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Perseverança T. Austin-Sparks

Capítulo 3: Abraão, um grande pioneiro

Todos estes morreram na fé, sem terem recebido as promessas; mas vendo-as de longe, e crendo-as e abraçando-as, confessaram que eram estrangeiros e peregrinos na terra. Porque, os que isto dizem, claramente mostram que buscam uma pátria. E se, na verdade, se lembrassem daquela de onde haviam saído, teriam oportunidade de tornar. Mas agora desejam uma melhor, isto é, a celestial. Por isso também Deus não se envergonha deles, de se chamar seu Deus, porque já lhes preparou uma cidade.

(Hb 11.13-16)

Vamos voltar a falar de Abraão como um dos pioneiros representativos do caminho celestial. Começamos reiterando um aspecto que foi muito real em Abraão: seu senso profundo e inato de destino. Isso também precisa ser verdadeiro, e sempre será, no pioneiro celestial que está avançando na descoberta e na exploração do reino celestial. Estevão nos disse, a respeito de Abraão, que “o Deus da glória apareceu a nosso pai Abraão” (At 7.2) quando ele estava em Ur dos caldeus. Não sabemos como o Deus da glória apareceu para ele. Pode ter sido por meio de uma daquelas teofanias comuns ao Antigo Testamento, e ocorridas mais adiante na vida de Abraão, quando Deus veio até ele em forma humana [cf. Gn 18.1,2]. Nós não sabemos como aconteceu. Todavia, ao considerarmos toda a sua vida, sabemos que o efeito dessa aparição trouxe à luz esse tremendo senso de destino que o desenraizou de toda a vida passada, criando uma profunda inquietação, uma inquietação do tipo correto, um descontentamento profundo e santo.

O descontentamento pode ser uma coisa absolutamente errada, mas existe um tipo correto de descontentamento. Queira Deus que muitos mais cristãos o tenham! Em Abraão se iniciou um desejo que cresceu sucessivamente ao longo dos anos, tornando impossível para ele se estabelecer e aceitar qualquer coisa menor do aquilo que fosse o pleno propósito de Deus. Abraão não poderia aceitar uma segunda opção naquilo que se relacionava a Deus. Sim, essa consciência precisava crescer. Ele foi compreendendo progressivamente o que aquilo significava. Acontecia assim: ele chegava a certo lugar, e talvez pensasse que ali era o lugar, e então descobria que não era, e tinha de se mudar. Talvez ele tenha pensado: “Agora, é aqui… mas não, não é. Ainda não sei o que é… não posso definir, explicar, mas lá dentro sei que Deus tem algo mais”. “Não que já a tenha alcançado, ou que seja perfeito; mas prossigo” (Fp 3.12). Esse é o desejo, ao longo das eras, e que foi tão real no caso do homem cujas palavras acabo de citar. Paulo nunca foi capaz de aceitar o segundo melhor de Deus. Deus tem um segundo melhor. Vemos repetidamente ao longo da história ocasiões em que Deus percebe que é impossível obter Sua “primeira escolha”, Seu melhor. As pessoas não continuariam em frente. Então, o Senhor diz: “Tudo bem; vocês terão meu segundo melhor”, e elas o obtinham. Mas os pioneiros nunca fazem isso. Abraão não poderia fazer isso.

Não podemos entender ou interpretar de modo equivocado a atitude de Abraão, considerando-a fruto de uma natureza instável ou temperamental. Não pense que você ser uma pessoa que nunca está satisfeita é sinal de descontentamento Divino. Esse descontentamento pode refletir instabilidade. Você pode ser uma daquelas pessoas que nunca consegue se fixar em nada por muito tempo, sempre pulando de uma coisa para outra. Nesse caso, você será um completo desajustado, tanto no mundo quanto no reino de Deus. Não foi esse tipo de coisa que aconteceu com Abraão. Havia algo do céu operando nele, e a prova disso foi que eles estava em movimento continuamente ascendente. Abraão não caminhava na horizontal, mas sempre para cima. Ele progredia continuamente no âmbito terreno, bem como na esfera celestial.

Podemos observar que Ló estava junto com Abraão, mas Ló era um homem que sempre buscava segurança aqui. Ele buscou uma cidade, uma casa; ele não gostava da vida de tenda. Ló desejava se estabelecer neste mundo, e foi isso que ele buscou. Mas por essa razão Ló era o homem fraco. Abraão, que sempre se movia em uma tenda, era o homem forte. Isso não era natural, mas espiritual. Esse impulso do céu, esta poderosa operação de uma força espiritual em Abraão, levou-o a ingressar nessa difícil escola do celestial. Para aquilo que é natural e terreno, para a carne, a escola celestial é muito difícil, e Abraão foi trazido a ela por meio desse impulso do céu.

Conflito entre o espiritual e o temporal

Em primeiro lugar, temos o conflito entre o espiritual e o temporal, o visível e o invisível – e esse é um conflito muito feroz. Às vezes, vemos esse conflito em questões muito delicadas da vida de Abraão. Por um lado, Abraão foi abençoado pelo Senhor, o Senhor lhe deu prosperidade, havia sinais de que o Senhor estava com ele. Houve aumento, ampliação essa tão grande ao ponto de ser constrangedora. Seus rebanhos e manadas se multiplicaram; Abraão era um verdadeiro príncipe na terra. Ainda assim, ainda assim, aquela mesma bênção do Senhor às vezes chegava ao ponto de estar prestes a ser eliminada por uma fome aguda e devastadora. Por que Deus abençoou, aumentou e ampliou, e então permitiu algo que poderia acabar com tudo aquilo que havia lhe concedido? Esse é um problema complicado, não é? Não teria sido melhor permanecer pequeno e limitado a ver tudo isso ameaçado? Abraão achou o problema muito sério. Essa foi a razão de um de seus fracassos. Ele desceu para o Egito [cf. Gn 12.10-20].
Era uma escola difícil.

O que isso significa? Parece que Deus dá com uma mão e tira com a outra. Concede prosperidade e bênção, e então permite que algo aconteça que ameaça destruir a própria bênção que Ele concedeu. Seria Deus contraditório assim? Estaria negando a Si mesmo? Você conhece a tentação de tentar interpretar as coisas nessas ocasiões. Afinal de contas, seríamos apenas peões em um jogo? Seríamos apenas filhos do acaso, da fortuna ou do infortúnio? Estaria o Senhor nisso, afinal? Essas circunstâncias podem realmente explicar o Senhor, que é um Deus constante?

Essa é uma escola difícil. Mas perceba que está totalmente de acordo com aquilo que Deus está fazendo.

O que Ele está fazendo?

Bem, se Ele abençoa, existem duas coisas atreladas a essa bênção. Em primeiro lugar, as bênçãos, a prosperidade, o aumento e expansão de Abraão precisavam encontrar seu apoio no céu, não na terra. Deus está introduzindo o grande princípio celestial. Oh, o Senhor pode abençoar e alargar, mas Deus nos livre de supor que a partir daí podemos nos sustentar, continuar sozinhos, seguir em frente por nosso próprio impulso. O Senhor arranjará as coisas de maneira que quando Ele abençoar – independente de quão grande, ampliada e aumentada essa bênção for – aquilo poderá perecer a qualquer momento se o céu não for o sustento dela. Essa é uma lição. Não seja presunçoso, nem tome nada como garantido. Viva cada momento dependendo do céu. Agarre-se ao céu, tanto no dia da bênção como no dia da adversidade.

E existe, a seguir, outro fator. Deus estava treinando Abraão para que fosse seguro abençoá-lo, e isto é algo importante: ser confiável para receber a bênção. Que disciplina, que prova de fé, que teste! E, ainda assim, independente do quanto Deus abençoasse Abraão, Ele não permitia que as bênçãos obscurecessem a visão celestial do patriarca e o detivessem no caminho. Esse foi um triunfo notável. Oh, os perigos devastadores da bênção! Talvez você considere que ainda não sabe muito a respeito deles. Mas Deus quer nos tornar confiáveis para Seu reino celestial, para o crescimento espiritual, para sermos usados poderosamente; e nunca estaremos seguros se algo menor do que o melhor de Deus puder nos enredar. Nunca estaremos seguros se o bom for inimigo do melhor. Em Abraão fica perfeitamente claro que, fosse na prosperidade ou na adversidade, a ele nunca foi permitido se estabelecer e sentir que tinha alcançado seu objetivo. Se em algum momento ele sentia que tinha atingido o alvo, rapidamente via aquilo explodir. “Todos estes morreram na fé, sem terem recebido as promessas; mas vendo-as de longe”.

Outra coisa sobre Abraão é que ele nunca permitiu que as dificuldades aparentes, por maiores que fossem, impedissem definitivamente sua marcha espiritual para a frente e para o alto. Voltaremos a isso em um momento. Você percebe como tudo isso foi adotado por Josué e Calebe? Pense novamente em Josué e Calebe. Eles certamente haviam frequentado aquela escola; caso contrário, nunca teriam levado a próxima geração para a Terra Prometida. Só Deus sabe o que aqueles homens passaram. Perceba que a história sobre a saída dos espias, o relatório da minoria, a tomada de pedras para apedrejar esses homens e matá-los, ou, pelo menos, a proposição de fazê-lo, é contada em pouquíssimos versos. Mas devemos acrescentar os longos anos passados enquanto aquela geração inteira morria, e apenas dois homens permaneciam agarrados à visão celestial. Essa é uma escola difícil. Eles poderiam facilmente perder o ânimo, desistir e dizer: “É uma perspectiva sem esperança”; mas não o fizeram: o celestial havia conquistado a parte mais profunda de seu ser e os sustentou. Aquilo os capturou, levando-os a superar até mesmo a maior adversidade; eles “venceram o mundo”.

O conflito entre o espiritual e o carnal

Vemos então, mais uma vez, esse conflito entre o espiritual e o carnal em Abraão: não apenas entre o espiritual e o temporal, mas entre o espiritual e o carnal. Esse conflito surgiu dentro do que podemos chamar de contexto doméstico, em sua família, no sangue. Aconteceu com Ló. Refiro-me aqui ao sentido espiritual disso. Interpreto que Ló representava algo mais do que aquilo que vemos objetivamente na família cristã (o que é, sem dúvida, muito verdadeiro), mas como algo presente em nossa própria natureza, subjetivamente: o conflito daquilo que é carnal contra o espiritual, do terreno com o celestial.

Aqui está Ló, e ele compartilha do mesmo sangue de Abraão, mas bem no sangue, no meio da família – se você preferir, bem no meio da família cristã – existe esse traço de carnalidade: Ló e seu mundanismo, sua mentalidade, visão, ambição e desejos mundanos. Não vemos visão celestial em Ló, ainda que estivesse bem ao lado, tão perto de Abraão. Abraão encontra a ameaça desse questionamento a seu curso espiritual em meio ao seu próprio sangue. Está ali: presente em nós e na família cristã. Está ao lado, muito próximo o tempo todo: esse desejo de se estabelecer, de obter as coisas aqui e agora, o anseio por retornos rápidos, coisas visíveis, a gratificação da alma; aquele descanso que acreditamos ser descanso, mas não é.

Muitos de vocês sabem do que estou falando. Sabemos como às vezes ansiamos naturalmente por descanso, tentamos obtê-lo, e não o obteremos enquanto não chegarmos ao Senhor. Encontramos nosso verdadeiro descanso nas coisas do céu, não em feriados. Mas a carne está aí, sempre tentando nos arrastar para longe, afastar-nos, fazer-nos fugir. “Ah, que vontade de sair dessa situação! Se ao menos pudéssemos viver em alguma ilha sozinhos, quão sossegado seria, quanta paz! Permanecer afastado de tudo isso!” E isso nunca acontece. Nosso descanso está nas coisas celestiais. Só encontramos nossa verdadeira satisfação nas coisas do Senhor. Você, cristão, vá, farte-se do mundo; você sabe que quando voltar dirá: “Chega dessas coisas!” Você sabe que não pode fazer isso. Mas esse desejo está em nós o tempo todo. A influência carnal está no nosso sangue. E essa também é uma verdade em toda a família cristã: temos o lado de Ló, que deseja um Cristianismo deste mundo, sempre puxando tudo para baixo e para longe do celestial. Abraão conhecia tudo a esse respeito.

Isso constitui a própria base dessa obra pioneira, do pioneirismo nas coisas do Espírito. É essa guerra contra as coisas da carne, como se estivéssemos sempre carregando um cadáver, alguma coisa sem vida que deve ser arrastada e subjugada diariamente. Precisamos dizer a nós mesmos: “Vamos, deixa disso!” Esse é o caminho do pioneiro. Você pode se estabelecer, mas perderá a herança celestial. O carnal tem caminhos muito, muito sutis – caminhos muito “espirituais”.

Será que tudo isso é uma contradição? Essa é uma espiritualidade espúria interpretada como espiritualidade. Imagino o grande combate que Paulo, o homem celestial, enfrentou com os coríntios, a igreja terrenal. No entanto, os coríntios eram considerados espirituais. Eles possuíam todos os dons espirituais: tinham os milagres, a cura, as línguas. Mas Paulo disse: “Eu […] não vos pude falar como a espirituais, mas como a carnais” (1Co 3.1). O carnal pode adotar caminhos aparentemente muito “espirituais”. O fato é que a carnalidade deles estava se apoderando das coisas espirituais e usando-as a serviço de sua carnalidade, concedendo-lhes gratificação espiritual por meio de exibições, mostras, demonstrações, puxando os céus para a terra. Não vamos culpar os coríntios. O quanto nós ansiamos por ver coisas, desejamos evidências e provas! Por que essas coisas atraem tantos seguidores? Porque existe algo na natureza humana que é gratificado nessas coisas, e é infinitamente mais difícil andar no caminho celestial onde você não vê e não entende; mas esse é o caminho do pioneiro espiritual que conquista a herança para os demais.

A prova da realidade da visão celestial

Finalmente, qual foi a prova de que essa visão e esse senso de destino de Abraão eram reais, verdadeiros, genuínos, vindos realmente de Deus, e não apenas fruto de sua imaginação? Que prova lhe foi dada?

(a) Fé no Deus do impossível

Vemos essa prova, em primeiro lugar, na atitude de Abraão com relação ao impossível. Como dissemos no capítulo anterior, temos a história completa no Novo Testamento. No Antigo Testamento, parece que Abraão cedeu, esmoreceu diante do impossível.

Já vamos chegar a esse ponto. O Novo Testamento nos diz de modo enfático que Abraão olhou diretamente para o impossível e creu ser possível. Sua atitude com respeito ao impossível quanto a Isaque provou ser algo mais do que apenas sua imaginação; havia algo poderoso em seu senso e em sua consciência de destino. Este é o teste final para saber se realmente está registrado em nós um senso de vocação celestial: se vamos desistir quando uma situação começar a parecer impossível. O fato é que, apesar de desejar desistir, você não tem consentimento para isso. Algo dentro de você simplesmente não permite. Você esteve a ponto de redigir sua carta de demissão centenas de vezes. Repetidamente, disse: “Vou sair dessa situação; não posso prosseguir nem mais um passo, estou arruinado”; mas você prosseguiu, ainda prossegue e sabe muito bem que existe algo dentro de você mais forte do que todas as suas resoluções de renunciar. Quão necessário é esse sentido em nós – algo indiscutivelmente dado por Deus, não vindo de nós mesmos. “Segundo o poder que opera em nós” (Ef 3.20) – é isso.

(b) Capacidade de ajustes quando cometia erros

Vamos então considerar a capacidade que Abraão tinha de fazer ajustes quando cometia erros. Esse homem, esse pioneiro, cometeu erros, e eles foram grandes. Qual é a tentação de um servo de Deus quando comete uma grande mancada, quando alguém com responsabilidades comete um erro terrível? Qual é a reação imediata? “Oh, evidentemente não fui talhado para isso, não fui chamado para isso. Deus tomou a pessoa errada, nunca fui destinado para isso. Melhor encontrar outra atividade, é melhor desistir.” É preciso enfatizar que os erros cometidos por Abraão foram muito ruins, lapsos e falhas graves jamais desculpadas na Bíblia, mostrados exatamente como eram, e nunca foram apagados do registro da Palavra escrita, nem da história, por Deus: olhe para Ismael [os povos árabes] hoje! Ainda assim, apesar de Abraão ter cometido esses erros que foram claramente expostos, havia algo nele que reagia para se ajustar. “Cometi um erro ao descer para o Egito, mas não desistirei movido pelo desespero e não me recusarei a voltar; voltarei. Cometi esse erro com respeito a Ismael: voltarei e recuperarei meu terreno.” Abraão foi um grande homem quando se faziam necessários restauração e ajuste depois de uma desoladora decepção consigo mesmo.

(c) A operação do poder celestial no interior

O que tudo isso nos indica? Que havia uma operação do poder celestial nesse homem. Isso não é natural, não é o caminho da natureza. Se conhecêssemos a tensão, o estresse, a dureza daquela escola em que Abraão estava! Nunca deixo de me maravilhar ao ler as palavras de Paulo a respeito de Abraão: “E não enfraquecendo na fé, não atentou para o seu próprio corpo já amortecido, pois era já de quase cem anos […] E não duvidou da promessa de Deus por incredulidade, mas foi fortificado na fé, dando glória a Deus, e estando certíssimo de que o que Ele tinha prometido também era poderoso para o fazer” (Rm 4.19-21). “Da fé que teve Abraão, o qual é pai de todos nós […] perante Aquele no qual creu, a saber, Deus, o qual vivifica os mortos” (v. 17). Ele provou sua fé ao amarrar o único filho e tomar a faca para sacrificá-lo. Um instante mais e aquele filho, em quem se centravam todas as promessas, estaria morto. Digo isso e fico maravilhado. Uma coisa é Deus fazer algo assim: tirar; outra coisa é nós termos de fazer isto: entregar a Deus – mas Abraão o fez. Vemos aqui algo que não é natural. Esse não é o jeito do mundo, da terra. É o jeito, o caminho celestial. Abraão estava pioneirando o caminho celestial. E por isso ele ocupa essa posição tremenda, não apenas na velha dispensação, mas nesta, e para sempre. Um grande pioneiro das coisas celestiais – é isso que ele representa.

Isso pode explicar muito de nossa experiência pessoal. Deus precisa de pessoas como Abraão neste dia de terrível movimento espiritual de declínio, descendente na direção do mundo, por parte de Sua Igreja. Com todas as suas boas intenções, talvez até mesmo motivações puras, a Igreja está, contudo, adotando a estrutura e a forma deste mundo para fazer a obra do céu. Uma reação a isso se faz necessária, e precisam existir vasos que possam provar que não é necessário voltar a este mundo. O céu é suficiente para todas as coisas.


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Samuel Rutherford Sofrimento Testemunho

Cartas de Samuel Rutherford (6)

Para Robert Gordon, de Knockbreck [1]

Aberdeen, 9 de fevereiro de 1637

Coisas que a aflição ensina

As tentações que eu julgava estarem abatidas e mortas levantam-se novamente e revivem sobre mim; sim, vejo que, enquanto eu viver, as tentações não morrerão. O diabo parece se ufanar e se gabar como se ele agradasse mais a Cristo do que eu, e como se ele tivesse enfeitiçado e destruído meu ministério para que eu não pudesse mais fazer o bem em público. Mas seu vento não causa danos. Eu não acreditarei que Cristo teria feito tal esforço para ter-me para Si, colocando tantas dores sobre mim, como tem feito, e então perder facilmente minha posse, e perder a glória daquilo que Ele fez. Não! Desde que vim para Aberdeen, tenho sido levado a ver a nova terra, o lindo palácio do Cordeiro; e Cristo me deixaria ver o Céu só para partir meu coração e jamais dá-lo a mim? Não pensarei que meu Senhor Jesus daria um penhor vazio, ou colocaria Seu selo em um papel em branco, ou pensaria em se livrar de mim com promessas bonitas e falsas. Agora eu vejo o que nunca vi bem antes:

Necessidade de fé

1. Vejo que a necessidade de fé em um dia bonito nunca é reconhecida como necessária; mas agora não sinto falta de nada além da fé. A fome é para mim como promessas belas e doces; mas, quando venho, sou como um homem faminto e sem dentes, ou com um estômago fraco tendo um apetite voraz que já é satisfeito só com a visão da carne, ou como alguém entorpecido com o frio sob a água que se contentaria em chegar à terra, mas que não consegue agarrar nada que lhe seja atirado.

Eu posso deixar Cristo me agarrar, mas eu não posso agarrá-Lo. Eu amo ser beijado e estar assentado nos joelhos de Cristo, mas não posso colocar meus pés no chão, porque as aflições trazem cãibras à minha fé. Tudo o que posso fazer é estender a Cristo uma fé aleijada, como um pedinte estendendo um coto, em vez de um braço, ou uma perna, e clamar: “Senhor Jesus, faze um milagre!” Oh, o que eu não daria para ter mãos e braços para agarrar com força e abraçar generosamente o pescoço de Cristo, e ter meu pedido com posse real! Eu penso que meu amor por Cristo tem muitos pés, e corre rapidamente para estar com Ele, mas falta-lhe mãos e dedos para segurá-Lo. Eu acho que daria minha bênção a Cristo toda manhã, para ter tanta fé como tenho amor e fome; pelo menos, eu sinto mais falta de fé do que de amor ou de fome.

Morto para o mundo

2. Eu vejo que a mortificação, e ser crucificado para o mundo, não é tão bem considerado por nós como deveria ser. Oh, quão celestial é ser morto e mudo e surdo para a doce música deste mundo! Confesso que agradou à Majestade Divina fazer-me rir das crianças que estão cortejando este mundo para ser seu par. Eu vejo homens mentindo sobre o mundo, da mesma forma que os nobres mentem sobre a corte do rei, e fico a imaginar o que eles estão fazendo ali.

Como estou agora, no presente, eu não me dignaria cortejar uma princesa tão insignificante e imprestável, ou comprar a bondade deste mundo dobrando meu joelho. Eu agora quase não vejo nem ouço o que é que este mundo me oferece; eu sei que é pouco o que ele pode tirar de mim, e que é pouco o que ele pode me dar. Eu te recomendo a mortificação acima de qualquer coisa; porque, ai de nós! Nós só corremos atrás de penas voando no ar, e cansamos nosso espírito com esse palavrório e essa vida moribunda do barro maquilado. Um relance do que o meu Senhor me deixou ver nesse curto período de tempo vale um universo de mundos.

Regozijo espiritual

3. Eu pensei que a coragem, em tempos de aflição por amor a Cristo, fosse algo que eu pudesse dominar. Pensei que a própria lembrança da honestidade da causa seria o suficiente. Mas fui tolo ao pensar assim. Tenho agora muita dificuldade para dar um sorriso. Vejo, porém, que o regozijo cresce no céu, e está além de nosso curto braço. O próprio Cristo é quem será o mordomo e o despenseiro, e nenhum outro a não ser Ele. Portanto, agora, eu conto apenas com um pouquinho do regozijo espiritual.

Um sorriso da face de Cristo é agora para mim como um reino; e Ele até o momento não retém de mim o conforto.

Na verdade, eu não tenho razão de dizer que esteja oprimido com penúria ou que as consolações de Cristo estejam faltando; porque Ele tem derramado rios sobre um deserto seco como eu, para meu espanto; e em meus desmaios Ele me mantém a cabeça erguida e me sustenta com odres de vinho e me conforta com maçãs [Ct 2.4,5]. Há beijos de amor espalhados em toda a minha casa e na minha cama. Louva, louva comigo. Oh, se tu e eu, entre nós, elevássemos Cristo a Seu trono, no entanto toda a Escócia O estaria derrubando ao chão!


[1] Robert Gordon, de Knockbeck, um cristão sofrido e de coração singular, muito usado em parlamentos e reuniões públicas depois do ano de 1638. Knockbreck fica na paróquia de Borgne, contígua a Anwoth, e tem vista para a Baía de Wigtown.

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Citações Gotas de orvalho Vários

Gotas de orvalho (301)

Os mais felizes cristãos são aqueles que têm os mais baixos pensamentos sobre si mesmos e a cujos olhos Jesus é mais glorioso e precioso.

(John Newton)

‘O que devo fazer para ser salvo?’ É impossível que uma pergunta mais grave do que essa seja feita! É deplorável que nós não a ouçamos com mais freqüência, com mais agonia.

(Cotton Mather)

Nenhum livro da Escritura pode ser compreendido por si só, assim como qualquer parte de uma árvore ou o membro do corpo não pode ser entendido sem referência ao todo de que ele faz parte.

(Charles Hodge)

Quem entregou Jesus à morte? Não foi Judas, por dinheiro. Não foi Pilatos, por medo. Não foram os judeus, por inveja. Foi o Pai, por amor.

(Otávio Winslow)

Quando despertarmos […] no outro mundo, ficaremos maravilhados com quão imperfeitamente O conhecíamos e quão pouco O amávamos.

(J. C. Ryle)

Usar a Escritura para defender qualquer pecado é profaná-la e tomar o nome de Deus em vão.

(Thomas Watson)

Se Me amais,
guardai os Meus mandamentos. […]
Quem não Me ama
não guarda as Minhas palavras.

(Jo 14.15,24)

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Doze pérolas

Doze pérolas (1)

Sete olhares do Senhor em Marcos

E, olhando para eles em redor com indignação, condoendo-se da dureza do seu coração, disse ao homem: ‘Estende a tua mão’. E ele a estendeu, e foi-lhe restituída a sua mão, sã como a outra.

(3.5)

E, olhando em redor para os que estavam assentados junto Dele, disse: ‘Eis aqui Minha mãe e Meus irmãos’.

(3.34)

E Ele olhava em redor, para ver a que isto fizera.

(5.32)

E, tomando Ele os cinco pães e os dois peixes, levantou os olhos ao céu, abençoou e partiu os pães, e deu-os aos Seus discípulos para que os pusessem diante deles. E repartiu os dois peixes por todos.

(6.41)

E, levantando os olhos ao céu, suspirou, e disse: ‘Efatá’; isto é, ‘Abre-te’.

(7.34)

Mas Ele, virando-se, e olhando para os Seus discípulos, repreendeu a Pedro, dizendo: ‘Retira-te de diante de Mim, Satanás; porque não compreendes as coisas que são de Deus, mas as que são dos homens’.

(8.33)

E Jesus entrou em Jerusalém, no templo, e, tendo visto tudo em redor, como fosse já tarde, saiu para Betânia com os doze.

(11.11)

Há muito é aceito que o Evangelho de Marcos seja, em grande medida, as memórias de Pedro redigidas pelo jovem João Marcos, em cuja casa reunia-se a igreja em Jerusalém (At 12.12), o qual acompanhou Paulo e Barnabé no início da primeira viagem missionária (13.4-13).

Pedro, para quem o Senhor olhou após a tríplice negação (Lc 22.61), deve ter ficado impressionado com aquele olhar. Por isso, lembrou-se de modo especial dele em várias ocasiões, registradas por Marcos.

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Samuel Rutherford Sofrimento Testemunho

Cartas de Samuel Rutherford (5)

Para Robert Blair [1]

Aberdeen, 7 de fevereiro de 1637

Os por vezes misteriosos arranjos de Deus

Não é de se espantar, meu caro irmão, que tu andes ansioso por algum tempo, e que a vontade de Deus (cruzando teu plano e teus desejos de morar entre um povo para quem Deus é o Senhor) deverá fazer com que mudes. Eu não nego isso, porém tu tens razões em procurar saber o que a Sua providência fala a ti quanto a isso; mas a vontade de Deus que te direciona e comanda pode, não mediante a boa lógica, ser compreendida mediante os eventos da providência. O Senhor enviou Paulo a muitas viagens com o propósito específico de espalhar Seu Evangelho, nas quais ele encontrou leões em seu caminho. Uma promessa havia sido feita ao Seu povo na Terra Santa, porém os israelitas encontraram muitas nações que lutaram contra eles e estavam prontas a matar os que tinham a promessa, ou a impedi-los de possuir a boa terra que o Senhor, seu Deus, lhes havia dado.

Sei que tu és muito submisso ao Espírito; porém, convenço-me que aprendeste, em cada situação em que és colocado, a estares contente e a dizeres:

“Boa é a vontade do Senhor; que ela seja feita.”

Eu creio que o Senhor muitas vezes lança um barco na água para encontrar-se com o vento, e Ele tem como propósito trazer misericórdia por meio de teu sofrimento e pelo silêncio, o qual (sei disso por minha própria experiência) é muito doloroso para ti. Vendo que Ele conhece nossa mente disposta a servi-Lo, nossa paga, nossa recompensa está mais à frente com nosso Deus, mesmo que alguns soldados doentes sejam pagos quando estão acamados e não podem ir a campo com os outros. “Israel não se deixará ajuntar; contudo aos olhos do Senhor serei glorificado, e o meu Deus será a minha força” (Is 49.5). E nós devemos crer que assim será antes que tudo termine. “‘A violência que se fez a mim e à minha carne venha sobre Babilônia’, dirá a moradora de Sião; e ‘o meu sangue caia sobre os moradores da Caldéia’, dirá Jerusalém” (Jr 51.35).

“Eis que eu farei de Jerusalém um copo de tremor para todos os povos em redor, e também para Judá, durante o cerco contra Jerusalém. E acontecerá naquele dia que farei de Jerusalém uma pedra pesada para todos os povos; todos os que a carregarem certamente serão despedaçados; e ajuntar-se-á contra ela todo o povo da terra” (Zc 12.2,3). Quando nos tiverem comido e engolido, eles terão náusea e nos vomitarão vivos novamente; o estômago do diabo não pode digerir a Igreja de Deus.

O sofrimento é a outra metade de nosso ministério; contudo, a mais difícil. Pois ficaríamos satisfeitos se nosso Rei Jesus fizesse uma proclamação aberta, e derrubasse as cruzes, e exaltasse o gozo, a alegria, a tranqüilidade, a honra e a paz. Mas não pode ser assim. Por meio de muitas aflições é que entraremos no reino de Deus (At 14.22b). Não somente por meio delas, mas passando através delas deveremos ir, e as artimanhas não nos pouparão a cruz. É loucura pensar que entraremos furtivamente no céu, com a pele íntegra.

Ofereceram-me objeções a meu Senhor, e fui sacudido por desafios sobre se Ele me amava ou não, e por frequentes debates sobre tudo o que Ele fez por mim, porque Sua Palavra era um fogo preso em minhas entranhas, e eu estava cansado de controlar-me porque eu disse que tinha sido lançado fora da herança do Senhor. Mas agora vejo que fui um tolo. O Senhor não levou em conta nada disso e suportou meus tolos ciúmes, e não levou em conta que ofendi Seu amor.

E agora Ele voltou com misericórdia sob Suas asas. Eu fui além de minha (Oh, insensatez!) convocação. Ele é Deus, eu sei, e eu sou homem. Agora agradou-Lhe renovar Seu amor à minha alma e favorecer Seu pobre prisioneiro. Portanto, meu irmão, ajuda-me a louvar, e mostra ao povo do Senhor perto de ti o que Ele fez à minha alma para que eles possam orar e louvar. E eu te encarrego, em nome de Cristo, não omitir isso.

Por esta causa escrevo a ti: que meus sofrimentos glorifiquem meu nobre Rei e edifiquem Sua Igreja na Irlanda. Ele sabe o quanto uma brasa viva de Cristo tem queimado minha alma com o desejo de que minhas cadeias preguem Sua glória, cuja cruz agora eu suporto. Que Deus te perdoe, se tu não o fizeres. Mas espero que o Senhor mova teu coração a proclamar em meu favor a doçura, a excelência e a glória do meu nobre Rei. Foi nossa carne fraca que levantou uma calúnia contra a Cruz de Cristo; agora vejo o lado bom disso; as cadeias do meu Senhor são todas disfarçadas. Oh, se a Escócia e a Irlanda fizessem parte da minha festa! Mas eu só consigo meu quinhão com muito sacrifício. Não há ninguém aqui com quem eu possa conversar; eu habito nas tendas de Quedar (Ct 1.5). Refrigera-me com uma carta tua. Poucos sabem o que há entre mim e Cristo.

Caro irmão, por minha salvação, é por Sua verdade que sofremos agora. Cristo não daria carta branca às almas.

Coragem, coragem! Alegria, alegria para sempre! Oh, que gozo inefável e glorioso (1Pd 1.8)! Oh, ajuda a exaltar meu coroado Rei! Oh, ama Aquele que é todo amor! – aquele amor que as muitas águas não podem apagar, nem podem os rios afogá-lo (Ct 8.7)!

[1] Robert Blair nasceu em Irvine em 1593, tornou-se ministro presbiteriano em Bangor, Irlanda do Norte, em 1623. Os arcebispos anglicanos se opuseram a ele e asseguraram sua demissão em 1634. Embarcou com outros ministros para a Nova Inglaterra (EUA), porém tempestades os fizeram retornar. Em 1638 tornou-se ministro em Ayr, porém logo se mudou para St. Andrews, onde ele e Rutherford se tornaram amigos chegados. Ele morreu em 1666.

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Citações Gotas de orvalho Vários

Gotas de orvalho (300) ― Especial

Damos graças ao Senhor por ter-nos conduzido nesses quase seis anos de publicação semanal da seção Gotas de orvalho. Essas pequenas preciosidades de fiéis servos de Deus servem-nos de alimento, consolo, encorajamento e alerta. E, como tem sido o tema das edições especiais, que elas nos despertem mais e mais para esperar e amar a vinda de nosso Senhor e nos auxiliem em nossa preparação para aquele glorioso dia! Adotamos nova identidade visual para a seção, a qual nos lembre que em breve o Dia raiará!

Publicado no Gotas de orvalho 1 (27.5.15)

Por que Gotas de orvalho?

Aquelas gotículas de água depositadas sobre a vegetação são para ela suprimento, alimento, garantia de vida. É o que esta nova seção, que será atualizada toda quarta-feira, se propõe ser: frases curtas de servos de Deus que sirvam de suprimento espiritual para os leitores. Não são frases de efeito, trocadilhos bobos, frases pensadas em laboratório para palestras ou livros de sucesso; não são frases vazias ou óbvias como as dos livros de auto-ajuda. Elas são um pouco da colheita do que esses homens aprenderam com Deus no caminho da cruz, da submissão, da obediência. Por isso, elas têm a aparência despojada de um lírio, mas são sustentadas por raízes profundas em Deus e em Sua Palavra.

Ó Senhor, Teu desejo não é transformar o deserto, mas, sim, guardar nossos passos para que não nos desviemos do caminho que Teus próprios pés antes trilharam.

(F. E. Bevan)

Publicado no Gotas de orvalho 100 (10.5.17)

Em todos os nossos pensamentos acerca de Cristo, nunca esqueçamos de Sua segunda vinda.

(J. C. Ryle)

Os pensamentos sobre vinda de Cristo são os mais doces e prazerosos para mim.

(Richard Baxter)

Estou diariamente esperando a vinda do Filho de Deus.

(George Whitefield)

Publicado no Gotas de orvalho 200 (10.4.19)

Nunca começo a trabalhar de manhã sem pensar que Cristo talvez venha interromper meu trabalho e começar o Dele. Não estou esperando a morte – estou esperando por Ele.

(G. Campbell Morgan)

Será que você pode dizer: “Estou aguardando Cristo”? […] Não pergunto a você se você entende a respeito da vinda do Senhor, [mas] será que você está verdadeiramente esperando pelo Filho de Deus vindo do céu? Você gostaria que Ele viesse hoje? […] O que você pensaria se soubesse que Ele vem hoje? Será que isso é exatamente o que sua alma está desejando?

(John Nelson Darby)

Em breve voltarás, Jesus, Senhor!
Que gozo, que prazer, nosso Senhor,
Teu rosto contemplar, ser como Tu, Senhor!
Contigo sempre estar, nosso Senhor!

(James George Deck)

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Doze pérolas

Doze pérolas

A pérola é algo único na natureza. É a única “pedra preciosa” de origem animal. Ostras e mexilhões, quando são feridos por um corpo estranho, principalmente grãos de areia, secretam sobre ele uma substância chamada nácar, o que dá origem à pérola.

É comum que, ao mencionar pérolas, as imaginemos apenas brancas e perfeitamente redondas. No entanto, nem todas são assim. Há de todos os tamanhos, formatos tendendo ao esférico e cores. Mas todas são igualmente belas, preciosas e todas foram geradas do mesmo modo.

Por ser o resultado do ferimento em um animal, a pérola é, na Bíblia, uma figura do sacrifício do Senhor Jesus, pelo qual a igreja foi gerada. Os filhos de Deus são o “fruto do trabalho da Sua [de Cristo] alma” (Is 53.11): Cristo sofreu e morreu na cruz para comprar para Deus os que crêem. Cristo é, portanto, o único caminho de acesso a Deus (Jo 14.4), caminho aberto com sangue vertido e corpo partido (cf. Hb 10.19,20). Por essa razão, as doze portas da Nova Jerusalém são pérolas (Ap 21.21). Ninguém estará nela se não houver, nessa vida, se unido a Cristo graças a Sua morte vicária.

O objetivo da nova seção Doze Pérolas é recolher, na Palavra de Deus, pequenos tesouros, de diferentes tamanhos e formatos. Há tantas preciosidades no Livro de Deus, todas elas apontando, de algum modo, para Cristo e Seu sacrifício! Não são meras curiosidades para alimentar gincanas de retiros de jovens; são, antes, marcas da inspiração divina, sinais do Cordeiro eterno, sussurros do misericordioso Deus que indicam o único caminho de salvação para o homem.

Nessa nova seção semanal, apresentaremos pequenas listas (nem sempre serão doze itens) de fatos, de títulos, de correlações, de uso de palavras ou de expressões, de tempos verbais, de palavras sinônimas… Coisas preciosas que talvez escapem à leitura rápida, desatenta, mas revelam seu valor àquele “que busca boas pérolas” (Mt 13.45). Com isso, desejamos despertar nos filhos de Deus ainda mais apreço pelo Livro Antigo, fazendo a mesma sincera oração do salmista: “Abre Tu os meus olhos, para que veja as maravilhas da Tua lei” (Sl 119.18).

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Comunhão J. I. Packer

Comunhão, uma necessidade


O que impede a comunhão? Quatro coisas, pelo menos.

O primeiro obstáculo é a autossuficiência. Não pode haver comunhão enquanto as pessoas não percebem que dependem umas das outras para receberem ajuda espiritual. Uma atitude de autossuficiência espiritual pode refletir o estado de morte espiritual do não-convertido, para quem todas as coisas espirituais parecem irreais; ou pode refletir a miopia espiritual de crentes indolentes (cf. Hb 5.12ss.; Rm 12.1-3), os quais podem ser até mesmo velhos na fé. Essa atitude também pode ser a racionalização de alguém que, pelo orgulho, pelo senso de culpa ou pela hipocrisia consciente, ou mesmo por todos esses três defeitos, não está disposto a compartilhar suas necessidades espirituais e a pedir a ajuda de outros. Porém, qualquer que seja a causa, a autossuficiência exclui a comunhão desde o seu início.

O segundo obstáculo é o formalismo. Alguns compreendem que a comunhão cristã se resume em envolver-se na adoração pública com uma postura correta, sobretudo na ocasião da Ceia do Senhor, e evitam qualquer comunhão mais íntima. Essa atitude tem diminuído em nossos dias, especialmente por causa do informalismo do movimento carismático, embora haja lugares onde ela persiste. Uma vívida adoração litúrgica, certamente é comunhão cristã, mas esta não se limita à adoração litúrgica, e eu espero que isto já esteja claro para meus leitores.

O terceiro obstáculo é a amargura, que se expressa por constantes atitudes de hostilidade. Hebreus 12.15 nos adverte sobre a perturbação que uma raiz de amargura pode causar. A amargura parece derivar-se mais freqüentemente do orgulho ferido e da malícia defensiva, de algum senso de injustiça, de maus-tratos ou de traição, ou então da inveja que se ressente em face dos dons, da posição ou do sucesso de outrem. A inveja, em particular, torna-se uma raiz oculta de amargura, exprimindo-se em controvérsias, em frieza pessoal, em maledicência (que alguém definiu como a arte de confessar os pecados alheios), em protesto ou em divisionismo. Na comunhão autêntica, cujo alvo é tornar a outra pessoa mais hábil para Deus, há um lugar próprio para crítica construtiva. A crítica pode ser exigida pelo amor, como os pais o sabem, mas ela precisa ser construtiva, e não destrutiva, oferecida com gentileza e restrição, por alguém que esteja consciente de ser ele mesmo um pecador e que reconhece que todos nós aceitamos bem pouco qualquer crítica. Entretanto, quando o motivo por trás da crítica é a amargura, ela acontecerá de modo arrogante e desenfreado, que nega a comunhão, em vez de promovê-la.

O quarto obstáculo é o elitismo, uma atitude de superioridade que produz “panelinhas” alicerçadas sobre o exclusivismo. Trata-se de uma imitação satânica da verdadeira comunhão, da qual nada é excluído, exceto a incredulidade. Quando grupos superentusiasmados se reúnem para formar associações baseadas em pequenas peculiaridades doutrinárias ou na atração magnética de um líder, o orgulho sobressai e a comunhão definha.

Essa lista de obstáculos à comunhão poderia ser mais minuciosa, mas, sem dúvida, não há necessidade disso.

 

(Publicado originalmente em 2.10.10; revisado e republicado em 11.3.21.)

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Citações Gotas de orvalho Vários

Gotas de orvalho (299)

Se você tentar imitar Cristo, o mundo irá louvá-lo. Se você se tornar como Cristo, ele irá odiá-lo.

(Martin Lloyd-Jones)

Jesus é o maior, o mais poderoso, o mais santo, o mais puro e o melhor homem que jamais viveu.

(Charles Spurgeon)

O que preocupa você governa você.

(Haddon Robinson)

A Bíblia não é livro para o homem preguiçoso. Muitos de seus tesouros, como os preciosos minerais ocultos nas entranhas da terra, só se revelarão àquele que os buscar com diligência.

(Arthur W. Pink)

Alegria, verdade e amor estão entretecidos. O amor não pode se regozijar quando a verdade é negada.

(Alistair Begg)

Deus deve ser não apenas central: Ele deve ser tudo. Ele deve ter o lugar central em nossa vida, mas também tem de estar conectado com tudo nela.

(Thomas Parr)

Eu sou o Sᴇɴʜᴏʀ,
teu Deus,
desde a terra do Egito;
portanto, não reconhecerás
outro deus diante de Mim,
porque não há Salvador
senão Eu […]
o teu ajudador.

(Os 13.4,9b)

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Samuel Rutherford Sofrimento Testemunho

Cartas de Samuel Rutherford (4)

Para John Gordon[1]

Aberdeen, 1637

Ganhe a Cristo de qualquer forma

Rogo-te, senhor, pela salvação de tua preciosa alma e pelas misericórdias de Deus, que utilizes bem e com certeza tua salvação, e proves sobre que fundamento tens edificado. Digno e caro senhor, se estiveres sobre areia movediça, a tempestade da morte e uma rajada de vento te perderá de Cristo e te arrastará da rocha. Oh, pelo amor de Deus, olha minuciosamente para a obra!

Revê tua vida sob a divina luz do dia e do Sol, pois a salvação não é lançada à porta de todo homem. É bom que olhes tua bússola, e tudo de que necessitas, antes de embarcares, pois nenhum vento poderá trazer-te de volta. Lembra-te, quando a corrida terminar, e o jogo estiver ganho ou perdido, e estiveres no círculo final e às margens do tempo, e colocares teu pé na fronteira da eternidade, e todas as tuas boas coisas deste curto sonho noturno te parecerem como cinzas de uma rápida queima de espinhos ou de palha, e tua pobre alma clamar: “Pousada, pousada, pelo amor de Deus!”, então tua alma estará mais feliz em um dos amáveis e despretensiosos sorrisos de teu Senhor do que se tivesses o domínio de três mundos pela eternidade. Que prazeres e ganhos, vontade e desejos deste mundo sejam postos nas mãos de Deus, como bens presos e cercados com os quais não podes lidar. Agora, quando bebes a borra de tua taça, e estás na extremidade final da última ligação com o tempo, e a idade avançada, como uma longa sombra de morte, lança uma cobertura sobre teus dias, não é hora de cortejares esta vida vã e nela colocares o amor e o coração. Já é quase depois da ceia; procura descanso e sossego para tua alma em Deus, por meio de Cristo.

Creia-me que acho difícil lutar para ser honesto com Cristo, e estar em paz com Ele, e amá-Lo em integridade de vida e manter um curso constante de comunhão diária sã e sólida com Cristo. As tentações estão diariamente quebrando o fio desse caminho, e não é fácil atá-lo novamente; e muitos laços produzem obras más. Oh, quantos barcos estão lindamente navegando com o vento e, no espaço de uma hora, jazem no fundo do mar! Quantos mestres emitem um brilho dourado como se fossem de ouro puro, e, contudo, por baixo daquela capa não passam de um metal básico e depravado! E quantos mantêm o fôlego por muitos quilômetros em sua corrida, mas não conseguem o prêmio e a guirlanda de louro!

Caro senhor, minha alma lamentaria secretamente por ti, se eu soubesse que tua relação com Deus fosse apenas uma obra falsa. O amor para fazer-te ancorar em Cristo me faz temer tuas vacilações e teus deslizes. Uma falsa imersão, não vista com base em uma consciência iluminada, é perigosa, assim como o cair frequentemente e o pecar contra a luz. Sabe que aqueles que nunca tiveram noites ou dias ruins por consciência do pecado terão essa paz com Deus como uma pústula sob a pele que romperá a carne outra vez, e terminarão numa triste guerra na morte. Oh, como milhares estão terrivelmente enganados com o falso esconderijo, construído sobre velhos pecados, como se a alma estivesse curada e sã!

Caro senhor, eu sempre vi em ti uma natureza poderosa, elevada, impetuosa e forte; e que era mais difícil para ti do que para outro homem comum o ser mortificado e morto para o mundo. Será preciso uma maré baixa, um corte profundo e um longo arpão para alcançar o fundo de tuas feridas em uma humilhação salvadora para fazer-te uma presa para Cristo. Sê humilde; anda suavemente. Abaixa, abaixa, pelo amor de Deus, meu caro e digno irmão, tua vela. Curva-te, curva-te! A entrada para se passar o portão do céu é baixa. Há justiça infinita Naquele com quem tu deves lidar; é de Sua natureza não inocentar o culpado e o pecador. A lei de Deus não aceitará um vintém do pecador. Deus não se esquece nem do prudente nem do pecador; e todo homem deve pagar, ou em sua própria pessoa (Oh, que o Senhor te salve desse pagamento!), ou em sua segurança, Cristo.

A beleza de Cristo

É violência para a natureza corrompida de um homem se tornar santo, cair aos pés de Cristo, abdicar da vontade, do prazer, do amor pelo mundo, da esperança terrena e de um desejo do coração por este mundo colorido e exagerado, e estar satisfeito que Cristo passe por cima de tudo isso. Vem, vem a Cristo, e vê, e encontra o que tu queres Nele. Ele é o atalho (como dizíamos) e o caminho mais curto para escapares de todos os teus fardos. Ouso afirmar que tu serás muito bem-vindo a Ele. Minha alma se alegraria em ser partícipe do gozo que terias Nele. Ouso dizer que nem as penas de escrever dos anjos, nem a língua dos anjos, não, nem os tantos mundos de anjos, como são as gotas de água dos mares, das fontes e dos rios da Terra poderiam descrevê-Lo para ti. Penso que a doçura Dele, desde que me tornei prisioneiro, aumentou sobre mim até à grandeza de dois céus. Oh, é preciso uma alma tão larga quanto o maior círculo do mais alto céu, que tudo contém, para conter Seu amor!

Mas eu pude pegar um pouco disso. Oh, maravilha do mundo! Oh, se minha alma pudesse apenas deitar-se na fragrância de Seu amor, supondo que eu não pudesse obter nada além dessa fragrância! Oh, mas ainda está longe o dia em que eu terei um mundo livre do amor de Cristo! Oh, que visão estar no céu, naquele lindo jardim do novo paraíso, e ver e sentir o aroma e tocar e beijar aquela linda flor do campo, aquela sempre verde Árvore da Vida! Só Sua sombra já seria o bastante para mim. Apenas vê-Lo seria o máximo do céu para mim. Vergonha, vergonha sobre nós que temos o amor enferrujando a nosso lado ou, o que é pior, desperdiçado em algum objeto repugnante, e Cristo deixado só. Desgraça, desgraça que o pecado fez tantos loucos, buscando o paraíso dos tolos, fogo sob o gelo, e algumas coisas boas e desejáveis sem Cristo e longe dele. Cristo, Cristo, nada além de Cristo, pode arrefecer a morbidez ardente de nosso amor. Oh, amor sedento! tu irás colocar Cristo, o poço da vida, em tua cabeça e beber até ficares cheio? Bebe, e não desperdiça, bebe o amor e embriaga-te de Cristo! Não, infelizmente! a distância entre nós e Cristo é a morte. Oh, se estivéssemos presos em outros braços! Nós nunca nos separaríamos, exceto se o céu nos separasse e nos dividisse; e isso não pode ocorrer.

Uma palavra para os filhos

Eu desejo que teus filhos busquem o Senhor. Meu desejo para eles é que sejam chamados, pelo amor de Cristo, a serem bem-aventurados e felizes, e venham e tomem Cristo e todas as coisas com Ele. Que tenham cuidado com a juventude frágil e escorregadia, com as ideias tolas dos jovens, com a luxúria mundana, com os ganhos enganadores, com as más companhias, com as maldições, com a mentira, com a blasfêmia e com as conversas tolas. Que eles sejam cheios do Espírito, que se acostumem a orar diariamente e com o manancial da sabedoria e do conforto, a boa Palavra de Deus.


[1] John Gordon, de Cardoness (o Ancião), viveu no Castelo de Cardoness, na paróquia de Anwoth. Era descendente de Gordon de Lochinvar e foi proeminente nos assuntos paroquiais locais. Pouco se sabe sobre Cardoness, o Jovem, exceto que participou da Guerra Civil na Inglaterra. Observamos, pelas cartas, que a natureza humana era forte tanto no pai quanto no filho.

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Citações Gotas de orvalho Vários

Gotas de orvalho (298)

Festas, negócios, prazer e diversões parecem grandes coisas para nós, enquanto não pensamos em outra coisa; mas assim que acrescentamos a morte a elas, todas caem na mesma pequenez.

(William Law)

Não faça seu concerto primeiro e afine seu instrumento depois. Comece o dia com a Palavra de Deus e a oração, e entre antes de tudo em harmonia com Ele.

(Hudson Taylor)

A maioria das pessoas não consegue distinguir entre o que ama e o que deveria amar.

(David de Bruyn)

A oração toma por certa a soberania de Deus. Se Deus não é soberano, não temos certeza de que Ele é capaz de responder às nossas orações. Nossas orações se tornariam nada mais que desejos. Mas, enquanto a soberania de Deus, juntamente com Sua sabedoria e Seu amor, são o fundamento de nossa confiança Nele, a oração é a expressão dessa confiança.

(Jerry Bridges)

Quando eu estava no Tibete, vi um monge budista que viveu por cinco ou seis anos em uma caverna. Quando entrou na caverna, ele tinha uma boa visão. Mas, por ter ficado tanto tempo na escuridão, seus olhos foram ficando cada vez mais fracos e, por fim, ele ficou cego. É a mesma coisa conosco. Se não usarmos as bênçãos que recebemos de Deus para Sua glória, corremos o risco de perdê-las para sempre.

(Sundar Singh)

Cem pessoas religiosas unidas por organizações cuidadosas constituem uma igreja tanto quanto onze homens mortos formam um time de futebol. O primeiro requisito é a vida, sempre.

(A. W. Tozer)

Uma das marcas especiais do Espírito Santo na Igreja Apostólica foi o espírito de ousadia.

(A. B. Simpson)

Eu sou o Senhor; este é o Meu nome; a Minha glória, pois, a outrem não darei, nem o Meu louvor às imagens de escultura.

(Is 42.8)

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Biografia Robert Murray MacCheyne Testemunho

Robert Murray McCheyne, o homem que não era como os demais

Era inverno. Sentados próximo ao fogo, dois pedreiros estavam dedicados a sua tarefa. De repente, um desconhecido aproximou-se deles, desceu do cavalo e, imediatamente, passou a conversar sobre o estado espiritual da alma deles. Servindo-se das vivas chamas da fogueira como ilustração, o jovem desconhecido pregou verdades alarmantes. Com profunda surpresa, os pedreiros exclamaram: “Você não é um homem como os demais!” Ao que o desconhecido — que era Robert McCheyne — respondeu: “Eu sou, simplesmente, um homem como os demais”.

Parece que, tanto a leitura dos sermões de McCheyne quanto de sua biografia, fazem brotar do coração do leitor a mesma exclamação dos pedreiros: que, certamente, Robert McCheyne não foi um homem como os demais. Seu ministério, certamente muito breve, tornou-se uma das luzes mais brilhantes do evangelho na Escócia. Pureza doutrinária e fervor evangélico impregnaram por completo a pregação desse grande servo de Deus. Em McCheyne encontramos aquela característica tão sublime — e muito rara, infelizmente — de uma harmoniosa correspondência entre pregação e vida. A vida de McCheyne, que alguém definiu como “um dos mais belos exemplos da obra do Espírito Santo”, foi caracterizada por um alto grau de santidade e consagração.

Nascimento e infância

Robert Murray McCheyne nasceu em Edimburgo em 29 de maio de 1813, numa época em que os primeiros resplendores de um grande ressurgimento espiritual tinham lugar na Escócia. Entre os preparativos secretos com que Deus contava para derramar sobre Seu povo dias de verdadeiro e profundo refrigério espiritual se achava o nascimento do mais jovem dos cinco filhos de Adam McCheyne.

Já desde a infância, Robert deu mostras de possuir uma natureza doce e afável, ao mesmo tempo em que todos podiam apreciar nele uma mente ágil e uma memória prodigiosa. Com a idade de quatro anos, enquanto se recuperava de uma enfermidade, Robert fez do estudo do hebraico e do grego seu passatempo favorito. Com oito anos, ingressou na escola superior para passar, anos mais tarde, para a Universidade de Edimburgo. Em ambos centros de ensino, distinguiu-se como estudante privilegiado, de forma especial nos exercícios poéticos. Ele é descrito como tendo boa estatura, cheio de agilidade e vigor, ambicioso, ao mesmo tempo em que era nobre em sua disposição, evitando qualquer forma de engano em sua conduta. Alguns consideravam que ele possuía, de forma inata, todas as virtudes do caráter cristão; mas, segundo seu próprio testemunho, aquela pura moralidade exterior por ele exibida nascia de um coração farisaico e, exatamente como muitos de seus companheiros, ele se empenhava para encher sua vida de prazeres mundanos.

Morte do irmão

A morte de seu irmão David causou uma profunda impressão em sua alma. Seu diário contém numerosas alusões a esse fato. Anos mais tarde, escrevendo a um amigo, Robert disse: “Ora por mim, para que eu possa ser mais santo e mais sábio, menos como eu mesmo sou e mais como meu Senhor é […] Hoje faz sete anos que perdi meu querido irmão, mas comecei a encontrar o Irmão que não pode morrer”.

A partir desse fato, sua terna consciência despertou para a realidade do pecado e das profundezas de sua corrupção. “Que infame massa de corrupção eu tenho sido! Vivi uma grande parte de minha vida completamente separado de Deus e para o mundo. Entreguei-me completamente ao gozo dos sentidos e às coisas que perecem ao meu redor”.

Ainda que ele nunca tenha sabido a data exata de seu novo nascimento, jamais abrigou qualquer temor de que isso não houvesse ocorrido. A segurança de sua salvação foi algo característico de seu ministério, de modo que sua grande preocupação foi, em todo tempo, obter uma maior santidade de vida.

Estudos e piedade pessoal

No inverno de 1831, iniciou seus estudos na Divinity Hall, onde Thomas Chalmers era professor de Teologia, e David Welsh o era de História Eclesiástica. Com outros companheiros — Edward Irving, Horatius e Andrew Bonar (que, mais tarde, escreveu sua biografia) — e fervorosos amigos, Robert McCheyne se reunia para orar e estudar a Bíblia, especialmente nas línguas originais. Quando o Dr. Chalmers foi informado do modo simples e literal como McCheyne esquadrinhava as Sagradas Escrituras, não pode senão dizer: “Eu gosto dessa literalidade!” Verdadeiramente, todos os sermões deste grande servo de Deus são caracterizados por uma profunda fidelidade ao texto bíblico. Já neste período de sua vida, McCheyne dava mostra de um grande amor pelas almas perdidas e, junto com seus estudos, dedicava várias horas por semana à pregação do evangelho, tarefa que realizava quase sempre nos bairros pobres e mais baixos de Edimburgo.

Do mesmo modo que outros grandes servos de Deus, McCheyne tinha uma clara consciência da radical seriedade do pecado. A compreensão clara da condição pecadora do homem era para ele requisito imprescindível para fazer com que o coração sentisse a necessidade de Cristo como único Salvador e também era uma experiência necessária para uma vida de santidade. Seu diário dá testemunho de quão severo era no juízo que fazia de si mesmo. “Senhor, se nenhuma outra coisa pode livrar-me de meus pecados a não ser a dor e as provas, envia-mas, Senhor, para que eu possa ser livrado de meus membros carregados de carnalidade”. Mesmo nas mais gloriosas experiências do crente, McCheyne podia descobrir traços de pecado; por isso, disse em certa ocasião: “Até mesmo nossas lágrimas de arrependimento estão manchadas de pecado.”

Andrew Bonar escreveu sobre seu amigo nos seguintes termos: “Durante os primeiros anos de seus cursos no colégio, o estudo não chegou a absorver toda a sua atenção. Sem dúvida, tão logo começou a mudança em sua alma e isso também se refletiu em seus estudos. Um sentimento muito profundo de sua responsabilidade o levou a dedicar todos os seus talentos ao serviço do Mestre, de Quem os havia recebido. Poucos houve que, com tão completa dedicação, tenham-se consagrado à obra do Senhor como fruto de um claro conhecimento de sua responsabilidade”.

Enquanto fazia os cursos de Literatura e Filosofia, conseguia encontrar tempo para dedicar sua atenção à Teologia e à História Natural. Nos dias de sua maior prosperidade no ministério da pregação, quando, juntamente com sua alma, sua congregação e rebanho constituíam o centro de seus desvelos, com freqüência lamentava por não ter adquirido, nos anos anteriores, um caudal de conhecimento mais profundo, pois se havia dado conta de que podia usar as jóias do Egito para o serviço do Senhor. De vez em quando, os estudos anteriores evocariam em sua mente alguma ilustração apropriada para a verdade divina e precisamente no solene instante em que apresentava o evangelho glorioso aos mais ignorantes e depravados.

Apreço pelo estudo

Suas próprias palavras apresentam melhor sua estima pelo estudo e, ao mesmo tempo, revelam o espírito de oração que, segundo McCheyne, devia sempre acompanhá-lo: “Esforça-te em teus estudos”, escreveu a um jovem estudante em 1840. “Dá-te conta de que estás formando, em grande parte, o caráter de teu futuro ministério. Se adquirires agora hábitos de estudo marcados pelo descuido e a inatividade, nunca tirarás proveito do mesmo. Faz cada coisa a seu tempo. Sê diligente em todas as coisas; aquilo que valha a pena fazê-lo, faze-o com todas as forças. E, sobre todas as coisas, apresenta-te diante do Senhor com muita freqüência. Não tentes nunca ver um rosto humano enquanto não tiveres visto primeiro o rosto Daquele que é nossa luz e nosso tudo. Ora por teus semelhantes. Ora por teus professores e companheiros de estudo.” A outro jovem escreveu: “Cuidado com a atmosfera dos autores clássicos, pois ela é, na verdade, perniciosa; e tu necessitas muitíssimo, para contestá-la, o vento sul que se respira das Escrituras. É certo que devemos conhecê-los — mas da mesma forma como o químico experimenta as substâncias tóxicas — para descobrir suas qualidades e não para envenenar com eles teu sangue.” E acrescentou: “Ora para que o Espírito Santo faça de ti não somente um jovem crente e santo, mas para que te dê também sabedoria em teus estudos. Às vezes, um raio da luz divina que penetra a alma pode dar suficiente luz para aclarar maravilhosamente um problema de matemática. O sorriso de Deus acalma o espírito e a destra de Jesus levanta a cabeça do descaído, enquanto Seu Santo Espírito aviva os efeitos, de modo que mesmo os estudos naturais vão um milhão de vezes melhor e mais facilmente.”

As férias para McCheyne, assim como para seus amigos íntimos que permaneciam na cidade, não eram consideradas como uma cessação do que se refere aos estudos. Uma vez por semana, costumavam passar uma manhã juntos com o fim de estudar algum ponto da teologia sistemática, assim como para trocar impressões sobre o que haviam lido em particular.

Um jovem assim, com faculdades intelectuais tão incomuns, às quais se unia ainda o amor ao estudo e uma memória extraordinariamente profunda, facilmente teria se destacado no plano da erudição se não houvesse posto em primeiro lugar, e como meta mais importante, a tarefa de salvar as almas. Todos os talentos que possuía ele os submeteu à obra de despertar aqueles que estavam mortos em delitos e pecados. Preparou sua alma para a terrível e solene responsabilidade de pregar a Palavra de Deus, e isso ele fazia com “muita oração e profundo estudo da Palavra de Deus, com disciplina pessoal, com grandes provas e dolorosas tentações, pela experiência da corrupção da morte em seu próprio coração e pela descoberta da plena graça do Salvador.” Por experiência, ele podia dizer: “Quem é que vence o mundo, senão aquele que crê que Jesus é o Filho de Deus?” (1Jo 5.5).

Início do ministério pastoral

No dia 1º de julho de 1835, Robert Murray McCheyne obteve, do presbitério de Annan, licença para pregar. Depois de haver pregado por vários meses em diferentes lugares e ter dado evidência da particular doçura com que a Palavra de Deus fluía de seus lábios, McCheyne tornou-se o ajudante do pastor John Bonar nas congregações unidas de Larbert e Dunipace, nas cercanias de Stirling. Em sua pregação, fazia com que os outros participassem de sua vida interior, como de sua alma, à medida que crescia na graça e no conhecimento do Senhor e Salvador. Começava o dia muito cedo cantando salmos ao Senhor. A isso se seguia a leitura da Palavra para a própria santificação. Nas cartas de Samuel Rutherford, encontrou uma mina de riquezas espirituais. Entre outros livros que apreciava ler estavam: Chamamento aos inconversos, de Richard Baxter, e A vida de David Brainerd, de Jonathan Edwards.

Em novembro de 1836, foi ordenado pastor na igreja de São Pedro, em Dundee. Permaneceu como pastor dessa congregação até o dia de sua morte. A cidade de Dundee, como ele mesmo deixou escrito, “era uma cidade dada à idolatria e de coração duro”. Mas não havia nada em suas mensagens que buscasse o agrado do homem natural, pois não estava em seu coração buscar o beneplácito dos inconversos. “Se o evangelho agradasse ao homem carnal, então, deixaria de ser evangelho”. Estava profundamente persuadido de que a primeira obra do Espírito Santo na salvação do pecador era a de produzir convicção de pecado e de trazer o homem a um estado de desespero diante de Deus. “A menos que o homem seja posto no nível de sua miséria e culpa, toda a nossa pregação será vã. Somente um coração contrito pode receber a um Cristo crucificado.” Sua pregação era caracterizada por um elemento de declarada urgência e alerta. “Que Deus me ajude sempre a falar-vos com clareza. Mesmo a vida daqueles que vivem mais anos é, na verdade, curta. No entanto, essa vida curta que Deus nos deu é suficiente para que busquemos o arrependimento e a conversão, pois logo, muito logo, passará. Cada dia que passa é como um passo a mais em direção ao trono do juízo eterno. Nenhum de vós permanece imutável; talvez estejais dormindo; não importa, pois a maré do tempo que passa vos está levando mais para perto da morte, do juízo e da eternidade.”

A seu profundo amor pelas almas se somava uma profunda sede de santidade de vida. Escrevendo a um companheiro no ministério, disse: “Acima de todas as coisas, cultiva teu próprio espírito. Tua própria alma deveria ser o principal motivo de todos os teus cuidados e desvelos. Mais que os grandes talentos, Deus abençoa àqueles que refletem a semelhança de Jesus em sua vida. Um ministro santo é uma arma terrível nas mãos de Deus.” McCheyne talvez pregasse com mais poder com sua vida do que com suas mensagens, e ele sabia bem, como nos disse seu amigo Andrew Bonar, que “os ministros do Evangelho não só devem pregar fielmente, mas também viver fielmente”.

Como pastor em Dundee, McCheyne introduziu importantes inovações na congregação. Naquela época, as reuniões de oração, se não eram desconhecidas, eram muito raras. McCheyne ensinou aos membros a necessidade de congregar-se cada quinta-feira à noite a fim de unirem o coração em oração ao Senhor e estudar Sua Palavra. Também destinava outro dia durante a semana para os jovens. Seu ministério entre as crianças constitui a nota mais brilhante de seu ministério.

A seu zelo por santidade de vida uniu-se o afã por pureza de testemunho entre os membros de sua congregação. McCheyne era consciente de que a igreja — como parte do Corpo místico de Cristo — devia manifestar a pureza e a santidade Daquele que havia morrido para oferecer uma Igreja santa e sem mancha ao Pai. Por isso, seu zelo pela observância de disciplina na congregação: “Ao começar meu ministério entre vós, eu era em extremo ignorante da grande importância que na Igreja de Cristo tem a disciplina eclesiástica. Pensava que meu único e grande objetivo nesta congregação era o de orar e pregar. Vossa alma me parecia tão preciosa e o tempo se me apresentava tão curto que eu decidi dedicar-me exclusivamente com todas as minhas forças e com todo o meu tempo ao labor de evangelização e doutrina. Sempre que, diante de mim e dos presbíteros desta igreja, se nos apresentaram casos de disciplina, eu os considerava como dignos de aborrecimento. Constituíam uma obrigação diante da qual eu me encolhia. Mas agradou ao Senhor, que ensina a Seus servos de maneira muito diferente daquela usada pelos homens, abençoar — inclusive com a conversão — alguns dos casos de disciplina a nosso cuidado. Desde então uma nova luz se acendeu em minha mente: dei-me conta de que não somente a pregação era uma ordenança de Cristo, mas também o exercício da disciplina eclesiástica.”

Debilidade física

Enquanto o vigor e a força espirituais de sua alma alcançavam uma grandeza gigantesca, a saúde física de McCheyne se via minada e debilitada conforme transcorriam os dias. Ao final de 1838, uma violenta palpitação do coração, ocasionada por seus árduos labores ministeriais, obrigaram o jovem pastor a retirar-se para um descanso. E, como sua convalescença se processava em ritmo muito lento, um grupo de pastores, reunido em Edimburgo na primavera de 1839, decidiu convidar McCheyne a se unir a uma comissão de pastores que planejava ir a Palestina para estudar as possibilidades missionárias da Terra Santa. Todos criam que tanto o clima como a viagem redundariam em benefício para a saúde do pastor. Do ponto de vista espiritual, sua passagem pela Palestina se constituiu uma verdadeira bênção para a alma. Visitar os lugares que haviam sido cenário da vida e obra do bendito Mestre e pisar a mesma terra que um dia pisara o Varão de dores foi uma experiência indescritível para o jovem pastor. No entanto, fisicamente, o estado de McCheyne não melhorou; antes, pelo contrário, parecia que seu tabernáculo terrestre ameaça sofrer um desmoronamento total. E, assim, nos últimos dias de julho de 1839, encontrando-se a delegação missionária próxima de Esmirna, e já para regressar, McCheyne caiu gravemente enfermo. Quando tudo fazia pensar em uma rápida morte, o Senhor estendeu Sua mão curadora e o grande servo do evangelho pôde, por fim, regressar a sua amada Escócia e ao seu querido rebanho em Dundee.

Durante sua ausência, o Espírito Santo começou a operar um maravilhoso avivamento na Escócia. Este avivamento começou em Kilsyth sob a pregação do jovem pastor W. C. Burns, que havia substituído McCheyne enquanto durava sua convalescença. Num curto espaço de tempo, a força do Espírito Santo, que impulsionava o avivamento, se deixou sentir em muitos lugares. Em Dundee, onde os cultos se prolongavam até tarde da noite todos os dias da semana, as conversões foram muito numerosas. Era como se toda a cidade houvesse sido sacudida pelo poder do Espírito.

Em novembro do mesmo ano, McCheyne, recuperado da enfermidade, regressou a sua congregação. Os membros da igreja de São Pedro transbordaram de alegria ao ver de novo o rosto amado de seu pastor. A igreja estava absolutamente lotada e, enquanto todos esperavam que McCheyne ocupasse o púlpito, um silêncio absoluto reinava entre os que estavam ali congregados. Muitos membros derramaram lágrimas de gratidão ao rever o rosto do pastor. Mas, ao finalizar o culto e movidos pelo poder de sua pregação, muitos foram os pecadores que derramaram lágrimas de arrependimento.

O regresso de McCheyne a Dundee marcou um novo episódio em seu ministério e também na igreja escocesa. Era como se, a partir daquele momento, o Senhor se houvesse disposto a responder às orações que o jovem pastor elevara no princípio de seu ministério, suplicando por um avivamento. Ali, onde McCheyne pregara, o Espírito acrescentava novas almas à Igreja.

Doença e morte

Na primavera de 1843, quando McCheyne regressara de uma série de reuniões especiais em Aberdeenshire, caiu repentinamente enfermo. Lá ele havia visitado a vários enfermos de febre infecciosa, e sua constituição enfermiça e débil sucumbiu ao contágio da doença. No dia 25 de março de 1843 partiu para estar com o Senhor.

Túmulo de McCheyne

“Em todas as partes onde chegava a notícia de sua morte”, escreveu Bonar, “o semblante dos crentes se enchia de tristeza. Talvez não tenha havido outra morte que impressionasse tanto aos santos de Deus na Escócia como a deste grande servo de Deus que consagrou toda a vida à pregação do evangelho eterno. Com freqüência, ele costumava dizer: ‘Vivei de modo que, um dia, sintam de vós saudades’, e ninguém que houvesse visto as lágrimas que se verteram por ocasião de sua morte teria dúvidas em afirmar que a vida dele havia sido o que ele havia recomendado a outros. Não tinha mais do que 29 anos quando o Senhor o levou.

“No dia do enterro, foram suspensas todas as atividades em Dundee. Do lugar do velório até o cemitério, todas as ruas e janelas estavam abarrotadas de uma grande multidão. Muitas almas se deram conta naquele dia de que um príncipe de Israel havia caído, enquanto muitos corações indiferentes experimentaram uma terrível angústia ao contemplar o solene espetáculo.”

“O túmulo de Robert McCheyne ainda pode ser visto na parte nordeste do cemitério que circunda a igreja de São Pedro. Ele se foi para as montanhas de mirra e para as colinas de incenso, até que desponte o dia e fujam as sombras. Terminou sua obra. Seu Pai celestial não tinha para ele nenhuma outra planta para regar nem outra vide para cuidar, e o Salvador, que tanto o amou em vida, agora o esperava com Suas palavras de boas-vindas: ‘Bem está, servo bom e fiel. […] Entra no gozo do teu senhor’ (Mt 25.21).”

O ministério de Robert McCheyne não terminou com sua morte. Suas mensagens e cartas, e a biografia escrita por seu amigo Andrew Bonar, são ricos instrumentos de bênção para muitas almas.

 

(Publicado originalmente em 28.jul.2008; revisado, atualizado e republicado em 1.mar.2020.)

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