura a coisa formada dirá ao que a formou: porque me fizeste assim? Ou não tem o oleiro poder sobre o barro, para da mesma massa fazer um vaso para honra e outro para desonra? E que direis se Deus, querendo mostrar a sua ira, e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita paciência os vasos da ira, preparados para perdição; para que também desse a conhecer as riquezas da sua glória nos vasos de misericórdia, que para glória já dantes preparou” (Rm 9:20-23).

“Mas”, talvez vocês perguntem, “como você concilia estas duas coisas?”

Respondo: não posso. Sei que a Bíblia me afirma as duas coisas: que o homem, em certo sentido, é um agente livre, e, em contrapartida, que os decretos eternos de Deus governam todas as coisas.

Em seguida, devo apresentar minha última proposição, ou seja, a salvação dos homens e das mulheres e dos anjos em particular foi determinada por Deus antes da fundação do mundo. Isso Ele faz inteiramente de acordo com o Seu beneplácito e de Sua graça. Devo remetê-los novamente a Mateus 11:25,26. E em João 6:37, lemos: “Todo aquele que o Pai me dá virá a mim; e o que vem a mim de maneira nenhuma o lançarei fora.” E no versículo 44 nosso Senhor diz: “Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou o não trouxer.” Em Atos 13:48, leio o seguinte: “e creram todos quantos estavam ordenados para a vida eterna.”

Em 2 Tessalonicenses 2:13, vocês encontram: “Mas devemos sempre dar graças a Deus por vós, irmãos amados do Senhor, por vos ter Deus elegido desde o princípio para a salvação, em santificação do Espírito, e fé da verdade.” Em seguida, em sua carta a Timóteo, Paulo diz: “Que nos salvou, e chamou com uma santa vocação; não segundo as nossas obras, mas segundo o seu próprio propósito e graça que nos foi dada em Cristo Jesus antes dos tempos dos séculos” (2Tm 1:9).

Especialmente, porém, gostaria de enfatizar novamente aquela grande afirmação, a qual já citei, de Romanos 9:20-23. O apóstolo Paulo, pregando esta grande doutrina dos decretos eternos de Deus, imagina alguém em Roma dirigindo-lhe uma pergunta e dizendo: eu não entendo isso. A mim soa contraditório, injusto. Se o que você me diz sobre estes decretos é verdadeiro, então a impressão que fica é que Deus é injusto. O questionador diz a Paulo: “Por que se queixa ele ainda? Porquanto, quem resiste à sua vontade?” (Rm 9:19).

E a réplica de Paulo é:

“Mas, ó homem, quem és tu, que a Deus replicas? Porventura a coisa formada dirá ao que a formou: por que me fizeste assim? Ou não tem o oleiro poder sobre o barro, para da mesma massa fazer um vaso para honra e outro para desonra? E que direis se Deus, querendo mostrar a sua ira, e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita paciência os vasos da ira, preparados para perdição; para que também desse a conhecer as riquezas da sua glória nos vasos de misericórdia, que para glória já dantes preparou)”

Eis aí a resposta do apóstolo. Eis aí a resposta das Escrituras. Eis aí, portanto, a resposta de Deus, a nós e por nós, enquanto estamos neste mundo passageiro. Ela se acha além de nós. Não podemos apreender o supremo funcionamento da mente de Deus. Não adianta perguntar: por que isso? e, por que aquilo? Por que Deus levantou Faraó? Por que Ele escolheu Jacó e não Esaú? Por que Ele nos castiga, se todas as coisas estão determinadas e decretadas? A resposta é: “Mas, ó homem, quem és tu?” Vocês estão opondo sua própria mente contra a de Deus. Estão ignorando quão ínfimos vocês são, quão finitos vocês são, quão pecaminosos em resultado da Queda. Vocês têm que abrir mão do entendimento até chegarem à glória. Tudo o que vocês têm a fazer aqui, no momento, é crer que Deus é sempre consistente consigo mesmo, e aceitar o que Ele explícita e abertamente nos revelou sobre Seus decretos eternos, sobre o que Ele determinou e decidiu antes mesmo que criasse o mundo.

E, acima de tudo, compreendam que, se vocês são filhos de Deus, é em razão de Deus o ter determinado, e o que Ele determinou a seu respeito é indiscutível, seguro e certo. Nada e ninguém pode jamais tirá-los de Suas mãos, nem tampouco levá-lo a renunciar Seu propósito com relação a vocês. A doutrina dos decretos eternos de Deus existiu antes da fundação do mundo. Ele me conheceu. Conheceu a vocês. E os nossos nomes foram escritos no “livro da vida do Cordeiro” antes mesmo que o mundo fosse criado, antes mesmo que vocês e eu, ou algum outro, entrássemos nele.

Curvemo-nos diante de Sua Majestade. Humilhemo-nos em Sua augusta presença. Submetamo-nos à revelação que Ele tão graciosamente Se agradou em nos comunicar.

(Extraído do livro Deus o Pai, Deus o Filho, Dr. Martyn Lloyd-Jones, Editora PES)

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