Eu te exorto, pelas entranhas de Cristo: começa a trabalhar por tua alma. E que estas coisas pesem em ti, e que tu as consideres seriamente.
Choro e ranger de dentes nas trevas absolutas, ou o gozo do céu.
Pensa no que darias por uma hora, quando jazeres deitado naquela dia morto, frio, de escuridão.
Ainda há areia em tua ampulheta, e teu Sol ainda não se pôs.
Considera tu quanta alegria e paz há no culto a Cristo.
Pensa na vantagem de teres os anjos, o mundo, a vida e a morte, cruzes, sim, e demônios, tudo para ti, como ajudantes e servos do Rei para realizarem o que diz respeito a ti.
Teres misericórdia sobre tua semente e uma bênção sobre tua casa.
Teres verdadeira honra e um nome na terra que exala um doce aroma.
Como te regozijarás quando Cristo deitar tua cabeça sob o Seu queixo e em Seu peito, e secar teu rosto, e introduzir-te na glória e na alegria.
Imagina que dor e que tortura é ter uma consciência culpada; que escravidão é levar as cargas desonestas do diabo.
A alegria do pecado não passa de sonhos, pensamentos, vapores, imaginações e sombras.
Que dignidade é seres filho de Deus.
Domínio e comando sobre as tentações, sobre o mundo e o pecado.
Que teus inimigos sejam a cauda, e tu, a cabeça.
Para teus filhos que estão agora em descanso (dirijo-me a ti e a tua mulher, e faze-a ler esta carta):
Eu sou uma testemunha da glória de Barbara no céu.
Quanto ao mais, escrevo com a certeza de que chegarão dias na Escócia quando ventres estéreis, e peitos secos e pais sem filhos serão chamados bem-aventurados. Estarão no abrigo do porto, antes que chegue a tempestade.
Não estão perdidos para ti os que estão nos tesouros de Cristo, no céu.
Na ressurreição, tu os encontrarás; para lá eles foram enviados antes, mas não estão perdidos.
Teu Senhor te ama, que é humilde para receber e dar, para emprestar e tomar emprestado.
Não deixes que crianças sejam teus ídolos, pois Deus terá ciúme e tirará o ídolo, porque Ele é ávido por teu amor total.
[1] John Gordon (o Jovem). Pouco se sabe sobre o Jovem de Cardoness, exceto que participou da Guerra Civil na Inglaterra. Deduzimos, pelas Cartas, que a natureza humana era forte, tanto no pai quanto no filho.
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A alma vê também que Jesus é um Salvador completo, perfeito, que oferece ao pecador, não apenas perdão, mas perdão abundante e sem medida; que não apenas lhe dá justiça, mas uma justiça maior que a justiça humana, uma justiça completamente divina; não apenas lhe dá o Espírito, mas dá rios de água viva e inundações sobre o sedento e árido terreno da alma dele. A alma descobre isso em Jesus, e nada pode fazer a não ser escolhê-Lo e deleitar-se Nele com um novo e particular amor, que diz: “Meu Amado é meu!”
E se alguém lhe pergunta: “Como tu te atreves, verme vil, a dizer que o Salvador é teu?”, a resposta é esta:
“Porque eu sou Dele. Ele me escolheu desde antes da fundação do mundo, mesmo que eu nunca O houvesse escolhido; Ele derramou Seu sangue por mim, apesar de eu, por Ele, jamais ter derramado nem uma única lágrima; Ele clamou por mim, apesar de eu nunca ter-me preocupado com Ele; Ele viu a mim, mesmo quando eu jamais houvesse me preocupado em conhecê-Lo. Ele me amou primeiro; por isso, eu O amo. Ele me escolheu; por isso eu O escolhi para sempre.” “Meu Amado é meu, e eu sou Dele.”
(Publicado originalmente em 11.11.07. Revisado e republicado em 30.3.21.)
Todos estes morreram na fé, sem terem recebido as promessas; mas vendo-as de longe, e crendo-as e abraçando-as, confessaram que eram estrangeiros e peregrinos na terra. Porque, os que isto dizem, claramente mostram que buscam uma pátria. E se, na verdade, se lembrassem daquela de onde haviam saído, teriam oportunidade de tornar. Mas agora desejam uma melhor, isto é, a celestial. Por isso também Deus não se envergonha deles, de se chamar seu Deus, porque já lhes preparou uma cidade.
(Hb 11.13-16)
Vamos voltar a falar de Abraão como um dos pioneiros representativos do caminho celestial. Começamos reiterando um aspecto que foi muito real em Abraão: seu senso profundo e inato de destino. Isso também precisa ser verdadeiro, e sempre será, no pioneiro celestial que está avançando na descoberta e na exploração do reino celestial. Estevão nos disse, a respeito de Abraão, que “o Deus da glória apareceu a nosso pai Abraão” (At 7.2) quando ele estava em Ur dos caldeus. Não sabemos como o Deus da glória apareceu para ele. Pode ter sido por meio de uma daquelas teofanias comuns ao Antigo Testamento, e ocorridas mais adiante na vida de Abraão, quando Deus veio até ele em forma humana [cf. Gn 18.1,2]. Nós não sabemos como aconteceu. Todavia, ao considerarmos toda a sua vida, sabemos que o efeito dessa aparição trouxe à luz esse tremendo senso de destino que o desenraizou de toda a vida passada, criando uma profunda inquietação, uma inquietação do tipo correto, um descontentamento profundo e santo.
O descontentamento pode ser uma coisa absolutamente errada, mas existe um tipo correto de descontentamento. Queira Deus que muitos mais cristãos o tenham! Em Abraão se iniciou um desejo que cresceu sucessivamente ao longo dos anos, tornando impossível para ele se estabelecer e aceitar qualquer coisa menor do aquilo que fosse o pleno propósito de Deus. Abraão não poderia aceitar uma segunda opção naquilo que se relacionava a Deus. Sim, essa consciência precisava crescer. Ele foi compreendendo progressivamente o que aquilo significava. Acontecia assim: ele chegava a certo lugar, e talvez pensasse que ali era o lugar, e então descobria que não era, e tinha de se mudar. Talvez ele tenha pensado: “Agora, é aqui… mas não, não é. Ainda não sei o que é… não posso definir, explicar, mas lá dentro sei que Deus tem algo mais”. “Não que já a tenha alcançado, ou que seja perfeito; mas prossigo” (Fp 3.12). Esse é o desejo, ao longo das eras, e que foi tão real no caso do homem cujas palavras acabo de citar. Paulo nunca foi capaz de aceitar o segundo melhor de Deus. Deus tem um segundo melhor. Vemos repetidamente ao longo da história ocasiões em que Deus percebe que é impossível obter Sua “primeira escolha”, Seu melhor. As pessoas não continuariam em frente. Então, o Senhor diz: “Tudo bem; vocês terão meu segundo melhor”, e elas o obtinham. Mas os pioneiros nunca fazem isso. Abraão não poderia fazer isso.
Não podemos entender ou interpretar de modo equivocado a atitude de Abraão, considerando-a fruto de uma natureza instável ou temperamental. Não pense que você ser uma pessoa que nunca está satisfeita é sinal de descontentamento Divino. Esse descontentamento pode refletir instabilidade. Você pode ser uma daquelas pessoas que nunca consegue se fixar em nada por muito tempo, sempre pulando de uma coisa para outra. Nesse caso, você será um completo desajustado, tanto no mundo quanto no reino de Deus. Não foi esse tipo de coisa que aconteceu com Abraão. Havia algo do céu operando nele, e a prova disso foi que eles estava em movimento continuamente ascendente. Abraão não caminhava na horizontal, mas sempre para cima. Ele progredia continuamente no âmbito terreno, bem como na esfera celestial.
Podemos observar que Ló estava junto com Abraão, mas Ló era um homem que sempre buscava segurança aqui. Ele buscou uma cidade, uma casa; ele não gostava da vida de tenda. Ló desejava se estabelecer neste mundo, e foi isso que ele buscou. Mas por essa razão Ló era o homem fraco. Abraão, que sempre se movia em uma tenda, era o homem forte. Isso não era natural, mas espiritual. Esse impulso do céu, esta poderosa operação de uma força espiritual em Abraão, levou-o a ingressar nessa difícil escola do celestial. Para aquilo que é natural e terreno, para a carne, a escola celestial é muito difícil, e Abraão foi trazido a ela por meio desse impulso do céu.
Conflito entre o espiritual e o temporal
Em primeiro lugar, temos o conflito entre o espiritual e o temporal, o visível e o invisível – e esse é um conflito muito feroz. Às vezes, vemos esse conflito em questões muito delicadas da vida de Abraão. Por um lado, Abraão foi abençoado pelo Senhor, o Senhor lhe deu prosperidade, havia sinais de que o Senhor estava com ele. Houve aumento, ampliação essa tão grande ao ponto de ser constrangedora. Seus rebanhos e manadas se multiplicaram; Abraão era um verdadeiro príncipe na terra. Ainda assim, ainda assim, aquela mesma bênção do Senhor às vezes chegava ao ponto de estar prestes a ser eliminada por uma fome aguda e devastadora. Por que Deus abençoou, aumentou e ampliou, e então permitiu algo que poderia acabar com tudo aquilo que havia lhe concedido? Esse é um problema complicado, não é? Não teria sido melhor permanecer pequeno e limitado a ver tudo isso ameaçado? Abraão achou o problema muito sério. Essa foi a razão de um de seus fracassos. Ele desceu para o Egito [cf. Gn 12.10-20].
Era uma escola difícil.
O que isso significa? Parece que Deus dá com uma mão e tira com a outra. Concede prosperidade e bênção, e então permite que algo aconteça que ameaça destruir a própria bênção que Ele concedeu. Seria Deus contraditório assim? Estaria negando a Si mesmo? Você conhece a tentação de tentar interpretar as coisas nessas ocasiões. Afinal de contas, seríamos apenas peões em um jogo? Seríamos apenas filhos do acaso, da fortuna ou do infortúnio? Estaria o Senhor nisso, afinal? Essas circunstâncias podem realmente explicar o Senhor, que é um Deus constante?
Essa é uma escola difícil. Mas perceba que está totalmente de acordo com aquilo que Deus está fazendo.
O que Ele está fazendo?
Bem, se Ele abençoa, existem duas coisas atreladas a essa bênção. Em primeiro lugar, as bênçãos, a prosperidade, o aumento e expansão de Abraão precisavam encontrar seu apoio no céu, não na terra. Deus está introduzindo o grande princípio celestial. Oh, o Senhor pode abençoar e alargar, mas Deus nos livre de supor que a partir daí podemos nos sustentar, continuar sozinhos, seguir em frente por nosso próprio impulso. O Senhor arranjará as coisas de maneira que quando Ele abençoar – independente de quão grande, ampliada e aumentada essa bênção for – aquilo poderá perecer a qualquer momento se o céu não for o sustento dela. Essa é uma lição. Não seja presunçoso, nem tome nada como garantido. Viva cada momento dependendo do céu. Agarre-se ao céu, tanto no dia da bênção como no dia da adversidade.
E existe, a seguir, outro fator. Deus estava treinando Abraão para que fosse seguro abençoá-lo, e isto é algo importante: ser confiável para receber a bênção. Que disciplina, que prova de fé, que teste! E, ainda assim, independente do quanto Deus abençoasse Abraão, Ele não permitia que as bênçãos obscurecessem a visão celestial do patriarca e o detivessem no caminho. Esse foi um triunfo notável. Oh, os perigos devastadores da bênção! Talvez você considere que ainda não sabe muito a respeito deles. Mas Deus quer nos tornar confiáveis para Seu reino celestial, para o crescimento espiritual, para sermos usados poderosamente; e nunca estaremos seguros se algo menor do que o melhor de Deus puder nos enredar. Nunca estaremos seguros se o bom for inimigo do melhor. Em Abraão fica perfeitamente claro que, fosse na prosperidade ou na adversidade, a ele nunca foi permitido se estabelecer e sentir que tinha alcançado seu objetivo. Se em algum momento ele sentia que tinha atingido o alvo, rapidamente via aquilo explodir. “Todos estes morreram na fé, sem terem recebido as promessas; mas vendo-as de longe”.
Outra coisa sobre Abraão é que ele nunca permitiu que as dificuldades aparentes, por maiores que fossem, impedissem definitivamente sua marcha espiritual para a frente e para o alto. Voltaremos a isso em um momento. Você percebe como tudo isso foi adotado por Josué e Calebe? Pense novamente em Josué e Calebe. Eles certamente haviam frequentado aquela escola; caso contrário, nunca teriam levado a próxima geração para a Terra Prometida. Só Deus sabe o que aqueles homens passaram. Perceba que a história sobre a saída dos espias, o relatório da minoria, a tomada de pedras para apedrejar esses homens e matá-los, ou, pelo menos, a proposição de fazê-lo, é contada em pouquíssimos versos. Mas devemos acrescentar os longos anos passados enquanto aquela geração inteira morria, e apenas dois homens permaneciam agarrados à visão celestial. Essa é uma escola difícil. Eles poderiam facilmente perder o ânimo, desistir e dizer: “É uma perspectiva sem esperança”; mas não o fizeram: o celestial havia conquistado a parte mais profunda de seu ser e os sustentou. Aquilo os capturou, levando-os a superar até mesmo a maior adversidade; eles “venceram o mundo”.
O conflito entre o espiritual e o carnal
Vemos então, mais uma vez, esse conflito entre o espiritual e o carnal em Abraão: não apenas entre o espiritual e o temporal, mas entre o espiritual e o carnal. Esse conflito surgiu dentro do que podemos chamar de contexto doméstico, em sua família, no sangue. Aconteceu com Ló. Refiro-me aqui ao sentido espiritual disso. Interpreto que Ló representava algo mais do que aquilo que vemos objetivamente na família cristã (o que é, sem dúvida, muito verdadeiro), mas como algo presente em nossa própria natureza, subjetivamente: o conflito daquilo que é carnal contra o espiritual, do terreno com o celestial.
Aqui está Ló, e ele compartilha do mesmo sangue de Abraão, mas bem no sangue, no meio da família – se você preferir, bem no meio da família cristã – existe esse traço de carnalidade: Ló e seu mundanismo, sua mentalidade, visão, ambição e desejos mundanos. Não vemos visão celestial em Ló, ainda que estivesse bem ao lado, tão perto de Abraão. Abraão encontra a ameaça desse questionamento a seu curso espiritual em meio ao seu próprio sangue. Está ali: presente em nós e na família cristã. Está ao lado, muito próximo o tempo todo: esse desejo de se estabelecer, de obter as coisas aqui e agora, o anseio por retornos rápidos, coisas visíveis, a gratificação da alma; aquele descanso que acreditamos ser descanso, mas não é.
Muitos de vocês sabem do que estou falando. Sabemos como às vezes ansiamos naturalmente por descanso, tentamos obtê-lo, e não o obteremos enquanto não chegarmos ao Senhor. Encontramos nosso verdadeiro descanso nas coisas do céu, não em feriados. Mas a carne está aí, sempre tentando nos arrastar para longe, afastar-nos, fazer-nos fugir. “Ah, que vontade de sair dessa situação! Se ao menos pudéssemos viver em alguma ilha sozinhos, quão sossegado seria, quanta paz! Permanecer afastado de tudo isso!” E isso nunca acontece. Nosso descanso está nas coisas celestiais. Só encontramos nossa verdadeira satisfação nas coisas do Senhor. Você, cristão, vá, farte-se do mundo; você sabe que quando voltar dirá: “Chega dessas coisas!” Você sabe que não pode fazer isso. Mas esse desejo está em nós o tempo todo. A influência carnal está no nosso sangue. E essa também é uma verdade em toda a família cristã: temos o lado de Ló, que deseja um Cristianismo deste mundo, sempre puxando tudo para baixo e para longe do celestial. Abraão conhecia tudo a esse respeito.
Isso constitui a própria base dessa obra pioneira, do pioneirismo nas coisas do Espírito. É essa guerra contra as coisas da carne, como se estivéssemos sempre carregando um cadáver, alguma coisa sem vida que deve ser arrastada e subjugada diariamente. Precisamos dizer a nós mesmos: “Vamos, deixa disso!” Esse é o caminho do pioneiro. Você pode se estabelecer, mas perderá a herança celestial. O carnal tem caminhos muito, muito sutis – caminhos muito “espirituais”.
Será que tudo isso é uma contradição? Essa é uma espiritualidade espúria interpretada como espiritualidade. Imagino o grande combate que Paulo, o homem celestial, enfrentou com os coríntios, a igreja terrenal. No entanto, os coríntios eram considerados espirituais. Eles possuíam todos os dons espirituais: tinham os milagres, a cura, as línguas. Mas Paulo disse: “Eu […] não vos pude falar como a espirituais, mas como a carnais” (1Co 3.1). O carnal pode adotar caminhos aparentemente muito “espirituais”. O fato é que a carnalidade deles estava se apoderando das coisas espirituais e usando-as a serviço de sua carnalidade, concedendo-lhes gratificação espiritual por meio de exibições, mostras, demonstrações, puxando os céus para a terra. Não vamos culpar os coríntios. O quanto nós ansiamos por ver coisas, desejamos evidências e provas! Por que essas coisas atraem tantos seguidores? Porque existe algo na natureza humana que é gratificado nessas coisas, e é infinitamente mais difícil andar no caminho celestial onde você não vê e não entende; mas esse é o caminho do pioneiro espiritual que conquista a herança para os demais.
A prova da realidade da visão celestial
Finalmente, qual foi a prova de que essa visão e esse senso de destino de Abraão eram reais, verdadeiros, genuínos, vindos realmente de Deus, e não apenas fruto de sua imaginação? Que prova lhe foi dada?
(a) Fé no Deus do impossível
Vemos essa prova, em primeiro lugar, na atitude de Abraão com relação ao impossível. Como dissemos no capítulo anterior, temos a história completa no Novo Testamento. No Antigo Testamento, parece que Abraão cedeu, esmoreceu diante do impossível.
Já vamos chegar a esse ponto. O Novo Testamento nos diz de modo enfático que Abraão olhou diretamente para o impossível e creu ser possível. Sua atitude com respeito ao impossível quanto a Isaque provou ser algo mais do que apenas sua imaginação; havia algo poderoso em seu senso e em sua consciência de destino. Este é o teste final para saber se realmente está registrado em nós um senso de vocação celestial: se vamos desistir quando uma situação começar a parecer impossível. O fato é que, apesar de desejar desistir, você não tem consentimento para isso. Algo dentro de você simplesmente não permite. Você esteve a ponto de redigir sua carta de demissão centenas de vezes. Repetidamente, disse: “Vou sair dessa situação; não posso prosseguir nem mais um passo, estou arruinado”; mas você prosseguiu, ainda prossegue e sabe muito bem que existe algo dentro de você mais forte do que todas as suas resoluções de renunciar. Quão necessário é esse sentido em nós – algo indiscutivelmente dado por Deus, não vindo de nós mesmos. “Segundo o poder que opera em nós” (Ef 3.20) – é isso.
(b) Capacidade de ajustes quando cometia erros
Vamos então considerar a capacidade que Abraão tinha de fazer ajustes quando cometia erros. Esse homem, esse pioneiro, cometeu erros, e eles foram grandes. Qual é a tentação de um servo de Deus quando comete uma grande mancada, quando alguém com responsabilidades comete um erro terrível? Qual é a reação imediata? “Oh, evidentemente não fui talhado para isso, não fui chamado para isso. Deus tomou a pessoa errada, nunca fui destinado para isso. Melhor encontrar outra atividade, é melhor desistir.” É preciso enfatizar que os erros cometidos por Abraão foram muito ruins, lapsos e falhas graves jamais desculpadas na Bíblia, mostrados exatamente como eram, e nunca foram apagados do registro da Palavra escrita, nem da história, por Deus: olhe para Ismael [os povos árabes] hoje! Ainda assim, apesar de Abraão ter cometido esses erros que foram claramente expostos, havia algo nele que reagia para se ajustar. “Cometi um erro ao descer para o Egito, mas não desistirei movido pelo desespero e não me recusarei a voltar; voltarei. Cometi esse erro com respeito a Ismael: voltarei e recuperarei meu terreno.” Abraão foi um grande homem quando se faziam necessários restauração e ajuste depois de uma desoladora decepção consigo mesmo.
(c) A operação do poder celestial no interior
O que tudo isso nos indica? Que havia uma operação do poder celestial nesse homem. Isso não é natural, não é o caminho da natureza. Se conhecêssemos a tensão, o estresse, a dureza daquela escola em que Abraão estava! Nunca deixo de me maravilhar ao ler as palavras de Paulo a respeito de Abraão: “E não enfraquecendo na fé, não atentou para o seu próprio corpo já amortecido, pois era já de quase cem anos […] E não duvidou da promessa de Deus por incredulidade, mas foi fortificado na fé, dando glória a Deus, e estando certíssimo de que o que Ele tinha prometido também era poderoso para o fazer” (Rm 4.19-21). “Da fé que teve Abraão, o qual é pai de todos nós […] perante Aquele no qual creu, a saber, Deus, o qual vivifica os mortos” (v. 17). Ele provou sua fé ao amarrar o único filho e tomar a faca para sacrificá-lo. Um instante mais e aquele filho, em quem se centravam todas as promessas, estaria morto. Digo isso e fico maravilhado. Uma coisa é Deus fazer algo assim: tirar; outra coisa é nós termos de fazer isto: entregar a Deus – mas Abraão o fez. Vemos aqui algo que não é natural. Esse não é o jeito do mundo, da terra. É o jeito, o caminho celestial. Abraão estava pioneirando o caminho celestial. E por isso ele ocupa essa posição tremenda, não apenas na velha dispensação, mas nesta, e para sempre. Um grande pioneiro das coisas celestiais – é isso que ele representa.
Isso pode explicar muito de nossa experiência pessoal. Deus precisa de pessoas como Abraão neste dia de terrível movimento espiritual de declínio, descendente na direção do mundo, por parte de Sua Igreja. Com todas as suas boas intenções, talvez até mesmo motivações puras, a Igreja está, contudo, adotando a estrutura e a forma deste mundo para fazer a obra do céu. Uma reação a isso se faz necessária, e precisam existir vasos que possam provar que não é necessário voltar a este mundo. O céu é suficiente para todas as coisas.
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As tentações que eu julgava estarem abatidas e mortas levantam-se novamente e revivem sobre mim; sim, vejo que, enquanto eu viver, as tentações não morrerão. O diabo parece se ufanar e se gabar como se ele agradasse mais a Cristo do que eu, e como se ele tivesse enfeitiçado e destruído meu ministério para que eu não pudesse mais fazer o bem em público. Mas seu vento não causa danos. Eu não acreditarei que Cristo teria feito tal esforço para ter-me para Si, colocando tantas dores sobre mim, como tem feito, e então perder facilmente minha posse, e perder a glória daquilo que Ele fez. Não! Desde que vim para Aberdeen, tenho sido levado a ver a nova terra, o lindo palácio do Cordeiro; e Cristo me deixaria ver o Céu só para partir meu coração e jamais dá-lo a mim? Não pensarei que meu Senhor Jesus daria um penhor vazio, ou colocaria Seu selo em um papel em branco, ou pensaria em se livrar de mim com promessas bonitas e falsas. Agora eu vejo o que nunca vi bem antes:
Necessidade de fé
1. Vejo que a necessidade de fé em um dia bonito nunca é reconhecida como necessária; mas agora não sinto falta de nada além da fé. A fome é para mim como promessas belas e doces; mas, quando venho, sou como um homem faminto e sem dentes, ou com um estômago fraco tendo um apetite voraz que já é satisfeito só com a visão da carne, ou como alguém entorpecido com o frio sob a água que se contentaria em chegar à terra, mas que não consegue agarrar nada que lhe seja atirado.
Eu posso deixar Cristo me agarrar, mas eu não posso agarrá-Lo. Eu amo ser beijado e estar assentado nos joelhos de Cristo, mas não posso colocar meus pés no chão, porque as aflições trazem cãibras à minha fé. Tudo o que posso fazer é estender a Cristo uma fé aleijada, como um pedinte estendendo um coto, em vez de um braço, ou uma perna, e clamar: “Senhor Jesus, faze um milagre!” Oh, o que eu não daria para ter mãos e braços para agarrar com força e abraçar generosamente o pescoço de Cristo, e ter meu pedido com posse real! Eu penso que meu amor por Cristo tem muitos pés, e corre rapidamente para estar com Ele, mas falta-lhe mãos e dedos para segurá-Lo. Eu acho que daria minha bênção a Cristo toda manhã, para ter tanta fé como tenho amor e fome; pelo menos, eu sinto mais falta de fé do que de amor ou de fome.
Morto para o mundo
2. Eu vejo que a mortificação, e ser crucificado para o mundo, não é tão bem considerado por nós como deveria ser. Oh, quão celestial é ser morto e mudo e surdo para a doce música deste mundo! Confesso que agradou à Majestade Divina fazer-me rir das crianças que estão cortejando este mundo para ser seu par. Eu vejo homens mentindo sobre o mundo, da mesma forma que os nobres mentem sobre a corte do rei, e fico a imaginar o que eles estão fazendo ali.
Como estou agora, no presente, eu não me dignaria cortejar uma princesa tão insignificante e imprestável, ou comprar a bondade deste mundo dobrando meu joelho. Eu agora quase não vejo nem ouço o que é que este mundo me oferece; eu sei que é pouco o que ele pode tirar de mim, e que é pouco o que ele pode me dar. Eu te recomendo a mortificação acima de qualquer coisa; porque, ai de nós! Nós só corremos atrás de penas voando no ar, e cansamos nosso espírito com esse palavrório e essa vida moribunda do barro maquilado. Um relance do que o meu Senhor me deixou ver nesse curto período de tempo vale um universo de mundos.
Regozijo espiritual
3. Eu pensei que a coragem, em tempos de aflição por amor a Cristo, fosse algo que eu pudesse dominar. Pensei que a própria lembrança da honestidade da causa seria o suficiente. Mas fui tolo ao pensar assim. Tenho agora muita dificuldade para dar um sorriso. Vejo, porém, que o regozijo cresce no céu, e está além de nosso curto braço. O próprio Cristo é quem será o mordomo e o despenseiro, e nenhum outro a não ser Ele. Portanto, agora, eu conto apenas com um pouquinho do regozijo espiritual.
Um sorriso da face de Cristo é agora para mim como um reino; e Ele até o momento não retém de mim o conforto.
Na verdade, eu não tenho razão de dizer que esteja oprimido com penúria ou que as consolações de Cristo estejam faltando; porque Ele tem derramado rios sobre um deserto seco como eu, para meu espanto; e em meus desmaios Ele me mantém a cabeça erguida e me sustenta com odres de vinho e me conforta com maçãs [Ct 2.4,5]. Há beijos de amor espalhados em toda a minha casa e na minha cama. Louva, louva comigo. Oh, se tu e eu, entre nós, elevássemos Cristo a Seu trono, no entanto toda a Escócia O estaria derrubando ao chão!
[1] Robert Gordon, de Knockbeck, um cristão sofrido e de coração singular, muito usado em parlamentos e reuniões públicas depois do ano de 1638. Knockbreck fica na paróquia de Borgne, contígua a Anwoth, e tem vista para a Baía de Wigtown.
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Não é de se espantar, meu caro irmão, que tu andes ansioso por algum tempo, e que a vontade de Deus (cruzando teu plano e teus desejos de morar entre um povo para quem Deus é o Senhor) deverá fazer com que mudes. Eu não nego isso, porém tu tens razões em procurar saber o que a Sua providência fala a ti quanto a isso; mas a vontade de Deus que te direciona e comanda pode, não mediante a boa lógica, ser compreendida mediante os eventos da providência. O Senhor enviou Paulo a muitas viagens com o propósito específico de espalhar Seu Evangelho, nas quais ele encontrou leões em seu caminho. Uma promessa havia sido feita ao Seu povo na Terra Santa, porém os israelitas encontraram muitas nações que lutaram contra eles e estavam prontas a matar os que tinham a promessa, ou a impedi-los de possuir a boa terra que o Senhor, seu Deus, lhes havia dado.
Sei que tu és muito submisso ao Espírito; porém, convenço-me que aprendeste, em cada situação em que és colocado, a estares contente e a dizeres:
“Boa é a vontade do Senhor; que ela seja feita.”
Eu creio que o Senhor muitas vezes lança um barco na água para encontrar-se com o vento, e Ele tem como propósito trazer misericórdia por meio de teu sofrimento e pelo silêncio, o qual (sei disso por minha própria experiência) é muito doloroso para ti. Vendo que Ele conhece nossa mente disposta a servi-Lo, nossa paga, nossa recompensa está mais à frente com nosso Deus, mesmo que alguns soldados doentes sejam pagos quando estão acamados e não podem ir a campo com os outros. “Israel não se deixará ajuntar; contudo aos olhos do Senhor serei glorificado, e o meu Deus será a minha força” (Is 49.5). E nós devemos crer que assim será antes que tudo termine. “‘A violência que se fez a mim e à minha carne venha sobre Babilônia’, dirá a moradora de Sião; e ‘o meu sangue caia sobre os moradores da Caldéia’, dirá Jerusalém” (Jr 51.35).
“Eis que eu farei de Jerusalém um copo de tremor para todos os povos em redor, e também para Judá, durante o cerco contra Jerusalém. E acontecerá naquele dia que farei de Jerusalém uma pedra pesada para todos os povos; todos os que a carregarem certamente serão despedaçados; e ajuntar-se-á contra ela todo o povo da terra” (Zc 12.2,3). Quando nos tiverem comido e engolido, eles terão náusea e nos vomitarão vivos novamente; o estômago do diabo não pode digerir a Igreja de Deus.
O sofrimento é a outra metade de nosso ministério; contudo, a mais difícil. Pois ficaríamos satisfeitos se nosso Rei Jesus fizesse uma proclamação aberta, e derrubasse as cruzes, e exaltasse o gozo, a alegria, a tranqüilidade, a honra e a paz. Mas não pode ser assim. Por meio de muitas aflições é que entraremos no reino de Deus (At 14.22b). Não somente por meio delas, mas passando através delas deveremos ir, e as artimanhas não nos pouparão a cruz. É loucura pensar que entraremos furtivamente no céu, com a pele íntegra.
Ofereceram-me objeções a meu Senhor, e fui sacudido por desafios sobre se Ele me amava ou não, e por frequentes debates sobre tudo o que Ele fez por mim, porque Sua Palavra era um fogo preso em minhas entranhas, e eu estava cansado de controlar-me porque eu disse que tinha sido lançado fora da herança do Senhor. Mas agora vejo que fui um tolo. O Senhor não levou em conta nada disso e suportou meus tolos ciúmes, e não levou em conta que ofendi Seu amor.
E agora Ele voltou com misericórdia sob Suas asas. Eu fui além de minha (Oh, insensatez!) convocação. Ele é Deus, eu sei, e eu sou homem. Agora agradou-Lhe renovar Seu amor à minha alma e favorecer Seu pobre prisioneiro. Portanto, meu irmão, ajuda-me a louvar, e mostra ao povo do Senhor perto de ti o que Ele fez à minha alma para que eles possam orar e louvar. E eu te encarrego, em nome de Cristo, não omitir isso.
Por esta causa escrevo a ti: que meus sofrimentos glorifiquem meu nobre Rei e edifiquem Sua Igreja na Irlanda. Ele sabe o quanto uma brasa viva de Cristo tem queimado minha alma com o desejo de que minhas cadeias preguem Sua glória, cuja cruz agora eu suporto. Que Deus te perdoe, se tu não o fizeres. Mas espero que o Senhor mova teu coração a proclamar em meu favor a doçura, a excelência e a glória do meu nobre Rei. Foi nossa carne fraca que levantou uma calúnia contra a Cruz de Cristo; agora vejo o lado bom disso; as cadeias do meu Senhor são todas disfarçadas. Oh, se a Escócia e a Irlanda fizessem parte da minha festa! Mas eu só consigo meu quinhão com muito sacrifício. Não há ninguém aqui com quem eu possa conversar; eu habito nas tendas de Quedar (Ct 1.5). Refrigera-me com uma carta tua. Poucos sabem o que há entre mim e Cristo.
Caro irmão, por minha salvação, é por Sua verdade que sofremos agora. Cristo não daria carta branca às almas.
Coragem, coragem! Alegria, alegria para sempre! Oh, que gozo inefável e glorioso (1Pd 1.8)! Oh, ajuda a exaltar meu coroado Rei! Oh, ama Aquele que é todo amor! – aquele amor que as muitas águas não podem apagar, nem podem os rios afogá-lo (Ct 8.7)!
[1] Robert Blair nasceu em Irvine em 1593, tornou-se ministro presbiteriano em Bangor, Irlanda do Norte, em 1623. Os arcebispos anglicanos se opuseram a ele e asseguraram sua demissão em 1634. Embarcou com outros ministros para a Nova Inglaterra (EUA), porém tempestades os fizeram retornar. Em 1638 tornou-se ministro em Ayr, porém logo se mudou para St. Andrews, onde ele e Rutherford se tornaram amigos chegados. Ele morreu em 1666.
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Rogo-te, senhor, pela salvação de tua preciosa alma e pelas misericórdias de Deus, que utilizes bem e com certeza tua salvação, e proves sobre que fundamento tens edificado. Digno e caro senhor, se estiveres sobre areia movediça, a tempestade da morte e uma rajada de vento te perderá de Cristo e te arrastará da rocha. Oh, pelo amor de Deus, olha minuciosamente para a obra!
Revê tua vida sob a divina luz do dia e do Sol, pois a salvação não é lançada à porta de todo homem. É bom que olhes tua bússola, e tudo de que necessitas, antes de embarcares, pois nenhum vento poderá trazer-te de volta. Lembra-te, quando a corrida terminar, e o jogo estiver ganho ou perdido, e estiveres no círculo final e às margens do tempo, e colocares teu pé na fronteira da eternidade, e todas as tuas boas coisas deste curto sonho noturno te parecerem como cinzas de uma rápida queima de espinhos ou de palha, e tua pobre alma clamar: “Pousada, pousada, pelo amor de Deus!”, então tua alma estará mais feliz em um dos amáveis e despretensiosos sorrisos de teu Senhor do que se tivesses o domínio de três mundos pela eternidade. Que prazeres e ganhos, vontade e desejos deste mundo sejam postos nas mãos de Deus, como bens presos e cercados com os quais não podes lidar. Agora, quando bebes a borra de tua taça, e estás na extremidade final da última ligação com o tempo, e a idade avançada, como uma longa sombra de morte, lança uma cobertura sobre teus dias, não é hora de cortejares esta vida vã e nela colocares o amor e o coração. Já é quase depois da ceia; procura descanso e sossego para tua alma em Deus, por meio de Cristo.
Creia-me que acho difícil lutar para ser honesto com Cristo, e estar em paz com Ele, e amá-Lo em integridade de vida e manter um curso constante de comunhão diária sã e sólida com Cristo. As tentações estão diariamente quebrando o fio desse caminho, e não é fácil atá-lo novamente; e muitos laços produzem obras más. Oh, quantos barcos estão lindamente navegando com o vento e, no espaço de uma hora, jazem no fundo do mar! Quantos mestres emitem um brilho dourado como se fossem de ouro puro, e, contudo, por baixo daquela capa não passam de um metal básico e depravado! E quantos mantêm o fôlego por muitos quilômetros em sua corrida, mas não conseguem o prêmio e a guirlanda de louro!
Caro senhor, minha alma lamentaria secretamente por ti, se eu soubesse que tua relação com Deus fosse apenas uma obra falsa. O amor para fazer-te ancorar em Cristo me faz temer tuas vacilações e teus deslizes. Uma falsa imersão, não vista com base em uma consciência iluminada, é perigosa, assim como o cair frequentemente e o pecar contra a luz. Sabe que aqueles que nunca tiveram noites ou dias ruins por consciência do pecado terão essa paz com Deus como uma pústula sob a pele que romperá a carne outra vez, e terminarão numa triste guerra na morte. Oh, como milhares estão terrivelmente enganados com o falso esconderijo, construído sobre velhos pecados, como se a alma estivesse curada e sã!
Caro senhor, eu sempre vi em ti uma natureza poderosa, elevada, impetuosa e forte; e que era mais difícil para ti do que para outro homem comum o ser mortificado e morto para o mundo. Será preciso uma maré baixa, um corte profundo e um longo arpão para alcançar o fundo de tuas feridas em uma humilhação salvadora para fazer-te uma presa para Cristo. Sê humilde; anda suavemente. Abaixa, abaixa, pelo amor de Deus, meu caro e digno irmão, tua vela. Curva-te, curva-te! A entrada para se passar o portão do céu é baixa. Há justiça infinita Naquele com quem tu deves lidar; é de Sua natureza não inocentar o culpado e o pecador. A lei de Deus não aceitará um vintém do pecador. Deus não se esquece nem do prudente nem do pecador; e todo homem deve pagar, ou em sua própria pessoa (Oh, que o Senhor te salve desse pagamento!), ou em sua segurança, Cristo.
A beleza de Cristo
É violência para a natureza corrompida de um homem se tornar santo, cair aos pés de Cristo, abdicar da vontade, do prazer, do amor pelo mundo, da esperança terrena e de um desejo do coração por este mundo colorido e exagerado, e estar satisfeito que Cristo passe por cima de tudo isso. Vem, vem a Cristo, e vê, e encontra o que tu queres Nele. Ele é o atalho (como dizíamos) e o caminho mais curto para escapares de todos os teus fardos. Ouso afirmar que tu serás muito bem-vindo a Ele. Minha alma se alegraria em ser partícipe do gozo que terias Nele. Ouso dizer que nem as penas de escrever dos anjos, nem a língua dos anjos, não, nem os tantos mundos de anjos, como são as gotas de água dos mares, das fontes e dos rios da Terra poderiam descrevê-Lo para ti. Penso que a doçura Dele, desde que me tornei prisioneiro, aumentou sobre mim até à grandeza de dois céus. Oh, é preciso uma alma tão larga quanto o maior círculo do mais alto céu, que tudo contém, para conter Seu amor!
Mas eu pude pegar um pouco disso. Oh, maravilha do mundo! Oh, se minha alma pudesse apenas deitar-se na fragrância de Seu amor, supondo que eu não pudesse obter nada além dessa fragrância! Oh, mas ainda está longe o dia em que eu terei um mundo livre do amor de Cristo! Oh, que visão estar no céu, naquele lindo jardim do novo paraíso, e ver e sentir o aroma e tocar e beijar aquela linda flor do campo, aquela sempre verde Árvore da Vida! Só Sua sombra já seria o bastante para mim. Apenas vê-Lo seria o máximo do céu para mim. Vergonha, vergonha sobre nós que temos o amor enferrujando a nosso lado ou, o que é pior, desperdiçado em algum objeto repugnante, e Cristo deixado só. Desgraça, desgraça que o pecado fez tantos loucos, buscando o paraíso dos tolos, fogo sob o gelo, e algumas coisas boas e desejáveis sem Cristo e longe dele. Cristo, Cristo, nada além de Cristo, pode arrefecer a morbidez ardente de nosso amor. Oh, amor sedento! tu irás colocar Cristo, o poço da vida, em tua cabeça e beber até ficares cheio? Bebe, e não desperdiça, bebe o amor e embriaga-te de Cristo! Não, infelizmente! a distância entre nós e Cristo é a morte. Oh, se estivéssemos presos em outros braços! Nós nunca nos separaríamos, exceto se o céu nos separasse e nos dividisse; e isso não pode ocorrer.
Uma palavra para os filhos
Eu desejo que teus filhos busquem o Senhor. Meu desejo para eles é que sejam chamados, pelo amor de Cristo, a serem bem-aventurados e felizes, e venham e tomem Cristo e todas as coisas com Ele. Que tenham cuidado com a juventude frágil e escorregadia, com as ideias tolas dos jovens, com a luxúria mundana, com os ganhos enganadores, com as más companhias, com as maldições, com a mentira, com a blasfêmia e com as conversas tolas. Que eles sejam cheios do Espírito, que se acostumem a orar diariamente e com o manancial da sabedoria e do conforto, a boa Palavra de Deus.
[1] John Gordon, de Cardoness (o Ancião), viveu no Castelo de Cardoness, na paróquia de Anwoth. Era descendente de Gordon de Lochinvar e foi proeminente nos assuntos paroquiais locais. Pouco se sabe sobre Cardoness, o Jovem, exceto que participou da Guerra Civil na Inglaterra. Observamos, pelas cartas, que a natureza humana era forte tanto no pai quanto no filho.
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Estamos considerando o fato e a natureza do caminho celestial. A Bíblia inicia com a criação e o governo dos céus, e termina com a revelação do céu por meio daquilo que ele formou de acordo com princípios celestiais: a cidade santa, a nova Jerusalém, descendo de Deus, do céu, cumprindo a palavra de Hebreus 11.16: “[Deus] já lhes preparou uma cidade.”
O conflito entre o que é terreno e o que é celestial
Relembremos que uma característica de cada estágio do Antigo Testamento é o choque e contraste entre dois mundos, entre duas ordens: a ordem celestial e a ordem terrena. Temos esse elemento ao longo de todo o registro do Antigo Testamento: o céu desafia este mundo e apreende um objeto neste mundo; a partir daí, esse objeto é retirado do mundo e começa a ser constituído de acordo com a natureza e a ordem celestiais. Não é necessário um conhecimento muito profundo do Antigo Testamento para confirmar isso. Ao repassarmos rapidamente sua história, perceberemos que estamos diante de um constante choque, um conflito, um conflito entre o céu e a terra. O céu não está satisfeito com este mundo – muito pelo contrário. O céu é contrário a tudo o que está aqui, e tenta retirar o que puder deste mundo para reconstituir de acordo com seus próprios padrões. Então, apesar de vislumbrarmos a oposição e o desafio do céu, vemos, ao mesmo tempo, desde o início, o céu tomando pessoas, tanto indivíduos como uma nação, com o objetivo de separá-los do mundo, apesar de residirem nele. A partir desse chamado, um processo profundo é iniciado, visando torná-los um tipo, uma espécie de pessoas completamente diferentes das demais; apreendendo-as, em outras palavras, para propósitos celestiais.
Os homens do Antigo Testamento foram os pioneiros do caminho celestial. Já vimos um pouco do que isso envolve, mas é sobre esse ponto em particular que queremos focar nossa ênfase agora. O fato não é apenas que existe um caminho celestial que é diferente, pois sabemos no coração, se nascemos do alto e temos aprendido nesse caminho, que o caminho do céu é diferente dos demais. Mas nosso ponto focal será o pioneirismo que envolve trilhar esse caminho celestial. Esse pioneirismo representa ser chamado a um relacionamento com o céu para abrir caminho, tomar posse e tornar possível que a intenção plena de Deus seja compreendida, interpretada. Esse ministério é dirigido para outros que seguirão por esse mesmo caminho. Já mencionamos que, em certo sentido, todo aquele que nasce do alto é um pioneiro, porque esse caminho é sempre pessoal e intransferível; ninguém pode trilhar esse caminho no lugar de outrem. Nesse momento, trataremos do aspecto vocacional relacionado a isso.
Não há dúvida de que a maioria dos filhos do Senhor sabe pouco, muito pouco, sobre o caminho celestial. O cristianismo organizado se tornou preponderantemente terreno, adotando padrões, conceitos e recursos terrenos, tornando-se consequentemente muito limitado espiritualmente. Este mundo é uma coisa muito, muito pequena, se comparado com os céus. Digo isso espiritual e ilustrativamente. O reino dos céus é vasto, muito maior do que qualquer concepção humana. Os pensamentos de Deus são amplos como os céus em seu alcance, muito mais elevados que os pensamentos da terra; ultrapassam todas as concepções terrenas. Enquanto não sairmos da esfera terrena não perceberemos que, por um lado, somos miseravelmente pequenos e, por outro, que existe um reino muito maior, e que podemos nos mover espiritualmente nele. A grande, grande necessidade de nosso tempo é que o povo de Deus, a Igreja de Deus, chegue à sua verdadeira posição celestial, possuindo visão e vocação celestiais.
Bem, existe muita coisa envolvida nessa declaração, mas, resumidamente, ela significa que alguém, algumas pessoas, deverá ser pioneiro no caminho de trazer a Igreja de volta à esfera inicial de sua concepção que foi perdida quando ela sucumbiu à persistente tendência direcionada à terra. Por isso, um instrumento pioneiro se faz necessário, e o caminho que ele deve seguir envolve um alto preço.
Reafirmo que os homens do Antigo Testamento foram os pioneiros do caminho celestial. Isso é explicitamente afirmado pelo escritor nesta carta aos hebreus, particularmente na passagem referida. A terra não pode prover nada que atenda aos padrões e ao fundamento do céu. Uma das grandes palavras-chave do Antigo Testamento é “santificar”, que significa “separar, tornar santo, consagrar”, que se refere em sua essência a algo espiritual e interior, que provoca uma divisão entre o céu e a terra. Deus dividiu, separou essas duas coisas, e essa separação deve ocorrer de forma espiritual, interiormente, também. Vemos, então, que esses homens do Antigo Testamento foram separados neste sentido: algo foi feito no âmago de seu ser que os separou deste mundo, colocando-os em um caminho que era totalmente diferente dos caminhos terrenos e a eles contrários. Se aqueles homens chegavam a tocar esta terra quando estavam sob pressão e tensão, fosse por engano, inadvertidamente, consciente ou inconscientemente, ficavam atrapalhados. Imediatamente percebiam em seu interior que estavam fora do caminho, e a única coisa a fazer era retornar. Isso é repetido diversas vezes no relato bíblico. O céu testemunhava contra a posição deles, eles estavam em problemas. Só depois de retornarem ao curso correto poderiam prosseguir. Aquelas pessoas estavam sendo governadas por outro padrão, e quão diferente e difícil de entender era esse padrão!
Considere Caim e Abel. Do ponto de vista deste mundo, o procedimento de Caim foi muito válido. Na ótica do homem religioso deste mundo, é difícil ver o que estava errado com Caim ou muito certo com Abel, ou quão absolutamente certo e quão absolutamente errado cada um deles estava. No entanto, vemos como Abel estava absolutamente certo quanto a isso. Um deles conseguiu tocar o céu. Isso é um fato. Abel tocou Deus e o céu, e Caim estava diante de um céu fechado e da rejeição de Deus.
Mas qual é o padrão? Apenas a diferença entre o céu e a terra. A base e o padrão para acesso ao céu é totalmente diferente do terreno – diferente mesmo do que há de religioso na terra. O homem religioso pode ter o mesmo Deus, adorar o mesmo Deus, trazer sua oferta para o mesmo Deus, e ainda assim não conseguir um caminho para o céu, na estrada celestial. O céu tem seus próprios padrões, bases e provisões, e a terra não pode encontrá-los ou produzi-los, pois é diferente do céu. Esse é o fato que enfrentamos quando se trata de tocar o céu. Não me refiro a uma localização geográfica, mas falo de tocar Deus, de encontrar um caminho aberto para o céu. Só é possível chegar ali com a provisão originada pelo próprio céu, e isso transtorna todos as nossas estimativas naturais. Precisamos de algo que a natureza não pode produzir. Se você, como Caim, raciocinar de acordo com a razão religiosa e tomar essa base, não chegará a lugar nenhum. “Pela fé Abel ofereceu a Deus maior sacrifício do que Caim, pelo qual alcançou testemunho de que era justo, dando Deus testemunho dos seus dons, e por ela, depois de morto, ainda fala” (Hb 11.4). Vemos aí uma atestação do céu.
Não estou tratando da natureza e de todos os detalhes dessas coisas, apenas aponto para um fato: que os padrões e os julgamentos celestiais são absolutamente diferentes dos terrenos. Ficaremos totalmente confundidos se tentarmos tocar o céu, ainda que utilizemos artifícios religiosos para isso. Nicodemos pode ser a representação perfeita do sistema religioso, e, ainda assim, não chegou a lugar algum no que diz respeito ao céu. O céu estabeleceu seu próprio meio de acesso, e precisaremos dele para chegar lá. Você pode questionar mil vezes “por quê?”, mas é o fato.
Pioneiros são líderes
Vamos retornar ao texto que lemos em Números. Registra a ocasião em que os espias foram enviados, e o ponto focal desse registro está sobre dois homens: Josué e Calebe. Notemos que os doze cabeças das cadas paternas, príncipes em Israel (um termo cheio de significado), eram homens tipicamente representativos. Eles foram chamados para serem os pioneiros do caminho celestial. O princípio de sua liderança e de sua realeza estava centrado em serem pioneiros, pois esse é o princípio do pioneiro. Se formos verdadeiros pioneiros, seremos líderes, teremos um caráter de príncipes. Todavia, apenas dois deles justificaram seu chamamento, tornando-se aquilo que todos os outros deveriam ter sido: pioneiros. Muitas vezes, é isto que ocorre: a minoria, uma minoria muito destacada, faz o trabalho. Os outros têm o nome, mas não fazem jus a ele; os outros têm uma posição oficial, mas não vivem de acordo com ela. A questão principal é: onde a coisa está sendo feita? Ali estavam Josué e Calebe.
Uma conexão com o passado
Vamos tomar um tempo considerando o significado destes dois homens: Josué e Calebe. Para começar, vamos considerá-los como um elo com o passado. A intenção original de Deus que eles adotaram remetia à aliança divina com Abraão, de modo que em Josué e Calebe vemos Abraão posto muito em evidência. Somos compelidos a olhar para trás e reavaliar o significado de Abraão, à luz da posição tomada por esses dois, uma vez que o momento em que Josué e Calebe surgiram era crítico, a hora de uma crise muito grande. A questão suprema era: o propósito de Deus seria ou não cumprido naquele povo? Essa pergunta é extremamente relevante; uma verdadeira crise veio à tona. E Josué e Calebe foram o fator decisivo.
Vemos três características de Abraão manifestadas nessa situação.
Uma semente espiritual e celestial
Em primeiro lugar, vemos uma semente espiritual e celestial. Retenhamos isto: uma semente espiritual e celestial. Hoje estamos em uma posição muito vantajosa. Temos a compreensão do pleno significado de Abraão por meio da instrução do Espírito Santo. Temos o Novo Testamento, e nele temos tudo o que é dito a respeito do patriarca. O apóstolo Paulo nos apresenta uma revelação completa disso no Novo Testamento; não precisamos voltar ao Antigo Testamento para obter conhecimento, podemos ver o pleno sentido de Abraão agora no Novo Testamento que temos em mãos. Quanto a isso, recebemos muita luz adicional.
Uma semente espiritual e celestial. Perceba essa semente espiritual e celestial em Josué e em Calebe, percebam como eles apontam para ela. No entanto, temos outra semente de Abraão que não é espiritual nem celestial, pois desceu à terra. Vemos no registro de Números 13 e 14 as reações do povo, tão grosseiras, tão terrenas, totalmente carentes de visão, vida e aspiração espirituais! Aquelas pessoas foram inteiramente influenciadas pelo terrenal, pela visão natural, pelas coisas visíveis como dificuldades, pessoas e montanhas. A conclusão delas foi que não havia solução. Para Josué e Calebe, as montanhas eram um caminho, não um obstáculo. Havia um caminho celestial. Mas os outros não viram nada disso; eles eram terrenais.
O pensamento de Deus em Abraão, que fica claro para nós no Novo Testamento, era obter uma semente celestial e espiritual.
Uma semente especial
Será que podemos receber mais luz em relação a essa semente? Essa semente era algo especial, exclusivo. Paulo afirma isso em sua Epístola aos Gálatas. “Ora, as promessas foram feitas a Abraão e à sua descendência. Não diz: E às descendências, como falando de muitas, mas como de uma só: E à tua descendência, que é Cristo” (3.16). Aquela semente era singular. Um ponto importante era que Abraão estava inseparável e exclusivamente ligado a Sara. Naquela época, era permitido ao homem ter mais de uma esposa, mas Deus restringiu Abraão à Sara. Quando estava sob pressão, Abraão tentou uma solução alternativa com Agar, mas, como já mencionei, aquela foi uma falha, um deslize, um erro, uma tolice cometida durante um período de severa provação, pressão e coação. Naquele momento Abraão abandonou o caminho celestial e o resultado foi lastimável – a história lamenta isso até hoje. Abraão precisou retornar para Sara. Deus não permitiria outra opção, pois aquele assunto era peculiar e exclusivo. Sua realização não se daria por meio de Agar e de ninguém mais, mas exclusivamente dentro do caminho proposto pelo Senhor.
Nascimento e sustento sobrenaturais
Aquela semente trazia consigo as marcas do celestial. Seu nascimento foi sobrenatural, pois era absolutamente impossível que ocorresse pelas linhas naturais. A semente era Isaque, que representava uma limitação, pois Abraão dependia de uma intervenção do alto para gerar esse filho. Isaque não teria sido trazido à existência se o céu não tivesse assumido a situação. Deus foi muito específico a esse respeito. Por vezes, para compreender a importância que a coisa certa tem para Deus, Ele nos permite ver quão terrível é a coisa errada. Deus não permite que um erro, que um deslize nosso simplesmente passe desapercebido. Às vezes seremos atormentados até o fim da vida pelas consequências de nossas escolhas erradas. Deus permitirá isso para que vejamos com clareza que o caminho certo é muito importante; ele não é só uma opção. O caminho precisa ser celestial, e qualquer alternativa não será tolerada como se ela não fizesse diferença. Descobrimos que isso de fato importa, como aconteceu no caso de Isaque. Se o céu não fizer esse milagre, nada acontecerá, pois esse é o caminho celestial. Como precisamos aprender, e estamos aprendendo, sobre esse princípio! Isso explica muitos acontecimentos de nossa vida. Deus nos tem em Suas mãos.
O princípio de morte e ressurreição
Além de Isaque ter sido um produto celestial, fruto de uma intervenção dos céus, por meio de um milagre, Deus ainda foi mais longe quando pediu a oferta dele como sacrifício. Ainda que seu nascimento tivesse sido miraculoso, por meio de um ato direto dos céus, algo mais precisava acontecer: Isaque deveria morrer e ressuscitar dos mortos. Esse poderoso ato de Deus precisaria ocorrer e referendar tudo isso. A afirmação de Paulo em Romanos 1.4: “Declarado Filho de Deus em poder, segundo o Espírito de santificação, pela ressurreição dos mortos”, poderia ser traduzida “homologado Filho de Deus […] pela ressurreição”. Isto é o que Isaque representa: algo aprovado, homologado, referendado pelos céus.
Esse fato explica muito de nossa particular história espiritual. Não apenas nascemos de novo por meio de um milagre e da intervenção do céu, mas isso tem sido continuamente homologado pelo céu. Deus demanda que sejamos sustentados pela vida de ressurreição, e para saber o que é essa vida precisaremos conhecer um pouco do que é a morte. Deus nos sustenta em uma base celestial. Este é o significado de Isaque: não fomos apenas colocados sobre uma base celestial, mas somos sustentado nessa posição por constantes manifestações de ressurreição, em momentos em que somente a ressurreição pode resolver a situação.
Afinal, independente de como foi o início de nossa vida cristã – ainda que tenhamos tido uma experiência maravilhosa de conversão, e tenhamos registrado em um caderno quando e onde isso aconteceu –, essa experiência precisa ser ratificada continuamente pela manifestação da ressurreição. Precisaremos ser sustentados nesse terreno. Esse é o caminho do pioneiro. Esse pioneirismo no caminho celestial é conhecer vez após vez o significado da morte e suas terríveis consequências, a fim de saber o verdadeiro significado da ressurreição e sua grandiosidade. Esse é o caminho pioneiro, que foi seguido inicialmente pela Igreja, por muitos filhos de Deus e onde muitas revelações divinas sobre ele foram concedidas. Foi dessa maneira que o caminho celestial foi preservado vivo e longe da “podridão” [cf. Os 5:12] das coisas terrenas que sempre tentam minar a vida cristã. Sabemos quanto isso é verdade.
Abraão progressivamente descobriu que sua verdadeira herança estava no céu. Considero maravilhoso este aspecto da vida e da experiência de Abraão sob a mão de Deus: que ele, sem dúvida, quando iniciou sua jornada de obediência, interpretou as promessas do Senhor de forma terrena e limitada. Certamente ele imaginava que aquelas promessas se cumpririam dentro de suas expectativas racionais e tangíveis, mas, quanto mais o tempo passava e sua vida se desenrolava, mais Abraão se dava conta de que as coisas não aconteceriam dentro de suas concepções, e que tudo aquilo se referia a algo superior e diferente de sua idéia original. Ele prosseguiu, e mais adiante vemos que foi incluído no registro de Hebreus 11: “Todos estes morreram na fé, sem terem recebido as promessas; mas vendo-as de longe […] Mas agora desejam uma melhor, isto é, a celestial” [vv. 13,16]. A primeira impressão que Abraão teve do chamado inicial de Deus: “Eu o levarei a um país” (cf. Gn 12.1), pode ter sido atrelada a algo terreno, mas, por fim, ele percebeu que não se tratava disso. Pelas palavras do Senhor Jesus, sabemos que a visão e a percepção de Abraão foram alargadas: “Abraão, vosso pai, exultou por ver o meu dia, e viu-o, e alegrou-se” (Jo 8.56). “Mas vendo-as de longe”. Paulo também reforça isso em sua Epístola aos Gálatas, ao afirmar: “Não diz: ‘E às descendências’, como falando de muitas, mas como de uma só: ‘E à tua descendência’, que é Cristo” [3.16]. Cristo era a resposta para tudo que se relacionava à herança de Abraão.
Mas Cristo, o Cristo celestial, é a encarnação de tudo o que é celestial. Não conhecemos a Cristo segundo a carne; Ele é essencialmente celestial. Podemos ver a natureza celestial dessa semente, e podemos reunir tudo isso em Josué e Calebe. Quem herdará, prosseguirá e possuirá a herança? Certamente não será essa multidão de pessoas que tem uma mentalidade terrena e está arraigada a essa terra. Aqui mesmo elas perecerão: a terra se tornará sua prisão e sepultura. Essas pessoas serão substituídas por uma geração com uma nova constituição – representada por Josué e Calebe, as primícias de uma nova geração – que possuirão a herança [cf. Nm 14.29-32]. Eles foram os pioneiros do caminho e da plenitude celestiais. Mas como precisaram sofrer por isso! “Toda a congregação disse que os apedrejassem” (v. 10). O pioneirismo é sempre um caminho que envolve sofrimento e um alto preço, e isso não apenas entre as pessoas do mundo, mas também entre aqueles que atendem pelo nome de povo de Deus.
Os pioneiros desse caminho sempre serão como uma semente celestial, e sua constituição celestial será continuamente homologada pela necessidade de repetidas intervenções do céu para possibilitar que tenham liberação, libertação e progresso. Esse é o processo da vida espiritual. Se o céu não interviesse a nosso favor teríamos parado, não avançaríamos, de fato seríamos aniquilados se Deus não tivesse ratificado este fato: pertencemos ao céu. E Ele continua ratificando isso.
Podemos ver claramente como tudo isso é cumprido em Cristo, a Semente Celestial. Seu nascimento aconteceu por meio de uma intervenção do céu, um milagre. No Seu batismo, o céu irrompeu novamente, atestando: “Este é o meu Filho amado” [Mt 3.17]. E o que diremos a respeito de Sua Cruz? Ela não se parece muito com uma intervenção do céu. Mas espere um pouco: não se esqueça que o Novo Testamento nunca se refere apenas ao aspecto da morte, ao mencionar a Cruz de Cristo. No Novo Testamento, a Cruz tem dois lados gêmeos: morte, ressurreição. “A este que vos foi entregue pelo determinado conselho e presciência de Deus, prendestes, crucificastes e matastes pelas mãos de injustos” (At 2.23,24). O mundo fez tudo o que podia contra Ele, usou todas as suas armas. Os poderes do mal exauriram suas forças. O que mais poderia ser feito? Então, o céu entrou em cena, despojando esses poderes e ressuscitando a Jesus: ratificando assim que Ele pertencia ao céu, e não a este mundo. O Senhor Jesus não era propriedade, nem brinquedo do mundo e dos poderes malignos que o governam. Ele pertence ao céu, e o céu interveio, não apenas O levantando, mas também O conduzindo para as alturas, acima deste mundo, sujeitando tudo a Seus pés [cf. Ef 1.19-22; Cl 2.15].
A história espiritual do Senhor Jesus é a história espiritual do pioneiro do caminho celestial. O Senhor é o Pioneiro, conforme registrado na Epístola aos Hebreus: “Penetra até ao interior do véu, onde Jesus, nosso precursor, entrou por nós” (6.19,20).
Uma conexão entre fracasso e realização
Enquanto vislumbramos os aspectos demonstrados em Josué e Calebe, que podem ser diretamente ligados a Abraão, ainda temos outro ponto a considerar antes de encerrar. Eles foram pioneiros, como Abraão, e foram um elo entre o fracasso e a realização. Contemple o mundo no tempo em que “o Deus da glória apareceu a nosso pai Abraão” (At 7.2), em Ur dos caldeus. Se buscar ali alguma coisa que seja do céu, onde encontrará? Onde podemos encontrar o propósito de Deus de obter algo celestial? Parece que isso mais uma vez desapareceu. Não parece existir nenhum testemunho deste pensamento celestial de Deus: um povo celestial, um testemunho celestial, algo que representasse e expressasse o pensamento dos céus. Onde encontraremos isso? “O Deus da glória apareceu a nosso pai Abraão”, e esse homem se tornou o elo entre o fracasso e a realização.
Josué e Calebe assumiram essa posição. Temos a história do fracasso no deserto. Onde veremos aquilo que é celestial em meio a esse fracasso? Para eles, onde está o propósito de Deus? Deus não desistiu. Pode parecer que Seu propósito tenha quase desaparecido, e isso tem ocorrido repetidas vezes. Todavia, o céu interveio e assegurou um elo entre o fracasso na terra e o triunfo do céu. Esse elo é o pioneiro. O Senhor precisa ter um instrumento como esse para enfrentar o fracasso e possibilitar mais uma vez a abertura do caminho celestial para a realização.
Você provavelmente se pergunta: “O que isso tem a ver comigo?”, e afirma: “Sim, são idéias maravilhosas, vejo que é uma verdade e que está bem clara na Bíblia, mas como isso me afeta?” O fato é que ela afeta. Algumas pessoas não gostam de meditar muito de maneira crítica a respeito de uma situação, e, independente do que for dito a esse respeito, falando de maneira bem geral, ainda assim o Senhor terá espaço para algo valioso na terra. A grande necessidade dos cristãos hoje é serem restaurados ao pleno propósito celestial de Deus, pois se envolveram com coisas diferentes e inferiores, contentando-se com menos. Isso sempre aconteceu. Foi por essa razão que a maior parte do Novo Testamento foi escrito. O povo do Senhor está sempre em perigo de agir assim. Quando os cristãos gravitam espiritualmente em torno deste mundo, acabam, de alguma forma, perdendo seu testemunho celestial. Sempre haverá uma pressão para baixo, e o Senhor precisa de pessoas com visão, que se tornarão como aquelas pessoas mencionadas em nossa última meditação, para quem o centro de gravidade da vida foi transferido deste mundo para o céu, nas quais há essa percepção. Independente de possuírem ou não a capacidade de interpretar ou de estabelecer um sistema de verdades, de doutrinas ou de ensino bíblico a esse respeito, existirá a percepção de que a vida está atrelada a um destino grandioso e superior àquilo que este mundo pode prover. Essas pessoas foram capturadas por algo que só podem traduzir como um chamamento celestial, o qual as sustêm.
Vamos aprofundar isso mais adiante. O Senhor precisa de um povo assim, que simplesmente não pode se satisfazer com as coisas como elas são. Não se trata apenas de uma questão da mente, da razão, afinal. Algo aconteceu no interior essas pessoas; elas têm a consciência de que Deus fez algo. Por causa disso, elas estão comprometidas com algo muito superior às pobres coisas limitadas dessa vida e desse mundo. Elas foram ligadas interiormente a algo tremendo. Vou reiterar que essas pessoas terão consciência disso, ainda que não sejam capazes de pregar essa mensagem. Nunca seremos úteis para Deus além de nossa visão – visão essa forjada interiormente por Deus –, além de nossos próprios sentimentos. A medida de nossa visão determinará a medida de nossa utilidade. Oh, como seria bom haver uma medida incomensurável do céu no coração de um povo! Essa é a necessidade de nossos dias.
Concluo reafirmando que, embora o apóstolo fale tanto dessa vocação celestial, esse é um caminho muito difícil e repleto de todo tipo de dificuldade. Todavia, é o caminho real, verdadeiro e supremo, pois o céu é uma natureza, um poder, uma vida, uma ordem, e está destinado a encher este mundo e este universo.
De Irvine, Escócia, estando eu a caminho do “Palácio de Cristo” em Aberdeen, 4 de agosto de 1636
Consolo a um irmão em tribulação
Graça, misericórdia e paz estejam contigo. Por causa de nossa familiaridade em Cristo, pensei ser bom tomar a oportunidade de escrever a ti. Vendo que pareceu bem ao Senhor da colheita tomar as rédeas de tuas mãos por um tempo, e colocar sobre nós um serviço mais honorável, isto é, sofrer pelo nome Dele, seria bom nos consolarmos mutuamente em cartas. Tenho tido o desejo de ver-te face a face; contudo, sendo agora prisioneiro de Cristo, isso me foi tirado. Estou grandemente confortado por ouvir a respeito de teu firme espírito de soldado por teu magnífico e real Capitão Jesus, nosso Senhor, e, pela graça de Deus, dos demais queridos irmãos contigo.
Minha própria privação do ministério
Ouviste de minha aflição, suponho eu. Agradou ao nosso doce Senhor Jesus deixar solta a malícia desses senhores interditados em Sua casa para privar-me de meu ministério em Anwoth, e confinar-me à distância de uns doze quilômetros de lá, em Aberdeen; e também (o que não foi feito a ninguém antes) proibir-me de falar no nome de Jesus dentro deste reino, sob pena de rebelião. O motivo que levantou o ódio deles foi meu livro contra os arminianos, de que me acusaram naqueles três dias em que me apresentei perante eles. Mas que reine nosso coroado Rei em Sião! Por Sua graça, a perda é deles, a vantagem é de Cristo e da verdade.
Cristo é digno de nosso sofrimento
Embora essa honrada cruz tenha ganho terreno sobre mim, e minha aflição e meus desafios interiores de consciência por um tempo tenham sido agudos, agora, para o encorajamento de todos vós, ouso dizer e escrever com minha mão:
“Bem-vinda, bem-vinda, doce, doce cruz de Cristo.”
Eu verdadeiramente penso que as cadeias de meu Senhor Jesus são todas cobertas de ouro puro, e que Sua cruz é perfumada, e que tem o aroma de Cristo, e que a vitória será pelo sangue do Cordeiro e pela Palavra de Sua verdade, e que Cristo, apoiado em Seus servos fracos e na verdade oprimida, cavalgará sobre o ventre de Seus inimigos e “ferirá os reis no dia da Sua ira” (Sl 110.5).
Será tempo de rirmos quando Ele rir; e, vendo que agora Lhe agrada assentar-se com os errados por um tempo, isso nos silencia até que o Senhor faça os inimigos desfrutarem do paraíso árido, seco e imprestável deles. Bem-aventurados são os que ficam contentes por sofrerem golpes com o Cristo que chora. A fé confiará no Senhor, e não é impetuosa nem obstinada. Tampouco a fé é tão tímida que favoreça a tentação, ou que venha a subornar ou a seduzir a cruz. É de pouca significância que o Cordeiro e Seus seguidores não obtenham garantia nem trégua com cruzes; é preciso que assim seja até que estejamos na casa de nosso Pai.
Caro irmão, ajudemo-nos uns aos outros com orações. Nosso Rei derrubará Seus inimigos, e Ele voltará de Bozra com Suas vestes tintas de sangue. E, para nossa consolação, Ele aparecerá e chamará Sua esposa de Hefzibá[2] e Sua terra, de Beulá[3] (Is 62.4); porque Ele se regozijará em nós, e nos desposará, e a Escócia dirá: “O que ainda tenho eu com os ídolos?” Sejamos, então, fiéis a Ele que pode cavalgar através do inferno e da morte com uma palha[4], e Seu cavalo jamais tropeça. E façamos a Ele uma ponte sobre águas, e assim Seu alto e santo nome seja glorificado em mim.
Golpes com a doce mão do Mediador são muito doces.
Ele sempre foi doce à minha alma; mas, desde que sofri por Ele, Seu hálito tem um aroma ainda mais doce que antes. Oh, que cada fio de cabelo de minha cabeça, e cada membro e cada osso de meu corpo fosse um homem a fazer uma verdadeira confissão para Ele! Penso que tudo seria muito pouco para Ele. Quando olho além dos limites e além da morte, para o lado sorridente do mundo, eu triunfo e cavalgo sobre os lugares altos de Jacó; contudo, por outro lado, sou um homem desfalecido, desanimado, covarde, muitas vezes derrubado, e faminto, aguardando a ceia das bodas do Cordeiro. Mesmo assim, penso no sábio amor do Senhor que nos alimenta com a fome e deixa-nos gordos de desejos e deserções.[5]
[1] Robert Cunningham, eminente ministro do evangelho em Holywood, Irlanda do Norte. Em 1636, ele e outros foram expulsos da Irlanda por prelatícios [defensores do prelado, do governo da igreja por bispos; episcopais]. Ele se estabeleceu em St. Irvine, no condado de Ayrshire (sudeste da Escócia). Morreu em março de 1637, quase oito meses depois que Rutherford lhe escreveu. [2] Heb.: “meu prazer está nela” [3] Heb.: “desposada” [4] Metaforicamente, algo banal, insignificante. [5] Fome e desejos pelas coisas celestiais e deserções quanto às coisas deste mundo.
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Eu te saúdo com a graça, a misericórdia e a paz de Deus, nosso Pai, e de nosso Senhor Jesus Cristo. Ouvi com tristeza de teu grande perigo de perecer no mar, porém com alegria sobre teu misericordioso livramento. Com certeza, irmão, Satanás não deixará nenhuma pedra por rolar, como diz o provérbio, para rolar-te de tua Rocha, ou pelo menos abalar-te e instabilizar-te; pois, ao mesmo tempo, a boca dos ímpios estava aberta em duros discursos contra ti em terra, e o príncipe das potestades do ar estava zangado contigo no mar.
Então, veja como estás forçado por esse malicioso assassino que quer atingir-te com duas varas ao mesmo tempo. Mas, louvado seja Deus, que o braço de Satanás é curto: se o mar e os ventos lhe tivessem obedecido, tu nunca terias voltado à terra. Graças ao teu Deus que diz: “E tenho as chaves da morte e do inferno” (Ap 1.18). “Eu mato e faço viver” (Dt 32.39). “O Senhor é o que tira a vida e a dá; faz descer à sepultura e faz tornar a subir dela” (1Sm 2.6). Se Satanás fosse o carcereiro, e tivesse as chaves da morte e da sepultura, elas estariam guardadas com mais prisioneiros. Estiveste batendo nesses negros portões, e os encontraste fechados; e todos nós lhe damos as boas-vindas em teu retorno.
Preparo para a morte
Espero que saibas que não é sem razão que foste enviado a nós novamente. O Senhor sabia que tinhas esquecido algo que era necessário para tua viagem: que tua armadura ainda não estava suficientemente preparada contra o impacto da morte. Agora, na força de Jesus, termina teu trabalho; aquela dívida não está perdoada, mas adiada; a morte não te deu adeus, mas apenas te deixou por um pouco de tempo. Termina tua jornada antes que a noite venha sobre ti; mantém tudo em prontidão para a hora em que atravessarás o negro e impetuoso Jordão; e que Jesus, Jesus, que conhece tanto as profundezas como as pedras e todas as encostas, seja teu Piloto.
A última maré não esperará por ti nem por um momento; se esqueceres alguma coisa, quando teu mar estiver pleno, e teu pé estiver naquele barco, não haverá retorno para pegar o que esqueceste. O que fizeres de errado em tua vida hoje, podes modificar amanhã; pois tantos sóis Deus faz levantar sobre ti, tantas serão como que tuas novas vidas; e se tu estragares esse negócio, não poderás voltar para consertar aquela parte de teu trabalho novamente; nenhum homem peca duas vezes por morrer doente; como morremos apenas uma vez, morremos apenas uma vez, estando doentes ou saudáveis.
Tu vês como o número de teus meses está escrito no livro de Deus; e, como um dos servos do Senhor, precisas trabalhar até que a sombra da noite venha sobre ti, quando terminarás tua ampulheta até o último grão de areia. Cumpre tua jornada com alegria; pois nada levamos conosco para o túmulo, exceto uma boa ou má consciência. E, embora os céus clareiem após essa tempestade, as nuvens ainda preparam outra.
Função das provações
Tu pactuaste com Cristo, espero, logo que começaste a segui-Lo, que carregarias a Sua cruz. Cumpre tua parte do pacto com paciência, e não o quebre com relação a Jesus Cristo. Sê tu honesto, irmão, em tuas negociações com Ele; pois quem sabe mais sobre criar filhos que nosso Deus? Pois (deixando de lado Seu conhecimento, que não se pode sondar) Ele tem praticado criar Seus herdeiros nesses cinco mil anos, e Seus filhos são todos bem criados, e muitos deles são homens honestos agora no lar, lá em suas próprias casas no céu, e receberam a herança de seu Pai.
Agora, a forma de criá-los foi por castigos, flagelação, correção, acalento. Vê se Ele faz acepção de qualquer de Seus filhos (Ap 3.19; Hb 12.7,8). Não! Seu Filho mais velho e Seu Herdeiro, Jesus, não foi exceção (2.10). Sofrer é preciso; antes de nascermos, Deus o decretou; e é mais fácil reclamar de Seu decreto do que mudá-lo. É verdade, terrores de consciência nos derrubam, mas sem os terrores de consciência não podemos ser novamente erguidos. Temores e dúvidas nos abalam; mas sem temores e dúvidas logo adormeceríamos e não poderíamos nos agarrar a Cristo. Tribulações e tentações quase conseguem nos afrouxar a raiz; mas, sem tribulações e tentações, não podemos crescer assim com não crescem a relva ou o milho sem chuva. O pecado e Satanás e o mundo dirão, e gritarão em nosso ouvido, que temos um difícil acerto de contas a ser feito no juízo; contudo, nenhum desses três, exceto se mentirem, ousam dizer em nossa cara que nosso pecado pode mudar o teor do novo pacto.
Para frente, portanto, caro irmão, e não percas tua âncora. Segura firme a verdade.
1 John Kennedy, conselheiro de Ayr, cidade da Escócia, um cristão eminente, destacado em assuntos públicos durante os anos 1640. [Nota do editor original.]
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Todos estes morreram na fé, sem terem recebido as promessas; mas vendo-as de longe, e crendo-as e abraçando-as, confessaram que eram estrangeiros e peregrinos na terra. Porque, os que isto dizem, claramente mostram que buscam uma pátria. E se, na verdade, se lembrassem daquela de onde haviam saído, teriam oportunidade de tornar. Mas agora desejam uma melhor, isto é, a celestial. Por isso também Deus não se envergonha deles, de se chamar seu Deus, porque já lhes preparou uma cidade.
(Hb 11.13-16)
Um tempo antes dessas mensagens serem compartilhadas fui para o interior em busca de quietude e distanciamento, dirigindo meu coração para o Senhor e Sua Palavra. Certo dia, nas primeiras horas da manhã, foi como se os céus tivessem sido abertos e tudo tivesse se tornado claro, descortinando-se maravilhosamente em torno de um tema: “Pioneiros no caminho celestial”. Essas palavras resumem os versos que acabamos de citar. Enquanto vamos meditar e, talvez, compartilhar muito sobre o caminho celestial, meu principal foco será a questão do pioneirismo nessa jornada. Para tanto, é necessário iniciar nossa consideração um pouco extensa sobre o caminho celestial, mas reitero que essa impressionante questão do pioneirismo deve ser, a meu ver, o ponto central da mensagem. Acredito que esse seja o interesse central do Senhor neste momento, e deve ser o nosso.
A Terra relacionada ao céu
A Bíblia se inicia com os céus: “No princípio criou Deus os céus e a terra” (Gn 1.1). A ordem da criação não foi “a terra, então os céus”; os céus vieram em primeiro lugar. A Bíblia se encerra com a santa cidade, a nova Jerusalém, descendo de Deus do céu (Ap 21.2). Vemos no início e final da Palavra de Deus que tudo se origina do céu e se dirige novamente para lá. Todo o conteúdo restante das Escrituras obedece a esse princípio. Assim como aconteceu na esfera natural, ocorre na espiritual. O céu governa a terra e tudo que é terreno, e as coisas terrenas têm de responder às celestiais. O céu é o ponto de referência: tudo deve estar à sua luz, responder ao céu e ter sua origem ali. Essa é uma síntese da Palavra de Deus, o inteiro conteúdo das Escrituras.
Esse mundo, essa Terra, não está isolado, abandonado. Ainda que a Terra seja importante dentro dos arranjos divinos, não pode ser vista de forma separada, mas se relaciona ao céu e todo o seu sentido se deriva desse relacionamento. De fato, a Terra é um objeto de grande interesse celestial, pois talvez as coisas mais grandiosas do universo tenham tomado lugar aqui: Deus veio em carne, viveu, deu-se pelo mundo; o grande drama dos conselhos eternos se relaciona com a Terra. Ainda assim, devemos atentar para o fato de que seu sentido e sua importância estão atrelados a ela estar relacionada a algo maior que ela mesma: os céus.
A Bíblia nos ensina que é lá nos céus que Deus se encontra, conforme está escrito: “Deus está nos céus” (Ec 5.2). Aprendemos que existe um sistema, uma ordem suprema e verdadeira nos céus. No final de tudo, a consumação de todos os conselhos de Deus será, na Terra, uma reprodução da ordem celestial. Cristo desceu dos céus e para lá retornou. O cristão, como filho de Deus, nasce do céu e tem sua vida centrada ali. A vida do filho de Deus terá sua consumação no céu. A Igreja, a obra-prima de Deus, tem origem, chamamento e destino celestiais. Em todas essas coisas, e em muitas outras “o céu reina” (Dn 4.26). Tudo é governado por esse elemento do céu.
Filhos de Deus relacionados ao céu
Se somos filhos de Deus, então, toda a nossa educação e nossa história estão relacionadas aos céus. Esse assunto será tratado com mais detalhes adiante. No entanto, é importante afirmar, para que fique claro na compreensão de todos, que toda a nossa história e nossa educação como filhos de Deus estão relacionadas aos céus, e com digo isso não me refiro apenas a que vamos para o céu. Estamos relacionados ao reino dos céus por nascimento, por seu sustento a nós e por nossa eterna vocação. Toda a nossa educação, eu disse, está relacionada aos céus. Tudo o que temos de aprender está em saber como as coisas são feitas ali, como o Senhor disse ao afirmar: “Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu” (Mt 6.10). Quando o Senhor iniciou com “Pai nosso, que estás nos céus” [v. 9], ficou claro que esse fragmento da oração é muito abrangente, englobando toda a educação dos filhos de Deus. As coisas devem ser aqui como são no céu; mas se faz necessário passar por uma vida inteira de educação, um profundo e drástico treinamento para essa conformidade ao céu de fato acontecer.
A Bíblia dos cristãos do Novo Testamento era o Antigo Testamento. Quando lemos o Novo Testamento, como fazemos com frequência, vemos citações a respeito das Escrituras: “Para que se cumprisse o que foi dito” [Mt 1.22; 4.14; 8.17]; “Como está escrito” [Mc 7.6], fazendo referência ao Antigo Testamento. O Antigo Testamento era tudo o que os cristãos possuíam em termos de Escrituras, a única Bíblia dos primeiros cristãos que viveram nas primeiras décadas da história da igreja, pois eles ainda não tinham o Novo Testamento. Para eles, o Antigo Testamento era a Bíblia, e era tomado continuamente como fonte de consulta e como referência para exemplificar a experiência espiritual dos cristãos. Isso ocorreu na Epístola aos Hebreus, de onde extraímos nossa citação inicial. Essa carta está repleta de referências ao Antigo Testamento, do início ao fim. O Antigo Testamento era usado com frequência para ilustrar e demonstrar o sentido da vida espiritual de um cristão do Novo Testamento.
Uma peregrinação relacionada ao céu
O que encontramos no Antigo Testamento é uma peregrinação, ao longo de todo ele: uma peregrinação para o céu. Vamos voltar ao início do registro bíblico. A intenção Divina na criação foi que houvesse uma harmonia entre o céu e a Terra que possibilitasse a Deus estar nesse mundo com prazer, alegria, descanso, da mesma forma que Ele podia estar em Seu céu. Ele fez a Terra para Seu prazer, Ele a fez para Si mesmo, Ele a fez para visitá-la quando desejasse em total satisfação, descanso e alegria. Vemos, como primeira imagem diante de nós, a satisfação de Deus ao visitar o mundo que criou. Ele o moldou, foi feitura Sua, e é dito que Ele entrou no Seu descanso quando concluiu essa obra. Ele encontrou Seu descanso enquanto estava aqui, em Sua criação.
Entretanto, desde a tragédia da queda, os céus e a terra entraram em divergência, perdendo a harmonia. Esse mundo permanece em conflito com o céu; tudo na Terra mudou. No que diz respeito ao mundo, Deus não tem prazer em visitá-lo ou de estar aqui. Sua presença aqui é encontrada por meio de um testemunho, não mais em sua plenitude. Esse testemunho de Sua presença atesta que esse é Seu lugar de direito, que “do Senhor é a terra e a sua plenitude” (Sl 24.1) e que Ele tudo criou para Seu prazer. Mas Deus permanece aqui apenas por meio de um testemunho, como um sinal, que se faz necessário uma vez que Ele não mais está presente em Sua plenitude. Em um sentido muito real e amplo, Deus está fora desse mundo, e existe um conflito entre o céu e a Terra. Embora haja esse testemunho, o próprio testemunho está aqui e não está. Em certo sentido, o testemunho está fora, pois o próprio vaso que testemunha da presença de Deus não pertence a este mundo. Não existe aqui uma habitação permanente, uma cidade. Apesar de estar ‘dentro’, não ‘pertence’ a esse mundo, é um estrangeiro. Isso ocorre desde a queda.
Se atentarmos para a história individual ou corporativa dos instrumentos divinamente apreendidos para expressar esse testemunho, veremos uma história de pioneirismo espiritual em relação ao céu. Vocês compreendem isso? Vou enfatizar mais uma vez. Toda a história desses vasos, individuais ou corporativos, escolhidos e capturados por Deus para expressarem Seu testemunho, é o relato de pioneiros fazendo picadas, abrindo caminho, fazendo algo que é novo no que diz respeito ao mundo, conquistando terreno novo, inovando e fazendo descobertas relacionadas ao céu ― pioneiros na esfera celestial. Quanta história pode ser agregada nessa afirmação!
Para os pioneiros, o centro de gravidade é o céu
Vamos observar uma ou duas características dessa vocação para o pioneirismo. Primeiramente, aqueles que são chamados e capturados pelo céu para servir a um propósito celestial percebem que o centro de gravidade foi interior e espiritualmente mudado e transferido desse mundo para o céu. Há uma sensação profundamente arraigada de não mais pertencer a esse mundo, de que este não é nosso lugar de repouso, que não é nosso lar e não é mais nosso centro de gravidade. Não somos mais atraídos interiormente para o mundo. Uma sensação de conflito com o que está aqui, de haver uma divergência interior e de não poder aceitar o mundo permanece no espírito de um pioneiro. Repito: o centro de gravidade, interior e espiritualmente, foi transferido deste mundo para o céu. Essa é uma consciência inata, e é a primeira coisa nesse chamamento celestial, o primeiro efeito, o primeiro resultado de nosso chamamento do alto. Esse assunto será tratado mais adiante.
Podemos adotar isso como um teste. É claro que isso é verdadeiro até mesmo para o mais simples dos filhos de Deus. A primeira consciência de que alguém nasceu, verdadeiramente nasceu, do alto é percebida pela mudança em seu centro de gravidade. De uma forma ou de outra, interiormente, saímos de um mundo e entramos em outro. De uma forma ou de outra, as coisas com as quais éramos relacionados por nossa natureza não nos seguram mais: elas não são mais nosso mundo. Essa deve ser nossa consciência, e se isso não acontecer, existe algo bem duvidoso nessa profissão de fé no Senhor Jesus. O senso inato de um novo centro de gravidade deve crescer progressivamente ao ponto de se tornar cada vez mais impossível para nós aceitar esse mundo em qualquer aspecto. Mais uma vez afirmo que este é um teste para nosso progresso espiritual, de nossa peregrinação e de quanto avançamos nela. No entanto, isso, afinal de contas, ainda é algo elementar.
A esfera celestial é-nos desconhecida por natureza
Essa outra esfera, a respeito da qual recebemos a consciência em nosso coração, essa gravitação que se iniciou em nosso espírito, é um mundo absolutamente desconhecido da nossa natureza. Para a nossa natureza humana trata-se de um reino totalmente outro: diferente, nada familiar, inexplorado. Para cada indivíduo essa jornada corresponde a um mundo completamente novo que só pode ser conhecido por meio da experiência, independente de muitas pessoas já terem iniciado essa caminhada e terem nela permanecido por um longo tempo. Podemos extrair valores das experiências dos outros, e graças a Deus por isso, mas essas experiências não podem nos levar nem um passo adiante nesse caminho. Trata-se de um novo, completamente novo e estranho caminho para nós. Precisaremos aprender tudo a respeito dele, desde o início.
Isso torna o pioneirismo ― algo que o pioneirismo sempre foi ― um caminho solitário. Ninguém pode nos transmitir essa herança. Precisaremos conquistar nossa própria herança nesse mundo desconhecido e estranho, e isso vai demandar, basicamente, uma nova constituição de acordo com ele, capacidades que não há em nós pela natureza. Nenhum homem pode desvendar a Deus por meio de investigação (Jó 11.7) ― não temos essa capacidade. Isso precisa nascer em nós vindo do céu. Precisaremos descobrir isso tudo por nós mesmos. Precisaremos conhecer a Deus por nós mesmos, em cada detalhe da Sua disposição de se relacionar com o coração humano.
Podemos receber luz por meio de testemunhos, por meio das Escrituras; podemos também ser ajudados por conselhos, receber inspiração de outros que desbravaram esse caminho antes de nós. Todavia, em última análise, precisaremos tomar posse de nosso próprio terreno nesse país celestial; precisaremos conquistar, cultivar e explorar. Se você está seguindo esse caminho em sua vida espiritual, sabe do que estou falando, porque está precisando descobrir as coisas sozinho. Oh, como desejaríamos ter alguém que nos tomasse nos braços e nos delegasse o benefício de suas experiências! O Senhor nunca permitirá isso. Se estamos verdadeiramente e de fato prosseguindo na estrada celestial, se não apenas começamos e, então, desanimamos ou desistimos ao longo do caminho, somos todos pioneiros. Se formos pioneiros, poderemos compartilhar valores com outros, mas, em certo sentido, todos que estão nessa jornada precisarão fazer as próprias descobertas, e é melhor que seja assim. Em última análise, não existe nada de segunda mão na vida espiritual.
Pioneirismo repleto de custo e conflito
Chegamos à terceira característica desse pioneirismo. Todo o pioneirismo é repleto de custo e sofrimento. Como essa jornada, ou caminho, é espiritual, compreendemos que o preço a ser pago pelo pioneirismo será principalmente interior.
Perplexidade, sim, perplexidade. Li a tradução de uma mensagem do nosso irmão Watchman Nee, na qual ele afirmou: “No passado, eu tinha um conceito elevado a respeito da vida cristã imaginando que um cristão estar perplexo era absolutamente errado. Um cristão ser humilhado? Um cristão em desespero? Isso está totalmente errado; afinal, que tipo de cristão seria esse? Quando li as palavras de Paulo dizendo que estava perplexo, em angústia e desespero, isso se tornou um problema real para mim, considerando meu conceito daquilo que um cristão deveria ser. Então, por fim vi que não havia nada errado nisso” [cf. 2Co 4.8,9]. Sim, um cristão como o apóstolo Paulo perplexo, humilhado e em desespero. Esse é o caminho dos pioneiros.
Perplexo. Mas o que essa perplexidade implica? Ela implica a carência de faculdades ou habilidades para compreender o que se passa em determinada esfera a respeito da qual, no momento, não as temos. Encaramos algo que está além de nossa capacidade. Isso não quer dizer que ficaremos sempre perplexos na mesma medida em relação às mesmas coisas. Sairemos da perplexidade em determinado assunto e o entenderemos; todavia sempre encontraremos alguma medida de perplexidade, simplesmente porque o céu é maior que este mundo, mais vasto que essa vida natural, e precisamos continuar a crescer. Perplexidade é a porção dos pioneiros.
Fraqueza. O irmão Nee questionou: “Um cristão em fraqueza e confessando ser fraco? Que tipo de cristão é esse?” Paulo discorre muito sobre fraqueza, sua própria fraqueza, indicando, certamente, existe outro tipo de força diferente da nossa a ser descoberto, algo que não conhecemos naturalmente. Este é o caminho dos pioneiros: chegar à sabedoria que está além de nós, a qual, por ora, significa perplexidade; obter uma força que está além de nós, a qual, por ora, significa fraqueza em nós mesmos. Estamos em um processo de aprendizado ― é tudo. Esse é o caminho dos pioneiros, mas existe um preço alto, como esse, a ser pago em nosso interior, das mais variadas formas.
Mas, apesar desse preço ser interior, ele é também exterior. A Epístola aos Hebreus tem diversas indicações desses dois aspectos de nossa peregrinação. “Todos estes […] confessaram que eram estrangeiros e peregrinos na terra” (11.13). O apóstolo escrevia sobre uma jornada espiritual, uma transição do terrenal para o celestial, indicando o aspecto interior. Mas houve também o aspecto exterior no testemunho daquelas pessoas, e acontece o mesmo conosco. Toda a inclinação da natureza tende para baixo, se for deixada por conta própria. Isso acontece em todas as esferas da natureza, se deixarmos que elas sigam sua tendência natural, não é? Um belo jardim logo se torna em desolação, desordem e caos, se pararmos de cultivá-lo. E isso também é verdade a nosso respeito, nessa jornada espiritual: nossa gravitação natural se dirige para a Terra, sempre buscaremos um lugar para nos estabelecer, sempre ansiaremos pelo fim do conflito e do combate, buscando uma saída dessa atmosfera de tensão na vida espiritual. Toda a história da Igreja é uma longa história dessa tendência de acomodação a essa Terra, de conformar-se a esse mundo, de busca por aceitação e popularidade e para eliminar os elementos de conflito e de peregrinação. Essa é a nossa inclinação, a tendência natural. Assim o pioneirismo tem um alto preço, exterior e interiormente.
Estaremos assumindo uma posição contrária à inclinação religiosa. Voltemos à Epístola aos Hebreus. Ali vemos uma inclinação descendente e retrógrada para a Terra, tornando o cristianismo um sistema religioso terreno com todas as suas externalidades, suas formas, seus rituais e suas vestimentas. Todo esse sistema precisava ser visível e deveria responder aos sentidos naturais. Isso exercia uma grande atração àqueles cristãos; fazia um grande apelo à alma deles, à sua natureza, e essa carta foi escrita para admoestar: “Deixemos essas coisas para trás e prossigamos. Somos peregrinos, estrangeiros; aquilo que é celestial é que tem importância”. Relembremos do grandioso parágrafo sobre a nossa chegada à Jerusalém celestial (12.18-24).
Mas tomar uma posição contrária ao sistema religioso “acomodado” envolve um alto preço e um grande sofrimento. Por vezes parece-me que isso é bem mais difícil do que se posicionar contra o próprio mundo. Isso porque o sistema religioso pode ser ainda mais cruel, implacável e amargo, por sofrer influência de coisas malignas e desprezíveis como preconceitos e suspeitas, que são encontradas até mesmo nas pessoas decentes do mundo. Uma progressão ascendente para o céu tem um alto preço, é dolorosa, mas é o caminho do pioneiro, e precisa estar bem claro que isso é assim. Nessa carta temos a seguinte afirmação: “Saiamos, pois, a Ele fora do arraial” (13.13). Deixo a seu critério determinar o que é esse arraial, mas não é o mundo. “A Ele fora do arraial” representa banimento, suspeita.
“Todos estes morreram na fé, sem terem recebido as promessas; mas vendo-as de longe, e crendo-as e abraçando-as” [11.13]. Não seria esta a visão de um pioneiro: sempre ver e saudar de longe aquele dia da concretização de sua fé, ainda que esteja além da curta duração de sua vida? “Confessaram que eram estrangeiros e peregrinos na terra. Porque, os que isto dizem, claramente mostram que buscam uma pátria. E se, na verdade, se lembrassem daquela de onde haviam saído, teriam oportunidade de tornar. Mas agora desejam uma melhor, isto é, a celestial. Por isso também Deus não se envergonha deles, de se chamar seu Deus, porque já lhes preparou uma cidade.” Deus não se envergonha do povo que peregrina com Ele em direção a Seu propósito, Ele considera Seus os desse povo, é chamado “seu Deus” e preparou-lhes “uma cidade” (vv. 13-16).
Quando meditamos nesse texto, vemos que é um resumo maravilhoso. “Todos estes” [v. 13] ― que afirmação abrangente! Percebemos nessa afirmação que todas essas pessoas viram alguma coisa e não mais descansaram depois dessa visão, até chegarem ao fim de seus dias e darem seu último suspiro nessa Terra. Elas ainda eram peregrinas e não puderam mais descansar, pois receberam aquele chamado do invisível. Precisamos receber isso dos céus, para sermos conduzidos para lá. Isso ficou claro?
Como podemos ver, essa é a chave e a explicação para tudo. Essa é a garantia de que tudo o que ansiamos, desejamos, buscamos e foi originado no Espírito de Deus será realizado. Oh, bendito seja Deus por isso! Que mais pessoas do povo do Senhor experimentem, com poder, essa convicção!
Você tem fome disso? Anseia por isso? Está insatisfeito? Esse anseio é como uma profecia de que existe algo mais. Você está acomodado? Você se conformou? Sua visão é curta e estreita? Você só consegue ir até aqui? Você aceitando as coisas como elas são? Muito bem, é isso que você irá alcançar ― não espere chegar muito longe. Deus se intitula o Deus daqueles peregrinos [11:16]. Ele é o Deus dos peregrinos. Vamos abandonar essa mentalidade literal a respeito dessa peregrinação literal ― ou, como preferem alguns, de um céu literal. De fato, apesar de desconhecer onde o céu está, sei que existe uma ordem celestial e que os tratos de Deus para comigo são relacionados a essa ordem, diariamente. Deixemos o literal e vejamos o lado espiritual, que é muito real. Vamos pedir ao Senhor para plantar poderosamente em nós esse espírito de peregrino.
Você descobrirá, à medida que prosseguir, que, apesar de ter havido momentos de sua vida espiritual em que acreditava estar tudo tão maravilhoso e pleno, ao ponto de acreditar que havia chegado ao ápice, em outros momentos, essas maravilhas irão parecer insignificantes. Ao fazer uma retrospectiva, vai considerar tudo aquilo meninice. Olhará para algumas de suas leituras daquela ocasião que o alimentavam e dirá: “Como é que eu encontrava alguma coisa nisso?” Não me entenda mal: não é que houvesse alguma coisa errada naquelas coisas; elas eram adequadas para aquela ocasião, mas você prosseguiu e precisará de algo mais agora. Precisamos amadurecer em todas as coisas, prosseguir. Precisamos ser um povo do além. Esse é provavelmente o sentido da palavra “hebreu”. Essa carta é chamada de Epístolas aos Hebreus, e fala de peregrinos e estrangeiros. Se a palavra “hebreu” significa “pessoa do além”, podemos afirmar que somos um povo do além, que nossa morada e nossa gravitação estão além. Somos peregrinos nessa Terra, peregrinos do além.
Que o Senhor torne essa mensagem útil, tirando-nos da condição de letargia, do falso contentamento ou do desejo indevido de alcançar um fim aqui. Por outro lado, que o Senhor mantenha nossos olhos e nosso coração unidos aos daqueles que foram pioneiros antes de nós, vendo, saudando, e, se necessário morrendo em fé.
Os inexplicáveis tratos de Deus com Seu povo são bem ordenados
Eu compreendo tuas circunstâncias neste mundo, saborizadas pela adoração ao Filho de Deus e pela comunhão com Ele em Seus sofrimentos. Tu não podes, não deves ter aqui uma condição mais agradável ou mais fácil do que a que Ele teve, Ele que “por aflições foi aperfeiçoado” (Hb 2.10). Podemos, de fato, pensar: “Deus não pode nos levar ao céu de maneira fácil e próspera?” Quem duvida que Ele pode? Mas Sua infinita sabedoria pensa e decreta o contrário; e, embora não possamos ver uma razão para isso, ainda assim Ele tem uma razão mais justa.
Com os olhos, nunca vimos nossa própria alma; ainda assim, temos uma alma. Vemos muitos rios, mas não conhecemos sua primeira nascente, a fonte original; ainda assim, eles têm um começo.
Senhora, quando chegares ao outro lado do rio, e pousares teus pés nas praias da eternidade gloriosa e olhares para trás, novamente, para as águas e para tua penosa jornada, e vires naquele límpido cristal de glória eterna de mais perto as profundezas da sabedoria de Deus, terás forçosamente que dizer:
“Se Deus houvesse feito de modo diferente comigo o que Ele fez, eu nunca teria chegado ao desfrute dessa coroa de glória”.
Tua parte agora é crer, e sofrer, e confiar e esperar, pois assevero, na presença daquele Olho que tudo discerne, que sabe o que escrevo e o que penso, que não me faltou a doce experiência das consolações de Deus em toda a amargura da aflição. Não; se Deus vem a Seus filhos com uma vara ou com uma coroa, se Ele próprio vem, então, está tudo bem. Bem-vindo, bem-vindo Jesus, vem da maneira que Tu vieres, desde que possamos Te ver. E, estou certo, é melhor estar doente, contanto que Cristo venha para o lado da cama, abra as cortinas e diga: “Coragem, Eu sou tua salvação”, do que gozar de saúde, ser vigoroso e forte, e nunca ser visitado por Deus.
Falta de ordenanças
Digna e cara senhora, na força de Cristo, luta e vence. Tu estás agora sozinha, porém podes ter, se buscares, três sempre em tua companhia: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Sei que estão perto de ti. Tu estás agora privada do conforto de um ministério ativo; foi assim com os israelitas no cativeiro; contudo, ouve a promessa de Deus para eles: “Portanto, dize: Assim diz o Senhor Deus: Ainda que os lancei para longe entre os gentios, e ainda que os espalhei pelas terras, todavia lhes serei como um pequeno santuário, nas terras para onde forem” (Ez 11.16). Vê, um santuário! Um santuário, o próprio Deus, em lugar do templo de Jerusalém. Confio em Deus que, carregando esse templo contigo, tu verás a beleza de Jeová em Sua casa.
1 Jane Campbell, Viscondessa de Kemnure, filha do sétimo Conde de Argyle. Em 1628, ela se casou com John Gordon, de Lochinvar, cuja morte prematura ocorreu em 1634. Jane se casou novamente em 1640, mas em pouco tempo uma nova viuvez lhe sobreveio. Ela viveu até os anos 1670 com o que parece ter sido uma vida cristã exemplar. [Nota do editor original.]
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Samuel Rutherford (1600–1661) nasceu perto de Nisbet, Escócia, e pouco se conhece sobre o início de sua vida. Em 1627, ele recebeu o grau de Mestre da Universidade de Edimburgo, onde foi professor de Humanidades. Ele se tornou pastor da igreja em Anwoth em 1627, uma paróquia rural, cujos membros estavam espalhados pelas fazendas nas colinas. Ele possuía um verdadeiro coração de pastor e era incansável no trabalho pelo rebanho. Conta-se que os homens diziam a respeito de Rutherford:
“Ele estava sempre orando, sempre pregando, sempre visitando os doentes, sempre catequizando, sempre escrevendo e estudando.”
Entretanto, seus primeiros anos em Anwoth foram marcados por tristeza. Sua esposa esteve doente por treze meses antes de falecer na nova casa deles. Dois filhos também morreram nesse período. Não obstante, Deus usou esse tempo de sofrimento a fim de preparar Rutherford para ser um consolador de Deus para pessoas em sofrimento.
Em 1636, Rutherford publicou um livro defendendo as doutrinas da graça (calvinismo) contra o arminianismo. Isso o colocou em conflito com as autoridades da Igreja, que era dominada pelo episcopado inglês. Ele foi chamado perante a Suprema Corte, foi retirado de seu cargo ministerial e foi exilado em Aberdeen. Esse exílio foi uma dolorosa provação para o querido pastor. Ele sentia ser insuportável estar separado de sua congregação. Contudo, por causa desse exílio, nós hoje temos muitas das cartas que ele escreveu a suas ovelhas ― portanto, o mal de seu banimento tornou-se uma grande bênção para a igreja ao redor do mundo.
Em 1638, as disputas entre o Parlamento e o rei na Inglaterra, e entre o presbiterianismo e o episcopalianismo na Escócia, culminaram em eventos importantes para Rutherford. Na confusão daquela época, ele escapou de Aberdeen e retornou a sua querida Anwoth. Mas não foi por muito tempo. A Kirk (Igreja da Escócia) reuniu-se em Assembleia Geral naquele ano e restaurou o presbiterianismo integral no país. Além disso, indicaram Rutherford como professor de Teologia de St. Andrews, embora ele tivesse negociado para lhe ser permitido pregar pelo menos uma vez por semana.
A Assembléia de Westminster iniciou suas famosas reuniões em 1643, e Rutherford foi um dos cinco comissionados escoceses convidados a participar dos processos. Embora não lhes fosse permitido votar, os escoceses tinham uma influência que de longe ultrapassava seu número. Rutherford, conforme é crido, teve grande influência sobre o Catecismo Breve. Durante esse período na Inglaterra, ele escreveu sua obra mais conhecido, Lex Rex [A lei, o rei]. Esse livro defendia o governo limitado e limitações na ideia corrente do Divino Direito dos Reis.
Cronologia
1600
Data aproximada do nascimento na paróquia de Nisbet, Roxburgshire.
1617
Admitido na Universidade de Edimburgo, fez Mestrado em Artes em 1621.
1623–1626
Regente em Humanidades na Universidade de Edimburgo.
1626
Época em que se tornou seriamente religioso.
1627
Indicado para a Paróquia de Anwoth (Galloway), Escócia.
1630
Envolveu-se em questão legal perante a Corte da Alta Comissão, porque recusou-se a obedecer aos Artigos de Perth. Morte da esposa (fuga de Eupham Hamilton).
1636
Publicou Treatise against Arminianism [Tratado contra o arminianismo].
1636
O bispo de Galloway conseguiu com que a Corte de Alta Comissão o proibisse de exercer o ministério. “Exilado” à prisão em Aberdeen em agosto de 1636. (Inaugura-se o período de sua vida em que escreve cartas.)
1638
A nação escocesa, em revolta contra os erros da Igreja da Inglaterra sob William Laud, assinou o Pacto Nacional. Rutherford retorna para Anwoth.
1638
A Assembléia de Glasgow o indicou como Professor de Divindade na Universidade St. Mary, em St. Andrews. Ele aceitou relutantemente. Compareceu a diversas Assembléias da Convenção. Casou-se com Jean M’Math.
1642
(Eclosão da Guerra Civil na Inglaterra contra o rei Charles I e as forças do Parlamento sob o comando de Oliver Cromwell.)
1643–1647
Membro ativo da Assembléia de Westminster de Teólogos (novembro de 1643 a novembro de 1647). Reside em Londres.
1644
Publicou Lex Rex [A lei, o rei], um tratado político, e Due Right of Presbyteries [Direitos devidos aos presbitérios].
1645–1647
Publicou Trial and Triumph of Faith [Provação e triunfo da fé], Divine Right of Church Government [Direito divino do governo da igreja], e Christ Dying and Drawing Sinners to Himself [Cristo morrendo e trazendo pecadores para si].
1648
Reassumiu os deveres em St. Andrews. Tornou-se diretor da Universidade de St. Mary. Publicou diversos trabalhos menores.
1649
(O Parlamento saiu-se vitorioso na Inglaterra e cessou por algum tempo a perseguição aos dissidentes e não-conformistas por parte da Igreja da Inglaterra.)
1651
Indicado como reitor da Universidade de St. Andrews. Publicou De Divina Providentia [Da providência divina].
1650–1661
Ativo em assuntos nacionais escoceses.
1655
Publicou The Covenant of Life Opened [Aberta a aliança da vida].
1659
Publicou Influences of the Life of Grace [Influências da vida de graça].
1660
(Após a restauração de Charles II). Foi privado de todos os cargos e citado a comparecer ante o Parlamento acusado de traição. Doente demais para fazer a viagem.
1661
Faleceu em março.
1664
Publicada a primeira edição de Letters [Cartas].
1668
(Sua obra Examen Arminianismi [Exame do arminianismo] publicada na Holanda.)
(Sua viúva e sua filha Agnes faleceram depois dele; todos os filhos do primeiro casamento e seis do segundo faleceram antes dele.)
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