Quinta-feira, dia 17 de novembro de 2005. Na metade da manhã, já envolvido com o trabalho, com a mente e o coração nas dificuldades, sou interrompido pelo telefone. Uma voz que não reconheço brinca com meu nome. Irrito-me. A voz pergunta como vou. Reconheço: meu irmão, Ives, com quem há muito não falo. O coração se arrepende e se desarma.
Trocamos as perguntas tradicionais, “Como vão os filhos? “, “E a tua filha?”, “Me disseram que… É verdade?”, “Pois é…”.
– Bem, Xico, tem uma pessoa aqui que quer muito falar contigo. Vou passar o telefone pra ela. Tchau!
Detesto surpresas. Especialmente com pessoas. Facilmente magôo os outros por minha péssima memória, por meus sentimentos indisfarçáveis. “Queira Deus que não o faça dessa vez!”
– Alô, Xico. É a Téia!
Esforço de reativar todos os meus bancos de memória, que freqüentemente me deixam na mão quando mais deles preciso. Nada. Nenhuma informação. Nenhuma lembrança. Nenhum raio de ligação com algum fato passado.
– Téia?
Fiquei apreensivo. E se ela respondesse: “É, a Téia. Lembra de mim?”? Eu teria de dizer que ela não existia em minhas recordações. Mas meu irmão me disse que ela queria muito falar comigo… Por quê? Quem é?
A voz forte, levemente rouca, audivelmente emocionada, relembrou:
– Você lembra? Há muitos anos, em Araranguá…
Final de uma tarde de verão, cerca de 22 anos atrás, Araranguá, cidadezinha ao sul de Santa Catarina. Eu e minha noiva chegávamos de Torres, litoral gaúcho, e caminhávamos em direção à casa onde ficaríamos hospedados. Não lembro ao certo porque estávamos ali; um evento qualquer na congregação da qual meu sogro cuidava, talvez. As ruas praticamente vazias, o calor forte e o peso do violão e das malas nos faziam andar com pressa. Mas havia mais gente naquelas ruas sem gente. Duas garotas caminhavam em nossa direção. Roupas estranhas, desleixadas. Melhor passar logo por elas.
Ao chegarem perto de nós, uma delas me disse:
– Ei, magro, faz um som aí pra gente!
Seria zombaria? Uma oportunidade? Eu não sabia tocar muitas coisas, e quando cantávamos juntos, comigo tocando, normalmente eu e minha noiva tínhamos alguns desentendimentos. Mas, naquele momento, entendemos imediatamente: Deus estava nos dando uma oportunidade.
– … você e a Janisse estavam caminhando, com um violão, na frente do Bradesco…
Sentamo-nos nas escadas do Bradesco. O sol já não batia tão forte. E dissemos a elas algo assim:
– Nós queremos que vocês prestem bastante atenção nessas músicas.
E começamos. Os céus nos deram harmonia, talvez não de vozes, mas de coração. Queríamos intensamente que elas cressem Naquele em que críamos.
– Se você está vivendo sem vontade,
venha para perto de nós.
E mostraremos a você
a felicidade e o amor de Deus.
Ele é maravilhoso,
é divino e é real.
Procura Nele o que você não tem!
Encontre o amor,
encontre o louvor,
encontre a paz, a paz.
As moças ouviam atentamente. Não havia deboche nem risadas. Apenas o universo todo parado com suas distrações para que o coração delas fosse atingido, para que as barreiras interiores fossem vencidas e Aquele maravilhoso de quem falávamos desafinadamente se revelasse a elas.
A segunda música:
– Deixa Jesus encher tua vida
com Seu Espírito e Seu amor,
encher teu coração de gozo e louvor.
Deixa Jesus cuidar das coisas
que te fazem infeliz,
e andarás do modo como a Bíblia diz.
Oh, Cristo, meu Cristo,
venha em mim morar.
Oh, venha e cante com toda
a alegria do teu coração,
renda tudo a Ele e tenha salvação.
A Ele dá tuas tristezas,
desilusões e tua cruz,
tudo entrega hoje em nome de Jesus.
Não lembro o que falamos.
– … Aquele foi o dia mais importante da minha vida. Nunca esqueci dele!
Eu também não.
Ouvimos suas confissões de pecados, ouvimos da ingenuidade de seu coração corrupto que desejava ser bom, ouvimos seu anelo interior por vida. Então, ali mesmo, as convidamos a orar conosco. Uma oração singela, que deveria ser feita de coração: “Senhor Jesus, eu Te recebo como meu Senhor e Salvador.” Pronto. Simples assim. E o maior milagre do universo se repetiu: pecadores condenados ao lago de fogo escaparam das prisões do diabo e se tornaram filhos de Deus.
– Téia! É claro que eu lembro! Lembro muito bem! Ao longo desses anos, muitas e muitas vezes contamos esse fato para muitas pessoas.
– Xico, estou firme no Senhor e já pude levar muitas almas a Jesus. E eu nunca esqueci de vocês. Desde aquele tempo sempre quis muito reencontrar você e a Janisse. Preciso falar com vocês. Quando vocês vêm aqui?
As lágrimas a impediram de continuar.
Que pergunta doce! Como se fosse simples e instantâneo vencer os milhares de quilômetros que nos separam. Mas esse reencontro valeria a pena. Os laços do Calvário, mesmo depois de 22 anos, permanecem fortes. Depois de tudo o que ela passou, de rejeição de irmãos ao divórcio, permanece firme Naquele que, numa tarde quente, a alcançou por instrumentos mal tocados. Que privilégio, que honra seria ver essa prova viva da fidelidade do Senhor.
Deus inundou minha quinta-feira de alegria e gratidão. Fui salvo de mim mesmo pela lembrança da salvação da Téia. E o desejo de atender a outros pedidos de “Ei, magro, faz um som…”, mesmo tendo abandonado o violão, foi reaceso no meu coração.
O Deus a quem sirvo é maravilhoso!
(Francisco Nunes, 19.11.05, Mogi das Cruzes)
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