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Perseverança T. Austin-Sparks

Capítulo 2: Uma crise entre o que é terreno e o que é celestial


Leitura: Nm 13.1-3, 17-23, 27-33; 14.1-3.

Estamos considerando o fato e a natureza do caminho celestial. A Bíblia inicia com a criação e o governo dos céus, e termina com a revelação do céu por meio daquilo que ele formou de acordo com princípios celestiais: a cidade santa, a nova Jerusalém, descendo de Deus, do céu, cumprindo a palavra de Hebreus 11.16: “[Deus] já lhes preparou uma cidade.”

O conflito entre o que é terreno e o que é celestial

Relembremos que uma característica de cada estágio do Antigo Testamento é o choque e contraste entre dois mundos, entre duas ordens: a ordem celestial e a ordem terrena. Temos esse elemento ao longo de todo o registro do Antigo Testamento: o céu desafia este mundo e apreende um objeto neste mundo; a partir daí, esse objeto é retirado do mundo e começa a ser constituído de acordo com a natureza e a ordem celestiais. Não é necessário um conhecimento muito profundo do Antigo Testamento para confirmar isso. Ao repassarmos rapidamente sua história, perceberemos que estamos diante de um constante choque, um conflito, um conflito entre o céu e a terra. O céu não está satisfeito com este mundo – muito pelo contrário. O céu é contrário a tudo o que está aqui, e tenta retirar o que puder deste mundo para reconstituir de acordo com seus próprios padrões. Então, apesar de vislumbrarmos a oposição e o desafio do céu, vemos, ao mesmo tempo, desde o início, o céu tomando pessoas, tanto indivíduos como uma nação, com o objetivo de separá-los do mundo, apesar de residirem nele. A partir desse chamado, um processo profundo é iniciado, visando torná-los um tipo, uma espécie de pessoas completamente diferentes das demais; apreendendo-as, em outras palavras, para propósitos celestiais.

Os homens do Antigo Testamento foram os pioneiros do caminho celestial. Já vimos um pouco do que isso envolve, mas é sobre esse ponto em particular que queremos focar nossa ênfase agora. O fato não é apenas que existe um caminho celestial que é diferente, pois sabemos no coração, se nascemos do alto e temos aprendido nesse caminho, que o caminho do céu é diferente dos demais. Mas nosso ponto focal será o pioneirismo que envolve trilhar esse caminho celestial. Esse pioneirismo representa ser chamado a um relacionamento com o céu para abrir caminho, tomar posse e tornar possível que a intenção plena de Deus seja compreendida, interpretada. Esse ministério é dirigido para outros que seguirão por esse mesmo caminho. Já mencionamos que, em certo sentido, todo aquele que nasce do alto é um pioneiro, porque esse caminho é sempre pessoal e intransferível; ninguém pode trilhar esse caminho no lugar de outrem. Nesse momento, trataremos do aspecto vocacional relacionado a isso.

Não há dúvida de que a maioria dos filhos do Senhor sabe pouco, muito pouco, sobre o caminho celestial. O cristianismo organizado se tornou preponderantemente terreno, adotando padrões, conceitos e recursos terrenos, tornando-se consequentemente muito limitado espiritualmente. Este mundo é uma coisa muito, muito pequena, se comparado com os céus. Digo isso espiritual e ilustrativamente. O reino dos céus é vasto, muito maior do que qualquer concepção humana. Os pensamentos de Deus são amplos como os céus em seu alcance, muito mais elevados que os pensamentos da terra; ultrapassam todas as concepções terrenas. Enquanto não sairmos da esfera terrena não perceberemos que, por um lado, somos miseravelmente pequenos e, por outro, que existe um reino muito maior, e que podemos nos mover espiritualmente nele. A grande, grande necessidade de nosso tempo é que o povo de Deus, a Igreja de Deus, chegue à sua verdadeira posição celestial, possuindo visão e vocação celestiais.

Bem, existe muita coisa envolvida nessa declaração, mas, resumidamente, ela significa que alguém, algumas pessoas, deverá ser pioneiro no caminho de trazer a Igreja de volta à esfera inicial de sua concepção que foi perdida quando ela sucumbiu à persistente tendência direcionada à terra. Por isso, um instrumento pioneiro se faz necessário, e o caminho que ele deve seguir envolve um alto preço.

Reafirmo que os homens do Antigo Testamento foram os pioneiros do caminho celestial. Isso é explicitamente afirmado pelo escritor nesta carta aos hebreus, particularmente na passagem referida. A terra não pode prover nada que atenda aos padrões e ao fundamento do céu. Uma das grandes palavras-chave do Antigo Testamento é “santificar”, que significa “separar, tornar santo, consagrar”, que se refere em sua essência a algo espiritual e interior, que provoca uma divisão entre o céu e a terra. Deus dividiu, separou essas duas coisas, e essa separação deve ocorrer de forma espiritual, interiormente, também. Vemos, então, que esses homens do Antigo Testamento foram separados neste sentido: algo foi feito no âmago de seu ser que os separou deste mundo, colocando-os em um caminho que era totalmente diferente dos caminhos terrenos e a eles contrários. Se aqueles homens chegavam a tocar esta terra quando estavam sob pressão e tensão, fosse por engano, inadvertidamente, consciente ou inconscientemente, ficavam atrapalhados. Imediatamente percebiam em seu interior que estavam fora do caminho, e a única coisa a fazer era retornar. Isso é repetido diversas vezes no relato bíblico. O céu testemunhava contra a posição deles, eles estavam em problemas. Só depois de retornarem ao curso correto poderiam prosseguir. Aquelas pessoas estavam sendo governadas por outro padrão, e quão diferente e difícil de entender era esse padrão!

Considere Caim e Abel. Do ponto de vista deste mundo, o procedimento de Caim foi muito válido. Na ótica do homem religioso deste mundo, é difícil ver o que estava errado com Caim ou muito certo com Abel, ou quão absolutamente certo e quão absolutamente errado cada um deles estava. No entanto, vemos como Abel estava absolutamente certo quanto a isso. Um deles conseguiu tocar o céu. Isso é um fato. Abel tocou Deus e o céu, e Caim estava diante de um céu fechado e da rejeição de Deus.

Mas qual é o padrão? Apenas a diferença entre o céu e a terra. A base e o padrão para acesso ao céu é totalmente diferente do terreno – diferente mesmo do que há de religioso na terra. O homem religioso pode ter o mesmo Deus, adorar o mesmo Deus, trazer sua oferta para o mesmo Deus, e ainda assim não conseguir um caminho para o céu, na estrada celestial. O céu tem seus próprios padrões, bases e provisões, e a terra não pode encontrá-los ou produzi-los, pois é diferente do céu. Esse é o fato que enfrentamos quando se trata de tocar o céu. Não me refiro a uma localização geográfica, mas falo de tocar Deus, de encontrar um caminho aberto para o céu. Só é possível chegar ali com a provisão originada pelo próprio céu, e isso transtorna todos as nossas estimativas naturais. Precisamos de algo que a natureza não pode produzir. Se você, como Caim, raciocinar de acordo com a razão religiosa e tomar essa base, não chegará a lugar nenhum. “Pela fé Abel ofereceu a Deus maior sacrifício do que Caim, pelo qual alcançou testemunho de que era justo, dando Deus testemunho dos seus dons, e por ela, depois de morto, ainda fala” (Hb 11.4). Vemos aí uma atestação do céu.

Não estou tratando da natureza e de todos os detalhes dessas coisas, apenas aponto para um fato: que os padrões e os julgamentos celestiais são absolutamente diferentes dos terrenos. Ficaremos totalmente confundidos se tentarmos tocar o céu, ainda que utilizemos artifícios religiosos para isso. Nicodemos pode ser a representação perfeita do sistema religioso, e, ainda assim, não chegou a lugar algum no que diz respeito ao céu. O céu estabeleceu seu próprio meio de acesso, e precisaremos dele para chegar lá. Você pode questionar mil vezes “por quê?”, mas é o fato.

Pioneiros são líderes

Vamos retornar ao texto que lemos em Números. Registra a ocasião em que os espias foram enviados, e o ponto focal desse registro está sobre dois homens: Josué e Calebe. Notemos que os doze cabeças das cadas paternas, príncipes em Israel (um termo cheio de significado), eram homens tipicamente representativos. Eles foram chamados para serem os pioneiros do caminho celestial. O princípio de sua liderança e de sua realeza estava centrado em serem pioneiros, pois esse é o princípio do pioneiro. Se formos verdadeiros pioneiros, seremos líderes, teremos um caráter de príncipes. Todavia, apenas dois deles justificaram seu chamamento, tornando-se aquilo que todos os outros deveriam ter sido: pioneiros. Muitas vezes, é isto que ocorre: a minoria, uma minoria muito destacada, faz o trabalho. Os outros têm o nome, mas não fazem jus a ele; os outros têm uma posição oficial, mas não vivem de acordo com ela. A questão principal é: onde a coisa está sendo feita? Ali estavam Josué e Calebe.

Uma conexão com o passado

Vamos tomar um tempo considerando o significado destes dois homens: Josué e Calebe. Para começar, vamos considerá-los como um elo com o passado. A intenção original de Deus que eles adotaram remetia à aliança divina com Abraão, de modo que em Josué e Calebe vemos Abraão posto muito em evidência. Somos compelidos a olhar para trás e reavaliar o significado de Abraão, à luz da posição tomada por esses dois, uma vez que o momento em que Josué e Calebe surgiram era crítico, a hora de uma crise muito grande. A questão suprema era: o propósito de Deus seria ou não cumprido naquele povo? Essa pergunta é extremamente relevante; uma verdadeira crise veio à tona. E Josué e Calebe foram o fator decisivo.

Vemos três características de Abraão manifestadas nessa situação.

Uma semente espiritual e celestial

Em primeiro lugar, vemos uma semente espiritual e celestial. Retenhamos isto: uma semente espiritual e celestial. Hoje estamos em uma posição muito vantajosa. Temos a compreensão do pleno significado de Abraão por meio da instrução do Espírito Santo. Temos o Novo Testamento, e nele temos tudo o que é dito a respeito do patriarca. O apóstolo Paulo nos apresenta uma revelação completa disso no Novo Testamento; não precisamos voltar ao Antigo Testamento para obter conhecimento, podemos ver o pleno sentido de Abraão agora no Novo Testamento que temos em mãos. Quanto a isso, recebemos muita luz adicional.

Uma semente espiritual e celestial. Perceba essa semente espiritual e celestial em Josué e em Calebe, percebam como eles apontam para ela. No entanto, temos outra semente de Abraão que não é espiritual nem celestial, pois desceu à terra. Vemos no registro de Números 13 e 14 as reações do povo, tão grosseiras, tão terrenas, totalmente carentes de visão, vida e aspiração espirituais! Aquelas pessoas foram inteiramente influenciadas pelo terrenal, pela visão natural, pelas coisas visíveis como dificuldades, pessoas e montanhas. A conclusão delas foi que não havia solução. Para Josué e Calebe, as montanhas eram um caminho, não um obstáculo. Havia um caminho celestial. Mas os outros não viram nada disso; eles eram terrenais.

O pensamento de Deus em Abraão, que fica claro para nós no Novo Testamento, era obter uma semente celestial e espiritual.

Uma semente especial

Será que podemos receber mais luz em relação a essa semente? Essa semente era algo especial, exclusivo. Paulo afirma isso em sua Epístola aos Gálatas. “Ora, as promessas foram feitas a Abraão e à sua descendência. Não diz: E às descendências, como falando de muitas, mas como de uma só: E à tua descendência, que é Cristo” (3.16). Aquela semente era singular. Um ponto importante era que Abraão estava inseparável e exclusivamente ligado a Sara. Naquela época, era permitido ao homem ter mais de uma esposa, mas Deus restringiu Abraão à Sara. Quando estava sob pressão, Abraão tentou uma solução alternativa com Agar, mas, como já mencionei, aquela foi uma falha, um deslize, um erro, uma tolice cometida durante um período de severa provação, pressão e coação. Naquele momento Abraão abandonou o caminho celestial e o resultado foi lastimável – a história lamenta isso até hoje. Abraão precisou retornar para Sara. Deus não permitiria outra opção, pois aquele assunto era peculiar e exclusivo. Sua realização não se daria por meio de Agar e de ninguém mais, mas exclusivamente dentro do caminho proposto pelo Senhor.

Nascimento e sustento sobrenaturais

Aquela semente trazia consigo as marcas do celestial. Seu nascimento foi sobrenatural, pois era absolutamente impossível que ocorresse pelas linhas naturais. A semente era Isaque, que representava uma limitação, pois Abraão dependia de uma intervenção do alto para gerar esse filho. Isaque não teria sido trazido à existência se o céu não tivesse assumido a situação. Deus foi muito específico a esse respeito. Por vezes, para compreender a importância que a coisa certa tem para Deus, Ele nos permite ver quão terrível é a coisa errada. Deus não permite que um erro, que um deslize nosso simplesmente passe desapercebido. Às vezes seremos atormentados até o fim da vida pelas consequências de nossas escolhas erradas. Deus permitirá isso para que vejamos com clareza que o caminho certo é muito importante; ele não é só uma opção. O caminho precisa ser celestial, e qualquer alternativa não será tolerada como se ela não fizesse diferença. Descobrimos que isso de fato importa, como aconteceu no caso de Isaque. Se o céu não fizer esse milagre, nada acontecerá, pois esse é o caminho celestial. Como precisamos aprender, e estamos aprendendo, sobre esse princípio! Isso explica muitos acontecimentos de nossa vida. Deus nos tem em Suas mãos.

O princípio de morte e ressurreição

Além de Isaque ter sido um produto celestial, fruto de uma intervenção dos céus, por meio de um milagre, Deus ainda foi mais longe quando pediu a oferta dele como sacrifício. Ainda que seu nascimento tivesse sido miraculoso, por meio de um ato direto dos céus, algo mais precisava acontecer: Isaque deveria morrer e ressuscitar dos mortos. Esse poderoso ato de Deus precisaria ocorrer e referendar tudo isso. A afirmação de Paulo em Romanos 1.4: “Declarado Filho de Deus em poder, segundo o Espírito de santificação, pela ressurreição dos mortos”, poderia ser traduzida “homologado Filho de Deus […] pela ressurreição”. Isto é o que Isaque representa: algo aprovado, homologado, referendado pelos céus.

Esse fato explica muito de nossa particular história espiritual. Não apenas nascemos de novo por meio de um milagre e da intervenção do céu, mas isso tem sido continuamente homologado pelo céu. Deus demanda que sejamos sustentados pela vida de ressurreição, e para saber o que é essa vida precisaremos conhecer um pouco do que é a morte. Deus nos sustenta em uma base celestial. Este é o significado de Isaque: não fomos apenas colocados sobre uma base celestial, mas somos sustentado nessa posição por constantes manifestações de ressurreição, em momentos em que somente a ressurreição pode resolver a situação.

Afinal, independente de como foi o início de nossa vida cristã – ainda que tenhamos tido uma experiência maravilhosa de conversão, e tenhamos registrado em um caderno quando e onde isso aconteceu –, essa experiência precisa ser ratificada continuamente pela manifestação da ressurreição. Precisaremos ser sustentados nesse terreno. Esse é o caminho do pioneiro. Esse pioneirismo no caminho celestial é conhecer vez após vez o significado da morte e suas terríveis consequências, a fim de saber o verdadeiro significado da ressurreição e sua grandiosidade. Esse é o caminho pioneiro, que foi seguido inicialmente pela Igreja, por muitos filhos de Deus e onde muitas revelações divinas sobre ele foram concedidas. Foi dessa maneira que o caminho celestial foi preservado vivo e longe da “podridão” [cf. Os 5:12] das coisas terrenas que sempre tentam minar a vida cristã. Sabemos quanto isso é verdade.

Abraão progressivamente descobriu que sua verdadeira herança estava no céu. Considero maravilhoso este aspecto da vida e da experiência de Abraão sob a mão de Deus: que ele, sem dúvida, quando iniciou sua jornada de obediência, interpretou as promessas do Senhor de forma terrena e limitada. Certamente ele imaginava que aquelas promessas se cumpririam dentro de suas expectativas racionais e tangíveis, mas, quanto mais o tempo passava e sua vida se desenrolava, mais Abraão se dava conta de que as coisas não aconteceriam dentro de suas concepções, e que tudo aquilo se referia a algo superior e diferente de sua idéia original. Ele prosseguiu, e mais adiante vemos que foi incluído no registro de Hebreus 11: “Todos estes morreram na fé, sem terem recebido as promessas; mas vendo-as de longe […] Mas agora desejam uma melhor, isto é, a celestial” [vv. 13,16]. A primeira impressão que Abraão teve do chamado inicial de Deus: “Eu o levarei a um país” (cf. Gn 12.1), pode ter sido atrelada a algo terreno, mas, por fim, ele percebeu que não se tratava disso. Pelas palavras do Senhor Jesus, sabemos que a visão e a percepção de Abraão foram alargadas: “Abraão, vosso pai, exultou por ver o meu dia, e viu-o, e alegrou-se” (Jo 8.56). “Mas vendo-as de longe”. Paulo também reforça isso em sua Epístola aos Gálatas, ao afirmar: “Não diz: ‘E às descendências’, como falando de muitas, mas como de uma só: ‘E à tua descendência’, que é Cristo” [3.16]. Cristo era a resposta para tudo que se relacionava à herança de Abraão.

Mas Cristo, o Cristo celestial, é a encarnação de tudo o que é celestial. Não conhecemos a Cristo segundo a carne; Ele é essencialmente celestial. Podemos ver a natureza celestial dessa semente, e podemos reunir tudo isso em Josué e Calebe. Quem herdará, prosseguirá e possuirá a herança? Certamente não será essa multidão de pessoas que tem uma mentalidade terrena e está arraigada a essa terra. Aqui mesmo elas perecerão: a terra se tornará sua prisão e sepultura. Essas pessoas serão substituídas por uma geração com uma nova constituição – representada por Josué e Calebe, as primícias de uma nova geração – que possuirão a herança [cf. Nm 14.29-32]. Eles foram os pioneiros do caminho e da plenitude celestiais. Mas como precisaram sofrer por isso! “Toda a congregação disse que os apedrejassem” (v. 10). O pioneirismo é sempre um caminho que envolve sofrimento e um alto preço, e isso não apenas entre as pessoas do mundo, mas também entre aqueles que atendem pelo nome de povo de Deus.

Os pioneiros desse caminho sempre serão como uma semente celestial, e sua constituição celestial será continuamente homologada pela necessidade de repetidas intervenções do céu para possibilitar que tenham liberação, libertação e progresso. Esse é o processo da vida espiritual. Se o céu não interviesse a nosso favor teríamos parado, não avançaríamos, de fato seríamos aniquilados se Deus não tivesse ratificado este fato: pertencemos ao céu. E Ele continua ratificando isso.

Podemos ver claramente como tudo isso é cumprido em Cristo, a Semente Celestial. Seu nascimento aconteceu por meio de uma intervenção do céu, um milagre. No Seu batismo, o céu irrompeu novamente, atestando: “Este é o meu Filho amado” [Mt 3.17]. E o que diremos a respeito de Sua Cruz? Ela não se parece muito com uma intervenção do céu. Mas espere um pouco: não se esqueça que o Novo Testamento nunca se refere apenas ao aspecto da morte, ao mencionar a Cruz de Cristo. No Novo Testamento, a Cruz tem dois lados gêmeos: morte, ressurreição. “A este que vos foi entregue pelo determinado conselho e presciência de Deus, prendestes, crucificastes e matastes pelas mãos de injustos” (At 2.23,24). O mundo fez tudo o que podia contra Ele, usou todas as suas armas. Os poderes do mal exauriram suas forças. O que mais poderia ser feito? Então, o céu entrou em cena, despojando esses poderes e ressuscitando a Jesus: ratificando assim que Ele pertencia ao céu, e não a este mundo. O Senhor Jesus não era propriedade, nem brinquedo do mundo e dos poderes malignos que o governam. Ele pertence ao céu, e o céu interveio, não apenas O levantando, mas também O conduzindo para as alturas, acima deste mundo, sujeitando tudo a Seus pés [cf. Ef 1.19-22; Cl 2.15].

A história espiritual do Senhor Jesus é a história espiritual do pioneiro do caminho celestial. O Senhor é o Pioneiro, conforme registrado na Epístola aos Hebreus: “Penetra até ao interior do véu, onde Jesus, nosso precursor, entrou por nós” (6.19,20).

Uma conexão entre fracasso e realização

Enquanto vislumbramos os aspectos demonstrados em Josué e Calebe, que podem ser diretamente ligados a Abraão, ainda temos outro ponto a considerar antes de encerrar. Eles foram pioneiros, como Abraão, e foram um elo entre o fracasso e a realização. Contemple o mundo no tempo em que “o Deus da glória apareceu a nosso pai Abraão” (At 7.2), em Ur dos caldeus. Se buscar ali alguma coisa que seja do céu, onde encontrará? Onde podemos encontrar o propósito de Deus de obter algo celestial? Parece que isso mais uma vez desapareceu. Não parece existir nenhum testemunho deste pensamento celestial de Deus: um povo celestial, um testemunho celestial, algo que representasse e expressasse o pensamento dos céus. Onde encontraremos isso? “O Deus da glória apareceu a nosso pai Abraão”, e esse homem se tornou o elo entre o fracasso e a realização.

Josué e Calebe assumiram essa posição. Temos a história do fracasso no deserto. Onde veremos aquilo que é celestial em meio a esse fracasso? Para eles, onde está o propósito de Deus? Deus não desistiu. Pode parecer que Seu propósito tenha quase desaparecido, e isso tem ocorrido repetidas vezes. Todavia, o céu interveio e assegurou um elo entre o fracasso na terra e o triunfo do céu. Esse elo é o pioneiro. O Senhor precisa ter um instrumento como esse para enfrentar o fracasso e possibilitar mais uma vez a abertura do caminho celestial para a realização.

Você provavelmente se pergunta: “O que isso tem a ver comigo?”, e afirma: “Sim, são idéias maravilhosas, vejo que é uma verdade e que está bem clara na Bíblia, mas como isso me afeta?” O fato é que ela afeta. Algumas pessoas não gostam de meditar muito de maneira crítica a respeito de uma situação, e, independente do que for dito a esse respeito, falando de maneira bem geral, ainda assim o Senhor terá espaço para algo valioso na terra. A grande necessidade dos cristãos hoje é serem restaurados ao pleno propósito celestial de Deus, pois se envolveram com coisas diferentes e inferiores, contentando-se com menos. Isso sempre aconteceu. Foi por essa razão que a maior parte do Novo Testamento foi escrito. O povo do Senhor está sempre em perigo de agir assim. Quando os cristãos gravitam espiritualmente em torno deste mundo, acabam, de alguma forma, perdendo seu testemunho celestial. Sempre haverá uma pressão para baixo, e o Senhor precisa de pessoas com visão, que se tornarão como aquelas pessoas mencionadas em nossa última meditação, para quem o centro de gravidade da vida foi transferido deste mundo para o céu, nas quais há essa percepção. Independente de possuírem ou não a capacidade de interpretar ou de estabelecer um sistema de verdades, de doutrinas ou de ensino bíblico a esse respeito, existirá a percepção de que a vida está atrelada a um destino grandioso e superior àquilo que este mundo pode prover. Essas pessoas foram capturadas por algo que só podem traduzir como um chamamento celestial, o qual as sustêm.

Vamos aprofundar isso mais adiante. O Senhor precisa de um povo assim, que simplesmente não pode se satisfazer com as coisas como elas são. Não se trata apenas de uma questão da mente, da razão, afinal. Algo aconteceu no interior essas pessoas; elas têm a consciência de que Deus fez algo. Por causa disso, elas estão comprometidas com algo muito superior às pobres coisas limitadas dessa vida e desse mundo. Elas foram ligadas interiormente a algo tremendo. Vou reiterar que essas pessoas terão consciência disso, ainda que não sejam capazes de pregar essa mensagem. Nunca seremos úteis para Deus além de nossa visão – visão essa forjada interiormente por Deus –, além de nossos próprios sentimentos. A medida de nossa visão determinará a medida de nossa utilidade. Oh, como seria bom haver uma medida incomensurável do céu no coração de um povo! Essa é a necessidade de nossos dias.

Concluo reafirmando que, embora o apóstolo fale tanto dessa vocação celestial, esse é um caminho muito difícil e repleto de todo tipo de dificuldade. Todavia, é o caminho real, verdadeiro e supremo, pois o céu é uma natureza, um poder, uma vida, uma ordem, e está destinado a encher este mundo e este universo.


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Samuel Rutherford Sofrimento Testemunho

Cartas de Samuel Rutherford (3)

Para Robert Cunningham[1]

De Irvine, Escócia, estando eu a caminho do “Palácio de Cristo” em Aberdeen, 4 de agosto de 1636

Consolo a um irmão em tribulação

Graça, misericórdia e paz estejam contigo. Por causa de nossa familiaridade em Cristo, pensei ser bom tomar a oportunidade de escrever a ti. Vendo que pareceu bem ao Senhor da colheita tomar as rédeas de tuas mãos por um tempo, e colocar sobre nós um serviço mais honorável, isto é, sofrer pelo nome Dele, seria bom nos consolarmos mutuamente em cartas. Tenho tido o desejo de ver-te face a face; contudo, sendo agora prisioneiro de Cristo, isso me foi tirado. Estou grandemente confortado por ouvir a respeito de teu firme espírito  de soldado por teu magnífico e real Capitão Jesus, nosso Senhor, e, pela graça de Deus, dos demais queridos irmãos contigo.

Minha própria privação do ministério

Ouviste de minha aflição, suponho eu. Agradou ao nosso doce Senhor Jesus deixar solta a malícia desses senhores interditados em Sua casa para privar-me de meu ministério em Anwoth, e confinar-me à distância de uns doze quilômetros de lá, em Aberdeen; e também (o que não foi feito a ninguém antes) proibir-me de falar no nome de Jesus dentro deste reino, sob pena de rebelião. O motivo que levantou o ódio deles foi meu livro contra os arminianos, de que me acusaram naqueles três dias em que me apresentei perante eles. Mas que reine nosso coroado Rei em Sião! Por Sua graça, a perda é deles, a vantagem é de Cristo e da verdade.

Cristo é digno de nosso sofrimento

Embora essa honrada cruz tenha ganho terreno sobre mim, e minha aflição e meus desafios interiores de consciência por um tempo tenham sido agudos, agora, para o encorajamento de todos vós, ouso dizer e escrever com minha mão:

“Bem-vinda, bem-vinda, doce, doce cruz de Cristo.”

Eu verdadeiramente penso que as cadeias de meu Senhor Jesus são todas cobertas de ouro puro, e que Sua cruz é perfumada, e que tem o aroma de Cristo, e que a vitória será pelo sangue do Cordeiro e pela Palavra de Sua verdade, e que Cristo, apoiado em Seus servos fracos e na verdade oprimida, cavalgará sobre o ventre de Seus inimigos e “ferirá os reis no dia da Sua ira” (Sl 110.5).

Será tempo de rirmos quando Ele rir; e, vendo que agora Lhe agrada assentar-se com os errados por um tempo, isso nos silencia até que o Senhor faça os inimigos desfrutarem do paraíso árido, seco e imprestável deles. Bem-aventurados são os que ficam contentes por sofrerem golpes com o Cristo que chora. A fé confiará no Senhor, e não é impetuosa nem obstinada. Tampouco a fé é tão tímida que favoreça a tentação, ou que venha a subornar ou a seduzir a cruz. É de pouca significância que o Cordeiro e Seus seguidores não obtenham garantia nem trégua com cruzes; é preciso que assim seja até que estejamos na casa de nosso Pai.

Caro irmão, ajudemo-nos uns aos outros com orações. Nosso Rei derrubará Seus inimigos, e Ele voltará de Bozra com Suas vestes tintas de sangue. E, para nossa consolação, Ele aparecerá e chamará Sua esposa de Hefzibá[2] e Sua terra, de Beulá[3] (Is 62.4); porque Ele se regozijará em nós, e nos desposará, e a Escócia dirá: “O que ainda tenho eu com os ídolos?” Sejamos, então, fiéis a Ele que pode cavalgar através do inferno e da morte com uma palha[4], e Seu cavalo jamais tropeça. E façamos a Ele uma ponte sobre águas, e assim Seu alto e santo nome seja glorificado em mim.

Golpes com a doce mão do Mediador são muito doces.

Ele sempre foi doce à minha alma; mas, desde que sofri por Ele, Seu hálito tem um aroma ainda mais doce que antes. Oh, que cada fio de cabelo de minha cabeça, e cada membro e cada osso de meu corpo fosse um homem a fazer uma verdadeira confissão para Ele! Penso que tudo seria muito pouco para Ele. Quando olho além dos limites e além da morte, para o lado sorridente do mundo, eu triunfo e cavalgo sobre os lugares altos de Jacó; contudo, por outro lado, sou um homem desfalecido, desanimado, covarde, muitas vezes derrubado, e faminto, aguardando a ceia das bodas do Cordeiro. Mesmo assim, penso no sábio amor do Senhor que nos alimenta com a fome e deixa-nos gordos de desejos e deserções.[5]


[1] Robert Cunningham, eminente ministro do evangelho em Holywood, Irlanda do Norte. Em 1636, ele e outros foram expulsos da Irlanda por prelatícios [defensores do prelado, do governo da igreja por bispos; episcopais]. Ele se estabeleceu em St. Irvine, no condado de Ayrshire (sudeste da Escócia). Morreu em março de 1637, quase oito meses depois que Rutherford lhe escreveu.
[2] Heb.: “meu prazer está nela”
[3] Heb.: “desposada”
[4] Metaforicamente, algo banal, insignificante.
[5] Fome e desejos pelas coisas celestiais e deserções quanto às coisas deste mundo.

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Citações Gotas de orvalho Vários

Gotas de orvalho (297)

Sempre que um homem se permite ter ansiedades, medos ou reclamações, ele deve considerar seu comportamento como uma negação da sabedoria de Deus ou como uma confissão de que está fora da vontade divina.

(William Law)

Não é para o homem brincar; a vida é breve, e o pecado está aqui. Não temos tempo para passar horas nos divertindo; tudo deve ser sério em um mundo como o nosso.

(Horácio Bonar)

Cheguei à conclusão de que nenhum de nós em nossa geração se sente tão culpado pelo pecado quanto deveria ou como nossos antepassados se sentiram.

(Francis Schaeffer)

Não consigo ver como merecedor de ser chamado de “santo” o homem que se permite deliberadamente estar em pecados e não se humilha e se envergonha por causa deles.

(J. C. Ryle)

A força pode fazer hipócritas, mas nunca pode fazer convertidos.

(William Penn)

As pessoas falam do sacrifício que fiz ao passar tanto da minha vida na África. É enfaticamente nenhum sacrifício. Em vez disso, diga que é um privilégio.

(David Livingstone)

Desde os dias de Pentecostes, toda a igreja em algum momento pôs de lado qualquer outra obra e esperou Nele por dez dias, para que o poder do Espírito pudesse ser manifestado? Damos muita atenção ao método, ao maquinário e aos recursos, e muito pouco à fonte de poder.

(Hudson Taylor)

Confio sempre,
com fervor,
em Quem
por mim morreu.

(Hinário cristão, 264)

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Samuel Rutherford Sofrimento Testemunho

Cartas de Samuel Rutherford (2)

Para John Kennedy1

Anwoth, Reino Unido, 2 de fevereiro de 1632

Livramento do naufrágio e da morte

Eu te saúdo com a graça, a misericórdia e a paz de Deus, nosso Pai, e de nosso Senhor Jesus Cristo. Ouvi com tristeza de teu grande perigo de perecer no mar, porém com alegria sobre teu misericordioso livramento. Com certeza, irmão, Satanás não deixará nenhuma pedra por rolar, como diz o provérbio, para rolar-te de tua Rocha, ou pelo menos abalar-te e instabilizar-te; pois, ao mesmo tempo, a boca dos ímpios estava aberta em duros discursos contra ti em terra, e o príncipe das potestades do ar estava zangado contigo no mar.

Então, veja como estás forçado por esse malicioso assassino que quer atingir-te com duas varas ao mesmo tempo. Mas, louvado seja Deus, que o braço de Satanás é curto: se o mar e os ventos lhe tivessem obedecido, tu nunca terias voltado à terra. Graças ao teu Deus que diz: “E tenho as chaves da morte e do inferno” (Ap 1.18). “Eu mato e faço viver” (Dt 32.39). “O Senhor é o que tira a vida e a dá; faz descer à sepultura e faz tornar a subir dela” (1Sm 2.6). Se Satanás fosse o carcereiro, e tivesse as chaves da morte e da sepultura, elas estariam guardadas com mais prisioneiros. Estiveste batendo nesses negros portões, e os encontraste fechados; e todos nós lhe damos as boas-vindas em teu retorno.

Preparo para a morte

Espero que saibas que não é sem razão que foste enviado a nós novamente. O Senhor sabia que tinhas esquecido algo que era necessário para tua viagem: que tua armadura ainda não estava suficientemente preparada contra o impacto da morte. Agora, na força de Jesus, termina teu trabalho; aquela dívida não está perdoada, mas adiada; a morte não te deu adeus, mas apenas te deixou por um pouco de tempo. Termina tua jornada antes que a noite venha sobre ti; mantém tudo em prontidão para a hora em que atravessarás o negro e impetuoso Jordão; e que Jesus, Jesus, que conhece tanto as profundezas como as pedras e todas as encostas, seja teu Piloto.

A última maré não esperará por ti nem por um momento; se esqueceres alguma coisa, quando teu mar estiver pleno, e teu pé estiver naquele barco, não haverá retorno para pegar o que esqueceste. O que fizeres de errado em tua vida hoje, podes modificar amanhã; pois tantos sóis Deus faz levantar sobre ti, tantas serão como que tuas novas vidas; e se tu estragares esse negócio, não poderás voltar para consertar aquela parte de teu trabalho novamente; nenhum homem peca duas vezes por morrer doente; como morremos apenas uma vez, morremos apenas uma vez, estando doentes ou saudáveis.

Tu vês como o número de teus meses está escrito no livro de Deus; e, como um dos servos do Senhor, precisas trabalhar até que a sombra da noite venha sobre ti, quando terminarás tua ampulheta até o último grão de areia. Cumpre tua jornada com alegria; pois nada levamos conosco para o túmulo, exceto uma boa ou má consciência. E, embora os céus clareiem após essa tempestade, as nuvens ainda preparam outra.

Função das provações

Tu pactuaste com Cristo, espero, logo que começaste a segui-Lo, que carregarias a Sua cruz. Cumpre tua parte do pacto com paciência, e não o quebre com relação a Jesus Cristo. Sê tu honesto, irmão, em tuas negociações com Ele; pois quem sabe mais sobre criar filhos que nosso Deus? Pois (deixando de lado Seu conhecimento, que não se pode sondar) Ele tem praticado criar Seus herdeiros nesses cinco mil anos, e Seus filhos são todos bem criados, e muitos deles são homens honestos agora no lar, lá em suas próprias casas no céu, e receberam a herança de seu Pai.

Agora, a forma de criá-los foi por castigos, flagelação, correção, acalento. Vê se Ele faz acepção de qualquer de Seus filhos (Ap 3.19; Hb 12.7,8). Não! Seu Filho mais velho e Seu Herdeiro, Jesus, não foi exceção (2.10). Sofrer é preciso; antes de nascermos, Deus o decretou; e é mais fácil reclamar de Seu decreto do que mudá-lo. É verdade, terrores de consciência nos derrubam, mas sem os terrores de consciência não podemos ser novamente erguidos. Temores e dúvidas nos abalam; mas sem temores e dúvidas logo adormeceríamos e não poderíamos nos agarrar a Cristo. Tribulações e tentações quase conseguem nos afrouxar a raiz; mas, sem tribulações e tentações, não podemos crescer assim com não crescem a relva ou o milho sem chuva. O pecado e Satanás e o mundo dirão, e gritarão em nosso ouvido, que temos um difícil acerto de contas a ser feito no juízo; contudo, nenhum desses três, exceto se mentirem, ousam dizer em nossa cara que nosso pecado pode mudar o teor do novo pacto.

Para frente, portanto, caro irmão, e não percas tua âncora. Segura firme a verdade.


1 John Kennedy, conselheiro de Ayr, cidade da Escócia, um cristão eminente, destacado em assuntos públicos durante os anos 1640. [Nota do editor original.]

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Citações Gotas de orvalho Vários

Gotas de orvalho (296)

Devemos aprender a viver no lado celestial e olhar para as coisas do alto. Contemplar todas as coisas como Deus as vê, como Cristo as observa, vence o pecado, desafia Satanás, dissolve as perplexidades, eleva-nos acima das provações, separa-nos do mundo e vence o medo da morte.

(A. B. Simpson)

A natureza da salvação de Cristo é lamentavelmente deturpada pelo evangelista atual. Ele anuncia um Salvador do inferno em vez de um Salvador do pecado. E é por isso que tantos são fatalmente enganados, pois há multidões que desejam escapar do lago de fogo, mas não desejam ser libertadas de sua carnalidade e de seu mundanismo.

(A. W. Pink)

É por causa da conversa apressada e superficial sobre Deus que o senso de pecado é tão fraco e que nenhum motivo tem poder para ajudar o pecador a odiar o pecado e a fugir dele como deveria.

(A. W. Tozer)

Deus teve um Filho na Terra sem pecado, mas nunca um sem sofrimento.

(Agostinho)

O pecado para um crente é horrível, porque crucificou o Salvador; o crente vê em cada iniqüidade os cravos e a lança.

(Charles Spurgeon)

Oração que não resulta em conduta pura é uma ilusão. Perdemos todo o trabalho e a virtude de orar se isso não corrigir a conduta. É da própria natureza das coisas que devemos ou parar de orar ou parar a má conduta.

(E. M. Bounds)

Se dissermos que temos comunhão com Ele, e andarmos em trevas, mentimos e não praticamos a verdade.

(1Jo 1.6)

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Perseverança T. Austin-Sparks

Capítulo 1: O fato e a natureza do caminho celestial

Todos estes morreram na fé, sem terem recebido as promessas; mas vendo-as de longe, e crendo-as e abraçando-as, confessaram que eram estrangeiros e peregrinos na terra. Porque, os que isto dizem, claramente mostram que buscam uma pátria. E se, na verdade, se lembrassem daquela de onde haviam saído, teriam oportunidade de tornar. Mas agora desejam uma melhor, isto é, a celestial. Por isso também Deus não se envergonha deles, de se chamar seu Deus, porque já lhes preparou uma cidade.

(Hb 11.13-16)

Um tempo antes dessas mensagens serem compartilhadas fui para o interior em busca de quietude e distanciamento, dirigindo meu coração para o Senhor e Sua Palavra. Certo dia, nas primeiras horas da manhã, foi como se os céus tivessem sido abertos e tudo tivesse se tornado claro, descortinando-se maravilhosamente em torno de um tema: “Pioneiros no caminho celestial”. Essas palavras resumem os versos que acabamos de citar. Enquanto vamos meditar e, talvez, compartilhar muito sobre o caminho celestial, meu principal foco será a questão do pioneirismo nessa jornada. Para tanto, é necessário iniciar nossa consideração um pouco extensa sobre o caminho celestial, mas reitero que essa impressionante questão do pioneirismo deve ser, a meu ver, o ponto central da mensagem. Acredito que esse seja o interesse central do Senhor neste momento, e deve ser o nosso.

A Terra relacionada ao céu

A Bíblia se inicia com os céus: “No princípio criou Deus os céus e a terra” (Gn 1.1). A ordem da criação não foi “a terra, então os céus”; os céus vieram em primeiro lugar. A Bíblia se encerra com a santa cidade, a nova Jerusalém, descendo de Deus do céu (Ap 21.2). Vemos no início e final da Palavra de Deus que tudo se origina do céu e se dirige novamente para lá. Todo o conteúdo restante das Escrituras obedece a esse princípio. Assim como aconteceu na esfera natural, ocorre na espiritual. O céu governa a terra e tudo que é terreno, e as coisas terrenas têm de responder às celestiais. O céu é o ponto de referência: tudo deve estar à sua luz, responder ao céu e ter sua origem ali. Essa é uma síntese da Palavra de Deus, o inteiro conteúdo das Escrituras.

Esse mundo, essa Terra, não está isolado, abandonado. Ainda que a Terra seja importante dentro dos arranjos divinos, não pode ser vista de forma separada, mas se relaciona ao céu e todo o seu sentido se deriva desse relacionamento. De fato, a Terra é um objeto de grande interesse celestial, pois talvez as coisas mais grandiosas do universo tenham tomado lugar aqui: Deus veio em carne, viveu, deu-se pelo mundo; o grande drama dos conselhos eternos se relaciona com a Terra. Ainda assim, devemos atentar para o fato de que seu sentido e sua importância estão atrelados a ela estar relacionada a algo maior que ela mesma: os céus.

A Bíblia nos ensina que é lá nos céus que Deus se encontra, conforme está escrito: “Deus está nos céus” (Ec 5.2). Aprendemos que existe um sistema, uma ordem suprema e verdadeira nos céus. No final de tudo, a consumação de todos os conselhos de Deus será, na Terra, uma reprodução da ordem celestial. Cristo desceu dos céus e para lá retornou. O cristão, como filho de Deus, nasce do céu e tem sua vida centrada ali. A vida do filho de Deus terá sua consumação no céu. A Igreja, a obra-prima de Deus, tem origem, chamamento e destino celestiais. Em todas essas coisas, e em muitas outras “o céu reina” (Dn 4.26). Tudo é governado por esse elemento do céu.

Filhos de Deus relacionados ao céu

Se somos filhos de Deus, então, toda a nossa educação e nossa história estão relacionadas aos céus. Esse assunto será tratado com mais detalhes adiante. No entanto, é importante afirmar, para que fique claro na compreensão de todos, que toda a nossa história e nossa educação como filhos de Deus estão relacionadas aos céus, e com digo isso não me refiro apenas a que vamos para o céu. Estamos relacionados ao reino dos céus por nascimento, por seu sustento a nós e por nossa eterna vocação. Toda a nossa educação, eu disse, está relacionada aos céus. Tudo o que temos de aprender está em saber como as coisas são feitas ali, como o Senhor disse ao afirmar: “Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu” (Mt 6.10). Quando o Senhor iniciou com “Pai nosso, que estás nos céus” [v. 9], ficou claro que esse fragmento da oração é muito abrangente, englobando toda a educação dos filhos de Deus. As coisas devem ser aqui como são no céu; mas se faz necessário passar por uma vida inteira de educação, um profundo e drástico treinamento para essa conformidade ao céu de fato acontecer.

A Bíblia dos cristãos do Novo Testamento era o Antigo Testamento. Quando lemos o Novo Testamento, como fazemos com frequência, vemos citações a respeito das Escrituras: “Para que se cumprisse o que foi dito” [Mt 1.22; 4.14; 8.17]; “Como está escrito” [Mc 7.6], fazendo referência ao Antigo Testamento. O Antigo Testamento era tudo o que os cristãos possuíam em termos de Escrituras, a única Bíblia dos primeiros cristãos que viveram nas primeiras décadas da história da igreja, pois eles ainda não tinham o Novo Testamento. Para eles, o Antigo Testamento era a Bíblia, e era tomado continuamente como fonte de consulta e como referência para exemplificar a experiência espiritual dos cristãos. Isso ocorreu na Epístola aos Hebreus, de onde extraímos nossa citação inicial. Essa carta está repleta de referências ao Antigo Testamento, do início ao fim. O Antigo Testamento era usado com frequência para ilustrar e demonstrar o sentido da vida espiritual de um cristão do Novo Testamento.

Uma peregrinação relacionada ao céu

O que encontramos no Antigo Testamento é uma peregrinação, ao longo de todo ele: uma peregrinação para o céu. Vamos voltar ao início do registro bíblico. A intenção Divina na criação foi que houvesse uma harmonia entre o céu e a Terra que possibilitasse a Deus estar nesse mundo com prazer, alegria, descanso, da mesma forma que Ele podia estar em Seu céu. Ele fez a Terra para Seu prazer, Ele a fez para Si mesmo, Ele a fez para visitá-la quando desejasse em total satisfação, descanso e alegria. Vemos, como primeira imagem diante de nós, a satisfação de Deus ao visitar o mundo que criou. Ele o moldou, foi feitura Sua, e é dito que Ele entrou no Seu descanso quando concluiu essa obra. Ele encontrou Seu descanso enquanto estava aqui, em Sua criação.

Entretanto, desde a tragédia da queda, os céus e a terra entraram em divergência, perdendo a harmonia. Esse mundo permanece em conflito com o céu; tudo na Terra mudou. No que diz respeito ao mundo, Deus não tem prazer em visitá-lo ou de estar aqui. Sua presença aqui é encontrada por meio de um testemunho, não mais em sua plenitude. Esse testemunho de Sua presença atesta que esse é Seu lugar de direito, que “do Senhor é a terra e a sua plenitude” (Sl 24.1) e que Ele tudo criou para Seu prazer. Mas Deus permanece aqui apenas por meio de um testemunho, como um sinal, que se faz necessário uma vez que Ele não mais está presente em Sua plenitude. Em um sentido muito real e amplo, Deus está fora desse mundo, e existe um conflito entre o céu e a Terra. Embora haja esse testemunho, o próprio testemunho está aqui e não está. Em certo sentido, o testemunho está fora, pois o próprio vaso que testemunha da presença de Deus não pertence a este mundo. Não existe aqui uma habitação permanente, uma cidade. Apesar de estar ‘dentro’, não ‘pertence’ a esse mundo, é um estrangeiro. Isso ocorre desde a queda.

Se atentarmos para a história individual ou corporativa dos instrumentos divinamente apreendidos para expressar esse testemunho, veremos uma história de pioneirismo espiritual em relação ao céu. Vocês compreendem isso? Vou enfatizar mais uma vez. Toda a história desses vasos, individuais ou corporativos, escolhidos e capturados por Deus para expressarem Seu testemunho, é o relato de pioneiros fazendo picadas, abrindo caminho, fazendo algo que é novo no que diz respeito ao mundo, conquistando terreno novo, inovando e fazendo descobertas relacionadas ao céu ― pioneiros na esfera celestial. Quanta história pode ser agregada nessa afirmação!

Para os pioneiros, o centro de gravidade é o céu

Vamos observar uma ou duas características dessa vocação para o pioneirismo. Primeiramente, aqueles que são chamados e capturados pelo céu para servir a um propósito celestial percebem que o centro de gravidade foi interior e espiritualmente mudado e transferido desse mundo para o céu. Há uma sensação profundamente arraigada de não mais pertencer a esse mundo, de que este não é nosso lugar de repouso, que não é nosso lar e não é mais nosso centro de gravidade. Não somos mais atraídos interiormente para o mundo. Uma sensação de conflito com o que está aqui, de haver uma divergência interior e de não poder aceitar o mundo permanece no espírito de um pioneiro. Repito: o centro de gravidade, interior e espiritualmente, foi transferido deste mundo para o céu. Essa é uma consciência inata, e é a primeira coisa nesse chamamento celestial, o primeiro efeito, o primeiro resultado de nosso chamamento do alto. Esse assunto será tratado mais adiante.

Podemos adotar isso como um teste. É claro que isso é verdadeiro até mesmo para o mais simples dos filhos de Deus. A primeira consciência de que alguém nasceu, verdadeiramente nasceu, do alto é percebida pela mudança em seu centro de gravidade. De uma forma ou de outra, interiormente, saímos de um mundo e entramos em outro. De uma forma ou de outra, as coisas com as quais éramos relacionados por nossa natureza não nos seguram mais: elas não são mais nosso mundo. Essa deve ser nossa consciência, e se isso não acontecer, existe algo bem duvidoso nessa profissão de fé no Senhor Jesus. O senso inato de um novo centro de gravidade deve crescer progressivamente ao ponto de se tornar cada vez mais impossível para nós aceitar esse mundo em qualquer aspecto. Mais uma vez afirmo que este é um teste para nosso progresso espiritual, de nossa peregrinação e de quanto avançamos nela. No entanto, isso, afinal de contas, ainda é algo elementar.

A esfera celestial é-nos desconhecida por natureza

Essa outra esfera, a respeito da qual recebemos a consciência em nosso coração, essa gravitação que se iniciou em nosso espírito, é um mundo absolutamente desconhecido da nossa natureza. Para a nossa natureza humana trata-se de um reino totalmente outro: diferente, nada familiar, inexplorado. Para cada indivíduo essa jornada corresponde a um mundo completamente novo que só pode ser conhecido por meio da experiência, independente de muitas pessoas já terem iniciado essa caminhada e terem nela permanecido por um longo tempo. Podemos extrair valores das experiências dos outros, e graças a Deus por isso, mas essas experiências não podem nos levar nem um passo adiante nesse caminho. Trata-se de um novo, completamente novo e estranho caminho para nós. Precisaremos aprender tudo a respeito dele, desde o início.

Isso torna o pioneirismo ― algo que o pioneirismo sempre foi ― um caminho solitário. Ninguém pode nos transmitir essa herança. Precisaremos conquistar nossa própria herança nesse mundo desconhecido e estranho, e isso vai demandar, basicamente, uma nova constituição de acordo com ele, capacidades que não há em nós pela natureza. Nenhum homem pode desvendar a Deus por meio de investigação (Jó 11.7) ― não temos essa capacidade. Isso precisa nascer em nós vindo do céu. Precisaremos descobrir isso tudo por nós mesmos. Precisaremos conhecer a Deus por nós mesmos, em cada detalhe da Sua disposição de se relacionar com o coração humano.

Podemos receber luz por meio de testemunhos, por meio das Escrituras; podemos também ser ajudados por conselhos, receber inspiração de outros que desbravaram esse caminho antes de nós. Todavia, em última análise, precisaremos tomar posse de nosso próprio terreno nesse país celestial; precisaremos conquistar, cultivar e explorar. Se você está seguindo esse caminho em sua vida espiritual, sabe do que estou falando, porque está precisando descobrir as coisas sozinho. Oh, como desejaríamos ter alguém que nos tomasse nos braços e nos delegasse o benefício de suas experiências! O Senhor nunca permitirá isso. Se estamos verdadeiramente e de fato prosseguindo na estrada celestial, se não apenas começamos e, então, desanimamos ou desistimos ao longo do caminho, somos todos pioneiros. Se formos pioneiros, poderemos compartilhar valores com outros, mas, em certo sentido, todos que estão nessa jornada precisarão fazer as próprias descobertas, e é melhor que seja assim. Em última análise, não existe nada de segunda mão na vida espiritual.

Pioneirismo repleto de custo e conflito

Chegamos à terceira característica desse pioneirismo. Todo o pioneirismo é repleto de custo e sofrimento. Como essa jornada, ou caminho, é espiritual, compreendemos que o preço a ser pago pelo pioneirismo será principalmente interior.

Perplexidade, sim, perplexidade. Li a tradução de uma mensagem do nosso irmão Watchman Nee, na qual ele afirmou: “No passado, eu tinha um conceito elevado a respeito da vida cristã imaginando que um cristão estar perplexo era absolutamente errado. Um cristão ser humilhado? Um cristão em desespero? Isso está totalmente errado; afinal, que tipo de cristão seria esse? Quando li as palavras de Paulo dizendo que estava perplexo, em angústia e desespero, isso se tornou um problema real para mim, considerando meu conceito daquilo que um cristão deveria ser. Então, por fim vi que não havia nada errado nisso” [cf. 2Co 4.8,9]. Sim, um cristão como o apóstolo Paulo perplexo, humilhado e em desespero. Esse é o caminho dos pioneiros.

Perplexo. Mas o que essa perplexidade implica? Ela implica a carência de faculdades ou habilidades para compreender o que se passa em determinada esfera a respeito da qual, no momento, não as temos. Encaramos algo que está além de nossa capacidade. Isso não quer dizer que ficaremos sempre perplexos na mesma medida em relação às mesmas coisas. Sairemos da perplexidade em determinado assunto e o entenderemos; todavia sempre encontraremos alguma medida de perplexidade, simplesmente porque o céu é maior que este mundo, mais vasto que essa vida natural, e precisamos continuar a crescer. Perplexidade é a porção dos pioneiros.

Fraqueza. O irmão Nee questionou: “Um cristão em fraqueza e confessando ser fraco? Que tipo de cristão é esse?” Paulo discorre muito sobre fraqueza, sua própria fraqueza, indicando, certamente, existe outro tipo de força diferente da nossa a ser descoberto, algo que não conhecemos naturalmente. Este é o caminho dos pioneiros: chegar à sabedoria que está além de nós, a qual, por ora, significa perplexidade; obter uma força que está além de nós, a qual, por ora, significa fraqueza em nós mesmos. Estamos em um processo de aprendizado ― é tudo. Esse é o caminho dos pioneiros, mas existe um preço alto, como esse, a ser pago em nosso interior, das mais variadas formas.

Mas, apesar desse preço ser interior, ele é também exterior. A Epístola aos Hebreus tem diversas indicações desses dois aspectos de nossa peregrinação. “Todos estes […] confessaram que eram estrangeiros e peregrinos na terra” (11.13). O apóstolo escrevia sobre uma jornada espiritual, uma transição do terrenal para o celestial, indicando o aspecto interior. Mas houve também o aspecto exterior no testemunho daquelas pessoas, e acontece o mesmo conosco. Toda a inclinação da natureza tende para baixo, se for deixada por conta própria. Isso acontece em todas as esferas da natureza, se deixarmos que elas sigam sua tendência natural, não é? Um belo jardim logo se torna em desolação, desordem e caos, se pararmos de cultivá-lo. E isso também é verdade a nosso respeito, nessa jornada espiritual: nossa gravitação natural se dirige para a Terra, sempre buscaremos um lugar para nos estabelecer, sempre ansiaremos pelo fim do conflito e do combate, buscando uma saída dessa atmosfera de tensão na vida espiritual. Toda a história da Igreja é uma longa história dessa tendência de acomodação a essa Terra, de conformar-se a esse mundo, de busca por aceitação e popularidade e para eliminar os elementos de conflito e de peregrinação. Essa é a nossa inclinação, a tendência natural. Assim o pioneirismo tem um alto preço, exterior e interiormente.

Estaremos assumindo uma posição contrária à inclinação religiosa. Voltemos à Epístola aos Hebreus. Ali vemos uma inclinação descendente e retrógrada para a Terra, tornando o cristianismo um sistema religioso terreno com todas as suas externalidades, suas formas, seus rituais e suas vestimentas. Todo esse sistema precisava ser visível e deveria responder aos sentidos naturais. Isso exercia uma grande atração àqueles cristãos; fazia um grande apelo à alma deles, à sua natureza, e essa carta foi escrita para admoestar: “Deixemos essas coisas para trás e prossigamos. Somos peregrinos, estrangeiros; aquilo que é celestial é que tem importância”. Relembremos do grandioso parágrafo sobre a nossa chegada à Jerusalém celestial (12.18-24).

Mas tomar uma posição contrária ao sistema religioso “acomodado” envolve um alto preço e um grande sofrimento. Por vezes parece-me que isso é bem mais difícil do que se posicionar contra o próprio mundo. Isso porque o sistema religioso pode ser ainda mais cruel, implacável e amargo, por sofrer influência de coisas malignas e desprezíveis como preconceitos e suspeitas, que são encontradas até mesmo nas pessoas decentes do mundo. Uma progressão ascendente para o céu tem um alto preço, é dolorosa, mas é o caminho do pioneiro, e precisa estar bem claro que isso é assim. Nessa carta temos a seguinte afirmação: “Saiamos, pois, a Ele fora do arraial” (13.13). Deixo a seu critério determinar o que é esse arraial, mas não é o mundo. “A Ele fora do arraial” representa banimento, suspeita.

“Todos estes morreram na fé, sem terem recebido as promessas; mas vendo-as de longe, e crendo-as e abraçando-as” [11.13]. Não seria esta a visão de um pioneiro: sempre ver e saudar de longe aquele dia da concretização de sua fé, ainda que esteja além da curta duração de sua vida? “Confessaram que eram estrangeiros e peregrinos na terra. Porque, os que isto dizem, claramente mostram que buscam uma pátria. E se, na verdade, se lembrassem daquela de onde haviam saído, teriam oportunidade de tornar. Mas agora desejam uma melhor, isto é, a celestial. Por isso também Deus não se envergonha deles, de se chamar seu Deus, porque já lhes preparou uma cidade.” Deus não se envergonha do povo que peregrina com Ele em direção a Seu propósito, Ele considera Seus os desse povo, é chamado “seu Deus” e preparou-lhes “uma cidade” (vv. 13-16).

Quando meditamos nesse texto, vemos que é um resumo maravilhoso. “Todos estes” [v. 13] ― que afirmação abrangente! Percebemos nessa afirmação que todas essas pessoas viram alguma coisa e não mais descansaram depois dessa visão, até chegarem ao fim de seus dias e darem seu último suspiro nessa Terra. Elas ainda eram peregrinas e não puderam mais descansar, pois receberam aquele chamado do invisível. Precisamos receber isso dos céus, para sermos conduzidos para lá. Isso ficou claro?

Como podemos ver, essa é a chave e a explicação para tudo. Essa é a garantia de que tudo o que ansiamos, desejamos, buscamos e foi originado no Espírito de Deus será realizado. Oh, bendito seja Deus por isso! Que mais pessoas do povo do Senhor experimentem, com poder, essa convicção!

Você tem fome disso? Anseia por isso? Está insatisfeito? Esse anseio é como uma profecia de que existe algo mais. Você está acomodado? Você se conformou? Sua visão é curta e estreita? Você só consegue ir até aqui? Você aceitando as coisas como elas são? Muito bem, é isso que você irá alcançar ― não espere chegar muito longe. Deus se intitula o Deus daqueles peregrinos [11:16]. Ele é o Deus dos peregrinos. Vamos abandonar essa mentalidade literal a respeito dessa peregrinação literal ― ou, como preferem alguns, de um céu literal. De fato, apesar de desconhecer onde o céu está, sei que existe uma ordem celestial e que os tratos de Deus para comigo são relacionados a essa ordem, diariamente. Deixemos o literal e vejamos o lado espiritual, que é muito real. Vamos pedir ao Senhor para plantar poderosamente em nós esse espírito de peregrino.

Você descobrirá, à medida que prosseguir, que, apesar de ter havido momentos de sua vida espiritual em que acreditava estar tudo tão maravilhoso e pleno, ao ponto de acreditar que havia chegado ao ápice, em outros momentos, essas maravilhas irão parecer insignificantes. Ao fazer uma retrospectiva, vai considerar tudo aquilo meninice. Olhará para algumas de suas leituras daquela ocasião que o alimentavam e dirá: “Como é que eu encontrava alguma coisa nisso?” Não me entenda mal: não é que houvesse alguma coisa errada naquelas coisas; elas eram adequadas para aquela ocasião, mas você prosseguiu e precisará de algo mais agora. Precisamos amadurecer em todas as coisas, prosseguir. Precisamos ser um povo do além. Esse é provavelmente o sentido da palavra “hebreu”. Essa carta é chamada de Epístolas aos Hebreus, e fala de peregrinos e estrangeiros. Se a palavra “hebreu” significa “pessoa do além”, podemos afirmar que somos um povo do além, que nossa morada e nossa gravitação estão além. Somos peregrinos nessa Terra, peregrinos do além.

Que o Senhor torne essa mensagem útil, tirando-nos da condição de letargia, do falso contentamento ou do desejo indevido de alcançar um fim aqui. Por outro lado, que o Senhor mantenha nossos olhos e nosso coração unidos aos daqueles que foram pioneiros antes de nós, vendo, saudando, e, se necessário morrendo em fé.

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Samuel Rutherford Sofrimento Testemunho

Cartas de Samuel Rutherford (1)

Para Lady Kenmure,1

de Anwoth, 26 de junho de 1630

Os inexplicáveis tratos de Deus com Seu povo são bem ordenados

Eu compreendo tuas circunstâncias neste mundo, saborizadas pela adoração ao Filho de Deus e pela comunhão com Ele em Seus sofrimentos. Tu não podes, não deves ter aqui uma condição mais agradável ou mais fácil do que a que Ele teve, Ele que “por aflições foi aperfeiçoado” (Hb 2.10). Podemos, de fato, pensar: “Deus não pode nos levar ao céu de maneira fácil e próspera?” Quem duvida que Ele pode? Mas Sua infinita sabedoria pensa e decreta o contrário; e, embora não possamos ver uma razão para isso, ainda assim Ele tem uma razão mais justa.

Com os olhos, nunca vimos nossa própria alma; ainda assim, temos uma alma. Vemos muitos rios, mas não conhecemos sua primeira nascente, a fonte original; ainda assim, eles têm um começo.

Senhora, quando chegares ao outro lado do rio, e pousares teus pés nas praias da eternidade gloriosa e olhares para trás, novamente, para as águas e para tua penosa jornada, e vires naquele límpido cristal de glória eterna de mais perto as profundezas da sabedoria de Deus, terás forçosamente que dizer:

“Se Deus houvesse feito de modo diferente comigo o que Ele fez, eu nunca teria chegado ao desfrute dessa coroa de glória”.

Tua parte agora é crer, e sofrer, e confiar e esperar, pois assevero, na presença daquele Olho que tudo discerne, que sabe o que escrevo e o que penso, que não me faltou a doce experiência das consolações de Deus em toda a amargura da aflição. Não; se Deus vem a Seus filhos com uma vara ou com uma coroa, se Ele próprio vem, então, está tudo bem. Bem-vindo, bem-vindo Jesus, vem da maneira que Tu vieres, desde que possamos Te ver. E, estou certo, é melhor estar doente, contanto que Cristo venha para o lado da cama, abra as cortinas e diga: “Coragem, Eu sou tua salvação”, do que gozar de saúde, ser vigoroso e forte, e nunca ser visitado por Deus.

Falta de ordenanças

Digna e cara senhora, na força de Cristo, luta e vence. Tu estás agora sozinha, porém podes ter, se buscares, três sempre em tua companhia: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Sei que estão perto de ti. Tu estás agora privada do conforto de um ministério ativo; foi assim com os israelitas no cativeiro; contudo, ouve a promessa de Deus para eles: “Portanto, dize: Assim diz o Senhor Deus: Ainda que os lancei para longe entre os gentios, e ainda que os espalhei pelas terras, todavia lhes serei como um pequeno santuário, nas terras para onde forem” (Ez 11.16). Vê, um santuário! Um santuário, o próprio Deus, em lugar do templo de Jerusalém. Confio em Deus que, carregando esse templo contigo, tu verás a beleza de Jeová em Sua casa.

 


1 Jane Campbell, Viscondessa de Kemnure, filha do sétimo Conde de Argyle. Em 1628, ela se casou com John Gordon, de Lochinvar, cuja morte prematura ocorreu em 1634. Jane se casou novamente em 1640, mas em pouco tempo uma nova viuvez lhe sobreveio. Ela viveu até os anos 1670 com o que parece ter sido uma vida cristã exemplar. [Nota do editor original.]

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Citações Gotas de orvalho Vários

Gotas de orvalho (295)

Como seguidores de Cristo, nosso sofrimento vem dos homens, enquanto nossa glória vem de Deus. Nosso sofrimento é terrenal, enquanto nossa glória é celestial. Nosso sofrimento é breve, enquanto nossa glória é para sempre. Nosso sofrimento é trivial, enquanto nossa glória é ilimitada. Nosso sofrimento está em nosso corpo mortal e corrompido, enquanto nossa glória estará em nosso corpo aperfeiçoado e imperecível.

(John MacArthur)

O sal, quando dissolvido na água, pode desaparecer, mas não deixa de existir. Podemos ter certeza de sua presença provando a água. Da mesma forma, o Cristo que habita em nós, embora invisível, se tornará evidente a outros pelo amor que Ele nos concede.

(Sundar Singh)

A ética puritana do casamento consistia primeiro em procurar, não por um parceiro a quem você ame apaixonadamente neste momento, mas sim por alguém a quem você possa amar continuamente como seu melhor amigo para o resto da vida, e então prosseguir com a ajuda de Deus para fazer exatamente isso.

(J. I. Packer)

Oração ― oração secreta, fervorosa e fiel ― está na raiz de toda piedade pessoal.

(William Carey)

O que é fé? Na forma mais simples com que consigo me expressar, eu respondo: fé é a segurança de que aquilo que Deus disse em Sua Palavra é verdade, e que Ele vai agir de acordo com aquilo que Ele disse em Sua Palavra. Essa segurança, essa confiança na Palavra de Deus, essa convicção é fé.

(George Müller)

Cada nação na Terra está sob as mãos de Deus; por isso, não há poder neste mundo que não seja, em última instância, controlado por Ele.

(Martyn Lloyd-Jones)

Amados, procurando eu escrever-vos com toda a diligência acerca da salvação comum, tive por necessidade escrever-vos, e exortar-vos a batalhar pela fé que uma vez foi dada aos santos.

(Jd 1.3)

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Samuel Rutherford Sofrimento Testemunho

A vida de Rutherford


Samuel Rutherford (1600–1661) nasceu perto de Nisbet, Escócia, e pouco se conhece sobre o início de sua vida. Em 1627, ele recebeu o grau de Mestre da Universidade de Edimburgo, onde foi professor de Humanidades. Ele se tornou pastor da igreja em Anwoth em 1627, uma paróquia rural, cujos membros estavam espalhados pelas fazendas nas colinas. Ele possuía um verdadeiro coração de pastor e era incansável no trabalho pelo rebanho. Conta-se que os homens diziam a respeito de Rutherford:

“Ele estava sempre orando, sempre pregando, sempre visitando os doentes, sempre catequizando, sempre escrevendo e estudando.”

Entretanto, seus primeiros anos em Anwoth foram marcados por tristeza. Sua esposa esteve doente por treze meses antes de falecer na nova casa deles. Dois filhos também morreram nesse período. Não obstante, Deus usou esse tempo de sofrimento a fim de preparar Rutherford para ser um consolador de Deus para pessoas em sofrimento.

Em 1636, Rutherford publicou um livro defendendo as doutrinas da graça (calvinismo) contra o arminianismo. Isso o colocou em conflito com as autoridades da Igreja, que era dominada pelo episcopado inglês. Ele foi chamado perante a Suprema Corte, foi retirado de seu cargo ministerial e foi exilado em Aberdeen. Esse exílio foi uma dolorosa provação para o querido pastor. Ele sentia ser insuportável estar separado de sua congregação. Contudo, por causa desse exílio, nós hoje temos muitas das cartas que ele escreveu a suas ovelhas ― portanto, o mal de seu banimento tornou-se uma grande bênção para a igreja ao redor do mundo.

Em 1638, as disputas entre o Parlamento e o rei na Inglaterra, e entre o presbiterianismo e o episcopalianismo na Escócia, culminaram em eventos importantes para Rutherford. Na confusão daquela época, ele escapou de Aberdeen e retornou a sua querida Anwoth. Mas não foi por muito tempo. A Kirk (Igreja da Escócia) reuniu-se em Assembleia Geral naquele ano e restaurou o presbiterianismo integral no país. Além disso, indicaram Rutherford como professor de Teologia de St. Andrews, embora ele tivesse negociado para lhe ser permitido pregar pelo menos uma vez por semana.

A Assembléia de Westminster iniciou suas famosas reuniões em 1643, e Rutherford foi um dos cinco comissionados escoceses convidados a participar dos processos. Embora não lhes fosse permitido votar, os escoceses tinham uma influência que de longe ultrapassava seu número. Rutherford, conforme é crido, teve grande influência sobre o Catecismo Breve. Durante esse período na Inglaterra, ele escreveu sua obra mais conhecido, Lex Rex [A lei, o rei]. Esse livro defendia o governo limitado e limitações na ideia corrente do Divino Direito dos Reis.

Cronologia

 

1600

Data aproximada do nascimento na paróquia de Nisbet, Roxburgshire.

1617

Admitido na Universidade de Edimburgo, fez Mestrado em Artes em 1621.

1623–1626

Regente em Humanidades na Universidade de Edimburgo.

1626

Época em que se tornou seriamente religioso.

1627

Indicado para a Paróquia de Anwoth (Galloway), Escócia.

1630

Envolveu-se em questão legal perante a Corte da Alta Comissão, porque recusou-se a obedecer aos Artigos de Perth. Morte da esposa (fuga de Eupham Hamilton).

1636

Publicou Treatise against Arminianism [Tratado contra o arminianismo].

1636

O bispo de Galloway conseguiu com que a Corte de Alta Comissão o proibisse de exercer o ministério. “Exilado” à prisão em Aberdeen em agosto de 1636. (Inaugura-se o período de sua vida em que escreve cartas.)

1638

A nação escocesa, em revolta contra os erros da Igreja da Inglaterra sob William Laud, assinou o Pacto Nacional. Rutherford retorna para Anwoth.

1638

A Assembléia de Glasgow o indicou como Professor de Divindade na Universidade St. Mary, em St. Andrews. Ele aceitou relutantemente. Compareceu a diversas Assembléias da Convenção. Casou-se com Jean M’Math.

1642

(Eclosão da Guerra Civil na Inglaterra contra o rei Charles I e as forças do Parlamento sob o comando de Oliver Cromwell.)

1643–1647

Membro ativo da Assembléia de Westminster de Teólogos (novembro de 1643 a novembro de 1647). Reside em Londres.

1644

Publicou Lex Rex [A lei, o rei], um tratado político, e Due Right of Presbyteries [Direitos devidos aos presbitérios].

1645–1647

Publicou Trial and Triumph of Faith [Provação e triunfo da fé], Divine Right of Church Government [Direito divino do governo da igreja], e Christ Dying and Drawing Sinners to Himself [Cristo morrendo e trazendo pecadores para si].

1648

Reassumiu os deveres em St. Andrews. Tornou-se diretor da Universidade de St. Mary. Publicou diversos trabalhos menores.

1649

(O Parlamento saiu-se vitorioso na Inglaterra e cessou por algum tempo a perseguição aos dissidentes e não-conformistas por parte da Igreja da Inglaterra.)

1651

Indicado como reitor da Universidade de St. Andrews. Publicou De Divina Providentia [Da providência divina].

1650–1661

Ativo em assuntos nacionais escoceses.

1655

Publicou The Covenant of Life Opened [Aberta a aliança da vida].

1659

Publicou Influences of the Life of Grace [Influências da vida de graça].

1660

(Após a restauração de Charles II). Foi privado de todos os cargos e citado a comparecer ante o Parlamento acusado de traição. Doente demais para fazer a viagem.

1661

Faleceu em março.

1664

Publicada a primeira edição de Letters [Cartas].

1668

(Sua obra Examen Arminianismi [Exame do arminianismo] publicada na Holanda.)

(Sua viúva e sua filha Agnes faleceram depois dele; todos os filhos do primeiro casamento e seis do segundo faleceram antes dele.)

 

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Citações Gotas de orvalho Vários

Gotas de orvalho (294)

O ramo da videira não se preocupa e labuta e corre aqui para buscar a luz do Sol e, ali, para encontrar chuva. Não; repousa na união e na comunhão com a videira; e, na hora certa, e da maneira certa, o fruto certo é encontrado nele. Vamos assim permanecer no Senhor Jesus.

(Hudson Taylor)

A cura para a impaciência com o cumprimento do cronograma de Deus é crer em Suas promessas, obedecer à Sua vontade e deixar os resultados para Ele. Muitas vezes, quando o cronograma de Deus se prolonga por anos, desanimamos e queremos desistir ou tentar resolver algo por conta própria.

(Jerry Bridges)

Isto é fé: renunciar a tudo o que podemos chamar de nosso e confiar totalmente no sangue, na justiça e na intercessão de Jesus.

(John Newton)

Jesus Cristo é ainda o mesmo, e assim é Seu amor. Aqueles a quem Ele ama, Ele ama até o fim.

(John Owen)

Se nossa vida não é um curso de humildade, abnegação, renúncia ao mundo, pobreza de espírito e afeição celestial, não vivemos como cristãos.

(William Law)

Deus tem o soberano direito de fazer o que deseja, e nenhuma outra explicação é necessária.

(John Frame)

São assim as veredas de todo aquele que usa de cobiça: ela põe a perder a alma dos que a possuem.

(Pv 1.19)

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Biografia Samuel Rutherford

Do Palácio de Cristo em Aberdeen ― As cartas de Samuel Rutherford


As cartas de Samuel Rutherford são um tesouro sem igual entre os tantos que a fé cristã já produziu, contendo algumas das mais preciosas respigas que esse fiel servo de Deus colheu nos campos do Boaz Celestial. Por isso, decidimos publicá-las. Escolhemos, para esse fim, uma versão menor da coletânea de cartas, publicada pela Chapel Library. Se o Senhor nos der graça e voluntários para cooperar na tarefa, poderemos traduzir a obra completa.

Nosso objetivo é publicar semanalmente cada carta como um artigo único. Após concluirmos a tradução/publicação, vamos lançar como um livro digital gratuito.

Mas quem é Rutherford? O que explica a importância de suas cartas? Por que hoje, quase 400 anos depois, os cristãos ainda deveriam ler essas cartas com muita atenção?

Para tentar responder, usamos um artigo (adaptado) do saudoso irmão Christian Chen, publicado na extinta revista À Maturidade, n. 2, outono de 1978.

Do Palácio de Cristo em Aberdeen

O Palácio de Cristo em Aberdeen? Onde fica Aberdeen? De que tratam essas cartas? Quem as escreveu? Responder a essas perguntas significa contar uma história tocante acontecida há mais de 300 anos.

Aberdeen é um movimentado porto marítimo da Escócia, situado no litoral leste do país (Mar do Norte). Foi do agrado do Senhor torná-la uma cidade histórica por manter nela prisioneiro um de Seus servos fiéis, Samuel Rutherford, como Ele fez com João na Ilha de Patmos, no primeiro século. Durante um período de dezessete meses, Rutherford ficou confinado na cidade de Aberdeen, proibido de todo ministério público. Mas, embora seus lábios estivessem selados, seu coração transbordava de boas palavras (Sl 45.1). Em sua carta de 4 de agosto de 1636, escrita de Irving, quando se dirigia para Aberdeen, ele descreveu sua viagem como “minha jornada para o Palácio de Cristo em Aberdeen”. Ao chegar ao destino, escreveu:

“Não obstante esta cidade ser minha prisão, contudo, Cristo fez dela meu palácio, um jardim de prazeres, um campo e um pomar de delícias.”

Mas erramos se pensarmos que a experiência que Rutherford teve daquele gozo quase extático com seu Senhor tenha sido de curta duração, como geralmente acontece com cristãos carnais. Ele a manteve consigo durante todo o período do confinamento, e chegou mesmo a prolongá-la depois dele. Verificou que uma torrente caudalosa continuou a fluir maravilhosamente de seu palácio-prisão, tendo escrito 219 cartas nesse espaço de tempo. Mais tarde essas cartas, juntamente com outras 143 foram reunidas em um livro por sua secretária, após sua morte, e publicadas sob o título Josué redivivo ou Cartas do sr. Rutherford, Divididas em duas partes, na primeira edição (1664). As Cartas são agora consideradas por muitos como um clássico cristão, comparadas por alguns ao livro O peregrino, de João Bunyan. Desde 1664, elas têm sido publicadas em mais de trinta edições diferentes, algumas das quais reimpressas muitas vezes.

Rutherford escreveu outros livros. Um de seus escritos teológicos trouxe-lhe o oferecimento da Cadeira de Divindade na Universidade de Ultrecht. Mas essa obra e outras foram há muito esquecidas, e nosso Senhor deixou que Rutherford continuasse a viver hoje em um livro que ele não se propôs deliberadamente a escrever, isto é, As cartas de Samuel Rutherford. James Miller Dods, depois de salientar que a maior parte dos livros de Rutherford têm “seu memorial somente no cemitério da história”, comenta: “Do ruído do mercado, passamos para a solidão reclusa e iluminada pelas estrelas daquelas Cartas, as quais sucessivas gerações, de Baxter a Spurgeon, a uma voz têm proclamado serem seráficas e divinas”. Richard Baxter afirmou com respeito às Cartas de Rutherford: “Com exceção da Bíblia, o mundo nunca viu um livro como esse”. Para podermos sentir de fato o peso desse comentário, é preciso lembrar que Baxter concordava com a teologia arminiana, a qual foi exatamente o alvo das críticas de Rutherford, tendo sido essa a causa de seu confinamento em Aberdeen. Richard Cecil, evangélico eminente do século18, fez o seguinte comentário sobre Rutherford:

“Ele é um de meus clássicos favoritos; é realmente autêntico”.

Não podemos fugir à pergunta: “Como a correspondência particular deste servo escocês do Senhor foi conservada ao longo dos anos? Por que motivo sua formidável erudição jamais lhe proporcionou aquilo que suas cartas alcançaram?” A resposta é simples: nosso Senhor quis preservá-las e não permitirá que elas desapareçam. A razão por trás disso tem algo a ver com Seu modo costumeiro de tratar com Seus servos ao longo da história da igreja. Parece ser do agrado do Senhor usá-los a fim de estabelecer uma grande ilustração da verdade de ouro: “E assim nós, que vivemos, estamos sempre entregues à morte por amor de Jesus, para que a vida de Jesus se manifeste também em nossa carne mortal. De maneira que em nós opera a morte, mas em vós a vida” (2Co 4.11,12).

A obra do Senhor nunca foi feita pela metade; se Ele permitiu que a morte operasse nesses servos, ela é sempre acompanhada pela “vida em nós”! Ele planejou o aprisionamento de Paulo em Roma, assim como aquelas lindas Epístolas da Prisão para nós. Ele deu a João a ilha de Patmos e, ao mesmo tempo, nos deu a revelação de Jesus Cristo mediante o último e grandioso livro da Bíblia. Ele fez com que George Matheson, outro grande pregador escocês, ficasse cego; entretanto, nós somos enriquecidos por seus belos hinos. Ouçamos as palavras de Matheson: “O calabouço de José é o caminho para o trono de José. Tu não podes levantar a carga de ferro de teu irmão se o ferro não penetrou em ti”, e sua oração diante do Senhor:

Faz de mim um cativo, Senhor,
E livre eu serei, então;
Força-me a entregar minha espada,
E conquistador serei.
Sinto-me envolvido pelos temores da vida,
Quando ouso enfrentá-los sozinho;
Segura-me em Teus braços,
E forte será minha mão.

Da mesma forma, se nosso Senhor não poupou Rutherford da “morte” e o enviou a Aberdeen, pode alguém imaginar que o Senhor recusaria a “vida”, negando-a a nós? Durante o aprisionamento de Rutherford, é verdade que a pregação de Cristo a certas congregações foi silenciada por algum tempo, mas apenas para dar lugar a um ministério de Cristo que vem sendo, desde então, uma bênção e um conforto para gerações do povo de Deus. O próprio Rutherford, em uma carta ao sr. Robert Blair, seu companheiro de sofrimento,  graciosamente disse:

“O sofrimento é o outro lado do nosso ministério, sem dúvida o mais difícil!”

Antes que o leitor entre nessa mina de pedras preciosas, lembremo-nos novamente daquele título simbólico da primeira edição de 1664, Josué redivivo — Josué ressuscitado! Como o Josué da antiguidade, que espiou a terra prometida e apresentou um relatório cheio de entusiasmo, Rutherford “puxa as cortinas, e olha para dentro da arca”, contemplando a Canaã celestial e trazendo de volta seu bom relatório, conforme registrado em suas cartas. Ouça o que ele mesmo diz a respeito disso: “Deus quis me enviar como um espia nesse deserto do sofrimento, para ver a terra, e provar a água; e eu não posso fazer da Cruz de Cristo uma mentira. E não relatei nada senão o que é bom DELE e DELA a fim de que não desmaieis”. Qualquer leitor atento não poderá deixar de perceber como este “DELE e DELA” penetraram entre as linhas das cartas, fazendo-nos lembrar daquela grande frase de Paulo: “Porque nada me propus saber entre vós, senão a Jesus Cristo, e este crucificado” (1Co 2.2). Relacionado com isso, ouçamos o que Rutherford disse ainda no palácio: “Cristo e Sua cruz são dois bons hóspedes, e dignos do alojamento. Os homens desejariam ter um Cristo bom e barato, mas o preço a ser pago não vai baixar!” Oh, como isso é verdadeiro!

Que nosso leitor aproxime-se de tão raro e espiritual clássico por meio de uma leitura vagarosa, meditativa e com muita oração, de modo a ser tocado e atraído pelo mesmo Amado que se revelou ao pobre prisioneiro de Cristo em Aberdeen, colocando-se em condições de dizer como Rutherfod:

“Oh, se víssemos a beleza de Jesus e pressentíssemos a fragrância de Seu amor, correríamos pelo fogo e pela água para estarmos com Ele.”

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