“Quem há entre vós que tema ao Senhor e ouça a voz do Seu servo? Quando andar em trevas, e não tiver luz nenhuma, confie no nome do Senhor, e firme-se sobre o seu Deus” (Is 50.10).
Ouvir o Senhor, obedecer a Sua voz, e ainda andar nas trevas! Ou, colocado de outra maneira, andar nas trevas, e ainda temer a Deus e obedecer a Sua voz! Podem essas coisas coexistirem? O Espírito Divino escreveu por intermédio do profeta Isaías as palavras desse texto, de maneira que, assim como Isaías 50.10 permanece escrito, assim a resposta divina deve ser: “Sim!”.
Antes de tudo, precisamos dizer que o Senhor permite que Seus filhos às vezes passem por tempos de profundas trevas devidos aos assaltos de Satanás, com o intuito de trazê-los a uma fé pura em Sua Palavra, ainda que a própria experiência deles pareça ser contrária a ela.
Uma palavra para o oprimido
Estamos escrevendo para esses filhos de Deus, e não para aqueles que estão se regozijando na consciente presença de seu Senhor e em sua aceitação mediante o sangue. Muitos desses jamais pisaram as profundezas a que nos referimos aqui. Aos tais, nossa mensagem talvez não faça sentido.
Mas é para as pobres, torturadas, angustiadas almas, que sabem o que é lutar com espíritos perversos nos lugares celestiais, que nossa mensagem se destina. As trevas estão perto, trevas essas que podem ser sentidas; o escudo da fé quase lhes caiu da mão, e o brilho dos inflamados e grossos dardos lançados agilmente em sua direção pelo mal é tudo o que elas vêem. Elas não podem ter descanso à parte de Deus, porém parecem tê-Lo perdido. Nada é real para elas além das trevas.
Esse é um quadro belo? Para os outros pode até parecer, mas não para quem se encontra nessa situação. Nós, que o pintamos, sabemos por nossa própria experiência que não é. O diabo, que triunfaria em nossa agonia, também sabe que não é. Porém, ele não triunfará. “Ó inimiga minha, não te alegres a meu respeito; ainda que eu tenha caído, levantar-me-ei; se morar nas trevas, o Senhor será a minha luz” (Mq 7.8). Talvez até mesmo agora ele encontre você com os aleluias da fé, mas não de sentimentos, em seus lábios, enquanto você aponta para o sangue do Cordeiro.
“Eis que tudo quanto ele tem está na tua mão” (Jó 1.12), Deus disse a Satanás em relação a Jó. Mas apenas até certo ponto Satanás poderia cumprir seu desejo. Pobreza, desfalecimento, doença, acusações injustas dos amigos, e, aquilo de que tratamos aqui, trevas espirituais, tudo isso sobreveio a Jó. “Eis que se me adianto, ali [Deus] não está”, ele clama em sua angústia; “e torno para trás, não O percebo. Se opera à esquerda, não O vejo; se se encobre à direita, não O diviso” (23.8,9). No entanto, Deus ainda estava ali todo o tempo.
Três laços sutis
Parece haver três laços sutis do diabo, pelos quais as almas são levadas às trevas, que geralmente estão entrelaçados uns com os outros.
O diabo usa as próprias palavras de Deus para levar as almas para as trevas. Se ele as citou ao Mestre na tentação no deserto (Mt 4.1-11), quão pronto estará para empregar o mesmo método com os servos. Ele conhece bem o ponto fraco e a história de cada um que deseja derrubar. Para uma mente legalista, ele citará textos que a levarão à agonia da introspecção e de atos infrutíferos que são seu resultado. Vamos dar apenas um exemplo.
O diabo confunde Tiago 5.16 e outras passagens para fazerem significar que os pecados do passado, que estão debaixo do sangue, devem ser confessados a outras pessoas. Mas quem o faz procura em vão ter paz dessa maneira. A memória sempre trará novos fantasmas à consciência. Apenas o sangue de Jesus Cristo os removerá. Nenhum ato de humilhação diante dos outros, como essas confissões, terá proveito, pois o pecado foi contra Deus.
O rei Davi, convencido de ter quebrado o quinto e o sétimo mandamentos, foi constrangido a clamar: “Contra Ti, contra Ti somente pequei” (Sl 51.4). Dessas “obras mortas” de auto-humilhação, dessas penitências protestantes[1], seja limpo pelo sangue, assim como dos pecados que pensam ter sido expiados por ele. Usamos a palavra “expiação” com conhecimento de causa. A raiz do mal reside aqui: a alma não vê completamente o valor do sangue de Cristo. Ela não enxerga que cada pecado, cada parcela da velha e corrupta vida, foi sepultada em Sua cova, e que não temos o direito de desenterrar o que Ele ali colocou.
Isso nos leva a pensar no segundo laço.
O diabo usa o assunto da consagração para levar almas às trevas. É dito aos cristãos que “rendam tudo”, que “consagrem plenamente” a si mesmos a uma “entrega absoluta”. Novamente, o diabo dirige os pensamentos interiores dos que ouvem isso. Consciências escrupulosas são torturadas com questões quanto ao que deve ser “entregue”, e os resultados são com freqüência um estado de pesadelo espiritual.
Mas a graça de Deus vai muito mais longe que isso! É Deus que opera em nós o querer e o efetuar (Fp 2.13). “Consagrem-se ao Senhor.” Sim, mas consagrem-se no sentido espiritual. “Encham suas mãos”, encham-nas com Cristo, levem Cristo a Deus. Digam a Ele que não podem entregar tudo, nada mais do que podem fazer para serem abençoados. Digam a Ele que tudo tem de ser por graça, que sofrerão uma bancarrota espiritual à parte da graça, mas que se lançam à graça para fazerem o que não podem por si mesmos. Digam também que confiam Nele daqui por diante, para escrever Suas leis na mente para as conhecerem, e no coração para as cumprir. Digam que morreram Nele, que foram sepultados com Ele, que ressuscitaram com Ele, e agora, como vivos dentre os mortos, confiam Nele para que viva Sua vida de ressurreição por meio de vocês.
É graça ao longo de todo o tempo. Aprendamos a magnificar a graça de Deus. A cada novo vislumbre de nossa própria impotência para desejar ou fazer, tanto em relação à consagração como em tudo o mais, glórias à graça que se responsabiliza em fazer tudo, e tenhamos um Cristo novo para todas as nossas necessidades.
Agora, passemos para o terceiro laço.
O diabo usa as palavras de outros cristãos para levar as almas às trevas. Paulo disse que agora conhecemos em parte (1Co 13.12). O maior santo, ainda que tenha sido aperfeiçoado no amor, ainda é imperfeito no conhecimento. Ele conhece apenas em parte. Não é essa a razão pela qual às vezes um cristão atribulado na alma se torna em dor para um companheiro crente? Os outros não entendem o que fazer com uma cana trilhada que não deve ser quebrada (Is 42.3); e novamente a cena descrita no Cântico dos Cânticos é promulgada: “Acharam-me os guardas que rondavam pela cidade; espancaram-me, feriram-me” (5.7). Desse modo, o cristão é levado cada vez mais para as trevas.
Existe purificação!
Sim! Existe purificação! Ouse crer que, não importando o que seja, aquilo que desvie sua visão do amor de Deus não é Dele. Ouse crer que tudo o que minimiza Sua graça não é Dele. Ouse crer que o amor de Deus é para você. Ouse crer que a graça de Deus é para você. Agora mesmo, nas densas trevas, creia nesse amor e nessa graça. Abandone as idéias distorcidas sobre Ele que estiveram em curso pela malícia de Satanás. Erga o escudo da fé uma vez mais, e diga como Jó: “Ainda que Ele me mate, Nele esperarei” (13.15), e louve a Deus. Sim, louve-O agora. Não espere até que as trevas passem para louvá-Lo. O caminho para sair delas, e o caminho para os muros da salvação, é pelos portões do louvor. “Aquele que oferece o sacrifício de louvor Me glorificará; e àquele que bem ordena o seu caminho eu mostrarei a salvação de Deus” (Sl 50.23).
[1] A autora se refere a fórmulas litúrgicas de confissão pública de pecados usadas em certos cultos protestantes. Segundo ela, essas práticas são, elas mesmas, as “obras mortas” das quais o penitente precisa ser limpo pelo sangue de Cristo. (N. do R.)