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Samuel Rutherford Sofrimento Testemunho

Cartas de Samuel Rutherford (9)

Para o Terratenente de Carleton [1]

Aberdeen, 14 de março de 1637

Eu tenho Alguém lá em cima que não me esquece; Ele cresce em Sua bondade. Aprouve à santa Majestade Dele tirar-me do púlpito e me ensinar muitas coisas, em meu exílio e prisão, que até então eram mistérios para mim, tais como:

Crescente percepção do amor de Deus

1. Eu vejo Seu amor e Sua bondade sem limites, e como meus ciúmes e delírios, quando da minha entrada neste forno, eram tolos e ousados a ponto de dizer a Cristo, que é a própria Verdade, em Seu rosto: “Tu mentiste”. Eu quase perdi o controle; fiquei imaginando se aquilo era de Cristo ou não; pois a bruma e a fumaça de meu coração perturbado me fizeram mal interpretar meu Mestre, Jesus. Minha fé estava fraca, e a esperança, fria e congelada; e meu amor, que causou ciúmes, tinha algum calor e fumaça, mas não tinha nenhuma chama. Estava eu, no entanto, procurando algo de bom no antigo clamor de Cristo a mim, embora eu tivesse perdido todos os meus direitos. Mas o tentador estava demasiadamente sobre minhas opiniões, e ainda estava soprando a brasa. Ai de mim!

Antes eu não sabia bem com que habilidade meu Intercessor e Advogado, Cristo, me defendia e me perdoava de tais tolices. Agora Ele voltou à minha alma “com cura em Suas asas” (Ml 4.2); e em nada estou em falta com Cristo agora, pois Ele me recompensou acima da medida, por Sua presença, a dor que sofri por esperar, e qualquer perda menor que suportei por meu testemunho contra os males feitos a Ele.

Eu suponho que tenha sido doloroso para meu Senhor esconder-se por mais tempo. De certa maneira, Ele estava desafiando Sua própria crueldade e se arrependeu de Suas tristezas. E agora, o que mais posso querer eu na Terra que Cristo dê a um prisioneiro? Oh, como Ele é doce e amável agora! Ai de mim! Porque não tenho ninguém para me ajudar a erguer meu Senhor Jesus a Seu trono, sobre toda a Terra!

Resignação

2. Fui agora trazido a alguma medida de submissão, e resolvi esperar até ver o que meu Senhor Jesus fará comigo. Eu agora não ouso apelidar, ou dizer uma palavra contra a Providência de meu Senhor, que tudo vê e que a tudo assiste. Eu vejo que a Providência não corre com rodas quebradas; mas eu, como tolo, entalhei uma Providência para meu próprio lazer, para morrer em meu ninho, e dormir quieto até meus cabelos se tornarem grisalhos, e ficar no lado ensolarado da montanha, em meu ministério em Anwoth. Mas agora nada tenho a dizer contra uma lareira emprestada e à casa de outro homem, nem às tendas de Quedar, onde vivo, sendo afastado para longe de meus conhecidos, de meus entes queridos e de meus amigos. Vejo que Deus tem o mundo sobre Suas rodas, e o modela na roda como o oleiro faz com o vaso sobre a roda. Eu não ouso dizer que há qualquer movimento desordenado ou irregular na Providência. O Senhor é quem a faz. Eu não irei à lei com Cristo, pois nada ganharia com isso.

Morte para o mundo

3. Tenho aprendido uma mortificação maior, e não me lamento por isso nem procuro sugar os peitos secos do mundo. Não; meu Senhor encheu-me com tantas delícias que eu me sinto como o conviva de um banquete que dele está cheio, cuja alegria não é simples.

Por que deveria eu cair de joelhos e adorar o grande ídolo da humanidade: o mundo? Eu tenho um Deus melhor do que um deus de barro.

Não; agora, no lugar em que estou colocado, eu não me importo muito em dar a este mundo o resgate de minha vida – entregá-la por pão e água. Eu sei que este mundo não é o meu lar, nem a casa de meu Pai; ele não passa de estrado dos pés de Deus, um lugar árido e vazio. Que os bastardos o tomem; espero nunca pensar em me associar a eles para ter honra ou riquezas. Não, agora eu digo rindo: “Tu és loucura”.

Tentações

4. Penso ser a pura verdade que a maior tentação fora do inferno é viver sem tentações. Se minhas águas ficassem paradas, elas apodreceriam. A fé é melhor quando se enfrentam o vento e a fria tempestade de inverno. A graça murcha sem adversidades. O diabo não passa de um mestre-esgrimista de Deus, para nos ensinar a manejar nossas armas.

Enfermidades

5. Eu não sabia o quanto eu era fraco até agora, quando Ele se esconde, e eu preciso procurá-Lo sete vezes ao dia. Eu sou um galho seco e murcho, e um pedaço de carcaça morta, ossos secos, e incapaz de pisar em uma palha. Os pensamentos sobre meus antigos pecados me são como intimações da morte; e o caso de meu falecido irmão me atingiu o coração. Quando minhas feridas estão fechando, qualquer pequena irritação as faz sangrar novamente. De tão fina pele é minha alma que eu penso que ela é como a pele sensível de um homem que nada pode tocar; tu percebes de quão perto eu teria de alvejar o prêmio, se a Sua graça não fosse suficiente para mim.


[1] John Fuflarton, Terratenente de Carleton. Carleton ficava na paróquia de Borgue, não muito distante de Anwoth.

 

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Perseverança T. Austin-Sparks

Capítulo 5: Jordão, uma mudança de posição

Leitura: Josué 3; 4.1-9.

Essas passagens que lemos a respeito da travessia do Jordão são uma perfeita apresentação do que o Senhor está nos falando nessa série de estudos. À medida que lemos, deve ficar bem claro para nós que esse ponto representou um momento muito crítico na história daquele povo: a travessia do Jordão representou a conclusão de um longo processo de preparação e o início de uma nova e maravilhosa fase em sua vida. Além disso, tomando como base o suporte abundante provido pelo Novo Testamento, vemos que esse momento foi uma representação da vida dos que são ou viriam a ser filhos de Deus em nosso tempo. O Novo Testamento retoma esse incidente na vida de Israel e declara que foi um tipo ou uma figura, tendo seu sentido espiritual verdadeiro e permanente atrelado ao cristão ou ao futuro cristão.

De modo que nós, que vivemos no tempo e na situação atuais, nos posicionamos exatamente nesta parte do livro de Josué. Ela se aplica a nós. Não estamos apenas lendo algo que ocorreu tantos séculos atrás, meramente como uma idéia a respeito de algo que aconteceu na vida dos filhos de Israel, quando eles saíram do deserto e entraram na terra de Canaã. Estamos lendo a partir dali até os dias de hoje. Estamos recapitulando aquele evento e afirmando: “Isso não aconteceu outrora, acontece agora; hoje as coisas são assim, ou pelo menos deveriam ser”. O maravilhoso é que aquele fato pode acontecer agora, neste exato momento, em nossa experiência. A ordem de Josué: “Santificai-vos, porque amanhã fará o Senhor maravilhas no meio de vós” [Js 3.5], nos é possível agora, pode ser atualizada para nossos dias. Portanto, vamos meditar nisso, pois estamos atentos a tudo que consideramos nos capítulos anteriores: o pioneirismo do caminho celestial.

O objetivo em vista nessa transição

Em primeiro lugar, lembremos do objetivo, o objeto em vista nesta transição, na travessia do Jordão. Já recebemos a interpretação espiritual desse incidente. Ele indica uma ilustração da vida em ressurreição e em união celestial com Cristo. Esse é o objetivo para o qual Deus chamou Seu povo. É precisamente para isto que o Senhor nos chamou, por Sua graça: para uma união em ressurreição com Cristo, união com Cristo baseada na vida de ressurreição. E não apenas isso, mas também uma união com Cristo em Sua vida celestial, por meio do Espírito Santo: unidade com Ele como no céu, e tudo o que ele representa.

Esse é o objetivo, o mínimo irredutível da vontade de Deus para Seu povo. Se não entramos em uma união com o Senhor Jesus em ressurreição, não chegaremos à união alguma. Isso quer dizer que nada sabemos realmente do sentido e do valor prático de sermos “unidos ao Senhor”. Muitos sabem algo do que é estar em união com um Cristo vivo, mas talvez saibam muito pouco e não o suficiente a respeito da união celestial com Ele e todas as implicações disso. Até que cheguemos a essa experiência, não atingimos o objetivo da salvação, nem chegaremos a satisfazer Deus por ter-nos salvo. Devemos ver o que isso significa.

Transição

(a) Para a autoridade de Cristo

Tornando nosso objeto bem claro diante de nós, examinaremos mais de perto essa transição, que teve dois aspectos. Em primeiro lugar, ela representou uma transição da autoridade das trevas para a autoridade de Cristo. Até aquele ponto, essas pessoas ainda estavam debaixo a autoridade das trevas, apesar de terem deixado o Egito há muitos anos. O fato é que, embora tivesse decorrido um tempo considerável desde que saíram do Egito, o Egito acabava de sair delas. É possível que sejamos salvos do mundo de maneira exterior e ainda assim não termos sido salvos dele de maneira interior. O Egito preservou uma força dentro do povo durante os anos de deserto. Aquela geração constantemente se voltava para o Egito. “Quem dera tivéssemos morrido por mão do Senhor na terra do Egito” (Êx 16.3). “Oh, que tivéssemos ficado no Egito!” Vemos que o Egito ainda estava no interior deles exercendo um domínio; eles ainda sonhavam e imaginavam que encontrariam satisfação ali. Eles não haviam chegado completa e totalmente àquela emancipação que conduz a um estabelecimento claro, de uma vez por todas, de que não existe absolutamente nada mais naquele mundo; o apenas pensar que poderia haver é repugnante e odioso, representa desolação. Vemos que eles não tinham chegado a esse ponto. Isso acontece mesmo com os cristãos, quando, às vezes, debaixo de tensão e pressão, pensam que estariam melhor, que teriam um tempo mais fácil se voltassem para o mundo. Mas o Jordão resolveu isso. O que quer que tenha permanecido os espreitando por todos os anos do deserto acabou no Jordão. Essa autoridade, esse controle interior, foi finalmente quebrado no Jordão. Aquela foi uma transição total da autoridade das trevas para a autoridade de Cristo, tipologicamente falando.

Vou repetir mais uma vez algo que já disse muitas vezes:

É possível que tenhamos e conheçamos a Cristo como nosso Salvador sem conhecê-Lo como nosso Senhor.

Ou seja, podemos conhecê-Lo apenas como nossa fonte de salvação: como Salvador da condenação, do juízo vindouro, do inferno, e podemos até receber algumas bênçãos positivas desse Salvador resultantes dessa posição. Oh, mas existe ainda tanto conhecimento possível e real diante de nós! Temos um intervalo muito longo entre o êxodo e o eisodos [1], entre a saída e a entrada; existe um grande intervalo entre essas duas coisas. São tantos os cristãos que participam de uma convenção e aceitam Jesus Cristo como Senhor apesar de serem salvos há tanto tempo, para então descobrir que isso podia ter ocorrido há muito tempo, que o intervalo que se passou entre essas duas coisas foi longo demais. O Jordão nos fala de encontrar Cristo como Senhor, não só como nosso Salvador do julgamento e da morte – o Jordão representa tudo que envolve Seu senhorio. Enquanto Ele não for o Senhor, não começaremos a descobrir as riquezas insondáveis que Nele estão, como vemos nas riquezas da terra de Canaã.

(b) Para uma vida frutífera no Espírito

O Jordão também representou a transição da desolação e da esterilidade da natureza para a fecundidade da vida no Espírito. Aquelas pessoas viveram muito tempo em si mesmas; a vida do ego, a vida natural, havia se estabelecido. Vemos como seus interesses pessoais, considerações sobre vantagens ou desvantagens ocuparam muito espaço em sua perspectiva de vida. Se as coisas alinhadas ao propósito de Deus não fossem fáceis, mas contrariassem a natureza, então começavam as murmurações. Quando tudo corria bem, era natural o transbordar de alegria. Tudo isso se baseava na vida natural. Era natural se alegrar quando as coisas eram fáceis. Da mesma forma, era esperado resmungar porque as coisas estavam difíceis. Essa era a vida natural, e como o deserto foi árido para eles, um deserto exterior e interior. O Jordão daria fim a essa vida, representando uma transição daquela vida estéril e desolada na carne, na natureza, para uma vida no Espírito.

Aquele Homem que confrontou Josué como representante de Deus, era, acredito eu, ninguém menos que o Espírito Santo, o Espírito de Deus, o Capitão do exército do Senhor. Ele é aquele “Príncipe do exército do Senhor” (Js 5.14), como a Si mesmo se denominou. Quando o profeta usou estas palavras que tanto citamos ― “Não por força nem por violência, mas sim pelo Meu Espírito, diz o Senhor dos Exércitos” (Zc 4.6) ―, o sentido literal seria: “Não por um exército […] mas pelo Meu Espírito”. Aqui está o Capitão do exército do Senhor, o Espírito, e a partir desse ponto Ele assumirá o comando, e como a situação será diferente! Será uma vida no Espírito. Sim, agora teremos fecundidade; não será uma vida sem escorregões e erros ― eles acontecem ―, mas será uma vida ajustada ao Espírito. Essa será uma vida de progresso, de expansão, de constante enriquecimento, uma vida de entrada na herança. “Todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo” (Ef 1.3). Da esterilidade da natureza para a fecundidade da vida no Espírito: esse foi o significado da transição do Jordão.

O grande Pioneiro vai à frente

Chegamos, então, ao ponto central de tudo: o grande Pioneiro ― aqui registrado com letra maiúscula ―, o grande Pioneiro representado pela arca do Senhor de toda a terra. Mais uma vez reforço que essa não é uma interpretação imaginativa. O Novo Testamento garante, por meio de afirmação definida, que aquela arca era um tipo do Senhor Jesus. Não vamos parar nesse momento para provar isso nas Escrituras, mas é um fato. A arca tipifica Cristo. A grande transição estava prestes a ocorrer. Como isso aconteceria? “A arca da aliança do Senhor de toda a terra passa o Jordão diante de vós” (Js 3.11). “Haja, contudo, entre vós e ela, uma distância de dois mil côvados” (v. 4). Não podemos estimar exatamente essa medida porque temos três diferentes côvados registrados na Bíblia, e não sabemos qual deles foi usado em Josué (e, ainda que soubéssemos, não saberíamos sua medida exata); mas tomando por base a menor medida do côvado para estimar a distância entre a arca e o povo sabemos que era maior, muito superior a trezentos metros.

Por que essa distância? “Mantenha essa distância; não se aproxime; preserve aquele espaço poderoso entre você e a arca”; ou poderíamos dizer: “Entre você e Ele”? Por que esse grande espaço?

(a) A grandeza de Cristo em Sua morte

Isso não nos fala, em primeiro lugar, da grandeza de Cristo em Sua morte? Pois está escrito, como explicação entre parênteses: “Porque o Jordão transbordava sobre todas as suas ribanceiras, todos os dias da ceifa” (v. 15), e aquele foi o momento da travessia. “O Jordão transbordava sobre todas as suas ribanceiras” em uma grande inundação que se espalhava em todas as direções além de seu canal, e sabemos muito bem que isso fala das águas da morte e do julgamento. Fala da Cruz do Senhor Jesus. O Senhor permanece bem ali, no dilúvio, na inundação avassaladora do poder da morte. Ele permanece ali, bem no centro dela, em toda a sua profundidade, comprimento e largura; tragando tudo.

Quão grande é Cristo na morte! A morte não é pouca coisa: é uma inundação poderosa e avassaladora. O Senhor sondou e mediu suas profundezas e, ao morrer, destruiu a morte. Ali Ele está. Ele permanece na própria morte. A morte perdeu seu poder, a morte foi afastada, a morte foi proibida de prosseguir. Essa descrição é maravilhosa. Enquanto de um lado vemos a poderosa parede de água erguida, do outro lado, descendo para o Mar Morto, tudo o que falava de morte havia secado. Quão grande é Cristo na morte! Incomparável! Ele permanece sozinho ali. Ninguém mais poderia fazer isso.

(b) A exclusividade de Cristo em Sua morte

Vemos ali também a exclusividade de Cristo. Não apenas a grandeza, mas também a exclusividade de Cristo na morte. “Não havia ninguém mais que fosse bom o suficiente”. Oh, que blasfêmia comparar a morte, por mais heróica que seja, de um soldado que dá a vida pela pátria, com a morte de Jesus! Não. Qualquer heroísmo que possa existir ― e pode haver muito a ser honrado, valorizado e apreciado ―, por maior que seja o heroísmo e o sacrifício dos homens, “não chega nem perto” de dois mil côvados do sacrifício do Senhor. Existe um espaço ali. Deus estabeleceu essa distância e disse:

“Isso é inviolável: Ele está à parte, nada pode se aproximar desta poderosa obra de Jesus Cristo. Ninguém mais o fez e ninguém poderá fazê-lo; isso deve ser feito só por Ele.”

(c) A solidão de Cristo em Sua morte

Sozinho. Veja a solidão daquela figura ― esquecendo por um momento dos levitas que carregavam a arca nos ombros, pois a descrição tem como foco destacar a arca, não eles ―; vamos contemplá-la de longe, como aconteceu ali. O espaço era grande. Naquela distância considerável de trezentos metros seria como contemplar um pequeno objeto sozinho, um pequeno objeto solitário ali. Quão sozinho o Senhor esteve em Sua morte! “Todos os discípulos, deixando-O, fugiram” (Mt 26.56). Ele disse: “Vós […] me deixareis só” (Jo 16.32), e eles de fato o fizeram. E, então, a dor mais profunda de todas: “Deus Meu, Deus Meu, por que Me desamparaste?” (Mt 27.46). Sua solidão na morte é retratada por aquela arca. Contemple-O: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo 1.29).

Por que essa solidão? Bem, “não havia ninguém mais que fosse bom o suficiente para pagar o preço do pecado”. Não havia ninguém comparável em excelência e grandeza, que fosse capaz de suportar o pecado do mundo. Ele foi o único apto a fazer isso, e isso O estabeleceu nessa extrema solidão. Quem suportaria saber, em plena consciência, o que é ser totalmente abandonado por Deus? Graças a Deus, nunca precisaremos saber disso. Não nos é necessário ter a consciência de que Deus nos abandonou, nem por um momento. Na verdade, não seríamos capazes de sobreviver a isso. Mas o Senhor o experimentou. Foi necessário que Ele, o Filho de Deus, passasse por isso. Esse foi o preço que Ele pagou como o Pioneiro ― o Pioneiro da nossa salvação, o Pioneiro da nossa herança, o Pioneiro da nossa possessão de tudo aquilo para o que Deus nos chamou pela união com Ele. O Pioneiro precisou pagar o preço dessa solidão definitiva e absoluta. Isso não reflete algo do suspiro, do brado, de Isaías 53? Sim, Ele foi o único naquela posição, ferido por nossas transgressões, ferido de Deus e oprimido, entregando a alma feita por Deus como oferta pelo pecado; mas Ele “verá Sua posteridade, prolongará Seus dias” [v. 10], e dessa solidão surgirão, em uma multidão poderosa, os filhos de Sua orfandade (49.20).

Identificação com Cristo pela fé e pelo testemunho

A próxima coisa, e a palavra final para o momento, é a identificação com Ele pela fé e pelo testemunho. Não, não podemos entrar nisso verdadeira e literalmente. Graças a Deus, isso não é necessário. Quero dizer que não somos chamados a passar por tudo o que Ele passou, mas somos chamados a assumir uma posição de fé, atestando isso de uma forma muito prática. Não seria apenas entrar e tomar tudo como nosso, mas reconhecer que só é nosso por causa Dele, só é nosso Nele. Existe uma identificação de vida com Ele.

Essa identificação pela fé e pelo testemunho é vista no mandamento de Deus quanto ao que devia ser feito. Pedras deveriam ser tiradas do leito do Jordão, daquele lugar onde tudo havia sido conquistado pelo grande Pioneiro da redenção e ― observe ― por doze homens, “de cada tribo um homem” (Js 4.2). Com efeito, cada homem de cada tribo está representado ali, tornando isso uma questão pessoal para cada um. “Cada um levante uma pedra” [v. 5]. Tudo deveria ser pessoal: um testemunho pessoal, uma apropriação pessoal de tudo aquilo, algo a ser tomando sobre os ombros, posicionando-nos debaixo de tudo o que isso significa: nosso compromisso com o Senhor Jesus, com Sua morte, com o fato de que Nele morremos; nosso compromisso com Seu sepultamento. “Fomos sepultados com Ele” (Rm 6.4). Então, temos nosso compromisso com Sua ressurreição. As pedras do Jordão significam nossa união com Ele na morte e no sepultamento; as pedras tiradas do Jordão e tomadas como memorial do outro lado representam nossa união com Ele na ressurreição.

Mas deve haver uma transação prática, pessoal e individual. “Cada um levante uma pedra.” Você tomou a pedra nos ombros, de forma pessoal? Você já fez isso de modo definitivo? Sabemos como o apóstolo Paulo diz que o testemunho é prestado (isso nos é muito familiar). “De sorte que fomos sepultados com Ele pelo batismo na morte; para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos, pela glória do Pai, assim andemos nós também em novidade de vida” (Rm 6.4). Temos essa história de forma clara e simples. Sim, pelo batismo declaramos que tomamos a pedra sobre os ombros, assumimos essa responsabilidade, estamos definitivamente comprometidos com tudo isso.

Deixe-me repetir: não fomos salvos apenas do julgamento, da morte e do inferno, não fomos salvos apenas de, mas para tudo aquilo que está no coração de Deus. As coisas não se relacionam mais com aquilo que vamos obter, como isso vai nos afetar; essa é a velha tirania; nossas circunstâncias não são mais pessoais. Agora o que importa é o que o Senhor deseja, o que O satisfaz e glorifica. Essa é a paixão de um coração verdadeiramente comprometido; e, quando Ele nos ajudar nesse sentido, nos transportando acima da cerca do interesse próprio, dos interesses mundanos, do governo carnal, para uma terra onde tudo está relacionado ao Senhor e ao que Ele deseja, teremos encontrado a terra que mana leite e mel, nós teremos encontrado as riquezas de Cristo, nós estaremos debaixo de um céu aberto. Grande parte de nossa vida e obra cristã é egoísta. Enquanto não formos tirados da esfera do ego e tenhamos sido movidos para o Senhor, de forma plena e completa, nada saberemos a respeito da vida celestial e sua plenitude espiritual. É isso que está representado aqui.

Que o Senhor nos encontre a todos fazendo esta grande transição, esta declaração: “Cada um levante uma pedra”. Que o Jordão, com tudo o que ele representa, repouse sobre nossos ombros.


[1] A palavra grega eisodos representa uma entrada, ao contrário de êxodos, que significa “saída”. A palavra é usada em Hb 10.19; 2Pd 1.11; 1Ts 1.9; 2.1.

Para ler o capítulo 1, clique aqui; capítulo 2, aqui; capítulo 3, aqui; capítulo 4, aqui.

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Samuel Rutherford Sofrimento Testemunho

Cartas de Samuel Rutherford (8)

Para William Livingstone [1]

Aberdeen, 13 de março de 1637

Conselho a um jovem

Eu me regozijo ao ouvir que Cristo afugentou tuas paixões da mocidade, e que estás, desde cedo pela manhã, alinhado com tal Senhor; pois um jovem é freqüentemente uma casa pronta para a morada do diabo. Sê humilde e grato pela graça, e julga, não tanto pelo peso, como pela verdade. Cristo não jogará água em tua brasa fumegante; Ele nunca apagará uma vela que foi acesa pelo Sol da Justiça.

Eu te recomendo oração e vigília com respeito aos pecados da juventude, pois sei que cartas escritas detêm-se entre o diabo e o sangue jovem. Satanás tem um amigo que corteja o coração do jovem; e ali o orgulho, a luxúria, o desejo carnal, a vingança e o esquecer-se de Deus estão empregados como seus agentes. Feliz será a tua alma se Cristo guarnecer a casa, e Ele próprio ficar com as chaves, e tudo comandar (totalmente, como Ele desejar governar tudo onde quer que Ele esteja). Guarda e recebe bem a Cristo; sopra tua brasa e deixa-O tutelar-te.

Agora, quanto a mim, sabe que estou em total acordo com meu Senhor. Cristo pôs o Pai e a mim nos braços um do outro. Muitos doces tratos Ele já fez, e tem feito a este como outro entre os demais. Eu reino, como rei, sobre minhas cruzes; eu não vou encorajar uma tentação nem dar ao diabo uma boa palavra; eu desafio os portões de ferro do inferno. Deus não levou em conta minhas brigas com Ele quando cheguei aqui, e agora Ele ceia e festeja comigo. Louva, louva comigo, e vamos juntos exaltar o Seu nome.


[1] William Livingstone, provavelmente um paroquiano de Anwoth.

 

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Amor a Deus David Wilkerson

Consumido por Cristo

“Se alguém vier a Mim, e não aborrecer a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs, e ainda também a sua própria vida, não pode ser Meu discípulo” (Lc 14.26).

A palavra grega traduzida para “aborrecer” significa “amar menos em comparação a”. Jesus está nos chamando para ter um amor por Ele que é tão totalmente inclusivo, fervoroso e absoluto que todas as nossas afeições terrenas não podem chegar perto disso. Se nós tivéssemos esse inflamado, todo-consumidor, intenso e jubiloso amor por Cristo, não precisaríamos de esboços, diagramas e instruções nos dizendo como orar; nós oraríamos porque nosso coração estaria queimando de amor por Ele. Nós não ficaríamos entediados tentando preencher uma hora orando ambiguamente por necessidades de todo o mundo; Cristo seria o objeto de nossas orações, e nosso tempo de oração seria precioso. Nós gastaríamos horas atrás de portas fechadas, expressando a transbordante admiração e o doce amor que flui de nosso coração por Ele. Ler Sua Palavra jamais seria um fardo; nós não precisaríamos de fórmulas de como terminar a Bíblia em um ano.

Sabemos o que é buscá-Lo apenas porque somos gratos por Ele nos amar tão completamente?

Se nós amássemos a Jesus apaixonadamente, seríamos magneticamente atraídos a Sua Palavra a fim de aprender mais sobre Ele. E nós não nos atolaríamos com genealogias intermináveis e especulações sobre o fim dos tempos. Nós quereríamos somente conhecê-Lo melhor, ver mais de Sua beleza e glória para que pudéssemos nos tornar mais parecidos com Ele. Pense sobre isto: nós sabemos o que é semelhante a estar em Sua doce presença e não pedir nada? Buscá-Lo apenas porque somos gratos por Ele nos amar tão completamente? Nós temos nos tornado egoístas e egocêntricos em nossas orações: “Dá-nos, encontra-nos, ajuda-nos, abençoa-nos, usa-nos, protege-nos”. Tudo isso pode ser bíblico, mas o foco permanece em nós. Nós vamos até Sua Palavra buscando respostas para os nossos problemas, buscando orientação e conforto, e isso também é correto e recomendável.

Mas onde está a alma motivada pelo amor de quem busca as Escrituras diligentemente, de quem quer apenas descobrir mais e mais sobre seu amado Senhor?

(Publicado originalmente em 5.1.17; revisado e republicado em 11.4.21)

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Perseverança T. Austin-Sparks

Capítulo 4: Moisés

Leitura: Hebreus 11.24-27, 13, 16.

Deus tem um grande desejo: ter aquilo que poderia ser chamado de “um povo desfrutando do Seu melhor”. Enquanto Ele não tiver esse povo, nunca estará plenamente satisfeito. Pode haver aqueles que aceitarão Seu “segundo melhor” – pois Ele certamente permite um segundo melhor –, mas apenas um povo voltado para o Seu melhor vai verdadeiramente satisfazer Seu coração. Mas, como o processo para obter o Seu melhor é repleto de conflito, custo e disciplina, e tudo isso é absolutamente contrário ao curso da natureza, nem todos – na verdade, apenas uns poucos – continuarão com Ele na busca de Seu melhor. Esse princípio é visto ao longo das Escrituras, e existem algumas ilustrações notáveis dele. Elas são encontradas em todas as dispensações.

Não devemos dizer que a geração que pereceu no deserto, e que fora tirada do Egito pela virtude do precioso sangue e pela fé inicial – pois “pela fé passaram o Mar Vermelho” (Hb 11.29) – representa a perda absoluta e final da salvação. No entanto, fica muito claro que aquela geração perdeu aquilo que Deus intencionava para ela, e foi uma perda grande e dolorosa, sempre apresentada nas Escrituras como um exemplo de tragédia, fracasso e decepção. Não devemos dizer que a maior parte daqueles que foram para o exílio na Babilônia, na Caldéia, e nunca mais retornaram, perderam eternamente a salvação de Deus. Mas sabemos que a minoria voltou e, ao fazer isso, cumpriu o verdadeiro propósito de Deus. Esses são apresentados como aqueles de quem particularmente Deus não se envergonha. Em certo sentido Deus se envergonha dos demais, tanto no deserto como na Babilônia. Isso acontece em todas as dispensações. O chamado continua soando, inclusive aqui, para que o povo de Deus não se satisfaça com uma segunda opção que não seja o melhor de Deus.

Mas, como já dissemos, isso não é apenas um chamado para uma realização. Esse é um chamado para o pioneirismo em favor de outros, pois muitos do povo do Senhor não conhecem o caminho celestial. Eles estranhamente não conhecem o caminho celestial, apesar de serem nascidos do alto. Essa é uma verdade, ainda que não apresentaremos todas as provas dela. Talvez muitos de nós tenham tido essa atitude por um período da vida cristã. Tudo era essencialmente terreno. Nossas atividades eram relacionadas à terra, de uma maneira cristã. Então, chegou um momento de crise, quando entendemos o sentido de um céu aberto e fomos elevados a um nível inteiramente novo de vida espiritual; a partir daí começamos a aprender as coisas celestiais de uma nova maneira. Tudo isso são fatos, e o movimento de todos aqueles que são chamados por Deus para trilhar esse caminho celestial não envolve apenas sua própria medida espiritual, mas essas pessoas são chamadas a abrir caminho para aqueles que não o conhecem, até mesmo entre o povo do Senhor. Isso não significa que devem pregar sobre um caminho celestial ou possuir uma interpretação especial das Escrituras, alguma doutrina ou fraseologia. Significa que eles são chamados a viver pelo benefício desse chamado, viver de acordo com ele, e, por meio daquilo que eles sabem e experimentam, são capazes de ajudar os outros a se elevarem dos níveis mais baixos da vida espiritual.

Portanto, vamos examinar novamente a questão do pioneirismo no caminho celestial, centrando nossos pensamentos em outro grande pioneiro: Moisés. Existem, é claro, muitos outros aspectos de sua vida além do pioneirismo, mas acredito que este aspecto realmente é o que torna Moisés significativo: o fato de que ele foi o pioneiro de um caminho celestial.

Se olharmos para a vida de Moisés a partir de um ponto de vista terreno, vemos muito desapontamento, fracasso e tragédia, pois, apesar de ter palmilhado o caminho celestial e aprendido muito dele por oitenta anos – que foram oitenta longos, difíceis e escrutinadores anos de disciplina e sofrimento –, nem ele nem o povo que ele tirou do Egito entraram na terra. Isso nos soa como decepção, na verdade, como tragédia. Jamais poderei ler aquele registro de Moisés implorando a Deus para deixá-lo entrar em Canaã, e a recusa absoluta, final e conclusiva de Deus, sem ser profundamente tocado. É algo comovente.

Dessas pessoas que foram constituídas numa nação pelas mãos de Moisés, e que instrumentalmente deviam a ele sua existência como nação, vemos que além do fato daquela primeira geração não ter entrado na terra e na herança, toda a história da nação desde então se tornou uma tragédia. Houve momentos e períodos brilhantes nessa história; houve tempos de glória, mas, olhando o todo até nossos dias, lembrando o quanto falam sobre Moisés, o que atribuem a Moisés e o quanto sempre apelam para Moisés, essa tem sido uma história muito decepcionante. Reitero que, sob certos pontos de vista, a vida de Moisés indica muito do que podemos considerar fracasso, decepção e tragédia. Mas, por outro lado, quando observamos o próprio fato da vida de Moisés e a natureza de sua conclusão, o fato da geração que pereceu no deserto, o fato dessa nação ter fracassado e desapontado ao longo das eras, vemos que esse é o argumento mais conclusivo para outro aspecto, qual seja: a verdade Divina do que é celestial. É claramente enfatizado que, se tudo se resumir nas coisas daqui de baixo, então é muito pobre. Deve haver algum outro caminho, alguma outra sequência para isso, aquilo não pode ser tudo. Não; existe outro ponto de vista: o ponto de vista celestial, onde o tudo é interpretado e governado pelo céu.

Bem, vamos olhar para Moisés: em primeiro lugar para ele e seu treinamento e, em segundo lugar, para Israel debaixo de sua liderança.

1. O treinamento de Moisés

(a) Captura soberana

Começaremos com a pessoa e o treinamento de Moisés, não com seu nascimento. Vamos iniciar a partir de onde lemos sobre ele na Epístola aos Hebreus: quando estava no Egito. Nesse ponto, encontramo-nos novamente diante de algo que já mencionamos nessas meditações: aquele senso inato de destino. Não poderemos fugir disso. Quando tratamos do pleno propósito de Deus e tudo que envolve a obra, o serviço, o ministério e o pioneirismo relacionados a ela, este sempre será o ponto inicial, isto sempre estará ali: esse sentimento profundo da soberana captura Divina para algo.

Aqui está este homem no Egito, cercado por tudo o que o Egito oferece. Os estudantes de história sabem que a glória e o encanto do Egito não eram pouca coisa nos dias de Moisés. Ele estava cercado por tudo isso. O escritor de Hebreus aqui fala dos “tesouros do Egito”. Seus prazeres, suas amenidades, sua erudição, sua educação: todos os seus privilégios, inclusive a casa do rei – tudo estava ao comando e à disposição de Moisés. Ele era “instruído em toda a ciência dos egípcios” (At 7.22) e tinha todos os “tesouros” do Egito nas mãos. Isso não era pouca coisa. Você diria que isso era algum sem qualquer valor para ser desprezado? Isso era o poderoso “tudo” deste mundo – mas aquele senso de destino o transformou em nada. Embora Moisés pudesse desfrutar de tudo, tanto quanto podia, havia uma sombra constante sobre esse prazer, algo dentro dele o impedia de ficar plenamente satisfeito com aquilo. Havia uma inquieta sensação de descontentamento e insatisfação em Moisés, o que de fato era uma ação da relutância de Deus de se satisfazer com qualquer coisa aquém de Seu pleno propósito. Moisés talvez não conseguisse explicar ou definir esse estranho anseio, mas aquilo o fez saber que o “tudo” do Egito não era de forma alguma o tudo de Deus, e que o Egito nunca poderia responder a esse chamado e o levar para cima e além.

Isso não é exagero, não são apenas palavras. Isso está nas Escrituras, e isso é bastante comprovável. Pois aqueles que são chamados para o caminho do pleno propósito de Deus, Seu mais elevado e Seu melhor, serão assim também. Não importa se temos popularidade, posição no mundo, sucesso, meios e recursos – tudo ao nosso alcance: se formos verdadeiramente chamados de acordo com Seu propósito, estaremos desassossegados em meio a isso tudo, insatisfeitos, e teremos a sensação: “Afinal, tudo isso vale a pena? Existe algo mais além disso.” Provem seu coração com isso. Isso não é ficção, é um fato.

Pode ser que esse fato esteja oculto hoje enquanto você lê essas palavras. Você poderia obter muita coisa neste mundo se desejasse se empenhar para alcançá-las. Você poderia ter um caminho no mundo, em seus prazeres e outras coisas, se realmente quisesse. Sim, e talvez você pudesse obter aceitação e posição até mesmo no mundo religioso, mas isso se tornou secundário para você. Há algo em você – que talvez não possa definir, nem mesmo descrever o que é –, mas você sabe que existe algo, e, a menos que descubra o que é e consiga obtê-lo, sua vida será uma decepção, tudo não passará de escárnio. Se isso for verdade em seu caso, é uma grande esperança, algo maravilhoso: o sentido do céu desceu e capturou você. É claro que, se você não tiver essa percepção, ficará satisfeito com todo tipo de coisas inferiores a isso, e estará correndo atrás delas. Mas, observe, se você conseguir viver assim, essa é uma acusação terrível, pois significa que de alguma forma, no que diz respeito a você, aquela poderosa captura celestial fracassou.

(b) Uma crise

Assim, algo começou a tocar interiormente Moisés, e essa coisa interior levou-o a uma crise definitiva, a crise entre o terreno e o celestial. O Senhor tem maneiras maravilhosas de produzir essa crise. Ela nem sempre é produzida e precipitada por algum êxtase – se é isso que você busca –, pela glória de uma grande luz e visão, pelo arrebatamento da alma, por alguma experiência celestial tremendamente maravilhosa. Nem sempre essa crise acontece assim. Não foi dessa forma que aconteceu com Moisés, nem com outros. Como ela ocorreu, então? Um dia, ele saiu e viu um egípcio maltratando um hebreu; então, esse senso de destino se apoderou dele e o governou, e, como se deduz, ele era fisicamente forte, ali mesmo atacou o egípcio e o matou. Essa foi a crise que precipitou tudo. Às vezes, apenas acordamos para o celestial ou somos colocados face a face com essa esfera devido a uma contravenção ou uma falha terrível; pois, quase imediatamente depois disso, a permanência de Moisés no reino do Egito se tornou insustentável, e ele precisou partir.

Mas o que havia dentro dessa crise, qual era seu sentido, por que Deus permitiu que ela acontecesse? Moisés poderia ter dito: “Por que o Senhor me permitiu fazer isso? Por que o Senhor, que me conhecia de antemão e, em Sua própria presciência, me chamou para Seu grande serviço me deixou fazer essa bagunça? Por que Ele permitiu que eu me envolvesse em algo como um assassinato, para ter minhas mãos manchadas por um crime? Eu, que fui chamado para ser o emancipador do povo de Deus! Por que o Senhor permitiu isso?” A resposta teria sido: “Não é assim que o céu faz as coisas, Moisés. Essa é a maneira do mundo, é o modo da carne fazer as coisas. Não é a maneira como o céu faz as coisas. Você, Moisés, nunca pode trazer um povo celestial a um lugar celestial por meio de métodos e meios terrenos. Aprenda isso de uma vez por todas. Essa pode parecer uma maneira terrível de lidar com a situação, mas ela aí está, de forma clara e simples. Esse povo, que você foi escolhido para liderar pela presciência, por um ato soberano de Deus e por meio desse senso de destino em você, esse povo foi escolhido para ser um povo celestial. Como você pode conduzi-lo para um nível de vida celestial se esse não for seu nível de vida?” Voltaremos a isso em um minuto. O céu irrompe e afirma enfaticamente: “Não, Moisés. Armas carnais para fins carnais, mas não armas carnais para fins espirituais; meios terrenais para fins terrenais, mas não meios terrenais para fins celestiais. O céu governa aqui, e que isso fique registrado assim.” Que lição de vida! Que fundamento!

Bem, você pode nunca ter cometido um assassino, mas não tenho dúvidas de que pelo menos alguns dos que lêem essas linhas aprenderam lições muito profundas dessa natureza: que você simplesmente não pode prosseguir com Deus neste nível, você não pode seguir em frente com Deus nesta linha, não pode servir a Deus em Seu propósito celestial desta forma: na força da carne. Isso é muito fiel ao princípio divino. O céu não aceitará nada desse tipo, mas demandará por sua própria vida e natureza. Essa foi a crise entre o celestial e o terrenal no treinamento de Moisés.

(c) Quarenta anos no deserto

Então, temos a próxima fase: a ida para o deserto, para um “deserto remoto” pelos próximos quarenta anos. Oh, certamente isso não tem lugar na economia de Deus! Sim, os desertos sempre representam e significam uma coisa, onde quer que você os encontre. Eles significam o esvaziamento pessoal. Pense sobre isso. Você não poderá ser uma pessoa muito importante, autossuficiente e autoconfiante em um deserto. Um deserto nos esvazia de tudo isso. Não é somente você que está no deserto: o deserto entra em você, tornando-o estéril, desolado, incapaz, inútil. Você não acha que em quarenta anos no deserto isso não foi injetado em Moisés? O que estava acontecendo?

Esse é o lado negativo do treinamento, representando o cancelamento do Egito e do mundo. O Egito apontava para autossuficiência, sempre foi o sinônimo de independência – e o Egito precisava ser tirado de Moisés. Ele precisou ser esvaziado do espírito e dos princípios do mundo. O Egito havia entrado em Moisés e agora estava sendo posto para fora, enquanto exatamente o contrário do Egito estava entrando. Esse lado que chamamos de negativo é uma parte integrante da escola do caminho celestial. Isso nos leva interior e espiritualmente ao lugar onde vemos de modo claro que em nós não habita bem algum, e que não seremos capazes de produzir e realizar nada. Esse é o deserto. Não entenda mal nem falhe em reconhecer isso. Isso é verdadeiro com relação à vida, à experiência e é alinhado aos princípios celestiais. É necessário que haja uma abertura de espaço em nós para o céu, pois não há lugar para o céu em nós por natureza.

(d) A difícil prova de emancipação

Então, temos o próximo passo depois disso: Moisés é trazido de volta ao Egito para a difícil prova da emancipação. Agora é o Senhor, não mais Moisés. Ou tudo vai ser o Senhor agora, ou nada acontecerá. Mas será o Senhor. “Agora verás o que hei de fazer” (Êx 6.1). Certo dia, Moisés disse: “Agora você verá o que eu farei”, e o egípcio sentiu o peso disso, e, no dia seguinte, o hebreu. Mas isso acabou, e o Senhor agora diz: “Agora verás o que hei de fazer”. “Eu vou agir, agora que você parou.” A posição é alterada, tudo agora se torna possível. Houve uma transição do negativo para o positivo. A grande e difícil prova da emancipação desse povo tem início.

O primeiro estágio relaciona-se com a vara e a mão. Vemos em Êxodo 4: “Que é isso na tua mão?” “Uma vara.” “Muito bem; por meio daquela vara as coisas serão realizadas.” “Põe agora a tua mão no teu seio” [vv. 2,6] “Retire-a” – branca e leprosa. “Torna a pôr a tua mão no teu seio”. “Retire” – limpa e íntegra.

A vara

O que a vara representa? Sabemos que a vara usada por Moisés se tornou a vara usada por Arão, aquela que brotou quando o sacerdócio foi posto à prova (Nm 17). Doze varas foram colocadas na tenda do testemunho durante a noite, representando as tribos. De manhã, havia onze varas mortas e uma viva – o emblema de um sacerdócio vivo. E não se esqueça: o sacerdócio se relaciona com o espiritual. Eles teriam de lidar com todos os deuses dos egípcios. Eles são impuros, corruptos, maus, comitiva do diabo. Se faz necessário o grande poder de um sacerdócio santo para lidar com essa situação impura. É a vara da palavra da Cruz. A palavra da Cruz é uma vara poderosa.

Qual é a questão relacionada a toda essa provação? É a afirmação do Senhor: “Os egípcios saberão que eu sou o Senhor” (Êx 7.5). Essa é a questão. Vamos então começar a aplicá-la de maneira prática por meio da palavra da Cruz, a palavra do sacerdócio vivo.

Aplique-o primeiro a toda a esfera da natureza, da criação. “Eu, o Senhor, as criei” (Is 45.8). O Senhor do Calvário é o Senhor da criação, e a primeira aplicação da palavra da Cruz ocorreu no Egito. Com um toque do Senhor da criação, o mundo dos seres vivos é trazido a julgamento. Eis a questão: “Eu sou o Senhor” [Êx 7.5].

A segunda aplicação é em relação aos céus – pois o Senhor fez os céus assim como fez a terra –, e os elementos são tocados por meio de Sua palavra. Se olhar para o Calvário, você verá ali todas essas características. Quando Ele, o grande Pioneiro do caminho celestial, foi à Cruz, toda a criação foi afetada. O céu e a terra estavam envolvidos. Houve um grande terremoto, e houve “trevas sobre toda a terra, até a hora nona” [Mt 27:45]. A criação e os próprios elementos sofreram o impacto Daquele que é a Palavra na Cruz. Isso aconteceu tipologicamente no Egito.

Então, em terceiro lugar, temos a aplicação para o inferno. Qual é a maior arma do inferno? A morte, “o último inimigo” (1Co 15.26). A morte não é nossa amiga, é o último inimigo, e a morte foi o último juízo do Egito. A fortaleza do inferno foi invadida, o poder da morte foi conquistado para a emancipação de um povo. Foi isso que Cristo fez na Cruz. Esta é a palavra da Cruz: o inferno foi invadido e a morte foi capturada para servir aos fins determinados por Deus, em vez de frustrá-los. No Egito, a palavra, por meio da vara, tocou o primogênito com a morte, e o inferno foi picado em seu âmago com seu próprio ferrão. Mas isso não é tudo. Aquela mesma vara guiou o povo para fora, executando a redenção do Egito através do Mar Vermelho. “E tu, levanta a tua vara, e estende a tua mão sobre o mar” (Êx 14.16). A palavra da Cruz é a palavra da vida triunfante sobre a morte. A morte é vencida, a vida e a incorrupção são trazidos à luz [2Tm 1.10]. Por meio da vara da palavra da Cruz, por meio dessa provação maravilhosa de emancipação, Moisés aprendeu uma coisa: que o céu governa.

O céu governa esta criação, o céu, o inferno. O céu também governa os reinos dos homens para a emancipação dos eleitos. Essa é a história da intervenção do céu.

Você se pergunta porque tudo foi gradual, não acontecendo de uma só vez. O efeito da vara foi apenas parcial no início, mas ganhou força e poder à medida que avançava.

Temos dois lados. Por um lado, existe o caráter progressivo dessa educação: ela é gradual. Não vamos ver e conhecer todo o poder do céu instantaneamente. Aprendemos um pouco de cada vez. É uma coisa gradual. Esse poder se manifesta até um ponto uma vez, vai um pouco além na próxima. Não é isso que estamos aprendendo? Aprendemos esta lição de maneiras simples: como o céu é maior do que a terra, do que o homem, a natureza, o inimigo. Estamos aprendendo cada vez mais, passo a passo, o significado dessa tremenda e infinita ascendência do céu.

Mas existe outro lado. Deus, progressivamente, está ampliando as forças contrárias, estendendo-as gradualmente. “Eu lhe endurecerei o coração”; “Eu, porém, endurecerei o coração de Faraó”; “Eu endurecerei o coração de Faraó”; “o Senhor endureceu o coração de Faraó” [Êx 4.21; 7.3; 14.4;8]. Deus poderia tê-lo eliminado com um só golpe, mas Ele estendeu isso ao limite máximo. O poder deste mundo será ampliado em toda a sua extensão para encontrar o poder infinito do céu, e então, ao final de tudo, a superioridade do céu será muito clara.

Já dissemos isso tantas vezes, e é verdade. Embora não possamos compreender, ver ou calcular, a verdade é que “o poder que em nós opera” é “a sobre-excelente grandeza do Seu poder” (Ef 3.20; 1.19). Não sabemos, somos incapazes de mensurar a imensidão das forças que operam contra a salvação de uma alma, que se opõem ao propósito de Deus para Seu povo. Sabemos um pouco a respeito, e saberemos mais e mais à medida que avançarmos, mas quando a Palavra menciona “a sobre-excelente grandeza do Seu poder”, isso não é apenas um figura de linguagem, mas é uma tentativa, apenas uma tentativa, por meio da linguagem, dos superlativos, de tudo o que a linguagem humana pode fazer, de transmitir a realidade. “E qual a sobre-excelente grandeza do Seu poder sobre nós, os que cremos, segundo a operação da força do Seu poder, que manifestou em Cristo, ressuscitando-O dentre os mortos” (Ef 1.19,20). E essa palavra é direcionada a nós.

Temos algo extraordinário aqui. Temos a superioridade do céu sobre toda essa situação de trazer um povo para fora e conduzi-lo através. Estamos nessa escola. Moisés esteve nessa escola. Ele foi submetido a essa provação para que pudesse progressivamente, mas de forma bastante firme e definitiva, reconhecer que tudo o que está aqui no Egito, representado por faraó, será drenado até a última gota de sua vitalidade e morrerá. Moisés às vezes ficava apreensivo, voltava do desafio desapontado. Ele sentia: “Ainda não chegamos lá, ainda falta alguma coisa”. “Tudo bem”, dizia o Senhor; “nós teremos algo mais.” O Senhor estava educando Moisés, e este estava vendo mais e mais progressivamente. Você não acha que, se Deus fizesse tudo de uma vez, em um ato, perderíamos alguma coisa, tomaríamos as coisas como garantidas, não teriam tanto valor para nós, seriam apenas um milagre do passado? No entanto, ao longo de nossa vida, Deus está estendendo as forças opositoras que operam contra nós para provar que Suas forças são superiores. É uma longa escola, mas esse é o caminho do propósito celestial.

A mão

Agora vamos falar da mão. “Põe agora a tua mão no teu seio” [Êx 4.6]. Que mão? Aquela mão que havia assassinado o egípcio, manchada de sangue, a mão da força natural, da autossuficiência. Aquela mão representava o velho Moisés e seu fracasso, fracasso debaixo da energia e do impulso da própria vontade. “Ponha essa mão no teu seio. O que está ali, Moisés? Isso é aquilo que provém de você. Você acha que pode manejar a vara de Deus? Acha que com isso pode trazer a autoridade celestial? Oh não! Essa mão precisa ser limpa antes que você possa empunhar aquela vara. Esse seio precisa ser limpo, aquela mancha deve ser removida, toda aquela energia do ego e da autossuficiência deve ser eliminada. Moisés, aquela mão leprosa é aquilo que você é em si mesmo.”

Não é isso que estamos descobrindo? Como é nosso coração? Como nós somos? Exatamente assim. Quanto mais nos conhecemos e vemos a nós mesmos, mais clara é a semelhança com a lepra. Mas, bendito seja Deus, existe uma purificação.

Um ato Divino de purificação ocorreu em Moisés. Naquele instante, todo o significado da Cruz, da palavra da Cruz, entrou em vigor na vida de Moisés, em tipo, em figura. A partir daí é possível receber a palavra da Cruz, a palavra de autoridade, quando temos uma mão purificada, ou seja, um coração circuncidado, uma vida interior separada da força e da suficiência carnais. As coisas devem acontecer assim. Não teremos poder no reino dos deuses dos egípcios, aquelas forças espirituais que atuam neste mundo, não teremos nenhuma autoridade nessa esfera, nem mesmo temos esperança de dominar essa força a menos que algo tenha acontecido para nos libertar de nossa própria força, de nossa suficiência, de nosso próprio coração.

(2) Israel sob a liderança de Moisés

Depois entramos naquela fase, que é tão longa que mal ouso tratar dela agora, que foi Israel debaixo da liderança de Moisés. Foi uma prolongada controvérsia entre o celestial e o que é terrenal. Todos aqueles quarenta anos da nação no deserto se resumiram nisto: a controvérsia entre o celestial e o terrenal. Eles foram tornados um povo celestial para ter todos os seus recursos, apoio e socorro vindos do céu. Deveriam estar neste mundo, mas não pertencer a ele. Essa verdade é muito clara em um deserto: estar no mundo, sem pertencer a ele.

O propósito Divino era criar um lugar mais amplo para o céu. Ali naquele deserto havia muito espaço para o céu. Tudo que viesse do lado Divino precisaria ser celestial. O povo foi constituído segundo princípios celestiais. Moisés no monte estava assegurando aqueles princípios celestiais para a constituição da nação. Tudo estava sendo recebido do céu. De acordo com o padrão mostrado no monte, todo o relacionamento do povo de Israel com Deus no deserto, que era centralizado no tabernáculo, veio do céu. Tudo era celestial, nada havia sido deixado para o homem e seu próprio julgamento. Sua caminhada dia a dia dependia de meios celestiais: da coluna de nuvem e de fogo [cf. Êx 13.21]. Tudo era celestial. Que combate celestial: Moisés no cimo do outeiro, com as mãos levantadas, a batalha acontecendo no vale. O céu estava dirigindo essa guerra: um combate celestial [cf. Êx 17]. Tudo se resumia em aprender o significado do caminho celestial, em cada um de seus aspectos.

Mas eles falharam em aprender essas lições, desceram à terra, rejeitaram o celestial. Aquele caminho era muito árduo, era muito difícil para a carne, era muito incerto. Demandava tanta dependência, tornando o ego absolutamente incapaz. Eles não poderiam fazer nada por si mesmos – e nós desejamos muito ajudar a nós mesmos nessas condições. Tudo era tão celestial, apesar de ter sido muito real. Aqueles que conhecem alguma coisa a esse respeito bem sabem que as coisas celestiais são extremamente reais, muito mais reais do que as outras coisas. Mas eles não adotaram e repudiaram o caminho celestial, optando pelo terrenal, e todos pereceram, na terra, no deserto.

Josué e Calebe aprenderam todas aquelas lições da escola de Moisés e de Israel por si mesmos. Eles aprenderam as lições, compreenderam a verdade celestial e tomaram a próxima geração: uma geração celestial.

Bem, tudo isso pode ser considerado história, assim como tudo que está na Bíblia. No entanto, tenho certeza de que muitos de vocês estão lendo sua própria história. Consideramos esse princípio muito fiel à nossa experiência, àquilo que Deus está fazendo conosco: derrotando-nos, confundindo-nos, levando-nos a um fim, a um vazio e ao absoluto desamparo? Ainda assim, por meio de um grande poder que não sentimos, do qual não temos consciência, continuamos “sendo arrastados para a frente e para cima”. Essa é a história da sobrevivência de tantos, quando tudo parecia ter se perdido, quando falhamos, fomos quebrados, desapontamos o Senhor; e acreditamos não haver mais futuro diante de nós.

Mas existe um futuro. Nós continuamos em frente. Existe algo do além que nos sustenta o tempo todo, e talvez hoje nosso coração esteja mais voltado para o que é de Deus do que ocorria antes. E por que isso acontece? Não porque tivemos mais sucesso, nem porque somos menos cheios de fraquezas e falhas. Não; aprendemos a lição de nossa própria fraqueza. Sabemos hoje, melhor do que nunca, que “em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum” (Rm 7.18) – e hoje o Senhor tem uma influência ainda mais forte sobre nós. Como isso é possível? Esse é um mistério. Oh, graças a Deus isso é verdade! Agradeça a Deus por Sua graça soberana! Essas são as evidências de que Ele nos chamou com um grande chamado e que não ficará satisfeito até que nos conduza a Seu propósito final. Que sigamos em frente, custe o que custar.


Para ler o capítulo 1, clique aqui; capítulo 2, aqui; capítulo 3, aqui.

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Samuel Rutherford Sofrimento Testemunho

Cartas de Samuel Rutherford (7)

Para Robert Gordon (o Jovem) [1]

Aberdeen (sem data)

Razões para ser zeloso a respeito da alma

Eu te exorto, pelas entranhas de Cristo: começa a trabalhar por tua alma. E que estas coisas pesem em ti, e que tu as consideres seriamente.

  1. Choro e ranger de dentes nas trevas absolutas, ou o gozo do céu.
  2. Pensa no que darias por uma hora, quando jazeres deitado naquela dia morto, frio, de escuridão.
  3. Ainda há areia em tua ampulheta, e teu Sol ainda não se pôs.
  4. Considera tu quanta alegria e paz há no culto a Cristo.
  5. Pensa na vantagem de teres os anjos, o mundo, a vida e a morte, cruzes, sim, e demônios, tudo para ti, como ajudantes e servos do Rei para realizarem o que diz respeito a ti.
  6. Teres misericórdia sobre tua semente e uma bênção sobre tua casa.
  7. Teres verdadeira honra e um nome na terra que exala um doce aroma.
  8. Como te regozijarás quando Cristo deitar tua cabeça sob o Seu queixo e em Seu peito, e secar teu rosto, e introduzir-te na glória e na alegria.
  9. Imagina que dor e que tortura é ter uma consciência culpada; que escravidão é levar as cargas desonestas do diabo.
  10. A alegria do pecado não passa de sonhos, pensamentos, vapores, imaginações e sombras.
  11. Que dignidade é seres filho de Deus.
  12. Domínio e comando sobre as tentações, sobre o mundo e o pecado.
  13. Que teus inimigos sejam a cauda, e tu, a cabeça.

 

Para teus filhos que estão agora em descanso (dirijo-me a ti e a tua mulher, e faze-a ler esta carta):

  1. Eu sou uma testemunha da glória de Barbara no céu.
  2. Quanto ao mais, escrevo com a certeza de que chegarão dias na Escócia quando ventres estéreis, e peitos secos e pais sem filhos serão chamados bem-aventurados. Estarão no abrigo do porto, antes que chegue a tempestade.
  3. Não estão perdidos para ti os que estão nos tesouros de Cristo, no céu.
  4. Na ressurreição, tu os encontrarás; para lá eles foram enviados antes, mas não estão perdidos.
  5. Teu Senhor te ama, que é humilde para receber e dar, para emprestar e tomar emprestado.
  6. Não deixes que crianças sejam teus ídolos, pois Deus terá ciúme e tirará o ídolo, porque Ele é ávido por teu amor total.

[1] John Gordon (o Jovem). Pouco se sabe sobre o Jovem de Cardoness, exceto que participou da Guerra Civil na Inglaterra. Deduzimos, pelas Cartas, que a natureza humana era forte, tanto no pai quanto no filho.

(Para ler todos os artigos dessa série, clique aqui.)

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Amor a Deus Robert Murray MacCheyne

Meu Amado é meu…


A alma vê também que Jesus é um Salvador completo, perfeito, que oferece ao pecador, não apenas perdão, mas perdão abundante e sem medida; que não apenas lhe dá justiça, mas uma justiça maior que a justiça humana, uma justiça completamente divina; não apenas lhe dá o Espírito, mas dá rios de água viva e inundações sobre o sedento e árido terreno da alma dele. A alma descobre isso em Jesus, e nada pode fazer a não ser escolhê-Lo e deleitar-se Nele com um novo e particular amor, que diz: “Meu Amado é meu!”

E se alguém lhe pergunta: “Como tu te atreves, verme vil, a dizer que o Salvador é teu?”, a resposta é esta:

“Porque eu sou Dele. Ele me escolheu desde antes da fundação do mundo, mesmo que eu nunca O houvesse escolhido; Ele derramou Seu sangue por mim, apesar de eu, por Ele, jamais ter derramado nem uma única lágrima; Ele clamou por mim, apesar de eu nunca ter-me preocupado com Ele; Ele viu a mim, mesmo quando eu jamais houvesse me preocupado em conhecê-Lo. Ele me amou primeiro; por isso, eu O amo. Ele me escolheu; por isso eu O escolhi para sempre.” “Meu Amado é meu, e eu sou Dele.”

(Publicado originalmente em 11.11.07. Revisado e republicado em 30.3.21.)

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Perseverança T. Austin-Sparks

Capítulo 3: Abraão, um grande pioneiro

Todos estes morreram na fé, sem terem recebido as promessas; mas vendo-as de longe, e crendo-as e abraçando-as, confessaram que eram estrangeiros e peregrinos na terra. Porque, os que isto dizem, claramente mostram que buscam uma pátria. E se, na verdade, se lembrassem daquela de onde haviam saído, teriam oportunidade de tornar. Mas agora desejam uma melhor, isto é, a celestial. Por isso também Deus não se envergonha deles, de se chamar seu Deus, porque já lhes preparou uma cidade.

(Hb 11.13-16)

Vamos voltar a falar de Abraão como um dos pioneiros representativos do caminho celestial. Começamos reiterando um aspecto que foi muito real em Abraão: seu senso profundo e inato de destino. Isso também precisa ser verdadeiro, e sempre será, no pioneiro celestial que está avançando na descoberta e na exploração do reino celestial. Estevão nos disse, a respeito de Abraão, que “o Deus da glória apareceu a nosso pai Abraão” (At 7.2) quando ele estava em Ur dos caldeus. Não sabemos como o Deus da glória apareceu para ele. Pode ter sido por meio de uma daquelas teofanias comuns ao Antigo Testamento, e ocorridas mais adiante na vida de Abraão, quando Deus veio até ele em forma humana [cf. Gn 18.1,2]. Nós não sabemos como aconteceu. Todavia, ao considerarmos toda a sua vida, sabemos que o efeito dessa aparição trouxe à luz esse tremendo senso de destino que o desenraizou de toda a vida passada, criando uma profunda inquietação, uma inquietação do tipo correto, um descontentamento profundo e santo.

O descontentamento pode ser uma coisa absolutamente errada, mas existe um tipo correto de descontentamento. Queira Deus que muitos mais cristãos o tenham! Em Abraão se iniciou um desejo que cresceu sucessivamente ao longo dos anos, tornando impossível para ele se estabelecer e aceitar qualquer coisa menor do aquilo que fosse o pleno propósito de Deus. Abraão não poderia aceitar uma segunda opção naquilo que se relacionava a Deus. Sim, essa consciência precisava crescer. Ele foi compreendendo progressivamente o que aquilo significava. Acontecia assim: ele chegava a certo lugar, e talvez pensasse que ali era o lugar, e então descobria que não era, e tinha de se mudar. Talvez ele tenha pensado: “Agora, é aqui… mas não, não é. Ainda não sei o que é… não posso definir, explicar, mas lá dentro sei que Deus tem algo mais”. “Não que já a tenha alcançado, ou que seja perfeito; mas prossigo” (Fp 3.12). Esse é o desejo, ao longo das eras, e que foi tão real no caso do homem cujas palavras acabo de citar. Paulo nunca foi capaz de aceitar o segundo melhor de Deus. Deus tem um segundo melhor. Vemos repetidamente ao longo da história ocasiões em que Deus percebe que é impossível obter Sua “primeira escolha”, Seu melhor. As pessoas não continuariam em frente. Então, o Senhor diz: “Tudo bem; vocês terão meu segundo melhor”, e elas o obtinham. Mas os pioneiros nunca fazem isso. Abraão não poderia fazer isso.

Não podemos entender ou interpretar de modo equivocado a atitude de Abraão, considerando-a fruto de uma natureza instável ou temperamental. Não pense que você ser uma pessoa que nunca está satisfeita é sinal de descontentamento Divino. Esse descontentamento pode refletir instabilidade. Você pode ser uma daquelas pessoas que nunca consegue se fixar em nada por muito tempo, sempre pulando de uma coisa para outra. Nesse caso, você será um completo desajustado, tanto no mundo quanto no reino de Deus. Não foi esse tipo de coisa que aconteceu com Abraão. Havia algo do céu operando nele, e a prova disso foi que eles estava em movimento continuamente ascendente. Abraão não caminhava na horizontal, mas sempre para cima. Ele progredia continuamente no âmbito terreno, bem como na esfera celestial.

Podemos observar que Ló estava junto com Abraão, mas Ló era um homem que sempre buscava segurança aqui. Ele buscou uma cidade, uma casa; ele não gostava da vida de tenda. Ló desejava se estabelecer neste mundo, e foi isso que ele buscou. Mas por essa razão Ló era o homem fraco. Abraão, que sempre se movia em uma tenda, era o homem forte. Isso não era natural, mas espiritual. Esse impulso do céu, esta poderosa operação de uma força espiritual em Abraão, levou-o a ingressar nessa difícil escola do celestial. Para aquilo que é natural e terreno, para a carne, a escola celestial é muito difícil, e Abraão foi trazido a ela por meio desse impulso do céu.

Conflito entre o espiritual e o temporal

Em primeiro lugar, temos o conflito entre o espiritual e o temporal, o visível e o invisível – e esse é um conflito muito feroz. Às vezes, vemos esse conflito em questões muito delicadas da vida de Abraão. Por um lado, Abraão foi abençoado pelo Senhor, o Senhor lhe deu prosperidade, havia sinais de que o Senhor estava com ele. Houve aumento, ampliação essa tão grande ao ponto de ser constrangedora. Seus rebanhos e manadas se multiplicaram; Abraão era um verdadeiro príncipe na terra. Ainda assim, ainda assim, aquela mesma bênção do Senhor às vezes chegava ao ponto de estar prestes a ser eliminada por uma fome aguda e devastadora. Por que Deus abençoou, aumentou e ampliou, e então permitiu algo que poderia acabar com tudo aquilo que havia lhe concedido? Esse é um problema complicado, não é? Não teria sido melhor permanecer pequeno e limitado a ver tudo isso ameaçado? Abraão achou o problema muito sério. Essa foi a razão de um de seus fracassos. Ele desceu para o Egito [cf. Gn 12.10-20].
Era uma escola difícil.

O que isso significa? Parece que Deus dá com uma mão e tira com a outra. Concede prosperidade e bênção, e então permite que algo aconteça que ameaça destruir a própria bênção que Ele concedeu. Seria Deus contraditório assim? Estaria negando a Si mesmo? Você conhece a tentação de tentar interpretar as coisas nessas ocasiões. Afinal de contas, seríamos apenas peões em um jogo? Seríamos apenas filhos do acaso, da fortuna ou do infortúnio? Estaria o Senhor nisso, afinal? Essas circunstâncias podem realmente explicar o Senhor, que é um Deus constante?

Essa é uma escola difícil. Mas perceba que está totalmente de acordo com aquilo que Deus está fazendo.

O que Ele está fazendo?

Bem, se Ele abençoa, existem duas coisas atreladas a essa bênção. Em primeiro lugar, as bênçãos, a prosperidade, o aumento e expansão de Abraão precisavam encontrar seu apoio no céu, não na terra. Deus está introduzindo o grande princípio celestial. Oh, o Senhor pode abençoar e alargar, mas Deus nos livre de supor que a partir daí podemos nos sustentar, continuar sozinhos, seguir em frente por nosso próprio impulso. O Senhor arranjará as coisas de maneira que quando Ele abençoar – independente de quão grande, ampliada e aumentada essa bênção for – aquilo poderá perecer a qualquer momento se o céu não for o sustento dela. Essa é uma lição. Não seja presunçoso, nem tome nada como garantido. Viva cada momento dependendo do céu. Agarre-se ao céu, tanto no dia da bênção como no dia da adversidade.

E existe, a seguir, outro fator. Deus estava treinando Abraão para que fosse seguro abençoá-lo, e isto é algo importante: ser confiável para receber a bênção. Que disciplina, que prova de fé, que teste! E, ainda assim, independente do quanto Deus abençoasse Abraão, Ele não permitia que as bênçãos obscurecessem a visão celestial do patriarca e o detivessem no caminho. Esse foi um triunfo notável. Oh, os perigos devastadores da bênção! Talvez você considere que ainda não sabe muito a respeito deles. Mas Deus quer nos tornar confiáveis para Seu reino celestial, para o crescimento espiritual, para sermos usados poderosamente; e nunca estaremos seguros se algo menor do que o melhor de Deus puder nos enredar. Nunca estaremos seguros se o bom for inimigo do melhor. Em Abraão fica perfeitamente claro que, fosse na prosperidade ou na adversidade, a ele nunca foi permitido se estabelecer e sentir que tinha alcançado seu objetivo. Se em algum momento ele sentia que tinha atingido o alvo, rapidamente via aquilo explodir. “Todos estes morreram na fé, sem terem recebido as promessas; mas vendo-as de longe”.

Outra coisa sobre Abraão é que ele nunca permitiu que as dificuldades aparentes, por maiores que fossem, impedissem definitivamente sua marcha espiritual para a frente e para o alto. Voltaremos a isso em um momento. Você percebe como tudo isso foi adotado por Josué e Calebe? Pense novamente em Josué e Calebe. Eles certamente haviam frequentado aquela escola; caso contrário, nunca teriam levado a próxima geração para a Terra Prometida. Só Deus sabe o que aqueles homens passaram. Perceba que a história sobre a saída dos espias, o relatório da minoria, a tomada de pedras para apedrejar esses homens e matá-los, ou, pelo menos, a proposição de fazê-lo, é contada em pouquíssimos versos. Mas devemos acrescentar os longos anos passados enquanto aquela geração inteira morria, e apenas dois homens permaneciam agarrados à visão celestial. Essa é uma escola difícil. Eles poderiam facilmente perder o ânimo, desistir e dizer: “É uma perspectiva sem esperança”; mas não o fizeram: o celestial havia conquistado a parte mais profunda de seu ser e os sustentou. Aquilo os capturou, levando-os a superar até mesmo a maior adversidade; eles “venceram o mundo”.

O conflito entre o espiritual e o carnal

Vemos então, mais uma vez, esse conflito entre o espiritual e o carnal em Abraão: não apenas entre o espiritual e o temporal, mas entre o espiritual e o carnal. Esse conflito surgiu dentro do que podemos chamar de contexto doméstico, em sua família, no sangue. Aconteceu com Ló. Refiro-me aqui ao sentido espiritual disso. Interpreto que Ló representava algo mais do que aquilo que vemos objetivamente na família cristã (o que é, sem dúvida, muito verdadeiro), mas como algo presente em nossa própria natureza, subjetivamente: o conflito daquilo que é carnal contra o espiritual, do terreno com o celestial.

Aqui está Ló, e ele compartilha do mesmo sangue de Abraão, mas bem no sangue, no meio da família – se você preferir, bem no meio da família cristã – existe esse traço de carnalidade: Ló e seu mundanismo, sua mentalidade, visão, ambição e desejos mundanos. Não vemos visão celestial em Ló, ainda que estivesse bem ao lado, tão perto de Abraão. Abraão encontra a ameaça desse questionamento a seu curso espiritual em meio ao seu próprio sangue. Está ali: presente em nós e na família cristã. Está ao lado, muito próximo o tempo todo: esse desejo de se estabelecer, de obter as coisas aqui e agora, o anseio por retornos rápidos, coisas visíveis, a gratificação da alma; aquele descanso que acreditamos ser descanso, mas não é.

Muitos de vocês sabem do que estou falando. Sabemos como às vezes ansiamos naturalmente por descanso, tentamos obtê-lo, e não o obteremos enquanto não chegarmos ao Senhor. Encontramos nosso verdadeiro descanso nas coisas do céu, não em feriados. Mas a carne está aí, sempre tentando nos arrastar para longe, afastar-nos, fazer-nos fugir. “Ah, que vontade de sair dessa situação! Se ao menos pudéssemos viver em alguma ilha sozinhos, quão sossegado seria, quanta paz! Permanecer afastado de tudo isso!” E isso nunca acontece. Nosso descanso está nas coisas celestiais. Só encontramos nossa verdadeira satisfação nas coisas do Senhor. Você, cristão, vá, farte-se do mundo; você sabe que quando voltar dirá: “Chega dessas coisas!” Você sabe que não pode fazer isso. Mas esse desejo está em nós o tempo todo. A influência carnal está no nosso sangue. E essa também é uma verdade em toda a família cristã: temos o lado de Ló, que deseja um Cristianismo deste mundo, sempre puxando tudo para baixo e para longe do celestial. Abraão conhecia tudo a esse respeito.

Isso constitui a própria base dessa obra pioneira, do pioneirismo nas coisas do Espírito. É essa guerra contra as coisas da carne, como se estivéssemos sempre carregando um cadáver, alguma coisa sem vida que deve ser arrastada e subjugada diariamente. Precisamos dizer a nós mesmos: “Vamos, deixa disso!” Esse é o caminho do pioneiro. Você pode se estabelecer, mas perderá a herança celestial. O carnal tem caminhos muito, muito sutis – caminhos muito “espirituais”.

Será que tudo isso é uma contradição? Essa é uma espiritualidade espúria interpretada como espiritualidade. Imagino o grande combate que Paulo, o homem celestial, enfrentou com os coríntios, a igreja terrenal. No entanto, os coríntios eram considerados espirituais. Eles possuíam todos os dons espirituais: tinham os milagres, a cura, as línguas. Mas Paulo disse: “Eu […] não vos pude falar como a espirituais, mas como a carnais” (1Co 3.1). O carnal pode adotar caminhos aparentemente muito “espirituais”. O fato é que a carnalidade deles estava se apoderando das coisas espirituais e usando-as a serviço de sua carnalidade, concedendo-lhes gratificação espiritual por meio de exibições, mostras, demonstrações, puxando os céus para a terra. Não vamos culpar os coríntios. O quanto nós ansiamos por ver coisas, desejamos evidências e provas! Por que essas coisas atraem tantos seguidores? Porque existe algo na natureza humana que é gratificado nessas coisas, e é infinitamente mais difícil andar no caminho celestial onde você não vê e não entende; mas esse é o caminho do pioneiro espiritual que conquista a herança para os demais.

A prova da realidade da visão celestial

Finalmente, qual foi a prova de que essa visão e esse senso de destino de Abraão eram reais, verdadeiros, genuínos, vindos realmente de Deus, e não apenas fruto de sua imaginação? Que prova lhe foi dada?

(a) Fé no Deus do impossível

Vemos essa prova, em primeiro lugar, na atitude de Abraão com relação ao impossível. Como dissemos no capítulo anterior, temos a história completa no Novo Testamento. No Antigo Testamento, parece que Abraão cedeu, esmoreceu diante do impossível.

Já vamos chegar a esse ponto. O Novo Testamento nos diz de modo enfático que Abraão olhou diretamente para o impossível e creu ser possível. Sua atitude com respeito ao impossível quanto a Isaque provou ser algo mais do que apenas sua imaginação; havia algo poderoso em seu senso e em sua consciência de destino. Este é o teste final para saber se realmente está registrado em nós um senso de vocação celestial: se vamos desistir quando uma situação começar a parecer impossível. O fato é que, apesar de desejar desistir, você não tem consentimento para isso. Algo dentro de você simplesmente não permite. Você esteve a ponto de redigir sua carta de demissão centenas de vezes. Repetidamente, disse: “Vou sair dessa situação; não posso prosseguir nem mais um passo, estou arruinado”; mas você prosseguiu, ainda prossegue e sabe muito bem que existe algo dentro de você mais forte do que todas as suas resoluções de renunciar. Quão necessário é esse sentido em nós – algo indiscutivelmente dado por Deus, não vindo de nós mesmos. “Segundo o poder que opera em nós” (Ef 3.20) – é isso.

(b) Capacidade de ajustes quando cometia erros

Vamos então considerar a capacidade que Abraão tinha de fazer ajustes quando cometia erros. Esse homem, esse pioneiro, cometeu erros, e eles foram grandes. Qual é a tentação de um servo de Deus quando comete uma grande mancada, quando alguém com responsabilidades comete um erro terrível? Qual é a reação imediata? “Oh, evidentemente não fui talhado para isso, não fui chamado para isso. Deus tomou a pessoa errada, nunca fui destinado para isso. Melhor encontrar outra atividade, é melhor desistir.” É preciso enfatizar que os erros cometidos por Abraão foram muito ruins, lapsos e falhas graves jamais desculpadas na Bíblia, mostrados exatamente como eram, e nunca foram apagados do registro da Palavra escrita, nem da história, por Deus: olhe para Ismael [os povos árabes] hoje! Ainda assim, apesar de Abraão ter cometido esses erros que foram claramente expostos, havia algo nele que reagia para se ajustar. “Cometi um erro ao descer para o Egito, mas não desistirei movido pelo desespero e não me recusarei a voltar; voltarei. Cometi esse erro com respeito a Ismael: voltarei e recuperarei meu terreno.” Abraão foi um grande homem quando se faziam necessários restauração e ajuste depois de uma desoladora decepção consigo mesmo.

(c) A operação do poder celestial no interior

O que tudo isso nos indica? Que havia uma operação do poder celestial nesse homem. Isso não é natural, não é o caminho da natureza. Se conhecêssemos a tensão, o estresse, a dureza daquela escola em que Abraão estava! Nunca deixo de me maravilhar ao ler as palavras de Paulo a respeito de Abraão: “E não enfraquecendo na fé, não atentou para o seu próprio corpo já amortecido, pois era já de quase cem anos […] E não duvidou da promessa de Deus por incredulidade, mas foi fortificado na fé, dando glória a Deus, e estando certíssimo de que o que Ele tinha prometido também era poderoso para o fazer” (Rm 4.19-21). “Da fé que teve Abraão, o qual é pai de todos nós […] perante Aquele no qual creu, a saber, Deus, o qual vivifica os mortos” (v. 17). Ele provou sua fé ao amarrar o único filho e tomar a faca para sacrificá-lo. Um instante mais e aquele filho, em quem se centravam todas as promessas, estaria morto. Digo isso e fico maravilhado. Uma coisa é Deus fazer algo assim: tirar; outra coisa é nós termos de fazer isto: entregar a Deus – mas Abraão o fez. Vemos aqui algo que não é natural. Esse não é o jeito do mundo, da terra. É o jeito, o caminho celestial. Abraão estava pioneirando o caminho celestial. E por isso ele ocupa essa posição tremenda, não apenas na velha dispensação, mas nesta, e para sempre. Um grande pioneiro das coisas celestiais – é isso que ele representa.

Isso pode explicar muito de nossa experiência pessoal. Deus precisa de pessoas como Abraão neste dia de terrível movimento espiritual de declínio, descendente na direção do mundo, por parte de Sua Igreja. Com todas as suas boas intenções, talvez até mesmo motivações puras, a Igreja está, contudo, adotando a estrutura e a forma deste mundo para fazer a obra do céu. Uma reação a isso se faz necessária, e precisam existir vasos que possam provar que não é necessário voltar a este mundo. O céu é suficiente para todas as coisas.


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Samuel Rutherford Sofrimento Testemunho

Cartas de Samuel Rutherford (6)

Para Robert Gordon, de Knockbreck [1]

Aberdeen, 9 de fevereiro de 1637

Coisas que a aflição ensina

As tentações que eu julgava estarem abatidas e mortas levantam-se novamente e revivem sobre mim; sim, vejo que, enquanto eu viver, as tentações não morrerão. O diabo parece se ufanar e se gabar como se ele agradasse mais a Cristo do que eu, e como se ele tivesse enfeitiçado e destruído meu ministério para que eu não pudesse mais fazer o bem em público. Mas seu vento não causa danos. Eu não acreditarei que Cristo teria feito tal esforço para ter-me para Si, colocando tantas dores sobre mim, como tem feito, e então perder facilmente minha posse, e perder a glória daquilo que Ele fez. Não! Desde que vim para Aberdeen, tenho sido levado a ver a nova terra, o lindo palácio do Cordeiro; e Cristo me deixaria ver o Céu só para partir meu coração e jamais dá-lo a mim? Não pensarei que meu Senhor Jesus daria um penhor vazio, ou colocaria Seu selo em um papel em branco, ou pensaria em se livrar de mim com promessas bonitas e falsas. Agora eu vejo o que nunca vi bem antes:

Necessidade de fé

1. Vejo que a necessidade de fé em um dia bonito nunca é reconhecida como necessária; mas agora não sinto falta de nada além da fé. A fome é para mim como promessas belas e doces; mas, quando venho, sou como um homem faminto e sem dentes, ou com um estômago fraco tendo um apetite voraz que já é satisfeito só com a visão da carne, ou como alguém entorpecido com o frio sob a água que se contentaria em chegar à terra, mas que não consegue agarrar nada que lhe seja atirado.

Eu posso deixar Cristo me agarrar, mas eu não posso agarrá-Lo. Eu amo ser beijado e estar assentado nos joelhos de Cristo, mas não posso colocar meus pés no chão, porque as aflições trazem cãibras à minha fé. Tudo o que posso fazer é estender a Cristo uma fé aleijada, como um pedinte estendendo um coto, em vez de um braço, ou uma perna, e clamar: “Senhor Jesus, faze um milagre!” Oh, o que eu não daria para ter mãos e braços para agarrar com força e abraçar generosamente o pescoço de Cristo, e ter meu pedido com posse real! Eu penso que meu amor por Cristo tem muitos pés, e corre rapidamente para estar com Ele, mas falta-lhe mãos e dedos para segurá-Lo. Eu acho que daria minha bênção a Cristo toda manhã, para ter tanta fé como tenho amor e fome; pelo menos, eu sinto mais falta de fé do que de amor ou de fome.

Morto para o mundo

2. Eu vejo que a mortificação, e ser crucificado para o mundo, não é tão bem considerado por nós como deveria ser. Oh, quão celestial é ser morto e mudo e surdo para a doce música deste mundo! Confesso que agradou à Majestade Divina fazer-me rir das crianças que estão cortejando este mundo para ser seu par. Eu vejo homens mentindo sobre o mundo, da mesma forma que os nobres mentem sobre a corte do rei, e fico a imaginar o que eles estão fazendo ali.

Como estou agora, no presente, eu não me dignaria cortejar uma princesa tão insignificante e imprestável, ou comprar a bondade deste mundo dobrando meu joelho. Eu agora quase não vejo nem ouço o que é que este mundo me oferece; eu sei que é pouco o que ele pode tirar de mim, e que é pouco o que ele pode me dar. Eu te recomendo a mortificação acima de qualquer coisa; porque, ai de nós! Nós só corremos atrás de penas voando no ar, e cansamos nosso espírito com esse palavrório e essa vida moribunda do barro maquilado. Um relance do que o meu Senhor me deixou ver nesse curto período de tempo vale um universo de mundos.

Regozijo espiritual

3. Eu pensei que a coragem, em tempos de aflição por amor a Cristo, fosse algo que eu pudesse dominar. Pensei que a própria lembrança da honestidade da causa seria o suficiente. Mas fui tolo ao pensar assim. Tenho agora muita dificuldade para dar um sorriso. Vejo, porém, que o regozijo cresce no céu, e está além de nosso curto braço. O próprio Cristo é quem será o mordomo e o despenseiro, e nenhum outro a não ser Ele. Portanto, agora, eu conto apenas com um pouquinho do regozijo espiritual.

Um sorriso da face de Cristo é agora para mim como um reino; e Ele até o momento não retém de mim o conforto.

Na verdade, eu não tenho razão de dizer que esteja oprimido com penúria ou que as consolações de Cristo estejam faltando; porque Ele tem derramado rios sobre um deserto seco como eu, para meu espanto; e em meus desmaios Ele me mantém a cabeça erguida e me sustenta com odres de vinho e me conforta com maçãs [Ct 2.4,5]. Há beijos de amor espalhados em toda a minha casa e na minha cama. Louva, louva comigo. Oh, se tu e eu, entre nós, elevássemos Cristo a Seu trono, no entanto toda a Escócia O estaria derrubando ao chão!


[1] Robert Gordon, de Knockbeck, um cristão sofrido e de coração singular, muito usado em parlamentos e reuniões públicas depois do ano de 1638. Knockbreck fica na paróquia de Borgne, contígua a Anwoth, e tem vista para a Baía de Wigtown.

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Samuel Rutherford Sofrimento Testemunho

Cartas de Samuel Rutherford (5)

Para Robert Blair [1]

Aberdeen, 7 de fevereiro de 1637

Os por vezes misteriosos arranjos de Deus

Não é de se espantar, meu caro irmão, que tu andes ansioso por algum tempo, e que a vontade de Deus (cruzando teu plano e teus desejos de morar entre um povo para quem Deus é o Senhor) deverá fazer com que mudes. Eu não nego isso, porém tu tens razões em procurar saber o que a Sua providência fala a ti quanto a isso; mas a vontade de Deus que te direciona e comanda pode, não mediante a boa lógica, ser compreendida mediante os eventos da providência. O Senhor enviou Paulo a muitas viagens com o propósito específico de espalhar Seu Evangelho, nas quais ele encontrou leões em seu caminho. Uma promessa havia sido feita ao Seu povo na Terra Santa, porém os israelitas encontraram muitas nações que lutaram contra eles e estavam prontas a matar os que tinham a promessa, ou a impedi-los de possuir a boa terra que o Senhor, seu Deus, lhes havia dado.

Sei que tu és muito submisso ao Espírito; porém, convenço-me que aprendeste, em cada situação em que és colocado, a estares contente e a dizeres:

“Boa é a vontade do Senhor; que ela seja feita.”

Eu creio que o Senhor muitas vezes lança um barco na água para encontrar-se com o vento, e Ele tem como propósito trazer misericórdia por meio de teu sofrimento e pelo silêncio, o qual (sei disso por minha própria experiência) é muito doloroso para ti. Vendo que Ele conhece nossa mente disposta a servi-Lo, nossa paga, nossa recompensa está mais à frente com nosso Deus, mesmo que alguns soldados doentes sejam pagos quando estão acamados e não podem ir a campo com os outros. “Israel não se deixará ajuntar; contudo aos olhos do Senhor serei glorificado, e o meu Deus será a minha força” (Is 49.5). E nós devemos crer que assim será antes que tudo termine. “‘A violência que se fez a mim e à minha carne venha sobre Babilônia’, dirá a moradora de Sião; e ‘o meu sangue caia sobre os moradores da Caldéia’, dirá Jerusalém” (Jr 51.35).

“Eis que eu farei de Jerusalém um copo de tremor para todos os povos em redor, e também para Judá, durante o cerco contra Jerusalém. E acontecerá naquele dia que farei de Jerusalém uma pedra pesada para todos os povos; todos os que a carregarem certamente serão despedaçados; e ajuntar-se-á contra ela todo o povo da terra” (Zc 12.2,3). Quando nos tiverem comido e engolido, eles terão náusea e nos vomitarão vivos novamente; o estômago do diabo não pode digerir a Igreja de Deus.

O sofrimento é a outra metade de nosso ministério; contudo, a mais difícil. Pois ficaríamos satisfeitos se nosso Rei Jesus fizesse uma proclamação aberta, e derrubasse as cruzes, e exaltasse o gozo, a alegria, a tranqüilidade, a honra e a paz. Mas não pode ser assim. Por meio de muitas aflições é que entraremos no reino de Deus (At 14.22b). Não somente por meio delas, mas passando através delas deveremos ir, e as artimanhas não nos pouparão a cruz. É loucura pensar que entraremos furtivamente no céu, com a pele íntegra.

Ofereceram-me objeções a meu Senhor, e fui sacudido por desafios sobre se Ele me amava ou não, e por frequentes debates sobre tudo o que Ele fez por mim, porque Sua Palavra era um fogo preso em minhas entranhas, e eu estava cansado de controlar-me porque eu disse que tinha sido lançado fora da herança do Senhor. Mas agora vejo que fui um tolo. O Senhor não levou em conta nada disso e suportou meus tolos ciúmes, e não levou em conta que ofendi Seu amor.

E agora Ele voltou com misericórdia sob Suas asas. Eu fui além de minha (Oh, insensatez!) convocação. Ele é Deus, eu sei, e eu sou homem. Agora agradou-Lhe renovar Seu amor à minha alma e favorecer Seu pobre prisioneiro. Portanto, meu irmão, ajuda-me a louvar, e mostra ao povo do Senhor perto de ti o que Ele fez à minha alma para que eles possam orar e louvar. E eu te encarrego, em nome de Cristo, não omitir isso.

Por esta causa escrevo a ti: que meus sofrimentos glorifiquem meu nobre Rei e edifiquem Sua Igreja na Irlanda. Ele sabe o quanto uma brasa viva de Cristo tem queimado minha alma com o desejo de que minhas cadeias preguem Sua glória, cuja cruz agora eu suporto. Que Deus te perdoe, se tu não o fizeres. Mas espero que o Senhor mova teu coração a proclamar em meu favor a doçura, a excelência e a glória do meu nobre Rei. Foi nossa carne fraca que levantou uma calúnia contra a Cruz de Cristo; agora vejo o lado bom disso; as cadeias do meu Senhor são todas disfarçadas. Oh, se a Escócia e a Irlanda fizessem parte da minha festa! Mas eu só consigo meu quinhão com muito sacrifício. Não há ninguém aqui com quem eu possa conversar; eu habito nas tendas de Quedar (Ct 1.5). Refrigera-me com uma carta tua. Poucos sabem o que há entre mim e Cristo.

Caro irmão, por minha salvação, é por Sua verdade que sofremos agora. Cristo não daria carta branca às almas.

Coragem, coragem! Alegria, alegria para sempre! Oh, que gozo inefável e glorioso (1Pd 1.8)! Oh, ajuda a exaltar meu coroado Rei! Oh, ama Aquele que é todo amor! – aquele amor que as muitas águas não podem apagar, nem podem os rios afogá-lo (Ct 8.7)!

[1] Robert Blair nasceu em Irvine em 1593, tornou-se ministro presbiteriano em Bangor, Irlanda do Norte, em 1623. Os arcebispos anglicanos se opuseram a ele e asseguraram sua demissão em 1634. Embarcou com outros ministros para a Nova Inglaterra (EUA), porém tempestades os fizeram retornar. Em 1638 tornou-se ministro em Ayr, porém logo se mudou para St. Andrews, onde ele e Rutherford se tornaram amigos chegados. Ele morreu em 1666.

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Samuel Rutherford Sofrimento Testemunho

Cartas de Samuel Rutherford (4)

Para John Gordon[1]

Aberdeen, 1637

Ganhe a Cristo de qualquer forma

Rogo-te, senhor, pela salvação de tua preciosa alma e pelas misericórdias de Deus, que utilizes bem e com certeza tua salvação, e proves sobre que fundamento tens edificado. Digno e caro senhor, se estiveres sobre areia movediça, a tempestade da morte e uma rajada de vento te perderá de Cristo e te arrastará da rocha. Oh, pelo amor de Deus, olha minuciosamente para a obra!

Revê tua vida sob a divina luz do dia e do Sol, pois a salvação não é lançada à porta de todo homem. É bom que olhes tua bússola, e tudo de que necessitas, antes de embarcares, pois nenhum vento poderá trazer-te de volta. Lembra-te, quando a corrida terminar, e o jogo estiver ganho ou perdido, e estiveres no círculo final e às margens do tempo, e colocares teu pé na fronteira da eternidade, e todas as tuas boas coisas deste curto sonho noturno te parecerem como cinzas de uma rápida queima de espinhos ou de palha, e tua pobre alma clamar: “Pousada, pousada, pelo amor de Deus!”, então tua alma estará mais feliz em um dos amáveis e despretensiosos sorrisos de teu Senhor do que se tivesses o domínio de três mundos pela eternidade. Que prazeres e ganhos, vontade e desejos deste mundo sejam postos nas mãos de Deus, como bens presos e cercados com os quais não podes lidar. Agora, quando bebes a borra de tua taça, e estás na extremidade final da última ligação com o tempo, e a idade avançada, como uma longa sombra de morte, lança uma cobertura sobre teus dias, não é hora de cortejares esta vida vã e nela colocares o amor e o coração. Já é quase depois da ceia; procura descanso e sossego para tua alma em Deus, por meio de Cristo.

Creia-me que acho difícil lutar para ser honesto com Cristo, e estar em paz com Ele, e amá-Lo em integridade de vida e manter um curso constante de comunhão diária sã e sólida com Cristo. As tentações estão diariamente quebrando o fio desse caminho, e não é fácil atá-lo novamente; e muitos laços produzem obras más. Oh, quantos barcos estão lindamente navegando com o vento e, no espaço de uma hora, jazem no fundo do mar! Quantos mestres emitem um brilho dourado como se fossem de ouro puro, e, contudo, por baixo daquela capa não passam de um metal básico e depravado! E quantos mantêm o fôlego por muitos quilômetros em sua corrida, mas não conseguem o prêmio e a guirlanda de louro!

Caro senhor, minha alma lamentaria secretamente por ti, se eu soubesse que tua relação com Deus fosse apenas uma obra falsa. O amor para fazer-te ancorar em Cristo me faz temer tuas vacilações e teus deslizes. Uma falsa imersão, não vista com base em uma consciência iluminada, é perigosa, assim como o cair frequentemente e o pecar contra a luz. Sabe que aqueles que nunca tiveram noites ou dias ruins por consciência do pecado terão essa paz com Deus como uma pústula sob a pele que romperá a carne outra vez, e terminarão numa triste guerra na morte. Oh, como milhares estão terrivelmente enganados com o falso esconderijo, construído sobre velhos pecados, como se a alma estivesse curada e sã!

Caro senhor, eu sempre vi em ti uma natureza poderosa, elevada, impetuosa e forte; e que era mais difícil para ti do que para outro homem comum o ser mortificado e morto para o mundo. Será preciso uma maré baixa, um corte profundo e um longo arpão para alcançar o fundo de tuas feridas em uma humilhação salvadora para fazer-te uma presa para Cristo. Sê humilde; anda suavemente. Abaixa, abaixa, pelo amor de Deus, meu caro e digno irmão, tua vela. Curva-te, curva-te! A entrada para se passar o portão do céu é baixa. Há justiça infinita Naquele com quem tu deves lidar; é de Sua natureza não inocentar o culpado e o pecador. A lei de Deus não aceitará um vintém do pecador. Deus não se esquece nem do prudente nem do pecador; e todo homem deve pagar, ou em sua própria pessoa (Oh, que o Senhor te salve desse pagamento!), ou em sua segurança, Cristo.

A beleza de Cristo

É violência para a natureza corrompida de um homem se tornar santo, cair aos pés de Cristo, abdicar da vontade, do prazer, do amor pelo mundo, da esperança terrena e de um desejo do coração por este mundo colorido e exagerado, e estar satisfeito que Cristo passe por cima de tudo isso. Vem, vem a Cristo, e vê, e encontra o que tu queres Nele. Ele é o atalho (como dizíamos) e o caminho mais curto para escapares de todos os teus fardos. Ouso afirmar que tu serás muito bem-vindo a Ele. Minha alma se alegraria em ser partícipe do gozo que terias Nele. Ouso dizer que nem as penas de escrever dos anjos, nem a língua dos anjos, não, nem os tantos mundos de anjos, como são as gotas de água dos mares, das fontes e dos rios da Terra poderiam descrevê-Lo para ti. Penso que a doçura Dele, desde que me tornei prisioneiro, aumentou sobre mim até à grandeza de dois céus. Oh, é preciso uma alma tão larga quanto o maior círculo do mais alto céu, que tudo contém, para conter Seu amor!

Mas eu pude pegar um pouco disso. Oh, maravilha do mundo! Oh, se minha alma pudesse apenas deitar-se na fragrância de Seu amor, supondo que eu não pudesse obter nada além dessa fragrância! Oh, mas ainda está longe o dia em que eu terei um mundo livre do amor de Cristo! Oh, que visão estar no céu, naquele lindo jardim do novo paraíso, e ver e sentir o aroma e tocar e beijar aquela linda flor do campo, aquela sempre verde Árvore da Vida! Só Sua sombra já seria o bastante para mim. Apenas vê-Lo seria o máximo do céu para mim. Vergonha, vergonha sobre nós que temos o amor enferrujando a nosso lado ou, o que é pior, desperdiçado em algum objeto repugnante, e Cristo deixado só. Desgraça, desgraça que o pecado fez tantos loucos, buscando o paraíso dos tolos, fogo sob o gelo, e algumas coisas boas e desejáveis sem Cristo e longe dele. Cristo, Cristo, nada além de Cristo, pode arrefecer a morbidez ardente de nosso amor. Oh, amor sedento! tu irás colocar Cristo, o poço da vida, em tua cabeça e beber até ficares cheio? Bebe, e não desperdiça, bebe o amor e embriaga-te de Cristo! Não, infelizmente! a distância entre nós e Cristo é a morte. Oh, se estivéssemos presos em outros braços! Nós nunca nos separaríamos, exceto se o céu nos separasse e nos dividisse; e isso não pode ocorrer.

Uma palavra para os filhos

Eu desejo que teus filhos busquem o Senhor. Meu desejo para eles é que sejam chamados, pelo amor de Cristo, a serem bem-aventurados e felizes, e venham e tomem Cristo e todas as coisas com Ele. Que tenham cuidado com a juventude frágil e escorregadia, com as ideias tolas dos jovens, com a luxúria mundana, com os ganhos enganadores, com as más companhias, com as maldições, com a mentira, com a blasfêmia e com as conversas tolas. Que eles sejam cheios do Espírito, que se acostumem a orar diariamente e com o manancial da sabedoria e do conforto, a boa Palavra de Deus.


[1] John Gordon, de Cardoness (o Ancião), viveu no Castelo de Cardoness, na paróquia de Anwoth. Era descendente de Gordon de Lochinvar e foi proeminente nos assuntos paroquiais locais. Pouco se sabe sobre Cardoness, o Jovem, exceto que participou da Guerra Civil na Inglaterra. Observamos, pelas cartas, que a natureza humana era forte tanto no pai quanto no filho.

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Perseverança T. Austin-Sparks

Capítulo 2: Uma crise entre o que é terreno e o que é celestial


Leitura: Nm 13.1-3, 17-23, 27-33; 14.1-3.

Estamos considerando o fato e a natureza do caminho celestial. A Bíblia inicia com a criação e o governo dos céus, e termina com a revelação do céu por meio daquilo que ele formou de acordo com princípios celestiais: a cidade santa, a nova Jerusalém, descendo de Deus, do céu, cumprindo a palavra de Hebreus 11.16: “[Deus] já lhes preparou uma cidade.”

O conflito entre o que é terreno e o que é celestial

Relembremos que uma característica de cada estágio do Antigo Testamento é o choque e contraste entre dois mundos, entre duas ordens: a ordem celestial e a ordem terrena. Temos esse elemento ao longo de todo o registro do Antigo Testamento: o céu desafia este mundo e apreende um objeto neste mundo; a partir daí, esse objeto é retirado do mundo e começa a ser constituído de acordo com a natureza e a ordem celestiais. Não é necessário um conhecimento muito profundo do Antigo Testamento para confirmar isso. Ao repassarmos rapidamente sua história, perceberemos que estamos diante de um constante choque, um conflito, um conflito entre o céu e a terra. O céu não está satisfeito com este mundo – muito pelo contrário. O céu é contrário a tudo o que está aqui, e tenta retirar o que puder deste mundo para reconstituir de acordo com seus próprios padrões. Então, apesar de vislumbrarmos a oposição e o desafio do céu, vemos, ao mesmo tempo, desde o início, o céu tomando pessoas, tanto indivíduos como uma nação, com o objetivo de separá-los do mundo, apesar de residirem nele. A partir desse chamado, um processo profundo é iniciado, visando torná-los um tipo, uma espécie de pessoas completamente diferentes das demais; apreendendo-as, em outras palavras, para propósitos celestiais.

Os homens do Antigo Testamento foram os pioneiros do caminho celestial. Já vimos um pouco do que isso envolve, mas é sobre esse ponto em particular que queremos focar nossa ênfase agora. O fato não é apenas que existe um caminho celestial que é diferente, pois sabemos no coração, se nascemos do alto e temos aprendido nesse caminho, que o caminho do céu é diferente dos demais. Mas nosso ponto focal será o pioneirismo que envolve trilhar esse caminho celestial. Esse pioneirismo representa ser chamado a um relacionamento com o céu para abrir caminho, tomar posse e tornar possível que a intenção plena de Deus seja compreendida, interpretada. Esse ministério é dirigido para outros que seguirão por esse mesmo caminho. Já mencionamos que, em certo sentido, todo aquele que nasce do alto é um pioneiro, porque esse caminho é sempre pessoal e intransferível; ninguém pode trilhar esse caminho no lugar de outrem. Nesse momento, trataremos do aspecto vocacional relacionado a isso.

Não há dúvida de que a maioria dos filhos do Senhor sabe pouco, muito pouco, sobre o caminho celestial. O cristianismo organizado se tornou preponderantemente terreno, adotando padrões, conceitos e recursos terrenos, tornando-se consequentemente muito limitado espiritualmente. Este mundo é uma coisa muito, muito pequena, se comparado com os céus. Digo isso espiritual e ilustrativamente. O reino dos céus é vasto, muito maior do que qualquer concepção humana. Os pensamentos de Deus são amplos como os céus em seu alcance, muito mais elevados que os pensamentos da terra; ultrapassam todas as concepções terrenas. Enquanto não sairmos da esfera terrena não perceberemos que, por um lado, somos miseravelmente pequenos e, por outro, que existe um reino muito maior, e que podemos nos mover espiritualmente nele. A grande, grande necessidade de nosso tempo é que o povo de Deus, a Igreja de Deus, chegue à sua verdadeira posição celestial, possuindo visão e vocação celestiais.

Bem, existe muita coisa envolvida nessa declaração, mas, resumidamente, ela significa que alguém, algumas pessoas, deverá ser pioneiro no caminho de trazer a Igreja de volta à esfera inicial de sua concepção que foi perdida quando ela sucumbiu à persistente tendência direcionada à terra. Por isso, um instrumento pioneiro se faz necessário, e o caminho que ele deve seguir envolve um alto preço.

Reafirmo que os homens do Antigo Testamento foram os pioneiros do caminho celestial. Isso é explicitamente afirmado pelo escritor nesta carta aos hebreus, particularmente na passagem referida. A terra não pode prover nada que atenda aos padrões e ao fundamento do céu. Uma das grandes palavras-chave do Antigo Testamento é “santificar”, que significa “separar, tornar santo, consagrar”, que se refere em sua essência a algo espiritual e interior, que provoca uma divisão entre o céu e a terra. Deus dividiu, separou essas duas coisas, e essa separação deve ocorrer de forma espiritual, interiormente, também. Vemos, então, que esses homens do Antigo Testamento foram separados neste sentido: algo foi feito no âmago de seu ser que os separou deste mundo, colocando-os em um caminho que era totalmente diferente dos caminhos terrenos e a eles contrários. Se aqueles homens chegavam a tocar esta terra quando estavam sob pressão e tensão, fosse por engano, inadvertidamente, consciente ou inconscientemente, ficavam atrapalhados. Imediatamente percebiam em seu interior que estavam fora do caminho, e a única coisa a fazer era retornar. Isso é repetido diversas vezes no relato bíblico. O céu testemunhava contra a posição deles, eles estavam em problemas. Só depois de retornarem ao curso correto poderiam prosseguir. Aquelas pessoas estavam sendo governadas por outro padrão, e quão diferente e difícil de entender era esse padrão!

Considere Caim e Abel. Do ponto de vista deste mundo, o procedimento de Caim foi muito válido. Na ótica do homem religioso deste mundo, é difícil ver o que estava errado com Caim ou muito certo com Abel, ou quão absolutamente certo e quão absolutamente errado cada um deles estava. No entanto, vemos como Abel estava absolutamente certo quanto a isso. Um deles conseguiu tocar o céu. Isso é um fato. Abel tocou Deus e o céu, e Caim estava diante de um céu fechado e da rejeição de Deus.

Mas qual é o padrão? Apenas a diferença entre o céu e a terra. A base e o padrão para acesso ao céu é totalmente diferente do terreno – diferente mesmo do que há de religioso na terra. O homem religioso pode ter o mesmo Deus, adorar o mesmo Deus, trazer sua oferta para o mesmo Deus, e ainda assim não conseguir um caminho para o céu, na estrada celestial. O céu tem seus próprios padrões, bases e provisões, e a terra não pode encontrá-los ou produzi-los, pois é diferente do céu. Esse é o fato que enfrentamos quando se trata de tocar o céu. Não me refiro a uma localização geográfica, mas falo de tocar Deus, de encontrar um caminho aberto para o céu. Só é possível chegar ali com a provisão originada pelo próprio céu, e isso transtorna todos as nossas estimativas naturais. Precisamos de algo que a natureza não pode produzir. Se você, como Caim, raciocinar de acordo com a razão religiosa e tomar essa base, não chegará a lugar nenhum. “Pela fé Abel ofereceu a Deus maior sacrifício do que Caim, pelo qual alcançou testemunho de que era justo, dando Deus testemunho dos seus dons, e por ela, depois de morto, ainda fala” (Hb 11.4). Vemos aí uma atestação do céu.

Não estou tratando da natureza e de todos os detalhes dessas coisas, apenas aponto para um fato: que os padrões e os julgamentos celestiais são absolutamente diferentes dos terrenos. Ficaremos totalmente confundidos se tentarmos tocar o céu, ainda que utilizemos artifícios religiosos para isso. Nicodemos pode ser a representação perfeita do sistema religioso, e, ainda assim, não chegou a lugar algum no que diz respeito ao céu. O céu estabeleceu seu próprio meio de acesso, e precisaremos dele para chegar lá. Você pode questionar mil vezes “por quê?”, mas é o fato.

Pioneiros são líderes

Vamos retornar ao texto que lemos em Números. Registra a ocasião em que os espias foram enviados, e o ponto focal desse registro está sobre dois homens: Josué e Calebe. Notemos que os doze cabeças das cadas paternas, príncipes em Israel (um termo cheio de significado), eram homens tipicamente representativos. Eles foram chamados para serem os pioneiros do caminho celestial. O princípio de sua liderança e de sua realeza estava centrado em serem pioneiros, pois esse é o princípio do pioneiro. Se formos verdadeiros pioneiros, seremos líderes, teremos um caráter de príncipes. Todavia, apenas dois deles justificaram seu chamamento, tornando-se aquilo que todos os outros deveriam ter sido: pioneiros. Muitas vezes, é isto que ocorre: a minoria, uma minoria muito destacada, faz o trabalho. Os outros têm o nome, mas não fazem jus a ele; os outros têm uma posição oficial, mas não vivem de acordo com ela. A questão principal é: onde a coisa está sendo feita? Ali estavam Josué e Calebe.

Uma conexão com o passado

Vamos tomar um tempo considerando o significado destes dois homens: Josué e Calebe. Para começar, vamos considerá-los como um elo com o passado. A intenção original de Deus que eles adotaram remetia à aliança divina com Abraão, de modo que em Josué e Calebe vemos Abraão posto muito em evidência. Somos compelidos a olhar para trás e reavaliar o significado de Abraão, à luz da posição tomada por esses dois, uma vez que o momento em que Josué e Calebe surgiram era crítico, a hora de uma crise muito grande. A questão suprema era: o propósito de Deus seria ou não cumprido naquele povo? Essa pergunta é extremamente relevante; uma verdadeira crise veio à tona. E Josué e Calebe foram o fator decisivo.

Vemos três características de Abraão manifestadas nessa situação.

Uma semente espiritual e celestial

Em primeiro lugar, vemos uma semente espiritual e celestial. Retenhamos isto: uma semente espiritual e celestial. Hoje estamos em uma posição muito vantajosa. Temos a compreensão do pleno significado de Abraão por meio da instrução do Espírito Santo. Temos o Novo Testamento, e nele temos tudo o que é dito a respeito do patriarca. O apóstolo Paulo nos apresenta uma revelação completa disso no Novo Testamento; não precisamos voltar ao Antigo Testamento para obter conhecimento, podemos ver o pleno sentido de Abraão agora no Novo Testamento que temos em mãos. Quanto a isso, recebemos muita luz adicional.

Uma semente espiritual e celestial. Perceba essa semente espiritual e celestial em Josué e em Calebe, percebam como eles apontam para ela. No entanto, temos outra semente de Abraão que não é espiritual nem celestial, pois desceu à terra. Vemos no registro de Números 13 e 14 as reações do povo, tão grosseiras, tão terrenas, totalmente carentes de visão, vida e aspiração espirituais! Aquelas pessoas foram inteiramente influenciadas pelo terrenal, pela visão natural, pelas coisas visíveis como dificuldades, pessoas e montanhas. A conclusão delas foi que não havia solução. Para Josué e Calebe, as montanhas eram um caminho, não um obstáculo. Havia um caminho celestial. Mas os outros não viram nada disso; eles eram terrenais.

O pensamento de Deus em Abraão, que fica claro para nós no Novo Testamento, era obter uma semente celestial e espiritual.

Uma semente especial

Será que podemos receber mais luz em relação a essa semente? Essa semente era algo especial, exclusivo. Paulo afirma isso em sua Epístola aos Gálatas. “Ora, as promessas foram feitas a Abraão e à sua descendência. Não diz: E às descendências, como falando de muitas, mas como de uma só: E à tua descendência, que é Cristo” (3.16). Aquela semente era singular. Um ponto importante era que Abraão estava inseparável e exclusivamente ligado a Sara. Naquela época, era permitido ao homem ter mais de uma esposa, mas Deus restringiu Abraão à Sara. Quando estava sob pressão, Abraão tentou uma solução alternativa com Agar, mas, como já mencionei, aquela foi uma falha, um deslize, um erro, uma tolice cometida durante um período de severa provação, pressão e coação. Naquele momento Abraão abandonou o caminho celestial e o resultado foi lastimável – a história lamenta isso até hoje. Abraão precisou retornar para Sara. Deus não permitiria outra opção, pois aquele assunto era peculiar e exclusivo. Sua realização não se daria por meio de Agar e de ninguém mais, mas exclusivamente dentro do caminho proposto pelo Senhor.

Nascimento e sustento sobrenaturais

Aquela semente trazia consigo as marcas do celestial. Seu nascimento foi sobrenatural, pois era absolutamente impossível que ocorresse pelas linhas naturais. A semente era Isaque, que representava uma limitação, pois Abraão dependia de uma intervenção do alto para gerar esse filho. Isaque não teria sido trazido à existência se o céu não tivesse assumido a situação. Deus foi muito específico a esse respeito. Por vezes, para compreender a importância que a coisa certa tem para Deus, Ele nos permite ver quão terrível é a coisa errada. Deus não permite que um erro, que um deslize nosso simplesmente passe desapercebido. Às vezes seremos atormentados até o fim da vida pelas consequências de nossas escolhas erradas. Deus permitirá isso para que vejamos com clareza que o caminho certo é muito importante; ele não é só uma opção. O caminho precisa ser celestial, e qualquer alternativa não será tolerada como se ela não fizesse diferença. Descobrimos que isso de fato importa, como aconteceu no caso de Isaque. Se o céu não fizer esse milagre, nada acontecerá, pois esse é o caminho celestial. Como precisamos aprender, e estamos aprendendo, sobre esse princípio! Isso explica muitos acontecimentos de nossa vida. Deus nos tem em Suas mãos.

O princípio de morte e ressurreição

Além de Isaque ter sido um produto celestial, fruto de uma intervenção dos céus, por meio de um milagre, Deus ainda foi mais longe quando pediu a oferta dele como sacrifício. Ainda que seu nascimento tivesse sido miraculoso, por meio de um ato direto dos céus, algo mais precisava acontecer: Isaque deveria morrer e ressuscitar dos mortos. Esse poderoso ato de Deus precisaria ocorrer e referendar tudo isso. A afirmação de Paulo em Romanos 1.4: “Declarado Filho de Deus em poder, segundo o Espírito de santificação, pela ressurreição dos mortos”, poderia ser traduzida “homologado Filho de Deus […] pela ressurreição”. Isto é o que Isaque representa: algo aprovado, homologado, referendado pelos céus.

Esse fato explica muito de nossa particular história espiritual. Não apenas nascemos de novo por meio de um milagre e da intervenção do céu, mas isso tem sido continuamente homologado pelo céu. Deus demanda que sejamos sustentados pela vida de ressurreição, e para saber o que é essa vida precisaremos conhecer um pouco do que é a morte. Deus nos sustenta em uma base celestial. Este é o significado de Isaque: não fomos apenas colocados sobre uma base celestial, mas somos sustentado nessa posição por constantes manifestações de ressurreição, em momentos em que somente a ressurreição pode resolver a situação.

Afinal, independente de como foi o início de nossa vida cristã – ainda que tenhamos tido uma experiência maravilhosa de conversão, e tenhamos registrado em um caderno quando e onde isso aconteceu –, essa experiência precisa ser ratificada continuamente pela manifestação da ressurreição. Precisaremos ser sustentados nesse terreno. Esse é o caminho do pioneiro. Esse pioneirismo no caminho celestial é conhecer vez após vez o significado da morte e suas terríveis consequências, a fim de saber o verdadeiro significado da ressurreição e sua grandiosidade. Esse é o caminho pioneiro, que foi seguido inicialmente pela Igreja, por muitos filhos de Deus e onde muitas revelações divinas sobre ele foram concedidas. Foi dessa maneira que o caminho celestial foi preservado vivo e longe da “podridão” [cf. Os 5:12] das coisas terrenas que sempre tentam minar a vida cristã. Sabemos quanto isso é verdade.

Abraão progressivamente descobriu que sua verdadeira herança estava no céu. Considero maravilhoso este aspecto da vida e da experiência de Abraão sob a mão de Deus: que ele, sem dúvida, quando iniciou sua jornada de obediência, interpretou as promessas do Senhor de forma terrena e limitada. Certamente ele imaginava que aquelas promessas se cumpririam dentro de suas expectativas racionais e tangíveis, mas, quanto mais o tempo passava e sua vida se desenrolava, mais Abraão se dava conta de que as coisas não aconteceriam dentro de suas concepções, e que tudo aquilo se referia a algo superior e diferente de sua idéia original. Ele prosseguiu, e mais adiante vemos que foi incluído no registro de Hebreus 11: “Todos estes morreram na fé, sem terem recebido as promessas; mas vendo-as de longe […] Mas agora desejam uma melhor, isto é, a celestial” [vv. 13,16]. A primeira impressão que Abraão teve do chamado inicial de Deus: “Eu o levarei a um país” (cf. Gn 12.1), pode ter sido atrelada a algo terreno, mas, por fim, ele percebeu que não se tratava disso. Pelas palavras do Senhor Jesus, sabemos que a visão e a percepção de Abraão foram alargadas: “Abraão, vosso pai, exultou por ver o meu dia, e viu-o, e alegrou-se” (Jo 8.56). “Mas vendo-as de longe”. Paulo também reforça isso em sua Epístola aos Gálatas, ao afirmar: “Não diz: ‘E às descendências’, como falando de muitas, mas como de uma só: ‘E à tua descendência’, que é Cristo” [3.16]. Cristo era a resposta para tudo que se relacionava à herança de Abraão.

Mas Cristo, o Cristo celestial, é a encarnação de tudo o que é celestial. Não conhecemos a Cristo segundo a carne; Ele é essencialmente celestial. Podemos ver a natureza celestial dessa semente, e podemos reunir tudo isso em Josué e Calebe. Quem herdará, prosseguirá e possuirá a herança? Certamente não será essa multidão de pessoas que tem uma mentalidade terrena e está arraigada a essa terra. Aqui mesmo elas perecerão: a terra se tornará sua prisão e sepultura. Essas pessoas serão substituídas por uma geração com uma nova constituição – representada por Josué e Calebe, as primícias de uma nova geração – que possuirão a herança [cf. Nm 14.29-32]. Eles foram os pioneiros do caminho e da plenitude celestiais. Mas como precisaram sofrer por isso! “Toda a congregação disse que os apedrejassem” (v. 10). O pioneirismo é sempre um caminho que envolve sofrimento e um alto preço, e isso não apenas entre as pessoas do mundo, mas também entre aqueles que atendem pelo nome de povo de Deus.

Os pioneiros desse caminho sempre serão como uma semente celestial, e sua constituição celestial será continuamente homologada pela necessidade de repetidas intervenções do céu para possibilitar que tenham liberação, libertação e progresso. Esse é o processo da vida espiritual. Se o céu não interviesse a nosso favor teríamos parado, não avançaríamos, de fato seríamos aniquilados se Deus não tivesse ratificado este fato: pertencemos ao céu. E Ele continua ratificando isso.

Podemos ver claramente como tudo isso é cumprido em Cristo, a Semente Celestial. Seu nascimento aconteceu por meio de uma intervenção do céu, um milagre. No Seu batismo, o céu irrompeu novamente, atestando: “Este é o meu Filho amado” [Mt 3.17]. E o que diremos a respeito de Sua Cruz? Ela não se parece muito com uma intervenção do céu. Mas espere um pouco: não se esqueça que o Novo Testamento nunca se refere apenas ao aspecto da morte, ao mencionar a Cruz de Cristo. No Novo Testamento, a Cruz tem dois lados gêmeos: morte, ressurreição. “A este que vos foi entregue pelo determinado conselho e presciência de Deus, prendestes, crucificastes e matastes pelas mãos de injustos” (At 2.23,24). O mundo fez tudo o que podia contra Ele, usou todas as suas armas. Os poderes do mal exauriram suas forças. O que mais poderia ser feito? Então, o céu entrou em cena, despojando esses poderes e ressuscitando a Jesus: ratificando assim que Ele pertencia ao céu, e não a este mundo. O Senhor Jesus não era propriedade, nem brinquedo do mundo e dos poderes malignos que o governam. Ele pertence ao céu, e o céu interveio, não apenas O levantando, mas também O conduzindo para as alturas, acima deste mundo, sujeitando tudo a Seus pés [cf. Ef 1.19-22; Cl 2.15].

A história espiritual do Senhor Jesus é a história espiritual do pioneiro do caminho celestial. O Senhor é o Pioneiro, conforme registrado na Epístola aos Hebreus: “Penetra até ao interior do véu, onde Jesus, nosso precursor, entrou por nós” (6.19,20).

Uma conexão entre fracasso e realização

Enquanto vislumbramos os aspectos demonstrados em Josué e Calebe, que podem ser diretamente ligados a Abraão, ainda temos outro ponto a considerar antes de encerrar. Eles foram pioneiros, como Abraão, e foram um elo entre o fracasso e a realização. Contemple o mundo no tempo em que “o Deus da glória apareceu a nosso pai Abraão” (At 7.2), em Ur dos caldeus. Se buscar ali alguma coisa que seja do céu, onde encontrará? Onde podemos encontrar o propósito de Deus de obter algo celestial? Parece que isso mais uma vez desapareceu. Não parece existir nenhum testemunho deste pensamento celestial de Deus: um povo celestial, um testemunho celestial, algo que representasse e expressasse o pensamento dos céus. Onde encontraremos isso? “O Deus da glória apareceu a nosso pai Abraão”, e esse homem se tornou o elo entre o fracasso e a realização.

Josué e Calebe assumiram essa posição. Temos a história do fracasso no deserto. Onde veremos aquilo que é celestial em meio a esse fracasso? Para eles, onde está o propósito de Deus? Deus não desistiu. Pode parecer que Seu propósito tenha quase desaparecido, e isso tem ocorrido repetidas vezes. Todavia, o céu interveio e assegurou um elo entre o fracasso na terra e o triunfo do céu. Esse elo é o pioneiro. O Senhor precisa ter um instrumento como esse para enfrentar o fracasso e possibilitar mais uma vez a abertura do caminho celestial para a realização.

Você provavelmente se pergunta: “O que isso tem a ver comigo?”, e afirma: “Sim, são idéias maravilhosas, vejo que é uma verdade e que está bem clara na Bíblia, mas como isso me afeta?” O fato é que ela afeta. Algumas pessoas não gostam de meditar muito de maneira crítica a respeito de uma situação, e, independente do que for dito a esse respeito, falando de maneira bem geral, ainda assim o Senhor terá espaço para algo valioso na terra. A grande necessidade dos cristãos hoje é serem restaurados ao pleno propósito celestial de Deus, pois se envolveram com coisas diferentes e inferiores, contentando-se com menos. Isso sempre aconteceu. Foi por essa razão que a maior parte do Novo Testamento foi escrito. O povo do Senhor está sempre em perigo de agir assim. Quando os cristãos gravitam espiritualmente em torno deste mundo, acabam, de alguma forma, perdendo seu testemunho celestial. Sempre haverá uma pressão para baixo, e o Senhor precisa de pessoas com visão, que se tornarão como aquelas pessoas mencionadas em nossa última meditação, para quem o centro de gravidade da vida foi transferido deste mundo para o céu, nas quais há essa percepção. Independente de possuírem ou não a capacidade de interpretar ou de estabelecer um sistema de verdades, de doutrinas ou de ensino bíblico a esse respeito, existirá a percepção de que a vida está atrelada a um destino grandioso e superior àquilo que este mundo pode prover. Essas pessoas foram capturadas por algo que só podem traduzir como um chamamento celestial, o qual as sustêm.

Vamos aprofundar isso mais adiante. O Senhor precisa de um povo assim, que simplesmente não pode se satisfazer com as coisas como elas são. Não se trata apenas de uma questão da mente, da razão, afinal. Algo aconteceu no interior essas pessoas; elas têm a consciência de que Deus fez algo. Por causa disso, elas estão comprometidas com algo muito superior às pobres coisas limitadas dessa vida e desse mundo. Elas foram ligadas interiormente a algo tremendo. Vou reiterar que essas pessoas terão consciência disso, ainda que não sejam capazes de pregar essa mensagem. Nunca seremos úteis para Deus além de nossa visão – visão essa forjada interiormente por Deus –, além de nossos próprios sentimentos. A medida de nossa visão determinará a medida de nossa utilidade. Oh, como seria bom haver uma medida incomensurável do céu no coração de um povo! Essa é a necessidade de nossos dias.

Concluo reafirmando que, embora o apóstolo fale tanto dessa vocação celestial, esse é um caminho muito difícil e repleto de todo tipo de dificuldade. Todavia, é o caminho real, verdadeiro e supremo, pois o céu é uma natureza, um poder, uma vida, uma ordem, e está destinado a encher este mundo e este universo.


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