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Encorajamento R. C. Sproul

Senhor da história

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E. A. Bremicker Vida cristã

Os ardis de Satanás


À primeira vista, tratar desse tema não é algo edificante. Porém, a Bíblia apresenta o diabo como um ser que realmente existe e sempre se opõe a Cristo e a Seu povo. Por isso, não podemos simplesmente deixar o assunto de lado.

“O diabo peca desde o princípio” (1Jo 3.8). Ele é “o príncipe deste mundo” e “o deus deste século” (Jo 12.31; 2Co 4.4). Ele é poderoso, mesmo que não seja todo-poderoso. Desde o nascimento, todo ser humano está no ambiente onde ocorre o domínio de Satanás. Aqueles que aceitaram o Senhor Jesus como seu Salvador foram tirados “da autoridade das trevas” e transportados “para o reino do Filho” amado do Pai (Cl 1.13). Eles deixaram o domínio de Satanás, que é caracterizado por trevas, e estão agora no domínio de Cristo, caracterizado por luz (At 26.18). Essa mudança é imensa e, para todos os que agora estão ao lado de Cristo, é motivo diário de gratidão e alegria.

No entanto, mesmo que o diabo não domine mais os crentes, ele é e continua sendo inimigo deles. Ele é o grande adversário de Cristo e faz todo o possível para prejudicar aqueles que creram em Cristo. O diabo tem dois aliados terríveis: a carne em nós e o mundo que nos rodeia.

Fomos tirados do poder do diabo; ele, porém, está sempre contra nós e tenta nos prejudicar. Ele é nosso adversário (1Pd 5.8). A história de Jó destaca isso, e muitas outras passagens bíblicas revelam sua atividade contra os crentes (p. ex.: Zc 3.1; 1Cr 21.1). Satanás pode até encher-lhes o coração (At 5.3). Suas artimanhas são muitas e diversas, e somos instados a resistir a suas ciladas (Ef 6.11). Portanto, é útil conhecermos seu caráter. Vamos considerar algumas das advertências que Deus nos dá em Sua Palavra sobre como Satanás age.

  1. Mentiras. O diabo é o grande mentiroso, e é chamado de “pai da mentira” (Jo 8.44). Vemos isso desde Gênesis 3, quando ele entrou em cena pela primeira vez, no jardim do Éden. Todas as atividades do diabo são marcadas por mentiras. Tudo o que ele diz ou tudo aquilo em que ele nos tenta fazer acreditar não é verdade: ele distorce os fatos ou os nega.
  2. Engano. Está intimamente ligado à mentira. Satanás sempre tenta enganar os homens. Ele “se transfigura em anjo de luz” e envia seus mensageiros que se transfiguram “em ministros da justiça” (2Co 11.14-15). O maior engano de Satanás ainda não chegou; ele se dará quando “o iníquo” – o anticristo – “cuja vinda é segundo a eficácia de Satanás, com todo o poder, e sinais e prodígios de mentira” for revelado (2Ts 2.8,9). Mas o princípio já está ativo hoje.
  3. A distorção da verdade. Isso também está intimamente ligado às mentiras. Satanás é astuto para alterar a Palavra de Deus, adaptando-a aos seus planos e, depois, fazendo-nos acreditar que esse é o pensamento de Deus. Foi assim que ele conseguiu derrubar Eva (Gn 3.1). Mesmo na tentação do Senhor Jesus no deserto, ele tentou alcançar seu objetivo usando uma citação do Antigo Testamento, certamente sem sucesso (Lc 4.10,11).
  4. Imitação do que é divino. Satanás procura imitar o que é divino para nos confundir e desestabilizar. Ele trouxe feiticeiros do Egito para imitar os milagres de Moisés (Êx 7.22). No campo onde se semeia boa semente, ele semeia joio que se parece com o grão bom. Ele assim trabalha para corromper a colheita (Mt 13.25,39). Para saber como as imitações diferem da verdade, precisamos de discernimento espiritual.
  5. Sedução. Satanás sempre tentará induzir os crentes ao mal e à independência de Deus. Jesus disse a um de Seus discípulos: “Satanás vos pediu para vos cirandar como trigo” (Lc 22.31). Ele conhece nossas fraquezas e sabe como nos derrubar usando, por exemplo, sedução moral (1Co 7.5). Nessa área, o diabo tem obtido muitas vitórias, pois muitos cristãos não estão suficientemente vigilantes. O apóstolo João nos adverte seriamente contra “a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida” (1Jo 2.16).
  6. Neutralizar o efeito da Palavra. Um dos esforços constantes de Satanás é tentar eliminar o efeito da Palavra de Deus em nosso coração, a fim de que não haja fruto para Deus em nossa vida. Se não permanecermos vigilantes e aceitarmos a Palavra, o diabo tira a semente que Deus nos semeia no coração quando a lemos ou a ouvimos (Mt 13.19).
  7. Colocar obstáculos à obra de Deus. Paulo e seus colaboradores tiveram de experimentar o empenho de Satanás em sua oposição à obra do Senhor. Deus pode permitir que Satanás crie obstáculos a ela, ou até mesmo que a impeça. Embora as intenções daqueles missionários fossem boas e seus motivos, corretos, Satanás os impediu de ir a Tessalônica, e isso aconteceu duas vezes (1Ts 2.18). Portanto, devemos levar em conta o fato de que Satanás, ainda hoje, está fazendo tudo o que pode para impedir que a obra do Senhor seja realizada.
  8. Perseguição. A Bíblia nos apresenta o diabo não apenas como alguém que ataca de forma sutil e oculta, mas também como um “leão que ruge” que procura alguém para devorar (1Pd 5.8). Foi sob esse caráter que os crentes de Esmirna lidaram com ele: o diabo iria lançar alguns deles na prisão (Ap 2.10). O grande número de mártires na história da Igreja evidencia tristemente essa atividade.
  9. Sofrimento. A história de Jó nos conta como Satanás ataca diretamente um crente, infligindo-lhe grande sofrimento físico. Paulo também sofreu ataques desse tipo, e os descreve como um mensageiro de Satanás esbofeteando-o (2Co 12.7). Mas lembremos que o diabo não pode fazer nada se Deus não permitir. Deus está acima de todas as coisas. Isso também fica muito claro na história de Jó. É Deus quem determina a intensidade e a duração da provação (1Co 10.13; 1Pd 1.7).

Ao falar de Satanás, Paulo escreveu aos coríntios: “Não ignoramos os seus ardis” (2Co 2.11). É muito importante levar isso em consideração e saber com que inimigo estamos lidando. É necessário conhecer suas intenções e seus métodos, para não subestimar o perigo que representam para nós.

Para concluir esse tópico negativo com algo positivo, vamos mencionar dois fatos encorajadores.

  1. Satanás é um inimigo derrotado. “Para isso o Filho de Deus se manifestou: para desfazer as obras do diabo” (1Jo 3.8). “Pela morte”, o Senhor Jesus aniquilou “o que tinha o poder da morte, isto é, o diabo” (Hb 2.14). A obra de Cristo na cruz foi o triunfo sobre Satanás e todas as hostes espirituais do mal (Ef 6.12): “Na cruz […] Despojando os principados e as potestades, os expôs publicamente e deles triunfou em Si mesmo” (Cl 2.14,15).
  2. Essa vitória na cruz logo será visível. Paulo escreve aos romanos: “O Deus da paz esmagará em breve Satanás debaixo dos vossos pés” (16.20). O diabo será amarrado e lançado no abismo (Ap 20.2,3). Depois disso, será solto por um pouco de tempo e, então, “lançado no lago de fogo e enxofre” por toda a eternidade (vv. 7,10).
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A. W. Pink Estudo bíblico Vida cristã

Lições de um fiel desconhecido

“E um homem veio de Baal-Salisa, e trouxe ao homem de Deus pães das primícias.”

(2Rs 4.42)

Repare a naturalidade com que a conduta desse homem anônimo é apresentada. Ali estava alguém que se compadeceu do servo do Senhor num tempo de necessidade, que pensou nele naquela época de escassez e necessidade e que se dispôs a passar dificuldades para ministrar a Eliseu. Salisa ficava próxima do monte Efraim (1Sm 9.4), e era provavelmente necessária uma jornada de considerável distância para chegar até o profeta. Ah, mas havia mais coisas por trás da ação desse homem do que parece; temos de olhar mais atentamente se quisermos descobrir as causas daquilo que ele fez. Está escrito: “Os passos de um homem bom são confirmados pelo Senhor, e [o Senhor] deleita-se no seu caminho” (Sl 37.23). E foi isso o que aconteceu no caso que estamos considerando. Esse homem auxilia Eliseu nesse momento, porque Deus operou nele “tanto o querer como o efetuar, segundo a Sua boa vontade” (Fp 2.13). É somente por meio da comparação de Escritura com Escritura que podemos descobrir o significado completo de cada versículo.

Antes de seguir adiante, apliquemos a nós mesmos a verdade a que acabamos de chamar a atenção. Ela tem estreita ligação com cada um de nós, e é uma verdade que precisa ser destacada nestes dias de ateísmo corrente. Está inteiramente na moda, em nossa perversa geração, estar tão envolvido nas chamadas “leis da natureza”, que as ações do Criador se perdem de vista; o homem e seus feitos são tão elogiados e deificados, que a mão de Deus na providência fica totalmente obscurecida. Deve ser diferente com o santo. Quando algum amigo vem e supre suas necessidades, embora você fique grato a ele, olhe acima dele e da sua bondade para Aquele que o enviou. Talvez eu ore assim: “O pão nosso de cada dia nos dá hoje”, e então, por estar tão absorto com as causas secundárias e com os instrumentos que Ele talvez empregue, eu deixo de ver a mão de meu Pai, quando Ele graciosamente atende à minha petição. Deus é o doador de tudo, tanto o que é temporal, como o que é espiritual, mesmo que Ele use agentes humanos para transportar Suas bênçãos.

“E um homem veio de Baal-Salisa”. Essa cidade era originalmente chamada “Salisa”, mas o poder maligno exercido por Jezabel cunhou sobre ela o nome do seu falso deus [Baal], como foi o caso com outros lugares (cf. “Baal-Hermon”; 1Cr 5.23). Mas até mesmo nesse lugar de idolatria havia pelo menos um que temia o Senhor, que se regulava por Sua Lei e que tinha um coração sensível para com Seu servo. Isso deveria ser motivo de conforto para os santos, num tempo como o nosso, em que prevalece tão terrível e freqüente decadência.

Por mais trevosas que se tornem as coisas – e cremos que elas haverão de tornar-se muito mais trevosas antes que haja qualquer melhora –, Deus haverá de preservar para Si mesmo um remanescente.

Ele sempre fez isso, e sempre haverá de fazê-lo. No mundo antediluviano, havia um Noé que, pela graça, era justo no meio da sua geração e andava com Deus. No Egito, quando o nome Jeová se tornara desconhecido entre os hebreus, foi levantado um Moisés, que recusou ser chamado filho da filha de faraó (Hb 11.24). Assim também agora, um aqui outro ali são como voz no deserto. Embora não nos seja informado o nome desse homem de Salisa, não temos dúvida de que seu nome esteja escrito no Livro da Vida.

“E um homem veio de Baal-Salisa, e trouxe ao homem de Deus pães das primícias” (2Rs 4.42). Outra vez destacamos que encontramos aqui mais do que um olhar descuidado pode perceber ou do que aquilo que fica óbvio a um exame descuidado. Se quisermos aprender o significado mais profundo do que está registrado nessa porção, temos de examinar e comparar outras passagens que fazem menção das “primícias”. Assim descobriremos que o gesto desse homem significou algo mais do que mera consideração e bondade para com Eliseu. “As primícias dos primeiros frutos da tua terra trarás à casa do Senhor, teu Deus” (Êx 23.19; 34.26). As “primícias”, então, pertencem ao Senhor. Elas são um reconhecimento tanto de Sua bondade como de Seu direito de propriedade. Uma bela e mais completa passagem nós encontramos em Deuteronômio 26.1-11. Aprendemos, de Números 18.8-13, que as primícias se tornavam a porção dos sacerdotes. “Os primeiros frutos de tudo que houver na terra, que trouxerem [eles, o povo] ao Senhor, serão teus [de Arão e dos filhos dele]; todo o que estiver limpo na tua casa os comerá.” (Nm 18.13). A mesma coisa valia no templo reconstruído: “E as primícias de todos os primeiros frutos de tudo serão dos sacerdotes” (Ez 44.30).

Esse homem de Salisa, então, estava agindo, em princípio, em obediência à Lei de Deus. Dizemos “em princípio”, porque estava escrito que as primícias deviam ser levadas à “casa do Senhor” e que elas se tornassem a porção dos sacerdotes. Mas esse homem pertencia ao reino de Israel, e não ao de Judá; ele vivia em Samaria e não tinha acesso a Jerusalém, e, mesmo que fosse até lá, ser-lhe-ia proibida a entrada no templo. Em Samaria não havia sacerdotes do Senhor, apenas os de Baal. Mas, embora ele não seguisse à risca a letra da Lei, ele certamente o fazia quanto ao espírito, pois reconheceu que essas primícias não serviam para seu próprio uso; e, embora Eliseu não fosse sacerdote, ele era um profeta, um servo do Senhor. É por essa razão, cremos, que está escrito que o homem trouxe as primícias não a “Eliseu”, mas ao “homem de Deus”. Esse nome aparece a primeira vez em Deuteronômio 33.1, referindo-se a Moisés, e descreve não seu caráter, mas seu ofício: alguém totalmente dedicado a Deus, alguém cujo tempo é totalmente empregado no Seu serviço. No Antigo Testamento, esse nome aplica-se somente aos profetas e aos mestres excepcionais (1Sm 2.27; 9.6; 1Rs 17.18). Já no Novo Testamento, parece que se aplica a todos os servos de Deus (1Tm 6.11; 2Tm 3.17).

Aquilo que destacamos acima deveria lançar luz sobre um problema que no presente é motivo de perturbação para muitas almas conscienciosas e deveria trazer conforto nestes dias maus. A situação de muitos do povo de Deus se assemelha bastante à situação que prevalecia quando ocorreram os fatos que estamos comentando. Era um tempo de apostasia, quando tudo estava fora de ordem. É essa a situação presente da cristandade. É a clara obrigação dos filhos de Deus prestar obediência à letra de Sua Palavra onde quer que isso seja possível; mas, quando isso não é possível, eles podem fazê-lo em espírito. Daniel e seus companheiros hebreus não podiam observar a festa da Páscoa na Babilônia, e, sem dúvida, isso era motivo de profundo pesar para eles. Mas esse mesmo pesar significava o desejo deles de observar a festa, e nesses casos Deus considera o desejo como se fosse a prática daquilo que é desejado. Por muitos anos, no passado, este escritor e sua esposa se viram incapacitados de celebrar a Ceia do Senhor. Contudo, pela graça, fizemos isso em espírito, ao lembrarmos a morte do Senhor pelo Seu povo em nosso coração e em nossa mente. “Não deixando a nossa congregação” (Hb 10.25) está muito longe de significar que as ovelhas de Cristo precisam freqüentar um lugar onde predominam os “bodes”, ou um lugar onde a presença delas encorajaria aquilo que desonra seu Senhor.

Antes de prosseguir, devemos destacar outra lição instrutiva e animadora, aqui, para o santo humilde. Esse homem de Salisa, agindo segundo o espírito da Lei de Deus, dirigindo-se com suas primícias ao lugar onde Eliseu estava, não podia nem imaginar que por meio dessa ação ele contribuiria para um milagre extraordinário. Contudo foi exatamente isso o que aconteceu, pois esses pães dele se tornaram o meio de alimentar um grande número de pessoas, por intermédio da poderosa intervenção de Deus. E essa é uma simples ilustração de um princípio que, sob o governo de Deus, ocorre com freqüência, como provavelmente a maioria de nós já deve ter testemunhado. Ah, meu leitor, nós nunca sabemos a extensão dos efeitos e quais frutos podem provir para a eternidade do mais modesto ato feito para a glória de Deus ou para o bem de alguém do Seu povo.

Quantas vezes algum cristão desconhecido, na bondade do coração, fez alguma coisa ou deu alguma coisa que Deus se agradou de abençoar e multiplicar de tal forma e em tal extensão que nunca nem passou pela mente daquele cristão.

“E um homem veio de Baal-Salisa, e trouxe ao homem de Deus pães das primícias, vinte pães de cevada, e espigas verdes na sua palha” (2Rs 4.42). A impressão que temos é que o Espírito Santo se agradou em descrever essa oferta nos mínimos detalhes. Quando nos lembramos que naquele tempo havia grande escassez de alimentos, não podemos ver, na variedade das ofertas, consideração e cuidado da parte daquele que as fez? Se a oferta consistisse apenas em “pães”, é possível que alguns deles mofassem antes de serem consumidos. Na melhor das hipóteses, teria sido necessário consumi-los rapidamente. Para que isso não acontecesse, parte da cevada foi trazida no alforje. Por outro lado, se tudo tivesse sido trazido em forma de espiga, teria sido necessário tempo para moer e assar, e nesse meio tempo o profeta poderia padecer fome e fraqueza. Mas, ao dividir as coisas como fez esse homem, evitou tanto um problema como o outro. Disso tudo, somos ensinados que, ao presentear alguém ou ao ministrar às suas necessidades, deveríamos ser cuidadosos para que isso aconteça da melhor forma que a situação requer. A prática desse princípio abrange tanto as coisas espirituais como as temporais.

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Citações Encorajamento Lettie Cowman

Temos de conservar os olhos em Cristo

Não nos entreguemos ao desânimo, por mais oprimidos ou molestados que estejamos. A pessoa desanimada nada pode fazer. Nesse estado, ela não consegue resistir aos ardis do inimigo nem prevalecer em oração pelos outros. […] No momento em que nosso coração rejeita a desconfiança ou o desânimo, o Espírito Santo desperta em nós a fé e sopra em nossa alma o vigor divino. […] Se o crente mais fraquinho submeter-se ao Senhor e recorrer a Ele no nome de Jesus e com a fé singela de uma criança, todo o poder de Deus estará ao seu lado. […] Temos de conservar os olhos em Cristo.

(Lettie Cowman)

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Samuel Rutherford Sofrimento Testemunho

Cartas de Samuel Rutherford (21)

Para James Lindsay [1]

Aberdeen, 7 de setembro de 1637

Orações de réprobos

A santificação e a mortificação de nossos desejos são as partes mais difíceis do cristianismo. De certa forma, será tão natural para nós saltarmos quando virmos a Nova Jerusalém quanto rirmos quando nos fazem cócegas. A alegria não está sob um comando, ou segundo nosso assentimento, quando Cristo nos beijar. Mas, oh!, quantos de nós querem ter Cristo dividido em duas metades, para que possam pegar apenas uma metade Dele! Tomamos Seu ministério – Jesus e a salvação –, mas “Senhor” é uma palavra incômoda; e obedecer e desenvolver nossa própria salvação, e aperfeiçoar a santidade, é o lado incômodo e tempestuoso de Cristo; e isso nós evitamos e disso nos desviamos.

Quanto a teu questionamento, o acesso que os réprobos têm a Cristo (que é absolutamente nulo, porque eles não podem vir e nem virão ao Pai, em Cristo, pois Cristo não morreu por eles; mas, mesmo assim, pela lei, Deus e a justiça são muito mais do que eles): digo, antes de tudo, que há contigo pessoas mais dignas e instruídas que eu – os srs. Dickson, Blair e Hamilton – que podem satisfazer-te mais plenamente. Porém falarei de modo resumido o que penso disso nestas afirmações:

Primeira afirmação:

Toda a justiça de Deus com respeito ao homem e aos anjos flui de um ato de absoluto e soberano livre-arbítrio de Deus, que é nosso Formador e nosso Oleiro, e nós não passamos de barro; porque se Ele tivesse proibido comer de todas as outras árvores do jardim do Éden, e ordenado a Adão comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, essa ordem seria, sem dúvida, tão justa quanto esta: “Comei de todas as árvores, mas absolutamente não comais da árvore do conhecimento do bem e do mal.” A razão é que Sua vontade vem antes de Sua justiça, por ordem de natureza; e o que é a Sua vontade é a Sua justiça; e Ele não quer as coisas sem Ele só porque elas são justas. Deus não pode, não precisa buscar a santidade, a pureza ou a justiça em coisas sem Ele, nem tampouco de ações de homens ou de anjos, porque Sua vontade é essencialmente santa e justa, e é a primeira regra de santidade e justiça, assim como o fogo é naturalmente luz, e pende para o alto, e a Terra é pesada e pende para baixo.

Segunda afirmação:

Deus dizer aos réprobos: “Crede em Cristo (que não morreu para a salvação deles) e sereis salvos” é justo e correto porque Sua vontade eterna e essencialmente justa assim o determinou e decretou. Suponhamos que a razão natural fale contra isso, mas isso é o profundo e especial mistério do evangelho. Deus obrigou, terminantemente, a todos os réprobos da igreja visível crerem nesta promessa: “Aquele que crer será salvo”; porém, no decreto de Deus e em Sua intenção secreta, não há nenhuma salvação decretada ou intencionada aos réprobos. Mas o compromisso de Deus, vindo de Seu soberano livre-arbítrio, é justíssimo, como dito na primeira afirmação.

Terceira afirmação:

O justo Senhor tem o direito sobre os réprobos e sobre todas as criaturas pensantes que violam Seus mandamentos. Essa afirmação é evidente.

Quarta afirmação:

A fé que Deus procura nos réprobos é que eles confiem em Cristo, não tendo esperança em sua própria justiça, apoiando-se inteiramente e humildemente, como cansados e sobrecarregados, em Cristo, como a pedra fundamental colocada em Sião. Mas Ele não procura isso; sem estarem cansados de seus pecados, eles confiam em Cristo como o Salvador da humanidade; pois confiar em Cristo e não estar cansado do pecado é presunção, não fé. A fé sempre vem com um espírito quebrantado e contrito; e é impossível que a fé esteja onde não haja um coração abatido e contrito, em algum grau, pelo pecado. É certo que Deus não ordena ninguém a ser presunçoso.

Quinta afirmação:

Os réprobos não são formalmente culpados de desprezarem Deus, ou de descrença porque não aplicam Cristo e as promessas do Evangelho a si mesmos, particularmente; se aplicassem, seriam culpados de não crerem em uma mentira, o que Deus nunca os obrigou a crerem.

Sexta afirmação:

A justiça tem o direito de punir os réprobos, porque, de coração orgulhoso, confinados em sua própria justiça, eles não confiam em Cristo como o Salvador de todos aqueles que vêm a Ele. A isso Deus pode, com justiça, obrigá-los, porque em Adão eles tinham a perfeita capacidade para fazê-lo; e os homens são culpados porque amam sua incapacidade, e descansam em si mesmos e se recusam a negar sua própria justiça e ir a Cristo, em quem há justiça para os pecadores cansados.

Sétima afirmação:

Uma coisa é confiar, apoiar-se e descansar em Cristo, em humildade e cansaço de espírito, negando nossa justiça própria, crendo que Ele é a única justiça de pecadores cansados; e outra coisa é crer que Cristo morreu por mim, por João, por Tomás, por Ana, com a intenção e o decreto de nos salvar individualmente, por nome. Porque

  1. A assertiva anterior vem primeiro, e a segunda é sempre depois, em devida ordem.
  2. A primeira é fé, a segunda é o fruto da fé; e
  3. A primeira favorece os réprobos e todos os homens na igreja visível, e a segunda favorece somente os cansados e sobrecarregados, e assim, somente os eleitos e efetivamente chamados por Deus.

Oitava afirmação:

É uma conclusão vã: “Eu não sei se Cristo morreu por mim, João, Tomás, Ana, por nome; e portanto, eu não me atrevo a confiar Nele”. A razão é: porque não é fé crer na intenção de Deus e em Seu decreto de eleição primeiramente, antes de estar cansado. Olha primeiro para tua própria intenção e tua alma, e se achares que o pecado é um fardo, e se puderes e se, de fato, colocares esse fardo sobre Cristo; se isso ocorrer uma vez, agora vem e crê individualmente, ou aplica pelo sentido (porque em meu julgamento isso é um fruto da fé, não a fé) a boa vontade, a intenção e o grato propósito de Deus a respeito de tua salvação. Assim, porque há malícia nos réprobos, e desprezam a Cristo, culpados são; e a justiça tem a lei contra eles: e (o que é um mistério) eles não podem vir a Cristo, porque Ele não morreu por eles; mas o pecado deles é que eles amam sua incapacidade de vir a Cristo; e aquele que ama suas cadeias, merece as cadeias.


[1] James Lindsay, um desconhecido.

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Samuel Rutherford Sofrimento Testemunho

Cartas de Samuel Rutherford (20)

Para Hugh M’Kail [1]

Aberdeen, 5 de setembro de 1637

A Lei

Tu sabes que os homens podem receber seu doce suprimento da amarga Lei com base na graça, e de entre os sentimentos do Mediador. E esse é o caminho mais seguro do pecador, pois há, no Novo Pacto, um leito para os pecadores cansados descansarem, embora não tenha sido cama feita para Cristo nela dormir. A Lei nunca será minha sentenciadora, pela graça de Cristo. Se eu não obtiver nenhum outro bem dela (eu irei encontrar um destino suficientemente dolorido no Evangelho para me humilhar e para me derrubar), ela será, eu concordo, um amigo bom e rude para seguir um traidor até o tribunal, e apoiá-lo até que ele venha a Cristo. Nós podemos nos culpar, por fazermos com que a Lei suspire por dívidas bem pagas, a fim de nos espantar para longe de Jesus, e brigar sobre nossa própria justiça, um mundo na lua, uma quimera, e um sonho noturno do qual o orgulho é mãe e pai. Não pode haver uma alma mais humilde que a do crente; não é orgulho para um homem que está se afogando segurar-se em uma rocha.

A segurança dos crentes

Eu me regozijo que as rodas desse mundo confuso girem nas engrenagens e são dirigidas de acordo com a vontade do Senhor. De qualquer quadrante do céu que o vento sopre, ele nos levará para o Senhor. Nenhum vento pode jogar nossas velas ao mar, porque a habilidade de Cristo e a honra de Sua sabedoria são estabelecidas como penhor e como fogueiras para os passageiros do mar de que Ele os colocará, com Suas mãos, a salvo na praia, nos limites conhecidos do Pai, nossa própria terra. Meu caro irmão, não tenhas medo da cruz de Cristo. Ainda não se vê o que Cristo fará por ti quando vier o pior. Ele manterá Sua graça até que chegues a um estreito, e então trará o decretado nascimento para tua salvação (Sf 2.2). Tu és uma flecha que Ele próprio fez. Deixa-O lançar-te contra um muro de bronze, pois tua ponta será mantida íntegra.


[1] Hugh M’Kail, ministro em Irvine, Ayrshire.

 

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Samuel Rutherford Sofrimento Testemunho

Cartas de Samuel Rutherford (19)

Para os Paroquianos de Anwoth [1]

Aberdeen, 13 de julho de 1637

Palavras aos apóstatas

Ouvi dizer, e minha alma está entristecida por isso, que desde que me ausentei de vosso meio, muitos dentre vós voltaram-se do bom e velho caminho, novamente para o vômito dos cães. Vou falar a esses homens. Não foi sem a direção especial de Deus que a primeira sentença que minha boca vos proferiu foi esta, “E disse-lhe Jesus, Eu vim a este mundo para juízo, a fim de que os que não veem vejam, e os que veem sejam cegos” (Jo 9.39). É possível que meu primeiro encontro convosco seja quando vós e eu comparecermos perante o terrível Juiz do mundo; e no nome e na autoridade do Filho de Deus, meu grande Rei e Mestre, eu escrevo, perante estes presentes, intimações a esses homens. Prendo-lhes a alma e o corpo para o dia de nosso comparecimento na corte. Sua eterna condenação permanece subscrita e selada no céu pela escrita do grande Juiz dos vivos e dos mortos; e eu estou pronto a me levantar como um pregador testemunhando contra os tais, diante deles naquele dia, e a dizer “Amém” à sua condenação, exceto no caso de se arrependerem. A vingança do Evangelho é mais pesada do que a vingança da Lei. A maldição e a vingança do Mediador é duas vezes vingança, e essa vingança é a porção devida a tais homens. E ali eu os deixo como homens presos, sim, e até que eles se arrependam e se corrijam.

Vós fostes testemunhas de como passávamos o Dia do Senhor enquanto estive entre vós. Oh, sacrílego ladrão do dia de Deus, o que responderás ao Todo-Poderoso quando Ele procurar os muitos Sábados em ti? O que fará o amaldiçoador, o xingador, o blasfemador quando sua língua for torrada naquele grande e ardente lago de fogo e enxofre? E o que fará o bêbado quando sua língua, seus pulmões, fígado, ossos e tudo mais ferver e fritar no fogo torturante? Ele estará, então, longe de seus barris de bebida forte; e não haverá um poço de água fresca para ele no inferno. E o que será do desgraçado, do cobiçoso, do opressor, do enganador, do verme, cujo ventre nunca se enche de barro (Sl 17.4), quando, no dia de Cristo, o ouro e a prata devem se tornar em cinzas, e ele deve comparecer à corte, e responder ao seu Juiz, e deixar seu céu de barro que não tem valor?

Ai, ai, para sempre seja para o ateu que muda conforme o tempo, que tem um deus e uma religião para o verão, e outro deus e outra religião para o inverno, e o dia da limpeza, quando Cristo irá varrer tudo que está no chão de Seu celeiro; que tem a consciência de toda feira e mercado, e cuja alma corre sobre estas rodas oleadas: o tempo, os hábitos, o mundo e o comando de homens. Oh, se o ateu descuidado, e o homem que dorme, que se protege com “Deus perdoe nossos pastores, se eles estiverem nos conduzindo erradamente, mas precisamos fazer como eles nos mandam”, e deitam a cabeça sobre o seio do tempo e dá sua consciência a um representante, e dorme até a fumaça do fogo do inferno subir-lhe à garganta e o fazer sair de sua triste cama! Oh, se tal homem acordasse! Muitos ais são para os hipócritas excessivamente dourados, cobertos de ouro. Uma condenação pesada é para o mentiroso e para o bajulador; e o livro voador da temível vingança de Deus, de vinte côvados de comprimento por dez côvados de largura, que sai da face de Deus, entrará na casa e na alma daquele que rouba ou dá falso testemunho no nome de Deus (Zc 5.2,3).

Eu anuncio fogo eterno mais quente do que as chamas de Sodoma sobre os homens que fervem em concupiscências imundas de fornicação, adultério, incesto e iniqüidades semelhantes. Nenhum espaço, não, nem a largura de um pé, para tais cães vis dentro da imaculada Jerusalém. Muitos de vós suportam isso dizendo: “Deus nos perdoe, nós não conhecemos nada melhor”.

Eu renovo minha antiga resposta: o Juiz está vindo em labaredas de fogo com todos os Seus poderosos anjos para vingar todos os que não conhecem a Deus e Nele não crêem (2Ts 1.8). Muitas vezes já vos disse que a segurança irá vos destruir.

Todos os homens dizem que têm fé: tantos são os homens e mulheres agora quantos os santos no céu. E todos crêem (vós dizeis) que todo cão imundo é suficientemente limpo e suficientemente bom para a imaculada e nova Jerusalém no céu. Todo homem teve conversão e novo nascimento, mas isso não é genuíno. Eles nunca passaram uma noite de aflição por causa de pecado. A conversão é para eles como um sonho na noite. Com uma palavra, o inferno se esvaziará no Dia do Juízo, e o céu ficará lotado! Ai de mim!

Crer e ser salvo não é nem fácil nem comum. Muitos ficarão, no final, às portas do céu (Lc 13.25). Quando forem verificar sua fé, verificarão que têm um grande nada ou (como costumáveis dizer) um logro. Que frustração lamentável! E vos peço, eu vos rogo em nome de Cristo: apressai-vos na obra de Cristo e na salvação.

Intensa admiração por Cristo

Eu fico pensando se os homens podem viver apartados de Cristo. Eu me consideraria bem-aventurado se pudesse fazer uma proclamação aberta, e juntar todo os que vivem sobre a terra, judeus e gentios, e todos os que nascerão até o soar da última trombeta a fim de se reunirem em torno de Cristo com o propósito de contemplá-Lo, maravilhando-se e admirando-O e adorando Sua beleza e Sua doçura.

Porque Seu fogo é mais quente que qualquer outro fogo, Seu amor mais doce do que o amor comum, Sua beleza supera qualquer outra beleza. Quando estou sobrecarregado e triste, um de Seus olhares de amor me seria o mais vasto bem do mundo. Oh, se vós vos apaixonásseis por Ele, quão bem-aventurado eu seria! Quão satisfeita minha alma ficaria se eu vos ajudasse a amá-Lo.

Porém, entre nós todos, nenhum de nós poderia amá-Lo o suficiente. Ele é o Filho do amor do Pai e o deleite de Deus. O amor do Pai repousa todo sobre Ele. Oh, se a humanidade pudesse apanhar todo o amor que tem e depositá-lo sobre Ele! Convidai-O, e levai-O para vossa casa no exercício da oração matinal e da vespertina, como muitas vezes desejei que fizésseis; especialmente agora, não Lhe deixeis faltar morada em vossa casa, nem ficar nos campos quando Ele é retirado dos púlpitos e das igrejas. Se vós quiserdes conquistar o Céu ao sofrerdes violência, ou sentir o vento em vossa face por causa de Cristo e de Sua cruz, eu aqui sou um que provo da cruz de Cristo, e eu vos posso dizer que Cristo sempre foi bondoso comigo, mas Ele se supera (se é que posso dizer assim) em bondade enquanto sofro por Ele. Eu vos dou minha palavra quanto a isto: que a cruz de Cristo não é tão pesada quanto eles dizem; ela é doce, leve e confortável. A visitação de amor e o sorriso de deleite e os abraços de amor de meu Senhor por causa de meus sofrimentos por Ele, eu não os trocaria por uma montanha de ouro, ou por todas as honras, todos os cortejos e a grandeza de clérigos vestidos de veludo. Cristo tem a gema e o coração do meu amor. “Eu sou do meu Amado, e o meu Bem-Amado é meu.”

Oh, se vós segurásseis firme a mão de Cristo! Oh, meus mui amados no Senhor, que eu mudasse a voz, e tivesse eu uma língua afinada pelas mãos de meu Senhor e tivesse a arte de falar de Cristo, para que eu vos pudesse mostrar o valor e a magnitude e a grandeza e a excelência daquele lindo e renomado Noivo! Eu vos rogo pelas misericórdias do Senhor, pelos suspiros, pelas lágrimas e pelo sangue do coração de nosso Senhor Jesus, pela salvação de vossa pobre, mas preciosa alma: apresentai o monte no qual vós e eu possamos nos encontrar perante o trono do Cordeiro, entre os da congregação dos primogênitos. Que o Senhor permita que aquele seja o lugar do encontro! Que vós e eu venhamos a unir as mãos e colher e comer os frutos da árvore da vida, e que venhamos a festejar juntos e beber juntos daquele puro rio da água da vida que vem do trono de Deus e do Cordeiro!

Oh, quão pequena é vossa mão e curtos os vossos dias aqui! Vossa contagem de tempo é menor do que quando vós e eu começamos. A eternidade, a eternidade está chegando, voando com asas; e então, todos os homens, pretos e brancos, serão trazidos à luz. Oh, quão baixos serão vossos pensamentos sobre esse fruto de pele bonita, mas de coração podre, o mundo vão, vão e fútil, quando os vermes fizerem casa nos buracos de vossos olhos, e comerem as carnes de vossa face e fizerem de vosso corpo um monte de ossos secos!

Não pensem que a maneira comum de servir a Deus, como fazem os vizinhos e outros, vos levarão ao céu. Poucos, poucos são salvos. O cortejo do diabo é denso e numeroso. Ele tem a maior parte da humanidade como seus vassalos.

Eu sei que este mundo é uma floresta de espinhos no vosso caminho para o céu; mas vós tendes que passar por ela. Achegai-vos ao Senhor; firmai-vos em Cristo, ouvi tão-somente Sua voz. Bendizei Seu nome; santificai e guardai santo o Seu dia; guardai o novo mandamento: “Amai-vos uns aos outros”; deixai o Espírito Santo fazer morada em vosso corpo; e sede limpos e santos.

Não ameis o mundo; não mintais; amai e segui a verdade. Aprendei a conhecer a Deus. Tenhais em mente aquilo que eu vos ensinei, porque Deus vos pedirá conta disso quando eu estiver longe de vós. Abstende-vos de todo o mal e de toda aparência do mal. Segui o bem com esmero, e buscai a paz e segui-lhe os passos. Honrai vosso rei e orai por ele.

Um sonoro chamamento a todos

Muitas vezes vos disse, enquanto estava convosco, e agora novamente vos escrevo: pesado, triste e dolorido é o golpe da ira do Senhor que está vindo sobre a Escócia. Ai, ai, ai desta terra prostituída! Pois ela tomará do cálice da ira de Deus de Suas mãos e beberá e vomitará e cairá e não se levantará novamente. Entrem, entrem, entrem depressa para vossa fortaleza, vós, prisioneiros da esperança, e escondei-vos lá até que a ira do Senhor passe (Zc 9.12)! Não sigais os pastores desta terra, pois o Sol já se pôs sobre eles. Como vive o Senhor, eles vos afastam de Cristo, e do bom e velho caminho. Mesmo assim, o Senhor guardará a Cidade Santa, e fará esta Igreja murcha brotar outra vez, como uma rosa e um campo abençoado do Senhor.


[1] Paroquianos de Anwoth: Rutherford foi seu ministro de 1627 a 1638.

 

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Cartas de Samuel Rutherford (18)

Para James Hamilton [1]

Aberdeen, 7 de julho de 1637

O sobrecarregado devedor de Cristo

Quanto a qualquer coisa que eu faça em minhas cadeias, quando vez por outra sai de mim uma palavra – pobre de mim! –, é muito pouco. E fico muito entristecido que alguém pense que possa existir algo neste caniço quebrado e vazio. Que ninguém impute a mim que o vento da graça, não comprado (pois nada dei por Ele), sopre neste caniço vazio. Eu sou um sobrecarregado devedor. Eu grito: “Abaixo comigo; abaixo, abaixo com toda a excelência do mundo; e exaltado, exaltado seja Cristo!” Exaltado, exaltado Aquele que é belo, aquele que é Santo, nas alturas! Maldição esteja sobre os que não O amam.

Oh, como eu ficaria feliz se Sua glória crescesse e fluísse de minhas cadeias e de meus sofrimentos!

Certamente, quando me tornei Seu prisioneiro, Ele ganhou a gema e o coração de minha alma. Cristo até se tornou um novo Cristo para mim, e Seu amor ainda mais viçoso do que era. E agora eu não luto mais com Ele; Seu amor levará tudo isso embora. Eu me coloco sob Seu amor. Eu desejo cantar e bradar e proclamar, mesmo debaixo d’água, que estou em débito com Ele e sou eternamente devedor de Sua bondade. Eu nada oferecerei para estar quites com Ele (como costumávamos dizer), porque não será assim. Tudo, tudo para sempre seja de Cristo! Quais outras provações virão a mim, eu não sei, mas eu sei que Cristo fará de mim uma alma salva, lá do outro lado das águas, no lado além das cruzes, e além dos erros dos homens.


[1] James Hamilton, ministro do evangelho no Condado Down, na Irlanda do Norte. Por causa da perseguição, ele partiu para a Nova Inglaterra, porém tempestades o forçaram a retornar. Ele foi ministro em Dumfries e, mais tarde, em Edimburgo. Ele foi um homem “ousado pela verdade”.

 

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Samuel Rutherford Sofrimento Testemunho

Cartas de Samuel Rutherford (17)

Para Alexander Colville (de Blair) [1]

Aberdeen, 23 de junho de 1637

Pesar por estar calado no ministério

Graça, misericórdia e paz estejam contigo.

Gostaria de saber como meu senhor recebeu a carta que eu lhe enviei, e como ele está. Não desejo nada além de que ele esteja firme e seja honesto com meu nobre Mestre e Rei. Estou bem em todos os sentidos – todo louvor seja dado a Ele, em cujos livros eu permaneço para sempre como Seu devedor.

Somente o meu silêncio me dói. Eu tinha uma alegria do céu, depois de Cristo, meu Senhor, e era pregá-Lo a esta geração sem fé; e tiraram isso de mim. Para mim, foi como o único olho de um pobre homem, e eles tiraram esse olho. Eu sei que a violência que fizeram a mim e à noiva desolada desse pobre está perante o Senhor; e suponho que eu não veja o outro lado da minha cruz, ou o que o meu Senhor trará disso. Mas eu creio que essa visão não permanecerá, e que Cristo está a caminho para o meu livramento. Ele não vem devagar, mas passa por cima de dez montanhas em um só passo.

Desejos por Cristo

Entrementes, sofro com Seu amor, porque desejo a posse real. Quando Cristo vem, Ele não fica por longo tempo. Mas certamente Seu sopro sobre uma pobre alma é o céu na terra; e quando o vento se torna para o norte, e Ele se vai, eu morro até o vento se voltar para o oeste e Ele visitar Seu prisioneiro. Mas Ele não me mantém muitas vezes à Sua porta. Eu sou ricamente recompensado por sofrer por Ele. Oh, se toda a Escócia fosse como eu, exceto por minhas algemas! Oh, que grande dor eu tenho por não poder louvá-Lo por meus sofrimentos.

Oh, se o céu, por dentro e por fora, e a terra fossem papel, e todos os rios, fontes e mares fossem tinta, e eu pudesse escrever em todo aquele papel, frente e verso, todos os Seus louvores, e Seu amor, e Sua excelência, para ser lido por homens e anjos!

Não, isso é pouco demais; eu devo o meu céu a Cristo, e realmente desejo, mesmo que não pudesse entrar pelos portões da Nova Jerusalém, enviar meu amor e meus louvores por cima de seus muros a Cristo. Ai de mim, porque o tempo e os dias estão entre Ele e mim, e adiam nosso encontro! A minha parte é gritar: “Oh, quando a noite estiver passada e o dia alvorecer, nós nos veremos um ao outro”.


[1] Alexander Colville, um Ancião presbiteriano de Blair, na paróquia de Carnock, Fifeshire. Ele tinha alto cargo legal, e se tornou amigo de Rutherford quando este se apresentou perante a Corte de Alta Comissão em 1630. Ele foi um eminente membro da Igreja Presbiteriana Escocesa durante um longo período.

 

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Samuel Rutherford Sofrimento Testemunho

Cartas de Samuel Rutherford (16)

Para John Henderson (de Rusco) [1]

Aberdeen, sem data

Avisos práticos

Eu sinceramente desejo tua salvação. Conhece o Senhor e busca-O. Tu tens uma alma que não morre. Procura uma morada para tua pobre alma, pois essa casa de barro irá cair. É o céu ou nada! Ou Cristo ou nada! Faz uso da oração em tua casa e põe freqüentemente teus pensamentos perante a morte e o julgamento. É perigoso seres leniente quanto à questão de tua salvação.

Poucos são salvos; as pessoas vão para o céu em pequeno número, e o mundo inteiro jaz no pecado. Ama os teus inimigos e fica ao lado da verdade que eu te ensinei em todas as coisas. Não temas os homens; antes, deixa Deus ser o teu temor.

Teu tempo não será longo; faz da busca a Cristo a tua tarefa diária.

Tu podes, quando estiveres no campo, falar com Deus. Busca ter um coração quebrantado pelo pecado, pois, sem isso, não há encontro com Cristo. Digo isso tanto para tua mulher como para ti mesmo. Eu desejo que tua irmã, nos temores e dúvidas dela, se agarre firmemente no amor de Cristo. Proíbo-a de duvidar, pois Cristo a ama e tem o nome dela escrito em Seu livro. A salvação dela vem logo. Cristo, o Senhor dela, não se demora em vir. Ele não negligencia a Sua promessa.

 


[1] John Henderson, de Rusco, um paroquiano que desperdiçou a propriedade de Rusco (Anwoth). [Possível tradução da nota de rodapé original, A parishioner who fanned the ‘hoine-steading’ of Rusco (Anwoth), pois não foi possível encontrar o significado de hoine-steading. (N. E.)]

 

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Cartas de Samuel Rutherford (15)

Para William Gordon, de Kenmure [1]

Aberdeen, 1637

Testemunho para Cristo

Graça, misericórdia e paz estejam contigo.

Há muito tenho desejado responder a tua carta, que chegou em boa hora. É meu alvo e desejo do coração que meu fogo, aceso pelo Senhor, ateie-se também nos que estão por perto para aquecer-lhes o coração com o amor de Deus. Até a poeira que cai dos pés de Cristo, Seus velhos andrajos, Sua cruz negra e nodosa, são para mim mais doces do que as coroas de ouro dos reis e seus prazeres consumidos pelo tempo. Eu seria um mentiroso e uma falsa testemunha se não desse a meu Senhor Jesus, com toda a minha alma, um testemunho justo.

Minha palavra, eu sei, não O exaltará; Ele não necessita de tais adereços sob Seus pés para elevar ainda mais alto Sua glória. Mas, oh!, como eu gostaria de exaltá-Lo à altura do céu, e da largura e do comprimento de dez céus, na estimativa dos jovens que O amam! Pois todos nós concebemos Cristo estreito e pequeno demais, e concebemos Seu amor, com nossos próprios conceitos, de modo muito indigno dele. Oh, se os homens pudessem compreender a beleza e a formosura Dele! Eles desistiriam de brincar com os ídolos, nos quais não há lugar para o amor de uma alma se expandir. O amor do homem é de coração faminto por roer ossos descarnados e sugar peitos secos.

É bem merecido que os ídolos queiram quem não venha a Ele, Ele que tem um mundo de amor e bondade e recompensas para todos. Nós procuramos descongelar o coração na fumaça fria das criaturas de curta duração, e nossa alma não consegue nem calor, nem vida, nem luz, pois essas criaturas não nos podem dar o que não têm em si mesmas.

Oh, se pudéssemos passar por esses espinhos e por essa multidão de amantes bastardos, e ser tomados de paixão por Cristo! Nós iríamos encontrar firmeza e um lugar, e uma doce calma no Senhor para nossa alma cambaleante e tola. Eu quero que esteja em meu poder, depois deste dia, depreciar todo tipo de amor, exceto o amor de Cristo, e acabar com todos os deuses, exceto Cristo, todos os salvadores, exceto Cristo, todos os bem-amados, exceto Cristo, e todos os pretendentes de almas e mendigos do amor, exceto Cristo.

Marcas da graça na convicção do pecado e no conflito espiritual

Tu reclamas que queres uma marca do trabalho sadio da graça e do amor em tua alma. Como resposta, considera, para tua satisfação (até que Deus te mande mais), 1João 3.14. E, quanto às tuas reclamações de apatia e dúvidas, Cristo irá, espero, tirar tua apatia e a ti, junto. Eles são corpos cheios de buracos, de furúnculos e de ossos quebrados que precisam da cura que Cristo, o Médico, pode assumir; os vasos inteiros não servem para a arte do Mediador. Os publicanos, os pecadores, as prostitutas, mulheres da vida são os artigos de mercado para Cristo.

A única coisa que trará os pecadores a um molde dos braços acolhedores de Cristo é aquilo sobre o que tu escreves: algum sentimento de morte e pecado. Isso traz murmurações, e, sem sentido, murmuram mais, e ficam mais acostumados com câimbras, dores e desfalecimentos da alma que te incomodam. Quanto mais dor, mais noites sem dormir, mais febre, tanto melhor. Uma alma que sangra de verdade, até que Cristo seja solicitado e que clame por Cristo com toda urgência para vir e estancar o sangue e fechar a ferida com Sua própria mão e com Seu bálsamo, tem uma doença muito boa, quando muitos estão morrendo com um coração íntegro. Assim, todos nós temos muito pouco das dores do inferno e de seus terrores. Não, que Deus me envie tal inferno porque Cristo prometeu fazer dele um céu!

Ai de mim, eu ainda não cheguei nesse ponto, como para dizer: “Senhor Jesus, grande e soberano Médico, aqui está um paciente de dores para Ti.”

Mas o que nós mal interpretamos é a falta de vitória. Nós achamos que essa é a marca de quem não tem a graça. Não, digo eu; a falta de luta é que é a marca de quem não tem a graça; mas eu não direi que a falta de vitória seja essa marca. Se meu fogo e a água do diabo crepitam como um trovão no ar, eu sou o que menos teme; porque onde há fogo, essa é a parte de Cristo, que eu entrego a Ele e confio Nele para manter a brasa, e peço ao Pai que minha fé não falhe, se eu, enquanto isso, estiver lutando, e fazendo, e brigando e lamentando. Pois a oração não colocou para fora logo de início o demônio de Paulo (o espinho na carne, mensageiro de Satanás); mas nosso Senhor usa isso para testar a cada um, e deixou Paulo se defender, com a ajuda de Deus, moderando o jogo.

E fazes bem em não duvidar, se o alicerce for firme, mas certifica-te se é, de fato, assim; porque há uma grande diferença entre duvidar que temos a graça e testar se temos a graça. O primeiro pode ser um pecado, mas o último é bom.

Nós ficamos perdidos quando tentamos nos libertar de Cristo e de Sua obra. O temor santo é a procura do campo em que não haja inimigo no nosso íntimo para nos trair, e a visão de que tudo esteja firme e seguro. Porque eu vejo muitos vasos que vazam ante o vento, e crentes professos que tomam confiadamente a conversão daqueles, e aqueles vasos seguem seguros, e não vêem o que está sob as águas, até que uma tempestade os naufrague. Todo homem necessita duas vezes por dia, ou mais, ser examinado completamente, e sondado com velas [2].

 


[1] William Gordon, de Kenmure. Nada se sabe sobre essa pessoa.

[2] No sentido de uma luz próxima, que permita ver detalhes. Nos anos 1600, em que viveu Rutherford, velas eram o máximo que havia de luz para iluminar uma área pequena, específica.

 

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Perseverança T. Austin-Sparks

Capítulo 8: O significado dos levitas em relação à plenitude celestial

E ordenaram ao povo, dizendo: Quando virdes a arca da aliança do Senhor, vosso Deus, e que os sacerdotes levitas a levam, partireis vós também do vosso lugar, e a seguireis.

(Js 3.3)

Em primeiro lugar, vamos tomar este fragmento – “os sacerdotes levitas a levam”, levam a arca –, que é a chave para nossa consideração nesse momento.

Vemos muitas referências aos levitas no livro de Josué, indicando sua importância. Temos, inclusive, um capítulo inteiro dedicado a eles. Meu desejo, com a ajuda do Espírito Santo, é tentar apresentar-lhes o sentido dos levitas em relação à plenitude celestial. Apesar de muitos de nós estarmos bastante familiarizados com sua história, acredito ser necessário inicialmente tratar dela, ainda que de forma breve.

Os levitas são apresentados de três maneiras em Josué. Em primeiro lugar, como acabamos de ver, eles são vistos levando a arca da aliança para o leito do Jordão e permanecendo ali com ela, a uma distância de dois mil côvados do povo – uma distância muito grande, como já abordamos no capítulo 5. Então, em segundo lugar, é declarado, em Josué 14, que os levitas não receberiam herança. Ou seja, na divisão da terra, ao contrário das outras tribos, eles não receberiam uma porção específica, não receberiam uma herança na terra. Mas, em terceiro lugar, no capítulo 21, que é focado nos levitas, descobrimos que todas as tribos precisaram conceder a eles um lote, um espaço. Os levitas foram distribuídos entre todas as tribos, e seu lugar e sua porção não estavam limitados a um só lugar; eles foram distribuídos por todo o país, ou seja, os levitas foram espalhados por toda a terra, por todos os lugares, em meio ao restante do povo. Esses são três pontos relacionados aos levitas neste livro, plenos de maravilhoso significado.

Os levitas representam o propósito de Deus

O que os levitas representam? Voltemos um pouco na história. Lembre-se de como os levitas se tornaram uma tribo. Isso aconteceu quando Israel retrocedeu, quando o bezerro de ouro foi feito, quando o povo clamou: “Este é o teu deus, ó Israel” (Êx 32.4), abandonando o Senhor. Então, Moisés desceu do monte, ouviu e viu tudo aquilo, destruiu o bezerro, pôs-se à porta do arraial e disse: “Quem é do Senhor, venha a mim. Então se ajuntaram a ele todos os filhos de Levi. E disse-lhes: Assim diz o Senhor, Deus de Israel: Cada um ponha a sua espada sobre a sua coxa; e passai e tornai pelo arraial de porta em porta, e mate cada um a seu irmão, e cada um a seu amigo, e cada um a seu vizinho. E os filhos de Levi fizeram conforme à palavra de Moisés” (vv. 26-28). Todas as considerações terrenas foram sacrificadas a favor dos interesses celestiais; todos os relacionamentos terrenos foram cortados pelo propósito celestial; tudo aquilo que envolvia sentimentos e emoções naturais, tudo o que era da mera alma, foi morto pelos interesses daquilo que governava o próprio surgimento do povo de Deus. Isso porque o propósito de Deus era que eles fossem um povo celestial, e não deveriam se envolver no sistema espiritual que governa este mundo. Nesse ponto específico, os levitas representam o propósito celestial de Deus. Aquilo que tiveram de fazer era muito drástico e absoluto, não é mesmo?

Lembre-se de que o Senhor jamais se esqueceu disso. No final do Antigo Testamento, no seu último livro, Malaquias, vemos uma referência à questão de Baal-Peor, quando Finéias sustentou uma posição a favor dos interesses celestiais que foram originalmente assumidos naquela ocasião do bezerro de ouro (Nm 14), e o Senhor disse: “Minha aliança com ele [Levi] foi de vida e paz” (Ml 2.5). “Não conheceu seus irmãos” (Dt 33.9): isto é, ele não se compadeceu da própria carne quando ela se afastou dos elevados propósitos de Deus. Deus estabeleceu Sua aliança com Levi. Assim, logo no início, os levitas foram selecionados e separados do restante de Israel, tomando o lugar dos primogênitos em Israel, tornando-se a tribo dos primogênitos. Podemos imediatamente remontar à Epístolas aos Hebreus: “Chegastes ao monte Sião […] à universal assembléia e igreja dos primogênitos, que estão inscritos nos céus” (12.22,23). Aqui vemos o celestial entrando em cena novamente: o primogênito arrolado no céu, os levitas, o propósito celestial.

No capítulo 5, mencionamos o espaço de, pelo menos, dois mil côvados que foi estabelecido entre o povo e a arca – não podemos determinar hoje qual dos três tipos de côvado foi adotado, mas a distância poderia ser estimada em, no mínimo, 300 metros, podendo facilmente atingir um quilômetro. Esse grande espaço entre a arca e o povo indicava a imensa distância entre Cristo e qualquer outra pessoa na obra de salvação, de redenção, de libertação. Entretanto, vemos levitas carregando a arca. Você pode questionar: “Isso não é uma contradição? Cristo permanece único, separado de tudo.” Veja o princípio do levita: ele representa aquilo que é celestial.

Este é o Cristo celestial, e esse é o princípio dos levitas que carregam a arca. Este não é apenas o Cristo terreno, o Jesus da história, um Homem entre os homens, ainda que infinitamente superior. Este é o Cristo Celestial.

Se você desejar uma prova desse princípio, lembre-se do incidente nos dias de Davi, quando ele consultou os anciãos de Israel a fim de trazer a arca até Jerusalém e fez um carro com esse propósito. Ele aprendeu isso na terra dos filisteus, onde vivera durante o reinado de Saul, quando os viu fabricando carros. Quando a arca foi posta em um carro, uma tragédia logo se seguiu: Uzá morreu diante do Senhor. Davi ficou muito triste com o Senhor, porque Ele abrira uma rotura em Uzá [2Sm 6.8]; mas, sendo o homem que era, sempre ajustável ao Senhor – uma das coisas gloriosas sobre Davi era sua ajustabilidade –, ele não se alongou na controvérsia com o Senhor, nem o Senhor com ele. Davi se voltou para o Senhor e provavelmente tentou argumentar, mas o Senhor venceu a discussão. O Senhor o conduziu de volta às Escrituras e mostrou-lhe que os levitas deveriam carregar a arca – não máquinas, nem organizações, mas um povo celestial deveria levar o testemunho de Jesus.

Então, os levitas estavam carregando a arca. O fator celestial é o princípio da função levita, e isso, claro, é o cerne da questão de eles não receberem uma herança na terra. Eles não pertencem à terra: pertencem ao céu. Eles não serão enraizados aqui; mas, ainda assim, como homens que representam as coisas celestiais, eles serão distribuídos entre todo o povo de Deus para manter o povo de Deus em contato com o céu. O povo de Deus está sempre inclinado a se tornar terreno. Este tem sido o perigo e a tragédia da Igreja ao longo dos séculos: sempre gravitar em torno desta terra, tornando-se algo daqui segundo os conceitos do homem e os critérios deste mundo.

O Senhor precisa de levitas entre Seu povo

Agora, chegamos ao ponto que desejamos destacar. O Senhor precisa daqueles que passaram pelo sofrimento, pela Cruz e pelo sacrifício mediante uma profunda obra de separação; daqueles que não fizeram concessões, não consideraram seus sentimentos ou interesses terrenos. Ele precisa daqueles que se levantaram e estão totalmente firmados, a qualquer preço, a favor de Seu pleno propósito celestial em relação a Seu Filho e à Igreja. O Senhor precisa ter esses, e precisa distribuí-los por toda parte, trazendo-os a um relacionamento vital com Seu povo, a fim de evitar que este sucumba a esta tendência terrena: de se tornarem ligados ao mundo.

Centro de operações celestial

Não foi exatamente isso que aconteceu no Novo Testamento? É fascinante perceber isso. Quando chegamos ao Novo Testamento, deixamos os tipos e figuras para trás (imagino que alguns de vocês estejam um pouco cansados de tipos e figuras; já receberam muito deles). É maravilhoso ver a realidade! Quando chegamos em Atos, descobrimos que tudo se repete. O que aconteceu? Iniciamos com o Senhor Jesus posicionado no céu: o centro de operações celestial, cada detalhe do governo agora no céu; e então o Espírito Santo vem para tornar tudo celestial, para governar tudo em relação ao céu. Foi disto que falamos no último capítulo: o Capitão do exército do Senhor chegando para encaminhar tudo em relação ao céu e, depois, tudo se move a partir do céu.

O primeiro movimento do céu foi em Jerusalém, um poderoso movimento do céu, e as coisas estavam acontecendo. Mas observe a tendência depois de certo tempo (é claro que a história é contada em poucas frases, mas abrange um período considerável). Depois de um tempo, Jerusalém começou a gravitar em torno da Terra, e tendeu – não apenas tendeu, mas realmente começou – a se tornar a sede terrena da Igreja. De acordo com o mandamento do Senhor, Jerusalém deveria ser apenas o começo, o ponto inicial: “Começando em Jerusalém” [Lc 24.47]. Nunca fora planejado que Jerusalém se tornasse em algo final e inclusivo, mas ela se constituiu em uma espécie de centro de operações para governar a Igreja, e veremos esse tipo de coisa se desenvolvendo à medida que avançamos no livro de Atos. Olhe um pouco para Paulo, o homem celestial, e veja como ele repudiou Jerusalém.

Quando chegamos ao sétimo capítulo do livro de Atos, temos o apedrejamento de Estêvão, e então vemos o fim de Jerusalém. A partir desse ponto, o céu reivindica: “Não; nada de um centro ou sede terrena; a sede fica no céu”; e daquele ponto em diante, os irmãos começaram a ser dispersos de Jerusalém. Eles foram agitados e jogados fora do ninho, seguindo em todas as direções. Independente do lugar para onde fossem, Filipe ou quem quer que fosse, eles testificavam do Senhor celestial por toda parte, apresentando o lado celestial das coisas. Sim: esses levitas foram colocados por toda parte, no mundo inteiro, com o propósito de manter as coisas no caminho celestial. Tudo se desenvolveu assim.

Ao chegar no capítulo 9, vislumbramos um dos mais extraordinários movimentos do céu. Saulo seguia de Jerusalém para Damasco – e Jerusalém era seu centro de operações, com certeza. Ele recebera autoridade do sumo sacerdote, dos governantes, e o governo estava em Jerusalém, naquilo que lhe dizia respeito. Mas Paulo descobre, antes de chegar ao fim da jornada, que o governo estava no céu, não em Jerusalém. Os céus foram rasgados, ele viu uma luz do céu e ouviu uma voz do céu. E esse é o fim do mundanismo de Saulo de Tarso. Dali em diante, ele é um homem celestial – e veja como a partir daquele ponto esse homem sempre se movia em relação ao céu. Poderíamos seguir com mais detalhes, mas o fato é que aqui temos um poderoso levita. E não mais vemos Jerusalém, mas Antioquia. O Senhor se moveu de Jerusalém. Antioquia representa algo espiritualmente puro. Jerusalém se tornou o centro do oficialismo cristão, mas não há nada de oficial em Antioquia. O que temos ali, que agora suplanta Jerusalém, é um grupo de homens jejuando e orando. Então, o céu irrompe e o Espírito Santo diz: “Apartai-me a Barnabé e a Saulo” (At 13.2). Vemos algo relacionado ao céu. Isso é maravilhoso.

Poderíamos continuar evidenciando isso. Mas qual é o ponto central? Não ficou muito claro que, do ponto de vista de Deus, de acordo com Sua mente, tudo deve ser relacionado ao céu e governado a partir de lá? A plenitude celestial é Seu objetivo para Seu povo: torná-lo um povo celestial, cheio de Sua plenitude celestial. Bem no final do registro da Palavra de Deus vemos a nova Jerusalém – não a antiga, mas a nova Jerusalém – descendo do céu da parte de Deus, em grande plenitude celestial. Aquela nova Jerusalém é imensa – doze mil estádios em todas as direções (Ap 21.16). Vemos enorme plenitude ali. Todas as nações irão derivar seus recursos a partir dela. O fruto da sua árvore da vida e as águas do seu rio da vida são para todas as nações. Sua luz é para todas as nações. “E as nações andarão mediante a sua luz” (v. 24, ARA). Eis a plenitude celestial, aquilo em que o Senhor tem trabalhado todo o tempo.

Ele está trabalhando em nós agora. Às vezes imagino que somos duas pessoas: uma na terra e outra no céu. Naturalmente estamos aqui, mas existe algo de nós “subindo” o tempo todo, quando o Senhor implanta em nós algo mais do céu. Isso está sendo armazenado lá. Não seria talvez isso que o Senhor quis dizer quando se referiu a Si mesmo como “o Filho do homem, que está no céu” (Jo 3.13), mesmo enquanto ainda estava aqui na Terra? Existe um aspecto nosso que está crescendo no céu. Não pense no céu como um planeta remoto. Estamos crescendo nesse conceito celestial das coisas. Algo de nós está “subindo”.

Acredito que a Igreja seja assim. A verdadeira Igreja é algo invisível. Não sabemos, exceto pelo Espírito, o que a Igreja realmente é. Você não pode dizer que as pessoas que freqüentam determinado lugar são a Igreja. Você não pode dizer que as pessoas que professam certas doutrinas e verdades cristãs são a Igreja. Elas podem ser ou não. Mas se você se encontra no Espírito – e isso é algo intangível –, ali você tem a Igreja. A Igreja é assim, esse é seu caráter celestial – e isso está “subindo”, por assim dizer, o tempo todo, e dentro em pouco irá descer em plenitude do céu. Ela está sendo edificada dessa forma agora. É a vontade de Deus que seja assim.

O ponto que desejo enfatizar é que o Senhor precisa desse tipo de representação, seja ela em indivíduos ou em grupos, para estabelecer ao lado de Seu povo a fim de mantê-lo em contato com o céu, mantendo as coisas celestiais sempre em vista. Uma das funções dos levitas era ensinar a Palavra de Deus – ou seja, manter o povo do Senhor em contato com os Seus pensamentos. Isso é funcional, não oficial. Não precisamos ser chamados de levitas, nem mesmo de “reverendos”. Não assuma títulos, mas apreenda os princípios. Se aqui na Terra nós estamos mantendo as pessoas em contato com o céu, se estamos ligados às coisas celestiais, se as pessoas são edificadas por nossa presença – ainda que não seja necessariamente por meio de nossa pregação ou por afirmarmos: “Veja isso ou aquilo…”; não, apenas por nossa presença, pela encarnação da vida, da natureza e da plenitude celestiais em nós –, se as pessoas são levadas a ver o pensamento mais pleno de Deus quando estão perto de nós, somos levitas sem adotar esse título, e é disso que o Senhor precisa.

Isso pode acontecer conosco como indivíduos. O Senhor é quem ordena a disposição de Seu povo. No livro de Josué foi o céu que estabeleceu e ordenou as tribos, afirmando: “Você ficará aqui, este é o seu lugar”. Soberanamente o Senhor vai dispor Seu povo: colocará alguns na Alemanha, outros, na Holanda, na Inglaterra ou na América; e, quando Ele estabelecer você em um lugar, saiba que está ali por indicação do céu, para ser um elo com o céu, para impedir que as coisas se acomodem espiritualmente no nível terreno.

Esse, é claro, também é o significado das igrejas no Novo Testamento. Este é o conceito Divino: ter grupos do povo do Senhor plantados aqui, ali e por toda parte, como um ministério levítico corporativo, mantendo o céu próximo e as coisas perto do céu. Oh, que cada igreja fosse assim, mantendo as coisas perto do céu!

Bem, esse é o começo. Muito mais poderia ser dito a esse respeito. Podemos começar agora a considerar todas as cartas do Novo Testamento e observar o resultado. Começando com Romanos 12, pois aí temos um princípio levítico: “Rogo-vos, pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso serviço racional [espiritual]. E não sede conformados com este mundo” [vv. 1,2]. Isso é levítico: um sacrifício vivo não conformado com este mundo. Poderíamos continuar fazendo isso ao longo do Novo Testamento. Mas o grande ponto de nossas meditações é que nossa vida aqui precisa estar relacionada ao céu, debaixo do seu governo, trazendo à luz as coisas celestiais, ministrando em relação ao céu. Isso precisa ser verdadeiro para nós, dentro de nossa medida e de nosso chamado; da mesma forma que aconteceu com Paulo, precisamos de uma visão celestial e não podemos ser desobedientes a ela. Quanto devemos àquele querido homem por todo o sacrifício e sofrimento que ele experimentou pelas coisas celestiais! E quão fiel ao céu ele foi até o fim – lançado na prisão, acorrentado, e não falando sobre nada além dos lugares celestiais.

Você diz que sua situação é tão difícil que não consegue introduzir o céu nela? Bem, existem situações difíceis. A situação de Daniel e seus três companheiros era difícil, mas eles introduziram o céu nela. Uma grande frase no livro de Daniel é “o céu reina” (4.26). E eles provaram essa verdade. O quartel-general está no céu, não na Babilônia, não em Roma, não em Jerusalém ou em qualquer outro lugar, mas no céu. O Senhor nos ajude a viver à altura e a partir do céu.

Agora que estamos chegando ao fim, trazemos mais uma vez o objeto específico dessas mensagens.

Deus tem apenas um objetivo, e só isso Lhe trará completa satisfação: a Plenitude de Cristo. Essa plenitude deve ser encontrada em um povo tomado das nações. Por meio desse povo, nessa plenitude, o Senhor tem o propósito de governar a criação nas eras vindouras. Isso não será alcançado independente de nossa cooperação, mas apenas pagando um alto preço e travando severo conflito hoje.

Nem todos os que “saem” [do mundo] “entram” neste propósito. Muitos não irão até o fim, cumprindo todas as condições, “tornando mais firme a vocação e eleição” [cf. 2Pd 1.10], ainda que entrem no Reino para receber sua herança em medidas diferentes, menores ou maiores.

Os pioneiros são necessários para a plenitude do propósito, e o caminho trilhado por eles é peculiar, repleto de experiências, sofrimentos, perplexidades e provações, pouco conhecidos pelos demais.

Mas Deus precisa de Seus pioneiros, indivíduos ou grupos; e estes são aqueles que “perseveram em seguir ao Senhor [cf. Js 14.8].


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