Há mais de cinqüenta anos, quando eu era ainda um jovem servo de Cristo, fiquei muito preocupado com a condição da Igreja naquela ocasião. O slogan de Keswick1, “Todos um em Cristo”, era quase desconhecido tanto em princípio como na prática. A pretensão clerical não tinha recebido o duro choque que sofreu alguns anos mais tarde, por ocasião do avivamento irlandês. O mundanismo, essa armadilha constante para os filhos de Deus, dominava. O sectarismo, o clericalismo e o mundanismo na Igreja eram uma carga real para mim.
Nessa ocasião fiquei conhecendo alguns cristãos devotos2, que se reuniam de modo bem simples, e, segundo meu parecer, conforme o padrão bíblico de adoração e comunhão. Eles partiam o pão no “primeiro dia da semana” e recebiam todos os que lhes davam motivos de crer que eram realmente filhos de Deus, sãos na fé e piedosos na conduta. Não tinham uma classe distinta de ministros, embora fossem gratos por todos aqueles que o Senhor qualificava para tal e usava na “obra do ministérios para edificação do Corpo de Cristo”. Eu havia encontrado o que procurava. Fui reconhecido como discípulo, pregador do Evangelho, segundo minha medida, e logo recebido como irmão em Cristo.
Descobri que havia muito o que aprender. Essas pessoas felizes, com pouca pretensão, estavam vivendo verdades das quais eu conhecia pouco ou nada. A salvação plena no Cristo ressurreto, com Quem eles eram um pelo Espírito Santo que neles habitava, a chamada distinta e especial da Igreja como Corpo e Noiva de Cristo, a esperança real e diária da Sua volta, o lugar importante e soberano de Israel na Palavra e caminhos de Deus e outras verdades semelhantes eram seu alimento e gozo diários. Tive o prazer de participar com eles dessas alegrias e de ver meu coração ligado mais intimamente a Cristo Jesus, meu Senhor. O que aprendi de Deus naquela ocasião eu guardo ainda mais firmemente. Seria um dia nublado e negro encontrar-me sem uma das verdades que então alegraram meu coração.
Os anos passaram e, em meio a muitas fraquezas e falhas, minhas convicções com respeito a essas verdades foram fortalecidas e meu prazer nelas aumentou. Mas, pouco a pouco, descubro que o sectarismo havia me seguido onde eu pensava estar protegido dele, e que, em certa medida, ele havia tomado posse de mim. O diabo é sutil, e nós, ai! somos propensos à carnalidade e a andar “como homens” (1Co 3.4, grego), nos tornando assim presa fácil para o inimigo de Cristo que nos leva a pensar que estamos servindo a Ele ou, então, a rejeitar e criticar aqueles que “não nos seguem” (Lc 9.49). João, sem dúvida, julgava-se zeloso por seu Senhor, enquanto seu zelo carnal tinha o “nós” como alvo.
Mesmo depois de toda a verdade de “Cristo e a Igreja” ter sido revelada, havia aqueles que fizeram de Cristo a cabeça de um partido rival aos de Pedro, de Paulo e de Apolo. Ambos os casos, eram, na verdade, muito sutis. João poderia ter dito corretamente: “Ele deve seguir a Cristo juntamente conosco, que somos Seus apóstolos escolhidos.” E o partido em Corinto poderia ter respondido: “Certamente é correto sermos de Cristo”. Mas a resposta do Senhor a João e a pergunta do Espírito Santo foi: “Está Cristo dividido?” Isso mostra que a carne (e portanto Satanás; veja Mt 16.23) estava operando em ambos os casos. Foi em 1884 que escrevi um folheto no qual eu reclamava para aqueles com quem eu me reunia para adoração a exclusividade de estarem reunidos para o nome do Senhor Jesus. Que carnalidade coríntia! Dois anos mais tarde, confessei publicamente meu grave erro. Mas agora que o tumor se espalhou e os termos que o encerram receberam de alguns distritos a aprovação para uso habitual, sinto que uma retratação mais categórica se faz necessária, juntamente com um sério protesto contra a apropriação por parte de apenas uns poucos daquilo que é privilégio de todos os filhos de Deus.
Permitam-me apresentar dois exemplos desse título denominacional: (1) Tenho visto repetidamente nos últimos anos cópias impressas de uma “carta de recomendação” a ser preenchida quando necessário. Seu conteúdo é mais ou menos assim: “Os santos reunidos para o Nome do Senhor Jesus em… recomendam etc.”. A carta é endereçada aos “santos reunidos para o Nome do Senhor Jesus em…”; (2) Um periódico, dando relatórios da evangelização dos distritos do sudoeste, menciona que ele é feito “em nome das assembléias de cristãos reunidos no Nome do Senhor Jesus”.
Existem, então, “cristãos reunidos no Nome do Senhor Jesus” distintos dos cristãos que não se reúnem assim. Esse é o título denominacional deles. São formados em assembléias que levam essa denominação distinta. Não são mais “reuniões” de cristãos que rejeitam todos os nomes ou títulos que os distinguem dos outros santos. (Essa foi nossa glória em outros tempos.) Eles encontraram um nome para competir com todos os outros nomes, tais como os de Paulo, Apolo e Cefas: são cristãos reunidos no nome do Senhor Jesus, a escola (ou classe) coríntia de Cristo. Meus irmãos, isso é carnalidade!
Para mim, “o antigo é melhor”. A “escola (ou grupo) de Cristo”, as “assembléias reunidas no nome do Senhor Jesus” eu não posso suportar. Mais precisamente, deixem que eu seja um com todos os que em todo lugar invocam o nome de nosso Senhor, Jesus Cristo, Senhor deles e nosso (1Co 1.2).
Poderei ser interrogado: “Você não está reunido para o Nome de Cristo?” Minha resposta: “Nem sempre, nem distintivamente.” Eu não estou “reunido” enquanto escrevo estas linhas. Sou sempre uma ovelha do único rebanho de Cristo; algumas vezes reunido com outros para adoração e comunhão, e por isso sempre, graças a Deus, no nome de Cristo! Permita-me rogar ao leitor que considere bem Mateus 18.20, dentro do seu contexto, sem atribuir qualquer significado que não esteja nele. Imaginemos um grupo de cristãos zelosos (presbiterianos, episcopais, batistas, metodistas, “amigos” e aqueles que rejeitam todos os títulos que dividem) que consideram que um diploma tende a roubar deles a liberdade que desejam há tanto tempo, e que ele é a cunha fina que abre a passagem para a mulher montada na besta escarlate. Esses homens, podemos supor, não têm liberdade para se unir em resistência passiva ou para interferir no governo do mundo, mas sentem que, se suas orações “por todos os homens” são necessárias, agora é o tempo. Eles estão “reunidos” e “concordam” nas súplicas ao trono da graça celestial. Em nome de quem eles estão reunidos? Só existe uma resposta, pois só existe um nome acessível diante daquele trono. Foi esse nome que Elias invocou no monte Carmelo por um Israel não-dividido; foi o nome Dele, que agora conhecemos como nosso Senhor, Jesus Cristo, o único nome que assegura toda bênção pedida para toda a Igreja de Deus. Oh, que eu esteja sempre reunido, quando reunido, naquele nome! E aquilo que valorizo tanto para mim não seja recusado por mim a qualquer santo de Deus.
O uso atual desse título discriminativo por uma parte da Igreja é comparativamente recente. E o “reunidos” também é recente? Nos tempos modernos os cristãos não foram acostumados a se reunir do modo referido, antes da segunda quarta parte do século passado. Não havia então reunião no nome de Cristo entre os primeiros séculos de nossa era, e, digamos, 1826 [quando os irmãos de Plymouth começaram a se reunir – NT]? Certamente que não se poderia encontrar nenhum cristão que afirme isso. A Igreja perdeu logo no início sua esperança: a volta do Noivo Celestial, e, com ela, a separação do mundo. Em pouco tempo provou sua infidelidade ao seu Senhor crucificado e foi arruinada quanto ao seu testemunho e responsabilidade. O Senhor deixou-se ficar sem “dois ou três” reunidos em Seu nome durante todos esses séculos? Os santos se reuniam na época da Era das Trevas, mas no nome de quem? Alguns deles “andaram vestidos de peles de ovelhas e cabras, necessitados, aflitos e maltratados” (Hb 11.37). Estes, quando levados às covas e cavernas, oraram juntos? E no nome de quem? Se fosse no nome de Júpiter, Astarote ou Maria, eles teriam sido libertados. Mas os que confessavam o Nome e deram a vida por Ele como mártires, deles era a comunhão dos Seus sofrimentos (Fp 3.10).
Regozijando-se por participar da Sua rejeição, suas orações oferecidas em culto e freqüentemente interrompidas pelo fogo e pela espada subiram como incenso suave em o Nome e oferecidas pela mão sacerdotal Daquele que morreu, mas está vivo de novo!
Reunir-se em Seu nome é um privilégio sem preço! É precioso demais para ser outorgado exclusivamente a qualquer dos fragmentos resultantes da quebra do testemunho, que foi verdadeiramente a obra Daquele que é “maravilhoso conselheiro e excelente na obra”. A nós pertence a vergonha e a confusão de rosto, pelo modo como temos cuidado da Sua obra.
Diga-me: o reunir-se no nome de Cristo pertence àqueles assim chamados de comunhão aberta ou aos de comunhão fechada? Os líderes de cada grupo não reclamam esta prerrogativa para si e a negam aos outros? Ela deve ser entregue a qualquer um dos inúmeros corpos nos quais (ai!) o lindo testemunho uma vez levantado por Deus para a glória de Cristo e os privilégios da Igreja que é Seu Corpo foi dividido? Se a teoria que serve de base para esse título denominacional for verdadeira, apenas um desses corpos pode ter o direito de adotá-la. E qual é ele?
Meus irmãos, e qualquer entre vocês que temem a Deus, busquemos a graça para lançar fora, aos pés da cruz, nossas vãs pretensões e assumir nosso lugar em humilde confissão diante de Deus. Nosso orgulho tem entristecido e feito tropeçar muitos que são caros a Deus. Muitos deles se desviaram e seus filhos também, quando poderiam estar andando agora entre nós no conforto do Espírito Santo. Está escrito em verdade eterna: “DEUS RESISTE AO SOBERBO!” Ai do homem ou do grupo a quem Deus resiste!
Se a metade da energia que tem sido gasta para produzir e manter altas reivindicações eclesiásticas tivesse sido dedicada ao Senhor para fazer veredas direitas para nossos pés (Hb 12.13), para andarmos em humildade e fidelidade, dando frutos para Deus, buscando zelosamente a bênção para toda a família da fé e ganhando almas para Cristo, que colheita de bênçãos teria sido ceifada hoje!
É de se temer que muitos entraram num caminho realmente de fé, sem o quebrantamento de espírito tão essencial para trilhar tal caminho. O que diríamos de um bêbado ou de um homem desonesto que dissesse que estava convencido da sua tolice e que se dispunha a virar uma nova página, isto é, a viver uma nova vida? Não ficaríamos tristes com sua justiça própria? Sem arrependimento para com Deus? Sem necessidade do sangue expiador ou do Espírito vivificante! O que diremos então de um cristão que está convencido de que seu caminho não tem sido de acordo com a Palavra de Deus, e, portanto, não agradável a Ele, o qual, de igual modo, virou uma nova página e está determinado a andar segundo o que se encontra na Escritura? Sem ervas amargas? Sem confissão? Não é isso a própria essência da justiça própria? O primeiro passo é o do orgulho. E o curso subseqüente? Não temos aqui a explicação para o orgulho e auto-satisfação encontrados em nosso meio?
“ELE PODE HUMILHAR OS QUE ANDAM NA SOBERBA” (Dn 4.37)
1 Referência à Conferência de Keswick, movimento que reuniu os mais sérios e profundos pregadores da sua época.
2 Trata-se dos “brethren” (irmãos), grupo de cristãos que não tomava sobre si nenhum outro nome que não o do Senhor. Sua importância e herança para a história da Igreja ainda não são totalmente conhecidas! Um pouco sobre eles pode ser encontrado a partir da pequena biografia de John Nelson Darby.