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Deus e o pensamento relacional (William de Oliveira)

Assistimos todos os dias o nascimento de inúmeras teologias, das mais bizarras como gente “no espírito” imitando animais, como outras que são simplesmente mais um fruto do pós-liberalismo teológico. Dentro dessa última categoria, existe um pensamento que considero muito, senão o mais nefasto e devastador deles, chamado de teologia relacional.

Essa teologia, de caráter profundamente humanista e reducionista. Tem como sua principal característica a imagem de um deus exclusivamente amoroso. O amor, que sem dúvida, constitui parte essencial do ser divino, tornou-se sua única prefiguração. Deus é amor, ponto e nada mais. Qualquer outro aparente atributo só será aceito se for “compatível” com aquele. O Senhor está preso e sujeito ao seu “sentimento” amoroso pelos homens, que por sua vez tornam-se “arquitetos” de seus próprios destinos.

Numa primeira olhada é um movimento muito atraente, especialmente porque é profundamente inclusivo, ainda que, como veremos adiante, não se defina bem o que é inclusão. Além disso, se propõe a refletir a fé de maneira bastante livre, o que é um prato cheio para os modernos ativismos sociais.

Eu mesmo fui seduzido por esse movimento e o defendi em alguns textos do meu antigo (e desativado) blog pessoal. No entanto, não precisei de muito tempo e reflexão, para que vários pontos negativos desse ensino saltassem aos meus olhos, e sua fragilidade tornar-se patente diante de uma leitura sincera das Escrituras.

Pois bem, preocupado com o avanço desse pensamento “aberto” sobre Deus, resolvi expor alguns desses pontos para tentar ajudar alguns irmãos que, assim como eu, foram seduzidos por essa teologia.

Ponto 1 – De que Deus estamos falando mesmo?

Essa é a primeira pergunta que vem a mente quando ouço ou leio os argumentos de um teólogo relacional.

Isso porque, quando se trata de cristianismo, a imagem que se busca de Deus só é encontrada em uma fonte, a Bíblia. Qualquer referencia sobre Jesus, por exemplo, tem que passar pelo crivo da Escritura, ou seja, só podemos dizer que Deus é isso ou aquilo, se a Bíblia disser que Ele é isso ou aquilo. Não apenas em um ou outro versículo, mas no conjunto dos textos sagrados. A imagem que se tem se tem de Deus em Juízes deve ser a mesma que encontramos nas cartas de Paulo.

Fora isso, ocorre também uma confusão entre as características de certas divindades de outras religiões e as do Deus revelado na Bíblia. Que me perdoem os favoráveis do diálogo inter-religioso, mas o Deus cristão não é de maneira nenhuma o deus espírita, nem o deus islâmico, muito menos as “energias” ou “forças” que outras formas de fé definem como divinas, ainda que tais religiosos queiram que seja. O que Jerusalém haver com Atenas?

É verdade que para nós cristãos só existe um Deus, criador e sustentador do universo, mas também é verdade que para o cristianismo autêntico ele só é revelado em dois lugares, de maneira insuficiente na própria criação (Romanos 1:20), e plenamente na revelação bíblica. Portanto, qualquer afirmação sobre Deus só terá valor para nós, se for baseada nas Escrituras, sendo qualquer outra fonte, no mínimo questionada.

Sendo assim, quando alguém quiser debater sobre o que Deus é ou não é, primeiro se faz mister que lhe faça a pergunta: De que Deus você esta falando?

Ponto 2 – Uma redução de quem é Deus

Se existe alguém no universo que possui muitos atributos que o definam é Deus. A Bíblia está repleta desses atributos. Uns patentes outros latentes, mas todos inegáveis.

No entanto, mesmo com tantas evidências opostas, a tal teologia tem reduzido Deus a apenas um atributo, o amor; deixando em segundo plano, ou simplesmente eliminando, outros atributos, como a santidade, o justo juízo, a soberania e, mais recentemente, a onisciência. Isso porque para eles o livre arbítrio, sua menina dos olhos, só será uma realidade se o homem for definitivamente livre de qualquer intervenção divina, e isso inclui saber o futuro.

Agora, é verdade que a vida e os ensinos de Jesus trazem a força amorosa de Deus pela humanidade, e o Abba à tona, seu próprio sacrifício nos conta isso, mas jamais Ele deixou de lado os outros atributos que formam Seu caráter. Aliás, é o próprio amor que traz a tona outros atributos. Por AMAR a verdade, Ele ODEIA mentira. Por AMAR o oprimido, Ele trará JUÍZO sobre o opressor, e assim por diante.

Além disso, me parece bastante claro que Jesus, ao longo de sua vida, continua odiando o pecado, prometendo juízo aos ímpios, ensinando sobre o inferno (até mais que sobre o céu) e sobre o juízo final, aborrecendo a hipocrisia dos religiosos, afugentando a chicotadas os cambistas do templo, e no seu famoso sermão da montanha, proclamou abertamente que a santidade, a retidão e a integridade devem ser a regra de vida para todos os servos de Deus.

Em suma, o mesmo Deus que anunciou o amor com tamanha vivacidade, também estabeleceu um alto padrão de justiça e santidade para os que amou. Não se engane, o mesmo Jesus que amou os homens, também os lançará no inferno (Mateus 10:28, João 15:6).

Devemos lembrar ainda, que o mesmo apóstolo João que elaborou a famosa definição “Deus é amor”, também disse que “Deus é luz, e nele não há trevas alguma” (João 1:5), o autor de Hebreus afirma sem pudor que “nosso Deus é um fogo consumidor” (Hebreus 12:29), e ainda, Ele mesmo fala de si como Santo , cabendo a nós imita-lo (Levíticos 11:44).

Portanto meu amigo me perdoe, mas crer nesse “deus” reduzido da teologia relacional é como ter um pai adulador e impotente. Seu amor não pode ser verdadeiro, pois que pai vendo seu filho caminhar em direção à morte não fará tudo para impedir tal tragédia (Lucas 11: 5-13). Um Deus “molenga”, que chora a morte do amigo, mas nunca poderá dizer “sai para fora!” (João 11:35-45). Esse não pode ser o mesmo Deus que livrou Israel das garras do Egito, que levantou poderosos profetas para trazerem a justiça aos povos e que escolheu antes da fundação do mundo pecadores para remi-los, regenera-los, santifica-los e formar com eles um povo Seu, que faz a Sua vontade. Um Deus digno de que todo joelho se dobre perante sua Majestade. Esse deus relacional, não pode ser de fato Deus, e não é.

Ponto 3 – Má compreensão do que a Bíblia entende por inclusão

Vou ser objetivo. O evangelho é realmente inclusivo, uma autentica “pescaria de almas”. O convite está aberto a todos quantos desejarem, prova disso é que Jesus sentou com todo tipo de gente, mas isso não significa que ao incluir pessoas o evangelho inclua os pecados delas. A salvação de Jesus inclui gente, não pecado. Com esse, Ele é totalmente exclusivo e agressivo.

Além disso, o fato Dele amar a humanidade não fechou seus olhos para a rebelião dos povos. Na verdade, ao contrário do que muitos dizem, Deus abomina não só o pecado, mas também aqueles que o praticam. “O perverso é abominável ao Senhor (..) na casa do ímpio habitará a maldição de Deus” (Provérbios 3: 32,33)

Devemos, ainda, saber que a inclusão no amor divino sempre carregará responsabilidades ao incluso. Porque se assim não fora, como se costuma dizer, o Reino de Deus seria a casa da sogra.

Para entender melhor o que digo, não precisamos ir muito longe, basta trazer a memória o famoso texto de Mateus 11 de 28 a 30:

“Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo e leve.”

Leia com atenção o texto! Mostre-me onde o consolo e alivio oferecidos por Jesus, de forma profundamente inclusiva, diga-se de passagem, (vinde a mim TODOS) está desligada do aprender a humildade e a mansidão, ou onde o amor de Deus nos impede de levar o fardo de Jesus, que, apesar de ser leve, continua sendo um fardo. Com uma grande salvação, vem grandes responsabilidades (Lucas 12:47-48; Efésios 2:10)

Portanto, engana-se a pessoa que acha que a inclusividade do Evangelho é inconsequente. Deus é paternal, não paternalista.

Ponto 4 – Falácia sobre a existência do livre arbítrio.

Arbítrio existe, o pecado é prova disso, mas livre arbítrio é uma das maiores mentiras que já foram inventadas. Mesmo se tirássemos a noção de Deus da história, que é o que a teologia relacional parece estar tentando fazer, essa liberdade plena do ser humano jamais teria existido. Todos, de alguma forma, estão amarrados a algo que os impede de agir com plena vontade.

Leis civis, carta de direitos humanos, supremacia do interesse público, casamento, contratos, a “polis” grega, a “pax” romana, o código de Hamurabi, sempre estivemos sujeitos a alguma autoridade que nos impõe conduta.

Alguém poderia dizer que nosso livre arbítrio está em cumprir tais normas ou não, mas isso é outra falácia, pois se o arbítrio fosse realmente livre, nesse caso, não haveria punição para o descumprimento. Não cumpra a lei e você verá seu precioso livre arbítrio encerrado dentro das grades de uma prisão.

Amigo você precisa despertar para a realidade de que sempre haverá um “senhor” sobre ti. Sua liberdade nunca será plena. Sua vontade nunca prevalecerá. Seja pelo pecado, seja pelo diabo, seja pelo mundo, ou, se você for um eleito de Deus, pela vontade graciosa do Senhor, você será vencido. É da sua natureza.

Sua escolha é: A QUEM SERVIREI? Essa é a pergunta que você deve fazer para sua natureza, ela vai se inclinar para alguém

Ponto 5 – Rejeição da Bíblia como Palavra de Deus.

Esse é um ponto inevitável para a sobrevivência de teologias como essa. Existe literatura vasta sobre isso sendo publicada no Brasil. Munidos das ferramentas da alta crítica, papas dessa teologia, como Andres Torres Queiruga e Jean Delumeau, dedicaram muitas páginas de suas obras, pondo em cheque qualquer possibilidade, não só da inspiração bíblica, como da literalidade das Escrituras. Obviamente, muitos dos conceitos bíblicos, tirando sua literalidade, caem em descrédito e desconfiança. Histórias clássicas do Antigo Testamento e noções como o de soberania, providência, juízo final, inferno e céu, são apagados do pensamento cristão. Centenas de anos de formação de pensamento cristão são descartados como inapropriados e obsoletos diante desses “inventores da roda”. O que pensar? Ou Deus de fato não deve intervir em nossa história, já que deixou sua igreja em total ignorância por quase dois mil anos sobre esse pensamento, ou os homens “pré-modernos”, eram na verdade “pré-históricos”, neandertais munidos de suas claves, que foram esmagadoramente superados pelos “sapiens” da teologia moderna.

O engraçado é que um Neandertal como eu perguntaria como um Deus, que ama tanto o homem, poderia deixar suas amadas criaturas por tanto tempo sem essas informações tão decisivas. Mas sei lá, de repente é só um delírio “das cavernas”.

Conclusão

Há outros pontos com certeza, mas acho que com esses já dei uma noção dos males que essa teologia tem trago para dentro das igrejas e seminários. É evidente que muito que já não tem a Bíblia como Palavra de Deus não concordarão comigo, e nem podem, mas oro para que os tais, assim como eu, sejam libertados desse engano.

Naquele que ama infinitamente e faz juízo de geração em geração.

(Fonte)

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Religião e ciência (Alvin Plantinga)

A ciência empírica ocidental moderna tem certamente sido o desenvolvimento intelectual mais impressionante desde o séc. XVI. A religião tem marcado presença desde há bastante mais tempo, é claro, e está hoje em crescimento, talvez como nunca o esteve antes. (É verdade que há a tese do secularismo, segundo a qual a ciência e a tecnologia, por um lado, e a religião, por outro, estão inversamente relacionadas: à medida que a primeira cresce, a segunda diminui. Contudo, o ressurgimento da religião e da crença religiosa em muitas partes do mundo levantam dúvidas consideráveis a esta tese.) A relação entre estas duas grandes forças culturais tem sido tumultuosa, multifacetada e confusa. Este artigo concentrar-se-á na relação entre ciência e as religiões teístas: cristianismo, judaísmo, islamismo, sendo o teísmo a crença de que há uma pessoa imaterial todo-poderosa, omnisciente e perfeitamente boa que criou o mundo, criou os seres humanos “à sua imagem,” e a quem devemos reverência, obediência e fidelidade. A maior parte deste artigo aplicar-se-á também às variedades monoteístas e henoteístas de budismo e hinduísmo.

Há muitos problemas e questões importantes nesta área; este artigo concentrar-se-á apenas em alguns deles. A questão que talvez mais salte à vista é se a relação entre religião e ciência se caracteriza pelo conflito ou pela concórdia. (Claro que é possível que exista simultaneamente conflito e concórdia: conflito no que respeita a certos aspectos, e concórdia noutros.) Esta questão será o ponto central do artigo. Outras questões importantes a considerar serão a natureza da religião, a natureza da ciência, as epistemologias da ciência e, em particular, da crença religiosa, e a questão de como a última figura no conflito ou concórdia (alegado ou efectivo) entre a religião e a ciência.

1. A natureza da ciência e a natureza da religião

1. 1. Ciência

A primeira coisa a dizer, aqui, é que é extremamente difícil caracterizar estes fenómenos. Primeiro, considere-se a ciência: o que é exactamente a ciência? Como podemos caracterizá-la? Quais são as condições necessárias e suficientes para que uma dada investigação ou teoria ou tese seja científica, faça parte da ciência? Está longe de ser fácil sabê-lo. Propôs-se várias condições essenciais da ciência. Segundo Jacques Monod, “O crucial do método científico é o postulado de que a natureza é objectiva […] Por outras palavras, a negação sistemática de que o “verdadeiro” conhecimento possa ser obtido interpretando a natureza em termos de causas finais […]” (Monod 1971, 21, itálico de Monod). Na década de 1930, o eminente químico alemão Walter Nernst defendeu que a ciência, por definição, exige um universo infinito; logo, a teoria do Big Bang, afirmou, não é ciência (von Weizsäcker 1964, 151). Outra restrição proposta: a ciência não pode envolver juízos morais, ou juízos de valor mais em geral.

Há obviamente uma conexão íntima entre a natureza da ciência e o seu objectivo, as condições sob as quais algo é ciência bem-sucedida. Há quem diga que a ciência é explicação (seja isto posto, ou não, ao serviço da verdade). Há quem afirme (os realistas) que o objectivo da ciência é apresentar teorias verdadeiras; outros afirmam que o objectivo da ciência é fornecer teorias empiricamente adequadas, sejam verdadeiras ou não (van Fraassen 1980). Há quem diga que a ciência não pode lidar com o subjectivo, mas apenas como que é público e partilhável (e, portanto, os relatos sobre a consciência constituem uma matéria mais adequada de estudo científico do que a própria consciência). Há quem diga que a ciência só pode lidar como que é repetível; há quem o negue. No furor sobre o ensino do “Desígnio Inteligente” (DI) nas escolas públicas, houve quem dissesse que as teorias científicas têm de ser falsificáveis, e, dado que a proposição de que as coisas vivas (os coelhos, por exemplo) foram concebidas por um ou mais agentes inteligentes não é falsificável, o DI não é ciência. Há quem faça notar que muitas teses eminentemente científicas — por exemplo, há electrões — não são falsificáveis isoladamente: o que é falsificável são teorias completas sobre electrões. E apesar de a proposição de que as coisas vivas foram concebidas por um ser inteligentenão ser falsificável isoladamente, a proposição de que um ser inteligente concebeu e criou coelhos de meio quilo que vivem em Cleveland é claramente falsificável (e falsa). O primeiro grupo pode responder que esta proposição sobre coelhos de meio quilo é apenas equivalente, na verdade, às suas implicações empíricas, i.e., à proposição de que há coelhos de meio quilo que vivem em Cleveland, de modo que o pedaço sobre quem os concebeu desaparece, na verdade. O segundo grupo pode então retorquir que, sendo assim, o mesmo tem de se aplicar às teorias sobre electrões; mas nesse caso as teorias sobre electrões são apenas equivalentes, na verdade, às suas implicações empíricas, de modo que os electrões desaparecem.

Há ainda quem afirme que a ciência se limita ao “naturalismo metodológico” (NM) — a ideia de que nem os dados para uma investigação científica nem uma teoria científica podem referir-se apropriadamente a seres sobrenaturais (Deus, anjos, demónios); assim, não se poderia apropriadamente propor (como parte da ciência) uma teoria segundo a qual a irrupção recente de comportamentos estranhos e irracionais em Washington D.C. se deve ao aumento de comportamentos demoníacos nessa área. Como saber se o NM é realmente uma limitação essencial da ciência? Há quem diga que é apenas uma questão de definição; é o caso de Nancey Murphy: “[…] há o que poderíamos chamar ateísmo metodológico, que é por definição comum a toda a ciência da natureza” (Murphy 2001, 464). E continua: “Trata-se simplesmente do princípio de que as explicações científicas procedem em termos de entidades e processos naturais (e não sobrenaturais).” De modo semelhante, Michael Ruse: “ Os criacionistas crêem que o mundo começou milagrosamente. Mas os milagres estão fora dos limites da ciência, que por definição lida apenas com o natural, o repetível, o que é regido por leis” (Ruse 1982, 322). Por definição do quê? Por definição do termo “ciência,” supostamente. Mas há então quem pergunte: que dizer do Big Bang? Se afinal for irrepetível, teremos de concluir que não pode ser estudado cientificamente? E considere-se a tese de que a ciência, por definição, lida apenas com o que é regido por leis — leis da natureza, supostamente. Alguns empiristas (em particular, Bas van Fraassen) defendem que não há leis da natureza (só há regularidades): se tiverem razão, seguir-se-á que não há coisa alguma para ser estudada pela ciência? Além disso, apesar de algumas pessoas argumentarem que o NM é uma limitação essencial da ciência, outras põem isso em causa: mas pode uma disputa séria ser resolvida citando apenas uma definição?

Apresentar condições necessárias e suficientes plausíveis da ciência está consequentemente longe de ser trivial; e muitos filósofos da ciência desistiram do “problema da demarcação,” o problema de propor tais condições (Laudan 1988). Talvez o melhor que podemos fazer é apontar para exemplos paradigmáticos de ciência e exemplos paradigmáticos de não-ciência. Claro que pode ser um erro supor que estamos aqui perante uma só actividade, e um só objectivo. As ciências são muitíssimo variáveis; há o género de actividade que ocorre em ramos muitíssimo teóricos da física (por exemplo, investigações sobre o que aconteceu nos primeiros 10-43 segundos, ou a tentativa de descobrir como sujeitar a teoria das cordas a verificação empírica). Mas há também o género de projecto exemplificado por uma tentativa de saber como a população de touconderos respondeu à devastação da selva amazónica ao longo dos últimos vinte e cinco anos. No primeiro tipo de explicação pode fazer sentido pensar que o que se quer é uma teoria empiricamente adequada, pondo-se pelo menos temporariamente entre parêntesis a questão da verdade da teoria. Mas o mesmo não acontece em casos do segundo tipo; aqui, nada servirá a não ser a verdade sóbria.

O mesmo acontece com o naturalismo metodológico. Alguns projectos científicos são claramente limitados pelo NM (veja-se abaixo); uma condição de adequação teórica, nesses casos, será certamente que a explicação em causa seja naturalista. Mas é o NM em si parte da própria natureza da ciência enquanto tal? Segundo Isaac Newton, que se diz muitas vezes ter sido o maior cientista de todos os tempos, as órbitas dos planetas cairiam no caos sem intervenção externa; consequentemente, propôs que Deus ajustava periodicamente as suas órbitas. Apesar de esta ser uma hipótese de que já não precisamos, será óbvio que acrescentá-la à explicação de Newton dos movimentos dos planetas tem como resultado algo que não é realmente ciência? Isso parece desnecessariamente excessivo.

Talvez devamos ver o conceito de ciência como um daqueles conceitos aglomerativos para os quais Tomás de Aquino e Ludwig Wittgenstein chamaram a atenção. Talvez haja várias actividades bastante diferentes a que damos o nome “ciência;” estas actividades relacionam-se entre si por semelhança e analogia, mas não há uma actividade única que seja apenas ciência em si. Há projectos para os quais o critério de sucesso envolve fornecer teorias ¬verdadeiras; há outros onde o critério de sucesso envolve fornecer teorias que são empiricamente adequadas, sejam ou não também verdadeiras. Há projectos limitados pelo NM; há outros projectos que não têm essa limitação. Estes projectos ou actividades caem todos sob o significado do termo “ciência;” mas não há uma actividade única da qual todos sejam exemplos. (Do mesmo modo, o xadrez, o basquetebol e o póquer são todos jogos; mas não há um jogo único do qual todos sejam versões.) Talvez o melhor que podemos fazer, com respeito à caracterização da ciência, é dizer que o termo “ciência” se aplica a qualquer actividade que seja 1) uma actividade sistemática e disciplinada que visa descobrir a verdade sobre o mundo,1 e 2) tem um envolvimento empírico significativo. Isto é, evidentemente, vago (quão sistemática? Quão disciplinada? Quanto envolvimento empírico?) e talvez demasiado tolerante. (A astrologia conta como ciência, ainda que seja má ciência?) Apesar de tudo, temos muitos exemplos excelentes de ciência, e exemplos excelentes de não-ciência.

1.2. Religião

Se é difícil explicar a natureza da ciência, não é muito mais fácil dizer o que é exactamente uma religião. Claro que há muitíssimos exemplos: cristianismo, islamismo, judaísmo, hinduísmo, budismo e muitos outros. Que características são necessárias e suficientes para que algo seja uma religião? Como distinguimos uma religião de um modo de vida, como o confucionismo? Não é fácil dizer. Nem todas as religiões envolvem a crença em algo como o Deus todo-poderoso, omnisciente e moralmente perfeito das religiões teístas, ou até em seres sobrenaturais. (Claro que uma maioria substancial das religiões envolve tais crenças.) Com respeito à nossa investigação, o que é de especial importância é a noção de uma crença religiosa: como tem de ser uma crença para ser religiosa?

Uma vez mais, não é fácil dizer. Para citar uma vez mais o furor quanto ao desígnio inteligente, há quem diga que a proposição de que há um arquitecto inteligente do mundo vivo é religião, e não ciência. Mas nem toda a crença que envolva um arquitecto inteligente — na verdade, nem toda a crença que envolva Deus — é religiosa. Segundo o livro de Tiago do Novo Testamento, “os demónios crêem [que Deus existe] e enchem-se de terror”; as crenças dos demónios não são, presumivelmente, religiosas.2 Uma pessoa poderia propor teorias sobre um ser omnipotente, omnisciente e sumamente bom como parte crucial de um sistema metafísico: a crença em tais teorias não tem de ser religiosa. E que dizer de um sistema de crenças que responde às mesmas grandes questões humanas a que dão resposta os exemplos óbvios de religiões? Questões sobre a natureza fundamental do universo, e do que é sumamente real e básico nele, sobre o lugar dos seres humanos nesse universo, sobre se há pecado ou algo análogo e, se há, o que fazer quanto a isso, se temos de tentar melhorar a condição humana, se os seres humanos sobrevivem às suas mortes e como deve agir uma pessoa racional. Uma vez mais, não é fácil dizer; talvez não. A verdade aqui é, talvez, que uma crença não é religiosa apenas em si. A propriedade de ser religiosa não é intrínseca da crença; é antes uma propriedade que uma crença adquire quando funciona de certo modo na vida de uma dada pessoa ou comunidade. Para ser uma crença religiosa, a crença em questão teria de estar apropriadamente conectada com atitudes caracteristicamente religiosas por parte do crente, nomeadamente atitudes de veneração, amor, compromisso, maravilhamento e afins. Considere-se alguém que crê que a pessoa de Deus existe, certamente, porque a sua existência ajuda a resolver vários problemas metafísicos (por exemplo, sobre a natureza da causalidade, a natureza das proposições, propriedades e conjuntos, e a natureza da função apropriada em criaturas que não sejam artefactos humanos). Contudo, esta pessoa não tem qualquer inclinação para venerar ou amar Deus, nenhum compromisso para tentar levar por diante os projectos de Deus no nosso mundo; talvez, como os demónios, odeie Deus e faça intencionalmente tudo o que pode para frustrar os propósitos de Deus no mundo. Para tal pessoa, a crença de que a pessoa de Deus existe não tem de ser religiosa. Deste modo, é possível que duas pessoas partilhem uma dada crença que funciona como religiosa na vida de apenas uma delas.

Consequentemente, é extremamente difícil apresentar condições necessárias e suficientes (informativas) tanto da ciência como da religião. Talvez para os nossos propósitos presentes isso não seja um problema sério; temos vários excelentes exemplos de cada uma delas, e talvez isso seja suficiente para a nossa investigação.

2. Epistemologia e ciência e religião

Há muitas questões epistemológicas interessantes quanto à ciência. Um tópico central tem sido a subdeterminação da teoria pelos dados: os dados a favor de uma teoria raramente implicam a teoria, caso em que haverá várias teorias empiricamente equivalentes — teorias com as mesmas consequências com respeito à experiência. Podem as teorias empiricamente equivalentes diferir em estatuto ou valor epistémico? Em caso afirmativo, o que faz a diferença? Neste caso é comum apelar para as chamadas virtudes teóricas, como a simplicidade, fecundidade, beleza, etc. O que pensar da “indução pessimista,” segundo a qual quase todas as teorias científicas do passado foram mais tarde rejeitadas? Deve isso reduzir a nossa confiança nas teorias científicas actuais? Das convicções científicas actuais, quantas constituem conhecimento, se é que algumas o são? E até onde vai o método científico? Haverá assuntos que a ciência não tem competência para lidar? É a ciência mais competente para lidar com uns assuntos do que com outros? Os modos científicos de proceder parecem ter sido mais bem-sucedidos nas ciências duras; as ciências humanas parecem ficar para trás. Haverá diferenças quanto à boa fundamentação epistémica entre as diferentes ciências, ou talvez entre as ciências duras e as ciências mais leves? Perguntas deste género, apesar de serem de grande interesse intrínseco, não são directamente relevantes para a nossa investigação. O que é mais importante ver é que a epistemologia da ciência é na realidade a epistemologia das principais faculdades cognitivas humanas: memória, percepção, intuição racional (lógica e matemática), testemunho, talvez a empatia de Reid, indução, etc. O que é característico da ciência é que estas faculdades são empregues de um modo particularmente disciplinado e sistemático, e que há uma ênfase particular na experiência perceptiva.

Com respeito à crença religiosa, também há várias questões epistemológicas. Haverá bons argumentos a favor da existência de Deus? Se não há, é isso importante? É a existência do mal, em todas as horríveis formas que exibe, indício contra a crença teísta? É algo que refuta da crença teísta? E quanto à questão do pluralismo: a religião conhece tantos tipos diferentes — cristianismo, islamismo, judaísmo, hinduísmo, budismo (com diferentes versões de cada tipo), mas também vários tipos menos comuns. Segundo Jean Bodin, “cada uma é refutada por todas” (Bodin 1975, 256); constituirá esta diversidade algo que refuta cada variedade particular de crença religiosa? Algumas doutrinas religiosas — Trindade, Incarnação, Expiação — não são fáceis de entender; significa isso que não podem ser conhecidas ou sequer ser objecto de crença racional? Se a crença religiosa se baseia na fé e não na razão, significa isso que é na melhor das hipóteses seriamente insegura, de modo que é apropriado falar de um “salto de fé” ou de “fé cega”? Estas questões têm sido mais aturadamente investigadas no que respeita à crença cristã; assim, este artigo incide principalmente em algumas questões que dizem respeito à epistemologia da crença cristã.

Para os nossos propósitos, talvez a questão epistemológica central seja esta: qual é a fonte da racionalidade, ou aval, ou estatuto epistémico positivo da crença religiosa, se é que o tem? É do mesmo género do que o que tem a crença nos ensinamentos da ciência actual? São os indícios a favor da crença religiosa, se é que existem, do mesmo género do que os indícios a favor das crenças científicas? Ou há uma fonte especial de estatuto epistémico positivo da crença religiosa? Esta é, na verdade, uma versão contemporânea de uma questão bastante antiga: a questão sobre a relação entre a fé e a razão. Relaciona-se com a questão de haver ou não argumentos cogentes (argumentos racionais, argumentos que emanam do que a razão nos dá) a favor da crença religiosa, e se a existência de argumentos cogentes é necessária para a aceitação racional da crença religiosa.

Aqui, há fundamentalmente duas perspectivas. Segundo o “indiciarismo,” a fonte do estatuto epistémico positivo da crença religiosa, se é que tem tal estatuto, é apenas a razão — o conjunto das faculdades racionais, incluindo, principalmente, a percepção, a memória, a intuição racional, o testemunho, etc. A fonte do estatuto epistémico positivo da crença religiosa é, consequentemente, a mesma que existe para a crença científica. Esta perspectiva remonta pelo menos a John Locke (1689) e tem representantes contemporâneos proeminentes. Deste ponto de vista, a existência de argumentos cogentes a favor da crença religiosa é uma condição necessária da aceitação racional dessa crença, ou pelo menos está intimamente relacionada com a aceitação racional. Algumas pessoas que aceitam este ponto de vista crêem que esses argumentos cogentes não existem; assim, rejeitam a crença religiosa por ser infundada e racionalmente inaceitável (Mackie 1982); outros sustentam que há de facto excelentes argumentos a favor do teísmo, e até especificamente a favor da crença cristã. Aqui o porta-voz contemporâneo mais proeminente seria Richard Swinburne, cuja obra dos últimos trinta anos, aproximadamente, teve como resultado o desenvolvimento mais poderoso, completo e sofisticado da teologia natural que o mundo viu até hoje (veja-se, e.g., Swinburne 1979, 2004; 1981, 2005).

A outra perspectiva principal, adoptada, por exemplo, por Tomás de Aquino (Summa Theologiae) e João Calvino (1559), é que 1) a crença em Deus e 2) os ensinamentos cristãos podem ser objecto de aceitação racional ainda que não existam argumentos cogentes a seu favor que partam do que a razão nos oferece; têm uma fonte de aval ou estatuto epistémico positivo independente do que a razão nos dá. Este ponto de vista tem também representação contemporânea proeminente (Alston 1991; Plantinga e Wolterstorff 1984; Plantinga 2000). Usando a terminologia de Calvino, há o sensus divinitatis, que é uma fonte de crença em Deus, e o testemunho interno do Espírito Santo, que é a fonte da crença nas doutrinas próprias do cristianismo. As crenças produzidas por estas fontes ultrapassam a razão no sentido em que a fonte do seu aval não é o que a razão nos dá; claro que não se segue que tais crenças são irracionais, ou contrárias à razão; nem se segue que há algo nelas de especialmente arriscado ou inseguro, ou incerto, como se a fé fosse necessariamente cega ou um salto no escuro. Na verdade, João Calvino define a fé como “um conhecimento firme e certo da benevolência de Deus para connosco […]” (Calvino 1559, p. 551, itálico meu). Deste ponto de vista, a religião e a fé têm uma fonte de crença apropriadamente racional independente da razão e da ciência; seria portanto possível que a religião e a fé corrigissem a ciência e a razão, e também que fossem por estas corrigidas.

Há alguma razão para pensar que se o teísmo for de facto verdadeiro, se realmente houver uma pessoa todo-poderosa, omnisciente e perfeitamente boa que criou o mundo e os seres humanos à sua imagem, então a crença religiosa será independente dos argumentos baseados na razão; não exigirá tais argumentos para ser racional ou ter estatuto epistémico positivo. Pois se o teísmo for verdadeiro, Deus presumivelmente quererá que os seres humanos conheçam a sua presença (e de facto a vasta maioria da população humana acredita em Deus ou algo parecido a Deus); disporá portanto as coisas de modo a que os seres humanos sejam capazes de ter conhecimento de si. Mas se o conhecimento de Deus dependesse dos argumentos teístas, ou de outros argumentos que resultam do que a razão nos dá, então, como afirma Tomás, só alguns seres humanos chegariam ao conhecimento desta verdade, e mesmo assim só depois de muito tempo, e com uma mistura substancial de erro.

3. Conflito e concórdia

3.1. Concórdia

Comecemos com a concórdia. Os primeiros pioneiros e heróis da ciência ocidental — Copérnico, Galileu, Kepler, Newton, Boyle, etc. — eram todos seriamente cristãos, ainda que ocasionalmente, como no caso de Newton, não fossem cristologicamente ortodoxos. Além disso, muitos autores (Foster 1934, 1935, 1936; Ratzsch 2009) fizeram notar que a crença teísta e a ciência empírica exibem uma concórdia profunda, combinando-se bem entre si. Isto resulta em parte das doutrinas da criação que as religiões teístas abraçam — em particular, dois aspectos dessas doutrinas. Primeiro, há a ideia de que Deus criou o mundo, tendo também consequentemente, é claro, criado os seres humanos. Além disso, criou os seres humanos à sua imagem. Ora Deus, segundo a crença teísta, é uma pessoa: um ser que tem conhecimento, afeição (gosta de umas coisas e não de outras) e vontade executiva, podendo agir com base nas suas crenças para atingir os seus fins. Uma das características centrais da imagem divina nos seres humanos é, então, a capacidade para formar crenças e adquirir conhecimento. Como afirmou Tomás de Aquino, “Uma vez que se diz que os seres humanos foram feitos à imagem de Deus em virtude de terem uma natureza que inclui um intelecto, tal natureza é à imagem de Deus sobretudo em virtude de ser o que mais consegue imitar Deus” (ST Ia q. 93 a. 4). Deus criou portanto quer os seres humanos quer o mundo, e dispôs as coisas de modo a que os primeiros conheçam o segundo. Concebendo a ciência no seu nível mais básico como o projecto de adquirir conhecimento de nós e do nosso mundo, é claro, desta perspectiva, que a doutrina da imago dei subscreve este projecto. Na verdade, a ciência é um exemplo claro do desenvolvimento e aprofundamento da imagem de Deus nos seres humanos, tanto individual como colectivamente.

Segundo, há o pensamento de que a criação divina é contingente. Segundo o teísmo, muitas das propriedades de Deus — a sua omnisciência e omnipotência, a sua bondade e amor — são-lhe essenciais: tem-nas em todos os mundos possíveis em que existe. (E uma vez que, segundo o pensamento teísta, Deus é um ser necessário, existindo em todos os mundos possíveis, tem essas propriedades em todos os mundos possíveis.) Mas isso não acontece, contudo, com a sua propriedade da criação. Deus não está obrigado, pela sua natureza ou seja pelo que for, a criar o mundo; trata-se, antes, de uma acção livre da sua parte. Além disso, quando Deus cria, não está obrigado a fazê-lo de qualquer modo particular, nem a criar quaisquer tipos particulares de seres; que tenha criado os tipos de coisas que efectivamente encontramos é uma vez mais contingente, uma acção livre da sua parte.

É esta doutrina da contingência da criação divina que subjaz ao carácter empírico da ciência ocidental moderna (Ratzsch, 2009). Pois o domínio do necessário é (na sua maior parte) o domínio do conhecimento a priori; é onde temos a matemática e a lógica e grande parte da filosofia.3 O que é contingente, por outro lado, é o território ou domínio do conhecimento a posteriori,4 o género de conhecimento produzido pela percepção, memória e os métodos empíricos da ciência. Esta relação entre a contingência da criação e a importância do empírico foi reconhecida desde muito cedo. Assim, escreveu Roger Cotes, no prefácio ao Principia Mathematica, de Newton:

“Sem dúvida alguma, este mundo, tão diversificado com essa pluralidade de formas e movimentos que nele encontramos, de nada poderia provir senão da vontade perfeita de Deus, dirigindo-o e presidindo-o.

É desta fonte que essas leis, a que chamamos leis da natureza, fluíram, e nas quais se vê muitos traços do mais sábio engenho, mas nem a mínima sombra de necessidade. Esta,consequentemente, não devemos procurar partindo de conjecturas incertas, mas antes descobrir pela observação e pela experimentação.” (Cotes 1953, 132-133; itálicos meus)

O que vimos é que, de certo modo, a crença teísta sustenta a ciência moderna ao permitir ou sancionar todo o projecto da investigação empírica; afirma-se também por vezes que a ciência sustenta a crença teísta. Neste caso, há vários argumentos, que historicamente se agruparam em dois tipos básicos: biológicos e cosmológicos. Um exemplo do primeiro tipo é o argumento proposto por Michael Behe (Behe, 1996), segundo o qual algumas estruturas ao nível molecular exibem uma “complexidade irredutível.” Estes sistemas exibem várias partes que se ajustam delicadamente e interagem entre si, sendo que todas têm de estar presentes e funcionando apropriadamente para que o sistema faça o que faz; a eliminação de qualquer das partes impediria o seu funcionamento. Entre os fenómenos que Behe cita encontra-se o estolho bacteriano, os cílios usados por vários tipos de células para se locomoverem, entre outras funções, a coagulação do sangue, o sistema imunitário, o transporte de materiais nas células e a sequência incrivelmente complexa e em cascata de reacções bioquímicas e acontecimentos que ocorrem na visão. Tais estruturas e fenómenos irredutivelmente complexos, defende, não poderiam ter surgido por evolução darwinista gradual, passo-a-passo (sem a intervenção da mão de Deus ou de qualquer outra pessoa); em qualquer caso, a probabilidade de isso acontecer seria diminuta. Estes são exemplos que apresentam, pois, o que Behe denomina um desafio liliputiano ao darwinismo cego; se ele tiver razão, constituem também um desafio colossal ao darwinismo. Mas não se limitam a pôr em causa o darwinismo; foram também, afirma, obviamente concebidos; que foram concebidos é tão óbvio como um elefante numa sala de estar: “para uma pessoa que não se sinta obrigada a restringir a sua procura a causas não-inteligentes, a conclusão directa é que muitos sistemas bioquímicos foram concebidos” (Behe, p. 193). Outros, por exemplo, Paul Draper (2002) e Kenneth R. Miller (1999, 130-64), argumentam que Behe não provou o que pretendia.

Um segundo tipo de argumento a favor do teísmo parte do ajustamento delicado aparente de vários parâmetros físicos. A partir dos anos sessenta e do começo dos setenta, os astrofísicos, entre outros, deram-se conta que várias das constantes físicas básicas têm de se situar dentro de limites muito estreitos para que a vida inteligente se desenvolva — em qualquer caso, de um modo semelhante ao que pensamos que efectivamente ocorreu. Assim, B. J. Carr e M. J. Rees:

“As características básicas das galáxias, estrelas, planetas e do mundo quotidiano são essencialmente determinadas por algumas constantes microfísicas e pelos efeitos da gravitação […] Vários aspectos do nosso universo — alguns dos quais parecem pré-requisitos para a evolução de qualquer forma de vida — dependem muito delicadamente de “coincidências” aparentes entre as constantes físicas.” (Carr e Rees, 1979, 605).

Por exemplo, se a força da gravidade fosse mais forte, ainda que ligeiramente, todas as estrelas seriam gigantes azuis; se fosse muito ligeiramente mais fraca, todas seriam anãs vermelhas; em nenhum desses casos poderia a vida ter-se desenvolvido (Carter 1979, 72). O mesmo se pode dizer das forças nucleares fracas e fortes; se qualquer delas tivesse sido ainda que ligeiramente diferente, a vida, em qualquer caso a vida do género que temos, não poderia provavelmente ter-se desenvolvido.

Aparentemente, a vida é possível apenas porque o universo está a expandir-se na proporção exactamente necessária para evitar o colapso. E no passado o ajuste delicado teve de ser ainda mais extraordinário:

“[…] sabemos que teve de ter havido um equilíbrio muito delicado entre os efeitos contrários da expansão explosiva e da contracção gravitacional que, na época mais recuada sobre a qual podemos sequer fingir falar (denominada tempo de Planck, 10-43segundos depois do Big Bang), teria correspondido ao grau incrível de precisão representado por um desvio da unidade no seu rácio de apenas uma parte em 10 elevado à sexagésima.” (Polkinghorne 1989, 22)

Outros exemplos: o valor da constante cosmológica, do valor da expectativa de vácuo do campo de Higgs, e o rácio da massa entre o protão e o electrão têm de estar delicadamente ajustados num grau incrível para que o universo permita a vida (Barr 2003, 123-130). Uma explicação particularmente bem informada e tecnicamente pormenorizada de alguns destes ajustamentos delicados encontra-se em Robin Collins, “Evidence of Fine-Tuning” (Collins 2003). Há quem considere que estas enormes coincidências aparentes substanciam a tese teísta de que o universo foi criado por um Deus pessoal que tem a intenção de que haja vida, e na verdade vida inteligente; consideram que o ajustamento delicado oferece os elementos para um argumento teísta apropriadamente restringido. Estes argumentos assumem várias versões; talvez a mais bem-sucedida delas seja a que argumenta que a probabilidade epistémica destes fenómenos de ajuste delicado é muito maior sob a hipótese teísta do que a sua probabilidade epistémica sob a hipótese ateísta do acaso. Aqui, a conclusão não é (enquanto tal) que o teísmo é provavelmente verdadeiro, mas antes que o teísmo é muito mais bem sustentado por estes fenómenos do que a hipótese do acaso (Swinburne 2003; Collins 1999).

As objecções são muito diversificadas. Há quem ofereça estes argumentos, em particular quem está associado ao chamado movimento do “Desígnio Inteligente,” considerando-os contribuições para aciência e não para a filosofia ou para a teologia; a objecção mais comum é que não obedecem às condições necessárias para ser ciência, em particular porque a conclusão, que o universo foi concebido por um ser inteligente, não é falsificável. Outros há (como vimos) que respondem que a falsificabilidade não é comummente uma propriedade de proposições individuais, mas antes de teorias completas, e que as teorias que envolve o desígnio inteligente podem muito bem ser falsificáveis.

Uma objecção mais interessante aos argumentos do ajuste delicado é a sugestão da “multiplicidade de universos”: talvez haja muitíssimos universos ou mundos diferentes, talvez em número infinito; as constantes cosmológicas assumem diferentes valores em mundos diferentes, de modo que muitíssimos conjuntos diferentes de tais valores (talvez todos os possíveis) são exemplificados num ou noutro mundo. Não poderia haver um ciclo eterno de “Big Bangs,” seguidos de expansão até um certo limite, e depois uma contracção até ao “Big Crunch,” no qual os valores cosmológicos são arbitrariamente reiniciados? (Dennett 1995, 179) Alternativamente, não poderia ter ocorrido que no Big Bang houve uma inflação inicial enorme, resultando daí muitos cosmoi, com muitos valores diferentes nas suas constantes físicas? Em qualquer dos casos não é surpreendente que num ou noutro dos universos resultantes, os valores das constantes cosmológicas sejam tais que permitam a vida. Nem é surpreendente que o universo em que nos encontramos tenha valores que permitam a vida; não poderíamos existir em qualquer outro. Sendo assim, o argumento do ajuste delicado não é eficaz: a probabilidade de haver ajuste delicado dada a hipótese da pluralidade de mundos juntamente com o ateísmo é pelo menos tão grande quanto a probabilidade do ajuste delicado juntamente com o teísmo. Há respostas (por exemplo, que nesta maneira de ver as coisas teria de haver um gerador de universos que estivesse, também ele, delicadamente ajustado (Collins 1999), ou que mesmo que seja provável que alguns universos estejam delicadamente ajustados, continua a ser verdade que a probabilidade de que este universo esteja delicadamente ajustado não é afectada pela sugestão do pluriverso (White 2003)) e respostas às respostas, etc.; não há consenso, o que não é surpreendente, quanto a saber se estes argumentos do ajuste delicado são bem-sucedidos.

3.2. Conflito?

A doutrina cristã da criação sustenta uma concórdia profunda entre a crença cristã e a ciência; contudo, é claro que é compatível com este género de concórdia que também haja conflito. Muitos autores afirmaram existir conflito, ou até guerra, entre a religião e a ciência (Draper 1875; White 1895). Isto é certamente demasiado forte; mas é óbvio que a relação entre as duas nem sempre tem sido suave e irénica. Há o famoso incidente de Galileu, muitas vezes retratado como uma disputa no seio da hierarquia católica, representando as forças da repressão e da tradição, a voz do velho mundo, a mão morta do passado, e, por outro lado, as forças do progresso e a suave voz da razão e da ciência. Este modo de ver a questão é simplista (Brooke 1991, 8-9); em causa estavam muitos outros factores. O pensamento aristotélico dominante do dia era fortemente apriorístico; logo, parte do que estava em causa era uma disputa sobre a importância relativa da observação e do pensamento a priori na astronomia. Em causa estavam também questões sobre o que a Bíblia cristã (e judaica) ensina nesta área: será que uma passagem como a de Josué 10:12-15 (em que Josué ordenou ao Sol para se imobilizar) favorece o sistema ptolemaico em detrimento do coperniciano? E é claro que as questões habituais de poder e autoridade estavam também presentes.5

Mais recentemente, um lugar central de alegado conflito tem sido a teoria da evolução. Este pânico particular está, é claro, ainda muito presente. Muitos fundamentalistas cristãos aceitam uma interpretação literal da narrativa da criação dos primeiros dois capítulos do Génesis; consideram por isso incompatíveis as explicações darwinistas contemporâneas das nossas origens e a fé cristã, pelo menos tal como a entendem. Muitos fundamentalistas darwinistas (como o falecido Stephen J. Gould lhes chamava) aceitam essa moção: também eles defendem que há conflito entre a evolução darwinista e a crença cristã ou teísta clássica. Os contemporâneos que defendem esta perspectiva do conflito incluem, por exemplo, Richard Dawkins (1986, 2003) e Daniel Dennett (1995). Uma parte importante do alegado conflito depende da crença cristã de que os seres humanos e as outras criaturas foram concebidos — concebidos por Deus; segundo a evolução, contudo (pelo que dizem Dawkins e Dennett), os seres humanos não foram concebidos, sendo antes produto do processo cego sem direcção da selecção natural, operando sobre uma fonte de variação genética como a mutação genética. Eis Dawkins:

“Apesar das aparências em contrário, o único relojoeiro na natureza é as forças cegas da física, ainda que aplicadas de uma maneira muito especial. Um verdadeiro relojoeiro é dotado de antevisão: concebe as suas engrenagens e molas, e planeia as suas interconexões, tendo em mente um propósito futuro. A selecção natural, e o processo automático cego, inconsciente, que Darwin descobriu, e que sabemos hoje ser a explicação da existência e da forma aparentemente dotada de propósito de toda a vida, não tem em mente qualquer propósito. Não tem mente e não tem seja o que for em mente. Não planeia em função do futuro. Não tem qualquer visão, antevisão, não vê coisa alguma. Se podemos dizer que desempenha o papel de relojoeiro na natureza, é o relojoeiro cego.” (Dawkins 1986, 5)

Outros autores fazem notar que este suposto conflito está longe de ser óbvio. A característica central da doutrina moderna da evolução é que a força motriz do processo é a selecção natural, peneirando uma forma de variação genética, sendo a mais popular a mutação genética aleatória. Não faz parte da teoria a afirmação de que estas mutações ocorrem apenas ao acaso no sentido em que esse termo sugere que não têm causa; são aleatórias apenas no sentido em que não emergem do plano arquitectónico das criaturas que as sofrem, e não ocorrem para melhorar a capacidade reprodutiva do organismo. Eis Ernst Mayr, o decano da biologia do pós-guerra: “Quando se afirma que a mutação ou variação é aleatória, isto quer simplesmente dizer que não há qualquer correlação entre a produção de novos genótipos e as necessidades adaptativas de um organismo no meio ambiente em causa” (Mayr 1998, 98). Sendo assim, a evolução, tal como é actualmente formulada e entendida, é perfeitamente compatível com um deus que orquestre e supervisione todo o processo; na verdade, é perfeitamente compatível com essa teoria que Deus cause as mutações genéticas que são peneiradas pela selecção natural. Quem defende que a evolução mostra que a humanidade e as outras coisas vivas não foram concebidas, defendem os seus oponentes, confundem uma interpretação naturalista da teoria científica com a própria teoria. A afirmação de que a evolução demonstra que os seres humanos e as outras criaturas vivas não foram concebidas, contra todas as aparências, não faz parte nem é uma consequência da teoria científica, mas antes um acrescento metafísico ou teológico (van Inwagen 2003).6

Uma segunda área de alegado conflito tem a ver com a acção divina no mundo. Segundo a religião teísta clássica, Deus criou o mundo; também o sustém e preserva, mantendo-o em existência. Sem a sua actividade de preservação, o mundo desapareceria como a chama de uma vela ao vento. Assim, há criação e preservação; mas, afirmam as religiões teístas clássicas, há também acção divinaespecial, acção que vai além da criação e da preservação. Há milagres relatados tanto na Bíblia judaica como na cristã: a separação das águas do Mar Vermelho, por exemplo, assim como Jesus caminhando sobre as águas, o fornecimento de alimento a cinco mil pessoas, e o renascimento dos mortos. Os milagres são igualmente relatados no Alcorão. Muitos crentes não pensam que estas acções divinas especiais se restringem aos tempos bíblicos: ainda hoje Deus responde às orações e efectua curas milagrosas. Além disso, segundo o modo cristão de pensar, Deus opera nos corações e espíritos dos seus filhos, de modo a produzir a fé; Tomás de Aquino chamou a esta actividade divina “o incitamento interno do Espírito Santo” e João Calvino chamou-lhe “o testemunho interno do Espírito Santo.” Todos estes seriam exemplos de acção divina especial.

Ora, há quem veja aqui um conflito com a ciência moderna. Entre esses autores conta-se Langdon Gilkey:

“[…] A teologia contemporânea não espera, nem fala, de acontecimentos divinos assombrosos à superfície da vida natural e histórica. O nexo causal no espaço e no tempo que a ciência e filosofia do Iluminismo introduziram na mentalidade ocidental […] é também pressuposto pelos teólogos e estudiosos modernos; uma vez que participam no mundo moderno da ciência, tanto intelectual como existencialmente, dificilmente poderiam fazer outra coisa. Ora, este pressuposto de uma ordem causal entre os acontecimentos fenoménicos, e portanto da autoridade da interpretação científica dos acontecimentos observáveis, faz uma grande diferença no que respeita à validade que se atribui às narrativas bíblicas, e portanto ao modo como se entende o seu significado. Subitamente, uma vasta panóplia de feitos divinos e acontecimentos registados na escritura não são já encarados como se tivessem efectivamente acontecido […] Seja o que for que os hebreus acreditavam, nós acreditamos que as pessoas bíblicas viviam no mesmo contínuo causal do espaço e do tempo em que nós vivemos, e portanto um contínuo em que não ocorrem quaisquer prodígios divinos nem se ouve quaisquer vozes divinas.” (Gilkey 1983, 31)

Claro que muitos filósofos e cientistas concordariam. O problema é, supostamente, a acção especialde Deus no mundo; não há qualquer problema particular no que respeita à criação e preservação, mas a acção divina para lá disso é largamente considerada incompatível com a ciência moderna. Onde se considera exactamente que surge a incompatibilidade? Ao que parece, a ideia é que a actividade divina especial seria incompatível com as leis da natureza que a ciência põe a descoberto. Eis o distinto biólogo H. Allen Orr:

“Não que algumas facções de uma religião invoquem milagres: muitas facções de muitas religiões o fazem. (Afinal, Moisés separou as águas e Krishna curou os doentes.) Concordo, é claro, que nenhum cientista sensato pode tolerar tais excepções no que respeita às leis da natureza.” (Orr, 2004)

Ora, Gilkey, como outros autores, pensa aparentemente em termos de uma mundividêncianewtoniana, segundo a qual o universo é como uma máquina gigantesca que funciona segundo as leis postas a nu pela ciência. Mas isto não é suficiente para a teologia do afastamento e da não-intervenção destes teólogos. Afinal de contas, o próprio Newton, supostamente, aceitava a mundividência newtoniana, mas propôs que Deus ajustava periodicamente as órbitas planetárias, que sem isso, segundo os seus cálculos, dariam gradualmente para o torto. O que Gilkey e os seus amigos acrescentam aqui, aparentemente, é o determinismo: a ideia de que as leis da natureza, juntamente com o estado do universo em qualquer momento dado, implicam o estado do universo em qualquer outro momento. A fonte clássica aqui é Pierre Laplace:

“Devemos encarar o estado presente do universo como o efeito do seu estado anterior e como a causa do que se lhe seguirá. Dado, por um instante, um espírito que pudesse compreender todas as forças que animam a natureza, e a situação respectiva dos seres que a compõem — um espírito suficientemente vasto para analisar estes dados — esse espírito abrangeria na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e do menor dos átomos; para ele, nada seria incerto e o futuro, como o passado, estaria presente aos seus olhos.” (Laplace 1796)

É a mundividência de Laplace que aparentemente anima Gilkey, et al. Vale a pena fazer notar, contudo, que o determinismo e a mundividência laplaciana não se seguem da ciência clássica. Isto porque as grandes leis da conservação deduzidas das leis de Newton são formuladas para sistemasfechados ou isolados. Eis Sears e Zemansky (1963):

“O princípio da conservação da energia afirma que a energia interna de um sistema isolado permanece constante. Esta é a formulação mais geral do princípio da conservação da energia.” (p. 415)

As leis de Newton (tal como a posterior física da electricidade e do magnetismo de Maxwell) aplicam-se a sistemas isolados ou fechados; descrevem como o mundo funciona desde que o mundo seja um sistema fechado (isolado), não estando sujeito a qualquer influência causal externa. Mas não faz parte da mecânica newtoniana nem da ciência clássica em geral a declaração de que o universo material é realmente um sistema fechado. (Como poderia uma coisa dessas ser verificada experimentalmente?) Logo, nada há na ciência clássica (pelo menos nesta área) que seja incompatível com Deus mudar a velocidade ou direcção de uma partícula, ou de todo um sistema de partículas (ou, já agora, com a criação ex nihilo de um cavalo adulto). A energia, a força cinética e coisas do género conservam-se num sistema fechado; mas a tese de que o universo material é de facto um sistema fechado não faz parte da física clássica; é um acrescento metafísico ou teológico. Logo, não há conflito entre a física clássica e a acção divina especial no mundo.

Esta imagem clássica, laplaciana, foi, evidentemente, ultrapassada pelo desenvolvimento da mecânica quântica, que começou nos primeiros pares de décadas do séc. XX. Segundo a mecânica quântica, associado a qualquer sistema físico, um sistema de partículas, por exemplo, há uma função de onda cuja evolução ao longo do tempo é regida pela equação de Schrödinger para esse sistema. Ora, o interessante no que respeita à mecânica quântica é que, ao contrário da mecânica clássica, não especifica nem prevê uma configuração única para este sistema de partículas num momento futuro do tempo, t. A função de onda atribui um valor em t a cada uma das configurações possivelmente resultantes das condições iniciais; pela aplicação da regra de Born a esses valores, obtemos uma atribuição de probabilidades a cada uma dessas possíveis configurações em t. Assim, não nos é dito que configuração irá de facto resultar (dadas as condições iniciais) quando o sistema é medido em t; ao invés, é-nos dada uma distribuição de probabilidades para os muitos resultados possíveis. É claro que os milagres (a separação das águas, o renascimento dos mortos, etc.) não são incompatíveis com estas atribuições. (Sem dúvida que a tais acontecimentos seriam atribuídas probabilidades muito baixas; mas é claro que não precisamos da mecânica quântica para saber que tais acontecimentos são improváveis.) Além disso, em interpretações em termos de colapso, como as de Ghirardi, Rimini e Weber, há muito espaço para a actividade divina. Na verdade, Deus pode ser afinal a causa dos colapsos, e do modo como ocorrem (i.e., sendo P a possibilidade que é efectivada em t, pode ser Deus a causa de P se efectivar em t). (Isto poderia talvez ser visto como um meio caminho entre o ocasionalismo e a causalidade secundária.) Com o advento da mecânica quântica, portanto, parece haver ainda menos razão para ver a acção divina especial no mundo como uma coisa que de algum modo é incompatível com a ciência.

Contudo, muitos autores inteiramente cientes da revolução da mecânica quântica vêem mesmo assim um problema na acção divina especial. Por exemplo, há o “Divine Action Project” (Wildman 1988-2003, 31-75), uma série de conferências e publicações com quinze anos que começou em 1988. Até agora, estas conferências resultaram em seis volumes de ensaios, envolvendo pelo menos cinquenta ou mais autores de vários campos da ciência, juntamente com filósofos e teólogos, incluindo muitos dos mais proeminentes autores da área. A maior parte destes autores consideram problemática a acção divina especial. Isto porque crêem que uma explicação satisfatória da acção de Deus no mundo teria de ser não-intervencionista, como Wildman afirma. Eis Arthur Peacocke, comentando uma certa proposta de acção divina:

“Deus teria de ser concebido como alguém que efectivamente manipula micro-acontecimentos (aos níveis, atómico, molecular e, segundo alguns autores, quântico) nestas flutuações iniciais do mundo natural para produzir os resultados a nível macroscópico que Deus quer. Mas tal concepção da acção de Deus […] não seria então diferente em princípio da intervenção de Deus na ordem da natureza, com todos os problemas que isso evoca com respeito a uma crença racionalmente coerente em Deus como o criador dessa ordem.” (Peacocke 2004)

O projecto é assim, aparentemente, desenvolver uma concepção da acção divina especial (acção para lá da criação e da preservação) que não envolva intervenção. Mas o que seria a intervenção na imagem da mecânica quântica? Não é fácil dizer. Na verdade, não é fácil ver como a intervenção poderia ser diferente da acção divina para lá da criação e da preservação. Contudo, se não há qualquer diferença entre elas, a acção divina especial seria apenas intervenção, caso em que o projecto de desenvolver uma concepção da acção divina especial que não envolva intervenção não é promissora.

Mesmo assim, uma terceira área de alegado conflito entre a crença religiosa e a ciência tem a ver com as diferentes atitudes epistémicas associadas a cada uma delas. Eis, por exemplo, John Worrall:

“A ciência, ou antes, a atitude científica, é incompatível com a crença religiosa. A ciência e a religião estão num conflito irreconciliável […] Não há maneira de ter uma mentalidade apropriadamente científica e ser um verdadeiro crente religioso.” (Worrall 2004, p. 60).

Na ciência, a atitude epistémica dominante (segundo esta tese) é a investigação empírica crítica, propondo teorias que são sustentadas hipotética e temporariamente; estamos sempre dispostos a abandonar uma teoria a favor de uma sucessora mais satisfatória. Na crença religiosa (e.g., cristã), a atitude epistémica da  desempenha um papel importante, uma atitude que difere tanto quanto à fonte da crença em questão, como na disponibilidade para a abandonar.

Outros autores (Ratzsch, 2004), contudo, fazem notar que não há aqui obviamente um conflito. É claro que essas duas atitudes são diferentes, e talvez não possam ser assumidas simultaneamente com respeito à mesma proposição. Mas mostra isso um conflito entre a ciência e a crença religiosa? Talvez alguns modos de formar crenças sejam apropriados numa área e outros modos noutras áreas. Para que tenhamos um conflito, temos de acrescentar que a atitude epistémica científica é a única apropriada a qualquer área de actividade cognitiva. Esta tese, contudo, não é em si parte da atitude científica; é uma declaração epistemológica, a favor da qual se exige argumentação substancial (mas que até agora não é visível). Além disso, não parece que os próprios cientistas assumam a atitude epistémica científica (acima caracterizada) com respeito a tudo o que acreditam, ou mesmo com respeito a tudo o que acreditam como cientistas. Assim, é comum que os cientistas acreditem que houve passado, e na verdade dizem-nos muitas vezes há quanto tempo a Terra, ou a nossa galáxia, ou até o universo inteiro, se formou. Os cientistas raramente sustentam esta crença — que houve passado — em resultado da investigação empírica; nem comummente a sustentam desse modo hipotético, crítico, procurando sempre uma alternativa melhor.

Consequentemente, nestas áreas é difícil encontrar conflito entre a crença religiosa teísta e a ciência contemporânea.

4. Onde  conflito?

Parece haver outras áreas da ciência, contudo, que produzem conflito. Primeiro, há a disciplina relativamente nova mas em rápido crescimento da psicologia evolutiva. A alma e coração deste projecto é o esforço para explicar traços distintamente humanos — a nossa arte, humor, ludicidade, poesia, sentido de aventura, gosto por histórias, a nossa música, a nossa moralidade e a nossa religião — em termos da nossa origem e história evolutiva. E aqui encontramos realmente teorias incompatíveis com a crença religiosa. Um tópico importante nesta área tem sido o comportamento altruísta — comportamento que promove a boa adaptação reprodutiva de outra pessoa às custas da boa adaptação reprodutiva do próprio altruísta. Como explicar que haja pessoas como os missionários e a Madre Teresa, pessoas que dedicam as suas vidas ao serviço dos outros, dando pouca atenção às suas próprias perspectivas reprodutivas? Herbert Simon procura explicar o altruísmo de um ponto de vista evolutivo, em termos de dois mecanismos, a docilidade e a racionalidade limitada:

“As pessoas dóceis tendem a aprender e acreditar no que pensam que os outros membros da sociedade querem que elas aprendam e creiam. Assim, o conteúdo do que aprendem não será completamente analisado quanto ao contributo dado à boa adaptação reprodutiva.

Devido à racionalidade de grupo, o indivíduo dócil será muitas vezes incapaz de distinguir entre os comportamentos socialmente prescritos que contribuem para a boa adaptação e o comportamento altruísta [i.e., o comportamento socialmente prescrito que não contribui para a boa adaptação]. De facto, a docilidade irá reduzir a inclinação para avaliar de modo independente quão contribui um comportamento para a boa adaptação […]. Em virtude da racionalidade de grupo, a pessoa dócil não pode adquirir a aprendizagem pessoalmente vantajosa que fornece o incremento de boa adaptação sem adquirir também os comportamentos altruístas que têm como custo a sua diminuição.” (Simon 1990, 3, 4)

A teoria de Simon foi cuidadosamente trabalhada e bem desenvolvida, sendo de considerável interesse; é também incompatível com a crença religiosa. Segundo esta teoria, a explicação do comportamento altruísta consiste em não se ver que o comportamento em questão compromete a boa adaptação evolutiva. Assim, segundo a teoria de Simon, a resposta à pergunta “Por que razão se comporta a Madre Teresa de um modo que compromete a sua boa adaptação evolutiva?” é “Devido à racionalidade de grupo, ela é incapaz de ver que o seu modo de se comportar compromete a sua boa adaptação.” De uma perspectiva cristã, esta não é de modo algum a resposta correcta, que seria algo como “Ela quer seguir o exemplo de Jesus, fazendo o que pode para ajudar os pobres e doentes.”

Outro exemplo desta área é fornecido por muitas teorias da religião e da crença religiosa. Segundo algumas destas teorias, a crença religiosa é falsa, mas adaptativa; segundo outras, é falsa e contra-adaptativa. Um exemplo do primeiro grupo seria a teoria proposta por David Sloan Wilson, que afirma que a religião é uma adaptação de grupo: “Muitas características da religião, como a natureza dos agentes sobrenaturais e as suas relações com os seres humanos, podem ser explicadas como adaptações concebidas para permitir que os grupos de seres humanos funcionem como unidades adaptativas” (Wilson 2002, p. 51). A crença religiosa, afirma, é fictícia, mas adaptativa a nível de grupo: promove a cooperação, o respeito mútuo e a solidariedade, permitindo assim que o grupo se saia bem em competição com outros grupos.

Que a religião possa funcionar como uma adaptação de grupo é, evidentemente, consistente com a crença teísta; e que dizer do pedaço sobre a crença religiosa — a crença teísta, por exemplo — ser fictícia? Como poderia a tese de que a pessoa de Deus não existe fazer parte da ciência empírica? E mesmo que o pudesse, a teoria de Wilson, ao que parece, estaria em terreno mais sólido se esse acrescento teológico facilmente eliminável fosse excluído. O que não é tão fácil de excluir é a tese de que a crença religiosa (ao contrário da memória, crenças perceptivas, intuição racional) é produzida por faculdades cognitivas ou processos que não visam a produção de crenças verdadeiras. Segundo Wilson, estes processos ou faculdades têm uma função que lhes foi conferida pela evolução; mas essa função não é a de produzir crenças verdadeiras. É antes a função de produzir crenças que promovam a cooperação e a solidariedade; em última análise, a sua função é fornecer crenças que são adaptativas, i.e., promovem a boa adaptação reprodutiva.

Neste ponto, uma comparação com a perspectiva de Sigmund Freud da crença teísta pode ser esclarecedor. Freud sustenta que a crença teísta é uma ilusão. Isto não significa que seja falsa (apesar de Freud pensar que é falsa); o que significa é que a crença teísta é produzida por um processo cognitivo (sonhar alto) que não se “orienta pela realidade”; o seu propósito não é a produção da crença verdadeira, mas (neste caso) uma crença que permita ao crente evitar a depressão e apatia que se instalaria se ele visse claramente a miserável chocante condição em que os seres humanos se encontram. A perspectiva de Wilson é assim como a de Freud, uma vez que também ele propõe que a crença teísta é produzida por faculdades cognitivas que não se orientam pela realidade. Ao passo que Freud assume uma perspectiva pessimista da crença teísta, Wilson é muito mais elogioso:

“Em primeiro lugar, muitas crenças religiosas não estão separadas da realidade […] Ao invés, estão intimamente conectadas com a realidade, motivando comportamentos que são adaptativos no mundo real — um feito espantoso quando nos damos conta da complexidade exigida para ficarmos conectados neste sentido prático […]. A adaptação é o padrão máximo contra o qual a racionalidade tem de ser ajuizada, juntamente com todas as outras formas de pensamento. Os biólogos evolucionistas devem entender este aspecto especialmente bem porque estão cientes de que uma mente bem adaptada é em última análise um órgão de sobrevivência e reprodução.” (Wilson 2002, p. 228)

Apesar de Wilson dirigir palavras simpáticas à religião, a sua tese de que a crença religiosa não visa a verdade é incompatível com a crença religiosa teísta. Segundo o cristianismo, por exemplo, a fé, incluindo a crença nos aspectos essenciais da fé cristã, é uma dádiva divina; e o processo de a produzir no crente (o incitamento interno do Espírito Santo, segundo Tomás de Aquino, o testemunho interno do Espírito Santo, segundo João Calvino) visa realmente a verdade e tem como função a produção de crença verdadeira.

Assim, há um conflito entre a ciência e a religião. O que o explica? Várias coisas, sem dúvida; mas parte da explicação encontra-se no naturalismo metodológico, uma restrição muitíssimo aceite na ciência. Segundo o naturalismo metodológico (NM), ao fazer ciência temos de proceder “como se Deus não fosse dado,” para usar as palavras de Hugo Grócio. O que significa isto exactamente? Há várias sugestões; eis uma delas. Segundo o NM, 1) o conjunto de dados (o modelo) de uma teoria apropriadamente científica não pode referir Deus ou outros agentes sobrenaturais (anjos, demónios), ou empregar o que sabemos ou pensamos saber por meio da revelação (divina). Assim, os dados para uma teoria não incluiriam, por exemplo, a proposição de que houve recentemente um surto de possessão demoníaca em Washington, D. C. 2) Uma teoria científica apropriada não pode referir Deus ou quaisquer outros agentes sobrenaturais, nem empregar o que sabemos ou pensamos saber por meio da revelação. Assim, se o modelo contiver a proposição de que houve um surto de comportamentos bizarros e irracionais em Washington, D. C., não seria apropriado propor uma teoria que envolvesse a possessão demoníaca para o explicar. 3) Note-se, para começar, que a probabilidade ou plausibilidade de possíveis teorias e a sua capacidade para explicar os dados, assim como as suas implicações empíricas, é sempre relativa a uma série de informações de fundo ou umabase epistémica. A terceira restrição é, então, que a base epistémica de uma teoria apropriadamente científica não pode incluir proposições que impliquem obviamente7 a existência de Deus ou quaisquer outros agentes sobrenaturais, ou proposições que sabemos ou pensamos que sabemos por meio da revelação. Pois considere-se alguém que de facto aceita as linhas principais de uma das religiões teístas, e trabalha na área da psicologia evolucionista. Sem dúvida que irá honrar o NM como restrição à sua actividade científica. Se o fizer, para todos os propósitos científicos irá eliminar do seu corpo de dados as proposições que impliquem obviamente a existência de Deus ou de outros seres sobrenaturais, tal como o que ela sabe ou pensa que sabe por meio da fé ou da revelação. Mas então ela poderá muito bem produzir teorias do género que temos vindo a apontar, teorias incompatíveis com a religião teísta.

Uma área bastante diferente, mas com a mesma dialéctica: a crítica bíblica histórica (CBH). A CBH é diferente do comentário bíblico tradicional. O praticante deste último pressupõe que a Bíblia é a palavra de Deus, e tenta pôr a nu o significado do que é ensinado em várias partes da Bíblia. O praticante da CBH, por outro lado, põe especificamente entre parêntesis a crença de que a Bíblia é revelação divina, e tenciona ao invés estudá-la cientificamente. Assim, o falecido Raymond Brown, um estudioso católico das escrituras muitíssimo respeitado, crê que a CBH é “crítica bíblica científica” (Brown 1973, p. 6); dá origem a “resultados factuais” (p. 9); pretende que os seus próprios contributos sejam “cientificamente respeitáveis” (p. 11); e os praticantes da CBH investigam as escrituras com “exactidão científica” (pp. 18-19); veja- se também Meier 1991, p. 6. Estudar a Bíblia cientificamente, portanto, é estudá-la de um modo que obedeça às restrições do NM. (Veja-se também Sanders 1985, p. 5; Levenson 1993, p. 109; e Lindars 1986, p. 91).

Tem havido, como seria de esperar, uma tensão considerável entre a CBH, entendida deste modo, e os cristãos tradicionais, remontando pelo menos a David Strauss, em 1835: “Não, se fôssemos cândidos connosco mesmos, o que era história sagrada para o crente cristão é, para a porção iluminada dos nossos contemporâneos, apenas fábula.” Quanto a tensões contemporâneas, segundo Luke Timothy Johnson:

“Os investigadores do Jesus histórico insistem que temos de encontrar o “Jesus real” nos factos da sua vida antes da sua morte. A ressurreição é vista, quando chega a ser tida em consideração, em termos de uma experiência visionária, ou como uma continuação de uma “emancipação” que começou antes da morte de Jesus. Explícita ou não, a premissa operativa é que não há qualquer “Jesus real” depois da sua morte.” (Johnson 1997, p. 144)

E, segundo Van Harvey, “No que respeita ao historiador bíblico, […] não há praticamente qualquer crença tradicional popular sobre Jesus que não seja encarada com considerável cepticismo” (Harvey 1986, p. 193).

Uma característica absolutamente central da CBH é este esforço de ser científica. Claro que podemos perguntar-nos se a CBH, ou qualquer estudo histórico, é realmente ciência; os seus defensores dizem que o é, mas terão razão? Dada a dificuldade do problema da demarcação, contudo, não é provavelmente avisado transformar esta pergunta numa objecção. (Além disso, ainda que os estudos históricos deste tipo não sejam precisamente ciência, são certamente muitoparecidos à ciência.) E na medida em que a CBH exige a conformidade ao NM, quem a pratica põe entre parêntesis ou suspende ou põe de lado quaisquer perspectivas teológicas, ou o que é conhecido por revelação.8 Tal como acontece com a psicologia evolucionista, portanto, quem trabalha na CBH pode de facto aceitar uma ou outra religião teísta, mas no seu trabalho como praticante de CBH, chegar a conclusões incompatíveis com a sua crença religiosa. Até agora, portanto, temos aqui a mesma dialéctica que vimos na psicologia evolucionista: teorias incompatíveis com a religião teísta que resultam (pelo menos em parte) do NM.

Pelo menos nestas duas áreas, portanto, há um conflito entre as teorias científicas e a crença religiosa. Num aspecto muitíssimo importante, contudo, este conflito é superficial. Isto porque as teorias e teses da psicologia evolucionista e a CBH não precisam de refutar, nem sequer parcialmente,9 aqueles elementos da crença religiosa com os quais são incompatíveis — ainda que o teísmo esteja obrigado a levar a ciência muito a sério e ainda que se conceda que as teorias em questão constituem boa ciência. E isto precisamente porque o NM é encarado como uma restrição à actividade científica. Podemos ver isto como se segue. Como já foi sugerido, a investigação científica é sempre conduzida contra um pano de fundo de um corpo de dados, um corpo de conhecimento ou crença de fundo. Uma parte importante do NM, além disso, é que este corpo de dados não pode conter proposições que impliquem obviamente a existência de seres sobrenaturais, ou proposições que são aceites por meio da fé. Segue-se que o corpo de dados de um partidário de uma religião teísta irá conter o corpo científico de dados como uma parte própria; irá incluir todas as proposições que encontramos no corpo científico de dados, além de outros — talvez os que são específicos da crença cristã. Suponha-se agora que uma dada teoria — a teoria do altruísmo de Simon, ou a teoria da religião de Wilson, ou uma explicação minimalista da vida e actividade de Jesus — é de facto ciência apropriada, e que é de facto a resposta teórica mais plausível e cientificamente mais satisfatória aos dados, dado o CCD, o corpo científico de dados. Isto significa que do ponto de vista do CCD, juntamente com os dados actuais, essa teoria é o melhor ou mais plausível resultado. Mesmo assim, isso não dá automaticamente a um crente algo que refuta aquelas suas crenças com as quais a teoria é incompatível. Isto porque o CCD é apenas uma parte do seu corpo de dados. E pode muito bem acontecer que uma proposição P seja a resposta plausível, dada uma parte da minha base de dados (juntamente com os dados actuais), que P seja incompatível com uma das minhas crenças, e que P não me dê algo que refute essa crença.

Por exemplo, suponha-se que lhe digo que o vi ontem à tarde no centro comercial. Então, com respeito a parte do seu corpo total de dados — a parte que inclui o seu conhecimento de que eu lhe disse que o vi lá, juntamente com o seu conhecimento de que eu tenho uma visão decente e sou, de ordinário, confiável, etc. — a coisa certa a pensar é que você esteve no centro comercial. Contudo, suponhamos, você sabe perfeitamente que não esteve lá; lembra-se de ter estado toda a tarde em casa, pensando sobre o naturalismo metodológico. Aqui, a coisa certa a pensar da perspectiva de uma parte própria do seu corpo de dados é que você esteve no centro comercial; mas isto não lhe fornece algo que refute a sua crença de que não esteve lá. Outro exemplo: podemos imaginar um grupo renegado de físicos extravagantes que se propõem reconstruir a física, recusando-se a usar crenças de memória, ou, se isso for demasiado fantasioso, memórias com mais de um minuto. Talvez algo se possa fazer nesta direcção, mas seria uma coisa pobre, insignificante, mutilada e fútil. E agora suponha-se que a melhor teoria, do ponto de vista deste corpo limitado de dados, é inconsistente com a relatividade geral. Deve isso preocupar os físicos mais tradicionais que usam o que sabem por meio da memória, assim como o que os físicos renegados usam? Penso que não. Esta física mutilada dificilmente poderia pôr em questão a física mais ampla, e o facto de, ao partir de uma parte própria do corpo científico de dados, algo inconsistente com a teoria da relatividade constituir a melhor teoria — esse facto dificilmente daria aos físicos mais tradicionais algo que refutasse a teoria da relatividade.

O mesmo ocorre no caso em discussão. O cristão tradicional pensa que sabe pela fé que Jesus era divino e que ressuscitou dos mortos. Mas então não tem de ficar impressionado pelo facto de estas proposições não serem especialmente objecto de prova com base no corpo de dados a que a CBH se limita — i.e., um corpo de dados restringido pelo NM e que portanto elimina qualquer conhecimento ou crença que dependa da fé. As descobertas da CBH, se é que o são, não têm de lhe dar algo que refute as suas crenças com as quais são incompatíveis. O que está em causa não é que a CBH, a psicologia evolucionista e outras teorias científicas não podem em princípio fornecer algo que refute a crença cristã;10 o que está em causa é apenas o aparecimento de teorias, nessas áreas, incompatíveis com a crença cristã não produz automaticamente algo que a refute. Tudo depende dos dados particulares aduzidos no caso em questão, e as implicações desses dados dado o corpo completo de dados do crente. No caso em questão, por exemplo, pode ser que, dado o CCD e o corpo relevante de dados, é improvável que Jesus tenha renascido dos mortos. Mas dado um corpo de dados que inclua não apenas o CCD mas também a crença em Deus, juntamente com as crenças especificamente cristãs de que Jesus é a segunda pessoa da Trindade encarnada, e que o Novo Testamento é uma fonte de informação fidedigna nestas questões — dadas estas coisas, a proposição de que Jesus renasceu dos mortos pode não ser improvável. Considerações semelhantes se poderiam fazer, é claro, para outras religiões teístas, e com respeito a outras supostas refutações científicas.

Uma pessoa poderia protestar que isto parece uma receita para a irresponsabilidade intelectual, para nos agarrarmos a crenças face aos dados. Não poderá um crente dizer sempre algo como isto, seja qual for a refutação que se apresente? “Talvez B (a crença a refutar) seja improvável com respeito a uma parte do que acredito,” poderá o crente dizer, “mas certamente não é improvável com respeito à totalidade do que acredito, totalidade essa que inclui, é claro, a própria B.” É óbvio que isto não pode estar certo; se estivesse, tudo o que hipoteticamente poderia refutar algo seria posto de lado deste modo, e a refutação seria impossível. Mas a refutação não é impossível; acontece por vezes que adquirimos algo que refuta uma crença B, ao descobrir que B é improvável com respeito a um dado subconjunto próprio do nosso corpo de dados. Segundo o livro de Isaías (41:9), Deus afirma “fui buscar-te aos confins da Terra,

chamei-te dos cantos mais remotos. Eu disse-te: Tu é que és o meu servo. Foi a ti que escolhi e não te rejeitarei.” Uma pessoa poderia acreditar que R, a proposição de que a Terra é um sólido rectangular, com cantos, na base deste texto; terá algo que refuta esta crença quando for confrontada com os dados científicos — fotografias da Terra vista do espaço, por exemplo — que a contrariam. Em qualquer caso, terá algo que refuta R se o resto da sua estrutura noética for como a nossa. O mesmo acontece com alguém que sustente crenças pré-copernicianas com base em textos como “A Terra permanece imóvel; não será deslocada” (Salmos 104:5). Por que há refutadores em alguns casos, mas não noutros? O que faz a diferença?

Eis uma sugestão. Considere-se uma crença religiosa B, incompatível com um resultado de uma teoria científica actual: B poderia ser, por exemplo, a crença de que a Madre Teresa era perfeitamente racional ao comportar-se daquele modo altruísta. Seja a teoria científica a explicação do altruísmo de Herbert Simon, e seja CDC o corpo de dados do crente. A nossa questão é se A, a crença de que a teoria de Simon é apropriadamente ciência (e que implica a negação deB), refuta B. Acrescente-se A ao corpo de dados de S; agora a questão correcta é, talvez, esta: é Bepistemicamente improvável com respeito à conjunção de A com CDC? Claro que a própria Bpoderia ser inicialmente um membro do CDC, caso em que não seria certamente improvável com respeito a ele. Se isso fosse suficiente para não refutar B, contudo, nenhum membro do corpo de dados poderia alguma vez ser refutado por uma nova descoberta; e isso não pode estar certo. Assim, apague-se B do CDC. Chame-se ao resultado de apagar B do corpo de dados de S “CDC reduzido com respeito a B” — “CDC-B”, abreviando.11 E agora a sugestão — chamemos-lhe “o teste por redução da refutação” — é que A refuta B apenas se B for apropriadamente improvável com respeito à conjunção de A com CDC-B.

Suponha-se que aplicamos este teste à crença B de que a Madre Teresa era racional ao comportar-se de modo altruísta, sendo A a crença de que a teoria de Simon do altruísmo é boa ciência e é incompatível com B; e suponhamos que S é um crente cristão. Para aplicar o teste por redução temos de perguntar se B é improvável com respeito à conjunção de A com CDC-B. A resposta, penso, é que B não é improvável com respeito a essa conjunção. Pois CDC-B inclui os dados empíricos, seja eles quais forem exactamente, usados por Simon, mas também a proposição de que nós, seres humanos, fomos criados por Deus e fomos criados à sua imagem, juntamente com o resto das ideias principais da história cristã. Com respeito à conjunção de A com esse corpo de proposições, não é provável que se a Madre Teresa tivesse sido mais racional, mais esperta, teria agido para aumentar a sua boa adaptação reprodutiva, em vez de viver de modo altruísta. Logo, no proposto teste por redução, o facto de que a teoria de Simon é boa ciência, e é mais provável do que improvável com respeito ao corpo científico de dados — esse facto não dá a S algo que refute o que ele pensa sobre a Madre Teresa.

Considere-se, por outro lado, a crença B* de que a Terra tem cantos e arestas, e os dados fotográficos contra essa crença: aqui, plausivelmente, o teste por redução tem como resultado que os segundos refutam B*. (É verdade que um cristão poderia pensar que a Bíblia é infalível, dado Deus ser o seu autor último; mas é claro que isso deixa em aberto a questão de saber o que visa Deus ensinar-nos na passagem em questão.) Assim, o teste por redução dá resultados sensatos nestes dois casos. Contudo, não pode estar certo em geral — mais exactamente, está certo em geral apenas aceitando um pressuposto muito importante, que o crente provavelmente rejeitará. Pois poderá acontecer, obviamente, que B tenha bastante aval em si mesma, aval que não obtém dos outros membros do CDC ou, na verdade, de quaisquer outras proposições. B pode ser básica com respeito ao aval; B pode obter aval de uma fonte diferente de qualquer fonte envolvida na teoria científica com a qual é incompatível. Se isso acontecer, o facto de B ser improvável com respeito a CDC-B não mostra que S tem algo que refuta B pelo facto de B ser improvável com respeito a CDC-B juntamente com a A relevante.

Como exemplo ilustrativo, você está a ser julgado por um dado crime; os dados contra si são fortes, e você é condenado. Contudo, você lembra-se muito claramente que no momento em que o crime ocorreu estava a passear sozinho no bosque. A sua crença de que estava a caminhar no bosque não se baseia em argumentos ou inferências de outras proposições. (Você não repara, e.g., que se sente um pouco cansado e que os seus sapatos têm lama, e que está um mapa da área no bolso do seu casaco, concluindo que a melhor explicação destes fenómenos é que esteve a caminhar no bosque.) Assim, considere-se o seu corpo de crenças, SCC, menos P, a proposição de que não cometeu o crime e estava a caminhar no bosque quando este foi cometido. Com respeito a SCC-P, P é epistemicamente improvável; afinal, você tem os mesmos dados do que o júri a favor de ¬P, e o júri está muito apropriadamente (ainda que erradamente) convencido de que você cometeu o crime. Contudo, você não tem aqui, certamente, algo que refuta a sua crença de que está inocente. A razão, é claro, é que P é para si uma fonte de aval independente do resto das suas crenças: vocêlembra-se disso. No caso destes, ter ou não algo que refute a crença P em questão irá depender, por um lado, da força do aval intrínseco que tem P, e, por outro lado, da força dos dados contra Pquanto a SCC-P. O aval intrínseco será muitas vezes mais forte.

O mesmo se aplica a crenças religiosas, se estas de facto tiverem aval intrínseco. Se S tem uma crença religiosa B e se B tiver aval do modo básico, então mesmo que a probabilidade de B quanto a CDC-B juntamente com a A relevante seja baixa, não se segue que A refuta B para S. Talvez o teste por redução ofereça uma condição necessária para que A refute B para S; é também suficiente apenas se as crenças religiosas não tiverem aval ou estatuto epistémico positivo de um modo básico, e apenas se não adquirem aval ou estatuto epistémico positivo de uma fonte além das que conferem esse estatuto às crenças científicas. É por isso, em parte, que a questão mencionada na secção 2 é importante.

5. Naturalismo e ciência

Examinámos até agora o alegado conflito entre a crença religiosa e a ciência, com respeito a várias áreas: evolução, acção divina no mundo, a diferença entre a atitude científica e a religiosa, psicologia evolucionista e CBH. Mas houve quem sugerisse um conflito entre a ciência e a religião (ou entre a ciência e a quase-religião) de um género totalmente diferente: entre o naturalismo e a ciência (Otte 2002; Plantinga 1993, 2002a; Rea 2002; Taylor 1963; há também sugestões disto em Nietzsche 2003 e no próprio Darwin 1887).

Ora bem, o naturalismo é muito diversificado. Primeiro, há a perspectiva de que a natureza é tudo o que há; não há seres sobrenaturais. Claro que isto é um pouco fraco como explicação do naturalismo; precisamos de saber o que é a natureza, e como poderiam ser os alegados seres sobrenaturais. Talvez um modo de proceder seja dizer que o naturalismo, concebido deste modo, é a perspectiva de que não há uma pessoa como o Deus do teísmo, ou algo como Deus (veja-se, por exemplo, Beilby 2002). Chame-se a isto “naturalismo1.” Outra variedade de naturalismo, “naturalismo científico,” como lhe poderíamos chamar, seria a tese de que não há entidades além das que são sancionadas pela ciência actual (Kornblith 1994).12 Dado que a ciência actual não sanciona seres sobrenaturais, o naturalismo científico implica o naturalismo1. Há também o que poderíamos chamar “naturalismo epistemológico,” segundo o qual, grosso modo, os métodos da ciência são os únicos métodos epistémicos apropriados (Krikorian 1994). Com a ajuda de um par de premissas razoavelmente óbvias, o naturalismo epistemológico implica também o naturalismo1, e eu irei usar “naturalismo” para referir a disjunção das três versões de naturalismo esboçadas. Os partidários do naturalismo, concebido deste modo, seriam (por exemplo) Bertrand Russell (1957), Daniel Dennett (1995), Richard Dawkins (1986), David Armstrong (1978) e muitos outros de quem por vezes se diz que subscrevem “a mundividência científica.”

O naturalismo não é, presumivelmente, uma religião. Num aspecto muito importante, contudo, é parecido a uma religião: pode-se dizer que desempenha a função de uma religião. Há o domínio de questões profundamente humanas a que uma religião tipicamente responde (veja-se acima, secção I): qual é a natureza fundamental do universo: por exemplo, é a mente primordial, ou a matéria (não mental)? O que há de mais real e básico na realidade, e que tipos de entidades exibe? Qual é o lugar dos seres humanos no universo, e que relação têm com o resto do mundo? Há perspectivas de uma vida depois da morte? Existe pecado, ou algo a análogo ao pecado? Se sim, que perspectivas existem de o combater ou ultrapassar? Onde temos de atentar para melhorar a condição humana? Há realmente um summum bonum, um bem mais elevado para os seres humanos, e se sim, o que é? Como uma religião típica, o naturalismo dá um conjunto de respostas a estas e outras questões semelhantes. Podemos portanto dizer que o naturalismo desempenha a função cognitiva de uma religião, e portanto é sensato concebê-lo como uma quase-religião.

Acresce que muitos pensadores, remontando pelo menos a Nietzsche (2003) e possivelmente a William Whewell (Curtis 1986), fizeram notar uma implicação potencialmente preocupante da teoria da evolução. A preocupação pode ser formulada como se segue. Segundo o darwinismo ortodoxo, o processo da evolução é conduzido principalmente por dois mecanismos: mutação genética aleatória e selecção natural. O primeiro é a fonte principal de variabilidade genética; em virtude da segunda, uma mutação que resulte num traço transmissível geneticamente e que aumente a boa adaptação irá provavelmente espalhar-se por essa população e ser preservada como parte do genoma. São os comportamentos e traços que aumentam a boa adaptação que são recompensados pela selecção natural; o que é penalizado são traços e comportamentos que dificultam a boa adaptação. Ao produzir as nossas faculdades cognitivas, a selecção natural irá favorecer as faculdades e processos cognitivos que resultem em comportamento adaptativo; não se importa nem um pouco com a crença verdadeira (enquanto tal) nem com as faculdades cognitivas que conduzem de modo fidedigno à crença verdadeira. Como afirmou o psicólogo evolucionista David Sloan Wilson, “a mente bem adaptada é em última análise um órgão de sobrevivência e reprodução” (Wilson 2002, 228). Se as nossas mentes servem para algo, não é a produção de crenças verdadeiras, mas antes a produção de comportamento adaptativo: que a nossa espécie tenha sobrevivido e evoluído garante, no máximo, que o nosso comportamento é adaptativo; não garante, nem sequer torna provável, que os nossos processos de produção de crenças sejam na sua maior parte fidedignos, ou que as nossas crenças sejam na sua maior parte verdadeiras. Isto porque o nosso comportamento poderia perfeitamente ser adaptativo, mas as nossas crenças serem tão frequentemente falsas como verdadeiras. O próprio Darwin se preocupou aparentemente com esta questão:

“Comigo, levanta-se sempre a dúvida horrível de as convicções da mente humana, que foi desenvolvida a partir da mente dos animais inferiores, terem ou não algum valor, ou serem realmente dignas de confiança. Confiaria alguém nas convicções da mente de um macaco, se é que em tal mente há quaisquer convicções?” (Darwin 1887)

Podemos formular brevemente a dúvida de Darwin como se segue. Seja R a proposição de que as nossas faculdades cognitivas são fidedignas, N a proposição de que o naturalismo é verdadeiro e E a proposição de que nós e as nossas capacidades cognitivas surgimos dos processos apontados pela teoria evolucionista contemporânea: qual é a probabilidade condicional de R dado N&E? I.e., qual é o valor de P(R | N&E)? Darwin receia que seja muito baixo.

Mas é claro que só a evolução natural que não seja guiada dá origem a esta preocupação. Se a selecção natural for guiada e orquestrada pelo Deus do teísmo, por exemplo, a preocupação desaparece; Deus usará todo o processo, presumivelmente, para criar criaturas do género que quer, criaturas à sua própria imagem, criaturas com faculdades cognitivas fidedignas. Assim, é a evolução que não é guiada, e as crenças metafísicas que implicam a evolução que não é guiada, que dão origem a esta preocupação quanto à fiabilidade das nossas faculdades cognitivas. Ora, o naturalismo implica que a evolução, se ocorre, não é realmente guiada. Mas então, segundo esta sugestão, é improvável que as nossas faculdades cognitivas sejam fidedignas, dada a conjunção do naturalismo com a proposição de que nós e as nossas faculdades cognitivas surgimos por meio da selecção natural, peneirando a variação genética aleatória. Sendo assim, quem crê nesta conjunção terá algo que refuta a proposição de que as nossas faculdades são fidedignas — mas se isso for verdadeiro, terá também algo que refuta qualquer crença produzida pelas suas faculdades cognitivas — incluindo, é claro, a conjunção do naturalismo com a evolução. Assim se vê que essa conjunção é auto-refutante. Se o for, contudo, tal conjunção não pode racionalmente ser aceite, caso em que há um conflito entre o naturalismo e a evolução, e portanto entre o naturalismo e a ciência.

Podemos formular esquematicamente o argumento como se segue:

  1. P(R | N&E) é baixa.
  2. Quem aceitar N&E e vir que 1 é verdadeira, tem algo que refuta R.
  3. Quem tem algo que refuta R tem algo que refuta qualquer outra crença que tenha, incluindo a própria N&E.
  4. Logo, quem aceitar N&E e vir que 1 é verdadeira, tem algo que refuta N&E; logo, N&E não pode ser racionalmente aceite.

Claro que esta é uma versão concisa e meramente esquemática do argumento; não há aqui espaço para as necessárias qualificações.

A defesa de 1 seria algo como o seguinte. Primeiro, para evitar a influência do nosso pressuposto natural de que as nossas faculdades cognitivas são fidedignas, pensemos não sobre nós, mas sobre criaturas hipotéticas muito parecidas connosco, existindo talvez noutra parte do universo; e suponha-se que N e E são verdadeiras com respeito a elas. De seguida, note-se que o naturalismo implica aparentemente o materialismo (quanto aos seres humanos); a ciência actual não sustenta a existência de almas imateriais ou mentes ou eus. Assim, considere-se que o naturalismo inclui o materialismo. O que seria uma crença, deste ponto de vista? Presumivelmente, algo como um acontecimento ou estrutura de longo prazo no sistema nervoso — talvez um grupo estruturado de neurónios conectados e relacionados de certos modos. Tal estrutura neuronal terá propriedadesneurofisiológicas (“propriedades NF”): propriedades que especificam o número de neurónios envolvidos, o modo como estes neurónios estão conectados entre si e com outras estruturas (como músculos, glândulas, órgãos dos sentidos, outros acontecimentos neuronais, etc.), a cadência e intensidade médios dos disparos neuronais em várias partes deste acontecimento, e os modos como estas cadências de disparos mudam ao longo do tempo e em resposta aos dados de entrada de outras áreas. Se este acontecimento for realmente uma crença, contudo, terá também conteúdo; será a crença de que p, para uma dada proposição p — talvez a proposição de que o naturalismo está na berra hoje em dia.

Qual é a relação entre as propriedades NF, por um lado, e as propriedades do conteúdo — propriedades como ter como conteúdo a proposição de que o naturalismo está na berra hoje em dia —, por outro? Talvez a posição mais popular aqui seja o “materialismo não redutor” (MNR): as propriedades do conteúdo são distintas mas são sobrevenientes relativamente às propriedades NF.13A sobreveniência pode ser ou lógica, em termos latos, ou nómica. Neste último caso, haveria leis psicofísicas relacionando as propriedades NF com as propriedades do conteúdo: leis do géneroqualquer estrutura com tais e tais propriedades NF terão tal e tal conteúdo. Estas leis serão presumivelmente contingentes (no sentido lógico lato ou no sentido metafísico). No primeiro caso, haverá também tais leis, mas serão necessárias e não contingentes.

Ora, tome-se qualquer crença B da parte de um membro dessa hipotética população: qual é a probabilidade (epistémica) de que B seja verdadeira, dado N&E e o materialismo não redutor — qual é o valor de P(B | N&E&MNR)? O que sabemos é que B tem um certo conteúdo (chamemos-lhe “C”), e (podemos admitir ou conceder) ter B é adaptativo nas circunstâncias em que a criatura se encontra. Qual é então a probabilidade de que C, o conteúdo de B, seja verdadeiro? Bem, qual é a probabilidade de que a lei psicofísica relevante L que liga as propriedades NF e as propriedades do conteúdo produza uma proposição verdadeira como conteúdo neste caso? Ter B é adaptativo, nas circunstâncias em que a criatura se encontra; exibir as propriedades NF sobre as quais C sobrevém causa comportamento adaptativo. Mas porquê pensar que o conteúdo conectado às propriedades NF por L será verdadeiro nas circunstâncias desta criatura? O que conta como adaptatividade são as propriedades NF e o comportamento que estas causam; não importa se o conteúdo sobreveniente é verdadeiro. As propriedades NF são de facto adaptativas; mas isso não fornece qualquer razão, até agora, para pensar que o conteúdo sobreveniente é verdadeiro. Ter B é adaptativo em virtude de causar comportamento adaptativo, e não em virtude de ter um conteúdo verdadeiro. Claro que se o teísmo for verdadeiro, então os seres humanos (ao contrário dessas hipotéticas criaturas, para quem o naturalismo é verdadeiro) são feitas à imagem divina, o que inclui a capacidade de conhecimento; assim, Deus escolheria presumivelmente as leis psicofísicas de modo a que, nas circunstâncias relevantes, a neurofisiologia produza conteúdo verdadeiro. Mas nada disto é verdadeiro dado o naturalismo; supor que as propriedades do conteúdo que são adaptativas conduzem também, na sua maior parte, a conteúdo verdadeiro, seria um optimismo totalmente injustificado.

Assim, qual é o valor de P(B | N&E&MNR)? Bem, dado que a verdade de B não faz diferença quanto à adaptatividade de B, esta poderia efectivamente ser verdadeira, mas é igualmente provável que seja falsa; teríamos de calcular que a probabilidade de que é verdadeira é mais ou menos a mesma do que a probabilidade de que é falsa. Mas isto significa que é improvável que o crente em questão tenha faculdades cognitivas fidedignas, i.e., faculdades que produzem uma preponderância suficiente de crenças verdadeiras em relação às falsas. Por exemplo, sendo assim, se o crente em questão tiver mil crenças independentes, cada uma delas tendo igual probabilidade de ser falsa ou verdadeira, a probabilidade de, digamos, 3/4 delas serem verdadeiras (e isto seria uma exigência modesta de fiabilidade) seria muito baixa — menos de 10-58. Assim, P(B | N&E&MNR), aplicada a estas criaturas, será baixa. Mas é claro que o mesmo se aplicaria a nós, se o naturalismo fosse verdadeiro: P(B | N&E&MNR), aplicada a nós, seria igualmente baixa.14

Este é o argumento para a primeira premissa. Segundo a premissa 2, quem vê isto e também aceitaN&E tem algo que refuta R, uma razão para a abandonar, para deixar de crer nela. A defesa oferecida desta premissa é por meio de uma analogia partindo de casos claros. Suponha-se que acredito que há uma droga — chamemos-lhe XX — que destrói a fiabilidade cognitiva; eu acredito que 95% dos que ingerem XX perdem a fiabilidade cognitiva. Suponha-se ainda que eu acredito agora que ingeri XX e que P(R | ingeri XX) é baixa; tomadas conjuntamente, estas duas crenças dão-me algo que refuta a minha crença inicial ou pressuposto de que as minhas faculdades cognitivas são fidedignas. Além disso, não posso apelar para qualquer das minhas outras crenças para mostrar ou argumentar que as minhas faculdades cognitivas ainda são fidedignas; qualquer dessas outras crenças está também agora sob suspeita ou está comprometida, tal como R. Qualquer outra crença B é um produto das minhas faculdades cognitivas: mas então, ao reconhecer isto, e tendo algo que refuta R, tenho também algo que refuta B. Claro que haverá muitos outros exemplos: chego ao mesmo resultado se acreditar que sou um cérebro numa cuba e que P(R | sou um cérebro numa cuba) é baixa; o mesmo se aplica à versão cartesiana clássica da mesma ideia (nomeadamente, que fui criado por um ser que gosta de me enganar) e também para cenários mais corriqueiros, por exemplo, a crença de que enlouqueci (talvez porque tenha sido contaminado com a doença das vacas loucas). Em todos estes casos, tenho algo que refuta R.

Ora, segundo a premissa 3, quem tem algo que refuta R, tem algo que refuta qualquer crença que considere que é um produto das suas faculdades cognitivas — que são, é claro, todas as suas crenças. Essa pessoa tem portanto algo que refuta a própria N&E; quem aceita N&E (e vê que P(R | N&E) é baixa) tem algo que refuta N&E, uma razão para duvidar dela ou rejeitá-la ou para ser agnóstico com respeito a ela. Nem poderia essa pessoa obter indícios independentes a favor de R; o processo de o fazer iria é claro pressupor que as suas faculdades são fidedignas. Ela estaria a apoiar-se na precisão das suas faculdades para acreditar que os alegados indícios estão de facto presentes e que são de facto indícios a favor de R. Thomas Reid (1785, 276) formulou este aspecto como se segue:

“Se a honestidade de um homem é posta em causa, seria ridículo basearmo-nos na sua própria palavra, seja ele honesto ou não. O mesmo absurdo há ao procurar provar, por qualquer tipo de raciocínio, provável ou demonstrativo, que o nosso raciocínio não é falacioso, dado que o que está em causa é o nosso raciocínio ser ou não digno de confiança.”

O argumento conclui que a conjunção de naturalismo com a teoria da evolução não pode ser racionalmente aceite — em qualquer caso, por alguém que seja posto ao corrente deste argumento e veja a conexão entre N&E e R.

Como seria de esperar, este argumento tem sido controverso. Várias objecções lhe foram levantadas (Beilby 1997; Ginet 1995, 403; O’Connor 1994, 527; Ross 1997; Fitelson e Sober 1998; Robbins 1994; Fales 1996; Lehrer 1996; Nathan 1997; Levin 1997; Fodor 1998). Houve respostas a estas objecções (Plantinga 2002a; 2003), respostas a estas respostas (Talbott, 2010), etc.; não há qualquer consenso com respeito ao argumento. Se o argumento for correcto, contudo, e N&E não puder ser racionalmente aceite, então há um conflito entre o naturalismo e a evolução; não se pode racionalmente aceitar ambos. Assim, há um conflito entre o naturalismo e uma das bases principais da ciência contemporânea. Na medida em que o naturalismo é uma quase-religião em virtude de desempenhar a função cognitiva de uma religião, há uma espécie de conflito entre a religião e a ciência —não entre a religião teísta e a ciência, mas entre o naturalismo e a ciência.

 

Tradução: Desidério Murcho

Artigo originalmente publicado em The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Summer 2010 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = http://plato.stanford.edu/archives/sum2010/entries/religion-science/.

 

Agradecimentos

Pelos conselhos sábios e boas sugestões, agradeço a Brian Boeninger, Thad Botham, E.J. Coffman, Robin Collins, Tom Crisp, Chris Green, Jeff Green, Marcin Iwanicki, Nathan King, Dan McKaughan, Dolores Morris, Brian Pitts, Luke Potter e Del Ratzsch.

 

Notas

  1. Mas o que dizer do empirista construtivo e do instrumentalista? Bem, em qualquer caso visam fazer previsões verdadeiras, ou teorias que visam fazer previsões verdadeiras, ainda que não teorias verdadeiras.
  2. Distinguimos aqui entre a crença em Deus e a crença de que Deus existe. crença em Deusinclui a crença de que Deus existe e, além disso, envolve confiar em Deus, fazer dos seus os nossos propósitos, identificarmo-nos com ele e/ou com os seus propósitos, venerá-lo, comprometermo-nos com ele, etc.
  3. Há excepções. Você usa um computador para calcular o produto de um par de números com seis algarismos; o computador devolve um certo número n. O seu conhecimento de que o produto é de facto n — que é, evidentemente, necessário — é a posteriori; depende do seu conhecimento a posteriori de que o computador apresenta respostas correctas. Denomino o mundo efectivo “α;” então, é uma verdade necessária que (digamos) houve uma guerra civil em α, mas a única maneira de você conhecer esta verdade necessária é a posteriori.
  4. Houve quem afirmasse haver verdades contingentes de que temos conhecimento a priori.Outros afirmam que isto é um erro; veja-se Plantinga 1974, p. 8, n. 1.
  5. “Se existisse uma explicação simples, seria antes em termos da habitual autoridade societal implacável na supressão da opinião minoritária, e, no caso de Galileu, com o aristotelismo, e não o cristianismo, no lugar de autoridade.” (Drake 1980, v).
  6. A sugestão não é que nenhuma teoria científica pode conter elementos metafísicos; a sugestão é apenas que esta afirmação particular é claramente metafísica, e também claramente um acrescento: não faz parte da teoria evolucionista tal como esta é actualmente entendida.
  7. “Impliquem obviamente”: segundo a maior parte das crenças teístas tradicionais, a existência de Deus é uma verdade necessária. Se o for, contudo, todas as proposições a implicariam, de modo que a condição em questão tem de ser formulada com maior circunspecção.
  8. Devo sublinhar que a CBH é um projecto, e não um instrumento. Os instrumentos usados pelos especialistas em crítica bíblica histórica — conhecimento da língua, cultura e história relevante, crítica da resposta do leitor, crítica narrativa, ideias das ciências sociais — são também, é claro, instrumentos dos comentadores bíblicos tradicionais, assim como de quem levanta as questões levantadas pelos especialistas em crítica bíblica histórica, mas de uma perspectiva não limitada pelo NM.
  9. Algo que refuta uma crença B que eu tenha é outra crença D que adquiro tal que, dada a minha série particular de crenças e a força com que as mantenho, não posso racionalmente continuar a aceitar B desde que aceite D; se D for algo que refuta parcialmente B, então não posso continuar a aceitar (acreditar) B com a mesma força.
  10. Suponha-se que se descobre uma série de cartas e as últimas técnicas de datação as localizam na primeira parte do séc. I; nas cartas mais antigas os apóstolos planeiam o embuste, e nas mais recentes congratulam-se por ter tudo corrido muito bem… Veja-se van Fraassen (1993), p. 322.
  11. Claro que temos também de eliminar proposições que implicam B, e talvez certas proposições probabilisticamente relacionadas com B. Em geral, haverá mais de uma maneira de o fazer. Sem entrar em pormenores, digamos (um pouco vagamente) que CDC-B é qualquer subconjunto de CDC que não implica B e, à parte isso, é maximamente semelhante a CDC.
  12. Alternativamente, o naturalismo científico deve ser visto como a injunção ou resolução de não tolerar quaisquer entidades que não sejam sancionadas pela ciência contemporânea; see van Fraassen (2002).
  13. Ou, para acomodar o externismo quanto ao conteúdo (“o significado não ‘tá na cabeça”), relativamente às propriedades NF juntamente com certas propriedades do meio ambiente. Esta qualificação estará pressuposta mas não mencionada no que se segue.
  14. Podemos argumentar de modo semelhante a favor da baixa probabilidade de R dado N&E e o materialismo redutor, a ideia de que as propriedades de conteúdo são apenas propriedades NF (complexas); limitações de espaço não permitem apresentar aqui o argumento.

 

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A tragédia de Santa Maria (Solano Portela)

A tragédia de Santa Maria está na mente de todos os brasileiros. Mais de 230 mortes – a maioria de jovens, deixando centenas de famílias enlutadas, como consequência do terrível incêndio. O que era uma noite de diversão transformou-se em um rio de lágrimas que transborda por todo o país. Mais uma vez, as últimas viradas de anos têm sido marcada por tragédias. Em janeiro de 2011, avalanches de terra e enchentes ceifaram centenas de vidas, na região serrana do Rio. Em 2008/2009 foram inundações e deslizamentos assoladores em Santa Catarina. Na transição 2009/2010 tivemos também mortes e prejuízos causados pelas águas, no sudeste do Brasil. Naquela ocasião escrevíamos, também, sobre o terremoto no Haiti e choramos com o conseqüente sofrimento chocante e intenso daquele evento que dizimou cerca de 200 mil pessoas. Três anos depois, aquele povo ainda geme com a orfandade, dissolução social, promessas não cumpridas pela “comunidade internacional” e com a extrema e endêmica corrução arraigada naquela terra. Isso porque ainda não nos saiu da memória o Tsunami de 26.12.2004, no Oceano Índico, quando pereceram cerca de 220 mil pessoas, situação recentemente lembrada no filme “O Impossível”.
Enquanto vemos as cenas de dor e tristeza, e avaliamos tudo isso, somos levados às Escrituras para procurar alguma compreensão trazida pelo próprio Deus, para esses desastres. É no meio dessas circunstâncias que decidimos recolocar aqui alguns pensamentos que já foram expressos neste Blog em posts anteriores.
Na ocorrência de tragédias devemos resistir à tentação de procurar respostas que diminuem a bíblica soberania e majestade de Deus, e conseqüentemente não fazem justiça à sua pessoa, ou aquelas que nos colocam com Deus – pontificando um julgamento divino sobre a situação imediata da ocorrência. Tais “explicações”, “conclusões” e “construções” aparentam ser plausíveis, mas revelam-se meramente humanas, pois contrariam a revelação das Escrituras. Esses tipos de respostas sempre aparecem, quando ocorrem desastres; quando diversas vidas são ceifadas e pessoas que estavam entre nós desaparecem, de uma hora para outra. Interpretações estranhas dessas circunstâncias não são novidade e nem têm surgido apenas em nossos dias.
Por exemplo, em novembro de 1755 a cidade de Lisboa foi praticamente arrasada por um grande terremoto. A conclusão emitida por padres jesuítas foi a de que: “Deus julgou e condenou Lisboa, como outrora fizera com Sodoma”. Voltaire (François Marie Arouet), que era um deísta, escreveu em 1756 “Poemas sobre o desastre em Lisboa”. Ali, ele culpa a natureza e a chama de malévola, deixando no ar questionamentos sobre a benevolência de Deus. Jean Jacques Rousseau, respondeu com “Carta sobre a providência”. Nela ele culpa “o homem” como responsável pela tragédia. Ele aponta que, em Lisboa, existiam “20 mil casas de seis ou sete andares” e que o homem “deveria ter construído elas menores e mais dispersas”. Ou seja, procurando “inocentar a Deus e a natureza” ele coloca a agência da tragédia no desatino dos homens, de maneira bem semelhante à que os especialistas contemporâneos e comentaristas da mídia adoram fazer.[1]
Quando do terremoto no Haiti, à semelhança do que ocorreu no Tsunami, alguns depoimentos de pastores, que li, falavam sobre a “mão pesada de Deus, em julgamento”; opinião semelhante à emitida quando do acidente com o avião que transportava o grupo “Mamonas Assassinas”, em 1996. No entanto, nenhuma pessoa tem essa capacidade de julgamento, que reflete apenas orgulho e prepotência.
 Mas outros procuram uma teologia estranha às Escrituras, para “isolar” Deus da regência da história. São os mesmos que, quando da ocorrência do Tsunami e do acidente ocorrido com o Vôo 447 da Air France em junho de 2009, emitiram a seguinte conclusão: “Diante de uma tragédia dessa magnitude, precisamos repensar alguns conceitos teológicos” (veja as excelentes reflexões sobre esse último desastre, no post do Augustus Nicodemus, neste mesmo blog). No entanto, em vez de formularmos nossa teologia pelas experiências, voltemo-nos ao ensinamento do próprio Jesus.
Graças a Deus que temos, em Lucas 13.1-9, instrução pertinente sobre como refletir sobre desastres e tragédias. A primeira tragédia tratada é aquela gerada por homens (Vs 1-3). Certos galileus haviam sido mortos por soldados de Pilatos. A Bíblia diz que “alguns” colocaram-se como críticos e juízes (a resposta de Jesus infere isso); deduziram que aqueles que haviam sofrido violência humana, sangue derramado por armas (um paralelo às situações que vivemos nos nossos dias) seriam mais pecadores do que os demais. No entanto, o ensino ministrado pelas Escrituras é o seguinte: Não vamos nos colocar no lugar de Deus. Não vamos nos concentrar em um possível juízo ou julgamento sobre as vítimas. Jesus, em essência diz: cuidem de si mesmos! Constatem os seus pecados! Arrependam-se!
Mas ele nos traz, também, um segundo tipo de tragédias. Esta que é referida é semelhante, guardadas as proporções, a essas enchentes e deslizamentos, ou ao terremoto do Haiti. São tragédias classificadas como “fatalidades”. Jesus fala da Torre de Siloé. O texto (Vs 4-5) diz que ela desabou, deixando 18 mortos. Jesus sabia que mesmo quando, aos nossos olhos, mortes ocorrem como conseqüência de acidentes, isso não impede que rapidamente exerçamos julgamento; não impede que tentemos nos colocar no lugar de Deus. E Jesus pergunta, sobre os que pereceram: “Acham que eram mais culpados do que todos os demais habitantes da cidade”? O ensino é idêntico: Não se coloquem no lugar de Deus; não se concentrem em um possível juízo ou julgamento sobre as vítimas; cuidem de si mesmos! Constatem a sua culpa! Arrependam-se!
O surpreendente é que Jesus passa a ilustrar o seu ensino com uma parábola (Vs.6-9). Ele fala de uma figueira sem fruto. Aparentemente, a parábola não teria relação com as observações prévias, mas, na realidade, tem. Ela nos ensina que vivemos todos em “tempo emprestado” pela misericórdia divina. O texto nos ensina que:
• Figueiras existem para dar frutos – o homem vinha procurar frutos – essa era sua expectativa natural. Todos nós fomos criados para reconhecer a Deus e dar frutos. Esse é o nosso propósito original.
• Figueiras sem frutos “ocupam inutilmente a terra”. O corte é iminente, e justificado a qualquer momento.
• O escape: É feito um apelo para que se espere um pouco mais, na esperança de que, bem cuidada e adubada, a figueira venha a dar fruto e escape do corte.
• Lições para o vizinho? Jesus não apresenta a figueira como um paralelo para fazermos uma comparação com outras pessoas – cujas existências foram ceifadas como vítimas de violência ou fatalidades. Ele quer que nos concentremos em nós mesmos, em nossas próprias vidas, pecados e na necessidade de arrependimento.
• Tempo emprestado: O que ele está ensinando e ilustrando, aqui, é que nós, você e eu, como os habitantes de Santa Maria, as vítimas do Tsunami, na Ásia, ou os habitantes do Haiti, vivemos em tempo emprestado; vivemos pela misericórdia de Deus; vivemos com o propósito de frutificar, de agradar o nosso proprietário e criador.

Creio que a conclusão desse ensino, é que, conscientes da soberania de Deus e de que ele sabe o que deve ser feito, não devemos insistir em procurar grandes explicações para as tragédias e fatalidades. Jesus nos ensina que teremos aflições neste mundo (João 1.33) – essa é a norma de uma criação que geme na expectativa da redenção. 1 Pe 4.19 fala dos que sofrem segundo a vontade de Deus. Lemos que não devemos ousar penetrar nos propósitos insondáveis de Deus; não devemos “estranhar” até o “fogo ardente” (1 Pe 4.12).

Assim, as tragédias, desde as locais pessoais até as gigantescas, de características nacionais e internacionais, são lembretes da nossa fragilidade; de que a nossa vida é como vapor; de que devemos nos arrepender dos nossos pecados; de que devemos viver para dar frutos.
Também, não cometamos o erro de diminuir a pessoa de Deus, indicando que ele está ausente, isolado, impotente. Como tantas vezes já dissemos, “Deus continua no controle”. Lembremos-nos de Tiago 4.12: “um só é legislador e juiz – aquele que pode salvar e fazer perecer”. Não sigamos, portanto, nossas “intuições”, no nosso exame dos acontecimentos, mas a Palavra de Deus. Como nos instrui 1 Pe 4.11: “ se alguém falar, fale segundo os oráculos de Deus”.
Em adição a tudo isso, não podemos cometer o erro de ser insensíveis às tragédias – Pv 17.5 diz: “o que se alegra na calamidade, não ficará impune”; mesmo perplexos, sabendo que não somos juízes nem videntes. Devemos nos solidarizar com as vítimas, na medida do possível e atravessar portas de contato e transmissão das boas novas divinas àqueles que Deus venha, porventura, colocar em nosso caminho.
 [1] Folha de S. Paulo 28/12/2004; Jornal do Commércio – Recife – 2/1/2005, de onde foram extraídas as citações desse trecho.
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Adaptado de estudos e sermões proferidos em 2005, e de POST de janeiro de 2010
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A profunda superficialidade de nossos dias (Walter Mcalister)

Uma das características que melhor definem a época da História em que vivemos é a superficialidade. Somos pensadores superficiais. Somos cristãos superficiais. Aliás, eu diria até que somos profundamente superficiais. Claro que ser “profundamente superficial” é o que chamamos de um oximoro – uma expressão que se contradiz e, ao fazê-lo, afirma uma contradição. Assim como “água seca”, ou uma “verdadeira mentira”, “profunda superficialidade” soa como um absurdo. Mas é isso mesmo o que somos. Pois somos superficiais até as mais profundas profundezas da nossa alma. Não importa quão profundamente cavemos na nossa alma contemporânea, nunca chegamos a algo que seja substancial. Tudo é superficial. Nossos sentimentos mais profundos são superficiais. Nossas paixões mais arrebatadoras são superficiais, efêmeras, passageiras. Somos pessoas cuja alma se assemelha a uma floresta inteiramente composta por árvores sem raízes. Por mais que você consiga adentrar os recônditos mais escondidos da floresta, não achará uma árvore que tenha firmeza. Pois, sem raízes, qualquer uma delas é facilmente arrancada pelo vento e substituída.

Essa constatação não significa que não tenhamos sentimentos fortes. Temos. Não quer dizer que nossas atitudes não sejam profundamente sentidas. São. Mas todas as profundezas do nosso ser, de nossos sentimentos e das nossas atitudes são, em última análise, superficiais.

Tomemos como exemplo a postura atual da maioria da sociedade brasileira contra a homofobia. “Todos” se dizem profundamente inconformados com os “tão intolerantes” cristãos. Afinal, “todos sabem” que qualquer opção de vida que um indivíduo faça é seu direito e é algo “absolutamente normal”. Esse é o discurso feito em público. Só que o bloco político que fez da sua campanha a defesa dos homoafetivos foi derrotado nas urnas de uma maneira tão absoluta e humilhante que ninguém quer falar a respeito do assunto. Na hora do “vamos ver”, da defesa política da opção dessas pessoas, ninguém compareceu. Multidões aparecem para fazer uma parada festiva. Mas, na hora de transformar esse discurso em ação… nada. E, quando não há um gay por perto, a grande maioria dos que os defendem não hesita em fazer piadas sobre os seus trejeitos.

Mas não sejamos duros com os que não compartilham da nossa fé. Afinal, vivemos numa casa cujo telhado também é de vidro. Se começarmos a jogar pedras, estilhaços vão voar para todos os lados.

Vejo pessoas demonstrarem uma enorme paixão ao defender o culto “gospel”, com todas as suas manifestações emotivas e bombásticas, e que afirmam ter um profundo “amor” para com Deus e seu Filho, Jesus Cristo, para não mencionar também o Espírito Santo. Derramam lágrimas. Fiéis se prostram e até se arrastam pelo chão, rugindo como leões. Muitos abanam os seus braços numa comoção em massa, enquanto alguém grita ao microfone algo sobre render honra, glória e louvor ao Deus Altíssimo, criador dos céus e da terra.

Pouco tempo depois, muitos (sim, muitos) estão tomando umas e outras no barzinho e contando piadas sujas. Não são poucos os jovens que até terminam no motel uma noitada após um “cultaço”. Sua paixão profunda no culto não passa de uma profunda superficialidade. Sim, porque não há ligação entre uma paixão e a outra. Arrebatados pelo culto, são, em seguida, igualmente arrebatados pelos seus instintos mais baixos, traindo tudo o que o culto deveria representar.

Leio a lista dos interesses que pessoas escrevem em seu perfil do Facebook e me espanto. Enquanto dizem “curtir” o reverendo Paul Washer, “curtem” programas de televisão que promovem sexo ilícito e toda sorte de perversão, justo aquilo que o reverendo Washer combate tão claramente: True Blood, Sexo sem compromisso, Friends, Vampire Diaries, Crepúsculo e uma infinidade de filmes e seriados que vomitam sua imundície sobre o mundo todo. Qualquer um que fizesse um estudo do perfil da maioria dos jovens que povoam a nação virtual teria que chegar à conclusão de que são insanos, hipócritas, e ímpios disfarçados de crentes. E é exatamente o que são. Iludem-se ao pensar que podem ser amigos do mundo e também de Deus.

Seus corações não estão alicerçados em Jesus. Sua paixão por Cristo é tão profundamente superficial como sua paixão pelas inúmeras cores de esmalte (que é a moda atual entre as mocinhas de Cristo) ou por sapatos – sim, sapatos. De cabeças ocas e corações esfacelados, vivem sendo arrebatados pela última novela (sim, porque isso é normal e achar que não é torna-se legalismo), moda, filme ou música. Põem Jesus Cristo ao lado de Lady Gaga nas suas páginas de “curtir”.

É insano. Uma geração sem moral, sem raízes e sem um norte.

Mas… será que são todos assim? Claro que não. Alguns estão começando a pensar. Alguns estão começando a se questionar. Nem tudo está perdido. Mas a maioria, lamento dizer, está.

Na paz,

+W

(Fonte)

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O cristão pode apoiar a prostituição? (Vincent Cheung)

“Finalmente, irmãos, vos rogamos e exortamos no Senhor Jesus, que assim como recebestes de nós, de que maneira convém andar e agradar a Deus, assim andai, para que possais progredir cada vez mais. Porque vós bem sabeis que mandamentos vos temos dado pelo Senhor Jesus. Porque esta é a vontade de Deus, a vossa santificação; que vos abstenhais da prostituição; que cada um de vós saiba possuir o seu vaso em santificação e honra; não na paixão da concupiscência, como os gentios, que não conhecem a Deus. Ninguém oprima ou engane a seu irmão em negócio algum, porque o Senhor é vingador de todas estas coisas, como também antes vo-lo dissemos e testificamos. Porque não nos chamou Deus para a imundícia, mas para a santificação. Portanto, quem despreza isto não despreza ao homem, mas sim a Deus, que nos deu também o seu Espírito Santo.”
(1 Tessalonicenses 4.1-8)

[É muito claro que em 1 Tessalonicenses 4, em seu início, o apóstolo Paulo está afirmando com toda autoridade dada por Deus que] A imoralidade sexual é a norma de conduta para não-cristãos. Paulo chama-nos a pensar de forma diferente, para viver de modo diferente, e distinguir-se dos incrédulos, que não conhecem a Deus.

Devemos mencionar isso uma e outra vez, porque o diabo é como um leão que ruge, procurando a quem possa tragar. É vital para a sobrevivência e progresso espiritual nos manter alerta e vigilante. Na falta desta vigilância, muitas famílias cristãs e congregações foram infiltradas por crenças e práticas não-cristãs. Alguns já perderam a sensibilidade para a imoralidade entre eles e em volta deles. Então, quando alguém desperta para a ordem divina e parte para combater a imoralidade, logo é ironicamente criticado e perseguido.

É  desnecessário salientar que só porque um pecado é comum não significa que não é um pecado. Quando consideramos o que a Escritura diz sobre esta questão da imoralidade sexual, torna-se óbvio que muitos cristãos não são diligentes o suficiente em proclamar os mandamentos de Deus.

Se a admoestação dos cristãos é rara e fraca para condenar a imoralidade sexual com ameaças de punição divina (v.6b) isto deve ser considerado social e eclesiasticamente inaceitável. Nenhum covarde é qualificado para proclamar a palavra de Deus, e infelizmente, poucos são qualificados.

Esse tipo de pregação é boa e necessária, e Paulo confere-nos a autoridade que precisamos (v.6c). Não faz diferença se a pessoa é um adúltero, um fornicador, uma prostituta, um homossexual ou alguma outra pessoa pervertida. Paulo escreve que Deus vai punir os homens de todos esses pecados. E acrescenta, “como já lhe dissemos e advertimos ” (1Ts 4.6c). O tema assume um lugar de destaque nos ensinamentos éticos do apóstolo, e ele considera digno de repetição, acompanhado de ameaças. O versículo 6 é melhor traduzido, “o Senhor é vingador em todas estas coisas “.  Isto é dito no contexto da declaração anterior.

Em outras palavras, Deus tomará para si a vingança. Portanto, é nada menos do que uma negligência grosseira do dever quando um ministro cristão falha em declarar a ordem de Deus sobre esta questão, e para isso exorta com ameaças. A Bíblia obriga-nos a pregar: “Se você cometer adultério, Deus vai puni-lo. Se você é um homossexual, Deus vai fazer você sofrer, Deus é o vingador. Ele vai destruir sua vida por trair seu cônjuge, Ele vai torturar você para sempre no inferno”. Quem pensar que isto é falso ou uma dura e desnecessária pregação cristã deve começar a ler a Bíblia. Nada menos que isso não é toda verdade. Este é o cristianismo: tomá-lo e obedecer-lhe ou deixá-lo e sofrer.

Está na moda pregar compreensão, compaixão, reconciliação [ecumênica],  e assim por diante, para adúlteros e homossexuais. A Escritura não fala sobre a imoralidade sexual dessa maneira. Ela define e mantém o padrão rigoroso de Deus sobre a questão e condena todos aqueles que transgridem. Há de fato perdão em Jesus Cristo, mas perceba que Paulo está alertando especialmente os cristãos, então que ninguém se ache no direito de parodiar o perdão divino.

Se quisermos refletir a ênfase bíblica sobre este assunto, então é necessário que multipliquemos as acusações e condenações em nossa pregação, em vez de evitar ou reduzir o assunto.

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Mensagens da conferência Juntos em Cristo 2012

A Editora Fiel colocou à disposição o áudio das mensagens da Conferência Fiel 2012 e da conferência Juntos em Cristo 2012.

As mensagens podem ser baixadas e distribuídas gratuitamente. Sua comercialização é proibida.

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Mensagem de Paul Washer

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A Maldição do Homem Moderno (A.W. Tozer)

Existe uma maldição antiga que permanece conosco até hoje — a disposição da sociedade humana de ser completamente absorvida por um mundo sem Deus.

Embora Jesus Cristo tenha vindo a este mundo, este é o pecado supremo dos incrédulos, o qual levou o homem a não sentir — nem sentirá — a presença dEle que permeia todas as coisas. O homem não pode ver a verdadeira Luz, tampouco pode ouvir a voz do Deus de amor e verdade.

Temos nos tornado uma sociedade “profana” — completamente envolvida em nada mais do que os aspectos físico e material desta vida terrena. Homens e mulheres se gloriam do fato de que são capazes de viver em casas luxuosas, vestir roupas de estilistas famosos e dirigir os melhores carros que o dinheiro pode comprar — coisas que as gerações anteriores nunca puderam ter.

Esta é a maldição que jaz sobre o homem moderno — ele é insensível, cego e surdo em sua prontidão de esquecer que existe um Deus. Aceitou a grande mentira e crença estranha de que o materialismo constitui a boa vida. Mas, querido amigo, você sabe que o seu grande pecado é este: a presença eterna de Deus, que alcança todas as coisas, está aqui, e você não pode senti-Lo de maneira alguma, nem O reconhece no menor grau? Você não está ciente de que existe uma grande e verdadeira Luz que resplandece intensamente e que você não pode vê-la? Você não tem ouvido, em sua consciência e mente, uma Voz amável sussurrando a respeito do valor e importância eterna de sua alma, mas, apesar disso, tem dito: “Não ouço nada?”

Muitos homens imprudentes e inclinados ao secularismo respondem: “Bem, estou disposto a agarrar minhas chances”. Que conversa tola de uma criatura frágil e mortal! Isto é tolice porque os homens não podem se dar ao luxo de agarrar as suas chances — quer sejam salvos e perdoados, quer sejam perdidos. Com certeza, esta é a grande maldição que jaz sobre a humanidade de nossos dias — os homens estão envolvidos de tal modo em seu mundo sem Deus, que recusam a Luz que agora brilha, a Voz que fala e a Presença que permeia e muda os corações.

Por isso, os homens buscam dinheiro, fama, lucro, fortuna, entretenimento permanente ou apego aos prazeres. Buscam qualquer coisa que lhes removam a seriedade do viver e que os impeça de sentir que há uma Presença, que é o caminho, a verdade e a vida.

Eu mesmo fui ignorante até aos 17 anos, quando ouvi, pela primeira vez, a pregação na rua e entrei numa igreja onde ouvi um homem citando uma passagem das Escrituras: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim… e achareis descanso para a vossa alma” (Mt 11. 28,29).

Eu era realmente pouco melhor do que um pagão, mas, de repente, fiquei muito perturbado, pois comecei a sentir e reconhecer a graciosa presença de Deus. Ouvi a voz dEle em meu coração falando indistintamente. Discerni que havia uma Luz resplandecendo em minhas trevas.

Novamente, andando pela rua, parei para ouvir um homem que pregava, em um cantinho, e dizia aos ouvintes: “Se vocês não sabem orar, vão para casa, ajoelhem-se e digam: Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador”. Isso foi exatamente o que eu fiz. E Deus prometeu perdoar e satisfazer qualquer pessoa que estiver com bastante fome espiritual e muito interessado, a ponto de clamar: “Senhor, salva-me!”

Bem, Ele está aqui agora. A Palavra, o Senhor Jesus Cristo, se tornou carne e habitou entre nós; e ainda está entre nós, disposto e capaz de salvar. A única coisa que alguém precisa fazer é clamar com um coração humilde e necessitado: “ó Cordeiro de Deus, eu venho a Ti; eu venho a Ti!”

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Afinal, a mulher pode ou deve usar véu? (José Carlos Jacintho de Campos)

Está se tornando usual, em nossos dias, a aplicação indevida dos verbos poder e dever. Conforme a conveniência ou ponto de vista que se queira defender, dissimuladamente fazem a substituição desses verbos em artigos ou comentários bíblicos que passam desapercebidos pelos menos atentos, gerando costumes ou tradição ao arrepio da sã doutrina.

O verbo poder representa a faculdade ou possibilidade de fazermos alguma coisa de acordo com o nosso livre-arbítrio. Tanto é verdade que esse verbo não é conjugável no modo imperativo. Já o verbo dever tem o significado absoluto de ter a obrigação de fazer-se aquilo que está determinado ou sugerido.

Para exemplificar: podemos cometer pecado? Sim, porque isso faz parte da influência carnal que possuímos, está dentro da nossa capacidade física ou mental; por isso pecamos e diariamente temos de confessar nossos pecados a Deus (1Jo 1.8-10). Por outro lado, devemos viver assiduamente no pecado? Claro que não, pois isto está claramente determinado na Palavra de Deus que não devemos permanecer no pecado, tendo em vista que é nisto que se diferenciam os filhos de Deus e os filhos do diabo (1Jo 3.9,10). Portanto, nem tudo que se pode fazer é o que deve ser feito, sob pena de estarmos pecando e nos identificando com os desobedientes a Deus.

Ninguém, em sã consciência, discordará da afirmação de Paulo que os maridos devem amar a esposa assim como Cristo amou a Igreja a ponto de se entregar por ela (Ef 5.22-33). Sabiamente, as mulheres dão grande ênfase a esta passagem, tendo em vista que a elas é determinado que sejam submissas ao marido, como ao Senhor, logo a recíproca tem de ser verdadeira, ou seja, as mulheres se submetem por obediência ao Senhor e, em nome dessa mesma obediência, o marido lhes deve amor na mesma plenitude que Cristo amou a Sua Igreja.

Dever implica em obrigação; logo, não cumprir aquilo que é determinado na Bíblia é desobediência a Deus.

O que causa estranheza é que o mesmo vernáculo – deve – usado em Efésios 5.28, que, no original grego, denota uma inquestionável obrigação moral, não é aceito, principalmente pelas mulheres, em 1Coríntios 11.10, que afirma que a mulher deve trazer um sinal de submissão ou autoridade em sua cabeça por causa dos anjos. Nesta passagem o verbo está conjugado no modo imperativo afirmativo, que não deixa nenhuma dúvida quanto à ordem nele contida. Como é possível o mesmo verbo ter sentidos diferentes em Efésios 5.28 e em 1Coríntios 11.10? Dever implica em obrigação; logo, não cumprir aquilo que é determinado na Bíblia é desobediência a Deus.

É impressionante como muitas pessoas têm gasto um precioso tempo levantando argumentos, até mesmo absurdos, para justificar o descumprimento da determinação bíblica que a mulher deve cobrir a cabeça nas reuniões da igreja. Esses argumentos geram uma confusão tamanha que faz com que as lideranças de algumas igrejas locais deixem o uso do véu a critério pessoal de cada irmã, como se houvesse duas verdades na Bíblia.

A isto chamamos de a Síndrome de Pilatos, ou seja, conhece-se a verdade, porém é “politicamente correto” não a aplicar; com isso, “lavam-se as mãos” jogando a responsabilidade da decisão sobre as mulheres. Esse procedimento, de não assumir responsabilidades, foi utilizado por Pilatos para encaminhar Jesus Cristo para a morte. Por definição: responsabilidade não se transfere, assume-se para não se tornar um irresponsável.

Creio ser oportuno avaliarmos alguns dos argumentos apresentados por aqueles que procuram justificar a desobediência do não uso do véu pelas mulheres nas reuniões públicas realizadas pela igreja local.

O Argumento Restritivo

“O assunto era específico à igreja em Corinto.”

Os que assim argumentam se estribam no erro de que a Primeira Epístola aos Coríntios se prende obstinadamente a fatos locais; logo, o uso do véu pelas mulheres seria específico para aquela igreja local.

Sem dúvida, essa afirmação é absurda, pois é claríssima a universalidade da epístola: “À igreja de Deus que está em Corinto, aos santificados em Cristo Jesus, chamados para serem santos, com todos os que em todo lugar invocam o nome do Senhor Jesus, Senhor deles e nosso” (1.2). Será por demais pretensioso afirmar que os males que afligiam aquela igreja jamais ocorreriam em outras. O Espírito Santo orientou Paulo nesse sentido a fim de que as demais igrejas aprendessem com os erros cometidos por aqueles irmãos e evitassem os mesmos procedimentos.

Sabemos que, apesar dessas admoestações, esses erros não deixaram de ser praticados, pois, ainda hoje, cometem-se os mesmos pecados apesar das advertências contidas nesta carta. Dizer-se que assuntos correlatos à ordem nos cultos, à participação na ceia, ao ordenamento dos dons espirituais, à sublimidade do amor, à ressurreição dos mortos e aos assuntos pertinentes à coleta seriam específicos à igreja em Corinto é, no mínimo, por desconhecimento bíblico, pois, se for de caso pensado, é má-fé.

O Argumento Cultural

“O uso do véu era um costume social da época em Corinto.”

Pelo fato de Paulo fazer uma referência quanto ao costume social do tamanho do cabelo a ser usado por homens e mulheres (1Co 11.14,15), isto não significa que ele estivesse fazendo o mesmo com o véu.

A comparação é uma figura de linguagem que facilita o ensino ou a explicação sobre determinado aspecto. Um quilo de ilustração vale por uma tonelada de explicações, porém, quando o espírito farisaico prevalece não há ilustração que dê jeito. Lembremo-nos das parábolas de Cristo e a rebeldia dos judeus.

Se a afirmação que o uso do véu para as mulheres é coisa do passado e era aplicado somente naqueles dias, isto vale dizer que o inverso também é verdadeiro, ou seja, os homens de hoje deveriam orar com a cabeça coberta, pois Paulo teria determinado somente para aquela época que o homem devia, ao contrário das mulheres, orar com a cabeça descoberta (v. 4). Teriam, porventura, os homens de hoje de usar o “tallith” (um xale de quatro pontas) sobre a cabeça como faziam e fazem atualmente os judeus que oram com a cabeça coberta nas sinagogas, tendo em vista que o costume da cabeça descoberta seria somente para aquela época?

Percebam o absurdo dessa interpretação! Se não bastasse isso, se o uso fosse válido somente para aquela época, isto equivale dizer que hoje em dia os anjos do Senhor não mais estariam ao redor daqueles que O temem. O verso 10 de 1Coríntios 11 é claríssimo: a mulher deve trazer a cabeça coberta por causa dos anjos. Ensinar que a mulher não deve usar véu é o mesmo que dizer que os anjos não existem ou não atuam mais!

O escritor de Hebreus não deixa dúvida quanto ao ministério dos anjos junto à igreja: “São todos eles espíritos ministradores, enviados para servir a favor dos que hão de herdar a salvação” (Hb 1.14). Os anjos do Senhor não podem contemplar a desobediência das servas, pois o uso do véu pela mulher é um sinal da sua submissão, assim como eles são submissos e se cobrem com suas asas ao comparecerem perante o Trono de Deus (Is 6.2).

Com base nesse mesmo trecho de Isaías 6.2, há afirmações incorretas de que o homem também deveria cobrir a cabeça em suas orações a Deus. A Palavra de Deus é claríssima a esse respeito: “Na verdade, o homem não deve cobrir a cabeça por ser ele imagem e glória de Deus” (1Co 11.7).

É lamentável a errônea interpretação de que a sujeição das mulheres pelo uso do véu é um sinal de que elas são inferiores aos homens. Isto é ignorância!

Convém ressaltar que o citado verso 10 de 1Coríntios 11 contém uma profunda sabedoria. O vernáculo grego exousia significa “o direito de fazer alguma coisa”, ou seja, a cabeça coberta da mulher lhe outorga autoridade para orar, adorar e exercer os seus dons espirituais e, com essa atitude, ela se legitima perante os anjos e concomitantemente perante a igreja, conforme os versos 13 e 16 de 1Coríntios 11. Portanto, fica extremamente claro que essa legitimidade é manifestada pelo véu que a mulher trouxer na sua cabeça, pois o exercício da sua autoridade está sendo demonstrado pelo sinal da sua submissão. Isto é sabedoria de Deus!

É lamentável a errônea interpretação de que a sujeição das mulheres pelo uso do véu é um sinal de que elas são inferiores aos homens. Isto é ignorância! Submissão não é sinônimo de inferioridade. Jesus sujeitou-se ao Pai, porém jamais Lhe foi inferior porque Ele – assim como o Pai – é Deus. Jesus deixou claro isso ao afirmar que, enquanto Ele aqui estivesse, o Pai seria maior e não melhor que Ele. Isto diferencia sujeição de inferioridade (Jo 10.30; 17.11,21-23). Qualquer outra interpretação fica por conta do inimigo de nossa alma.

O Argumento da Substituição

“O cabelo comprido substitui o uso do véu na igreja.”

Jamais Paulo fez tal afirmação. O uso da figura de linguagem do cabelo comprido das mulheres, que para elas era uma glória, pois a cabeleira lhes fora dada em lugar da mantilha (1Co 11.15), é uma explicação à sua própria indagação. “Julgai entre vós mesmos: é conveniente que uma mulher ore com a cabeça descoberta a Deus?” (v. 13). Essa figura de linguagem em hipótese nenhuma anula a obrigatoriedade do cumprimento do verso 10.

É erro grotesco afirmar-se que o cabelo comprido do verso 15 substitui o véu do verso 6, pois os vernáculos usados no original grego para essas vestimentas não são os mesmos; ou seja, no verso 6 trata-se realmente de um véu, peça de tecido mais leve, e, no verso 15, de mantilha, vestimenta feminina mais pesada.

Aprendemos em hermenêutica que, em nenhuma hipótese, devemos fixar uma doutrina ou norma tendo como base uma figura de linguagem, pois ela serve somente para ilustrar. Aquilo que está sendo ilustrado é que deverá prevalecer.

O Argumento da Ausência

“Se não houver varão presente às reuniões, a mulher pode orar sem véu.”

Outra afirmação improcedente. O que é que tem a ver uma coisa com a outra? A mulher não usa véu por causa do homem, mas por causa dos anjos, como sinal da sua autoridade e submissão à ordenança contida na Palavra de Deus. Os versos 5 e 6 de 1Coríntios 11 são extremamente claros: “Toda mulher que ora ou profetiza com a cabeça descoberta desonra a sua cabeça, porque é a mesma coisa como se estivesse rapada. Portanto, se a mulher não se cobre com véu, tosquie-se também; se, porém, para a mulher é vergonhoso ser tosquiada ou rapada, cubra-se de véu.”

Paulo ilustra a cabeça descoberta com a punição que era dada às mulheres devassas [rapar o cabelo]. O Espírito Santo levou Paulo a ser extremamente enérgico nessas colocações. De fato, ele está afirmando que seria vergonhoso para a mulher orar com a cabeça descoberta porque, desta forma, estaria se colocando no mesmo nível daquelas que, por viverem no pecado, eram excluídos da sociedade.

O Argumento Indecoroso

“Paulo não gostava de mulher.”

Sem dúvida, essa afirmação vem do inferno. O movimento feminista infiltrado em algumas igrejas denominacionais tem lançado essa leviandade, com a maldosa insinuação de que Paulo era casto por não gostar de mulher.

Quanta maldade somente para justificar o uso do púlpito e o não uso do véu pelas mulheres nas reuniões públicas da igreja local! As revelações contidas na Palavra de Deus não são de entendimento humano, mas por inspiração do Espírito Santo. Paulo afirma em 2Timóteo 3.16: “Toda Escritura é divinamente inspirada”. Pedro reafirma em 1Pedro 1.20.21: “Nenhuma profecia da Escritura é de particular interpretação. Porque a profecia nunca foi produzida por vontade dos homens, mas os homens da parte de Deus falaram movidos pelo Espírito Santo.”

Portanto, quem manda as mulheres se cobrirem nas reuniões públicas da igreja com o véu não é Paulo, mas o Espírito Santo que é de Deus. A maledicência lançada contra Paulo é indecente, pois ele jamais se desagradou das mulheres ou as menosprezou, como ele mesmo escreve em Gálatas 3.28: “Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nem mulher; porque todos vós sois de Cristo Jesus.”

Propositadamente as feministas se esquecem da menção que Paulo faz em suas epístolas às valorosas e dedicadas servas que, como ele, gastaram a vida em prol do Evangelho, e que, por certo, oravam com a cabeça coberta. É torpeza colocar dúvida sobre a masculinidade de Paulo pelo fato de ele praticar a castidade (1Co 7.7-9). Por trás de toda essa desavença criada pelas feministas em torno do uso do véu, está o velado descontentamento das mulheres em usá-lo por entenderem que Paulo teria sido extremamente injusto com elas na medida em que as colocou em sujeição ao homem. Essa idéia é absurdamente errada! A sujeição da mulher ao homem vem desde a criação, e não se trata de uma “invenção” de Paulo, mas é uma determinação de Deus.

Desde o princípio da criação a liderança do homem e a sujeição da mulher são determinadas por Deus, tendo em vista que o homem é a imagem e glória de Deus e a mulher, a glória do homem (11.7). O homem foi colocado no mundo como representante de Deus para exercer domínio sobre a terra e a sua cabeça descoberta é um testemunho silencioso desse fato.

Portanto, o homem não deve cobrir a cabeça, pois tal ato seria um grande insulto a Deus porque estaria cobrindo a Sua glória. À mulher nunca foi dada essa liderança. Deus a colocou como ajudadora do homem. O diabo, em sua astúcia, induziu Eva a usurpar a liderança que pertencia a Adão na medida em que ela, sozinha, decidiu manter aquele fatídico diálogo. Por isso, Deus determinou à mulher: “Ele [o homem] te dominará” (Gn 3.16). Eliminar essa sujeição é coisa do diabo; desde o princípio ele persiste nisso.

O Argumento do Paradigma

“Nas igrejas denominacionais históricas as mulheres não usam véu.”

Se somos como somos é porque entendemos que assim devemos ser como igreja de Cristo que somos; ou seja: se nos reunimos dessa forma é porque cremos que devemos ter por modelo a igreja primitiva, que é algo sobremodo difícil em nossos dias em virtude das muitas tradições que foram criadas no meio tido como evangélico.

Assim como ocorreu no judaísmo e no catolicismo, o protestantismo se tem conduzido mais pelas tradições humanas do que propriamente pelas revelações contidas na Palavra de Deus. Amamos os irmãos denominacionais, porém, se nos reunimos procurando o padrão autêntico das igrejas neo-testamentárias, isso significa que não devemos aceitar tradições humanas misturadas ao ajuntamento solene.

As mesmas vozes que evocam o costume das denominacionais históricas para o não uso do véu pelas mulheres são as mesmas que não concordam, dentre tantas outras coisas, com a diferenciação que é feita entre o clérigo e o leigo cujo princípio eclesiástico nega, de fato, a unidade de todos os crentes. O vocacionamento clerical é estranho aos ensinamentos contidos na Palavra de Deus, pois “como pedras vivas, somos edificados casa espiritual e sacerdócio santo, para oferecer sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus, por Jesus Cristo” (1Pe 2.5). Portanto, todos os cristãos nascidos espiritualmente de novo possuem o mesmo sacerdócio.

Que diremos, então, acerca de distorções doutrinárias? Por que, então, somente determinada prática nos serve, como o não uso do véu, e não há concordância em relação às demais? Não seria uma hipocrisia pensarmos dessa forma, ou seja, naquilo que atende aos anseios das mulheres as tradições das igrejas denominacionais devem ser seguidas? Creio que Paulo nos dá essa resposta em 1Coríntios 11.16: “Se alguém quiser ser contencioso [ao permitir que a mulher ore sem véu], nós não temos tal costume, nem tampouco as igrejas de Deus.”

O Argumento Doutrinário

“A obrigatoriedade do uso do véu não é um ponto doutrinário por estar revelado em apenas uma passagem da Palavra de Deus.”

É sobremodo estranho o ensino que surgiu em nosso meio de que uma doutrina bíblica somente é válida quando existe no mínimo mais de uma passagem que confirme a sua condição como tal.

O nosso assunto aqui não é o de abrir um debate sobre hermenêutica, porém, se essa afirmação fosse verdadeira, a maioria das citações escatológicas não seria doutrinária. Basta lermos o Apocalipse e veremos que grande parte dos assuntos nele contidos estão revelados somente lá; ou ainda, não poderemos afirmar que os mortos não serão arrebatados antes dos vivos simplesmente pelo fato de isso estar revelado apenas em 1Tessalonicenses 4.15-17.

É impressionante como se inventa tanto por causa de algo tão simples que é o uso do véu pelas mulheres.

O Argumento da Concorrência

“O tamanho e a cor do véu promovem um desfile de moda na igreja.”

Por último, justifica-se o não-uso do véu pelo fato de que poderá haver entre as mulheres uma concorrência ou desfile de moda pela multiplicidade de cores e tamanhos dos véus. Justificar que o uso do véu criaria uma disputa de moda entre as irmãs é uma afirmação temerária. Os vestidos, as calças compridas (por vezes coladas ao corpo), as saias (por vezes curtas demais), as bluas, os sapatos, as meias, os brincos, os anéis, os colares, os esmaltes, os batons, etc. não causam concorrência, mas o véu promoverá isso?! Não devemos subestimar a Deus dessa forma, pois é o Espírito Santo que determina o uso do véu.

Quanto ao tamanho gerar um modismo, pelo fato de que, quanto menor o véu, mais elegante a mulher fica, particularmente pode-se entender que se é ruim usar um véu pequeno, pior será não usar nenhum. Porém, é verdadeiro que está havendo um abuso em nossos dias pelo uso de véus minúsculos, que os descaracterizam como a cobertura estabelecida na Palavra de Deus.

Pelo fato do seu tamanho não ser determinado explicitamente no citado trecho, isto não significa que qualquer coisa que se coloca sobre a cabeça estaria cumprindo com a divina determinação. Convém lembrar que o uso do véu ordenado por Deus não é uma mera vestimenta, mas um sinal (1Co 11.10) e, por inferência, sabemos que qualquer que seja um sinal, ele somente atinge seu objetivo na medida que revela nitidamente aquilo que ele se propôs mostrar.

A prudência e a moderação são virtudes recomendadas para cercear qualquer tipo de exagero tanto para mais como para menos, pois há que se ter acentuado cuidado com as posições extremistas.

Segundo o consagrado servo do Senhor William MacDonald (The Believer’s Bible Comentary), “o véu somente é válido quando o seu uso exterioriza a graça interior da mulher. A coisa mais importante no uso do véu deve ser a certeza de que o coração está realmente submisso: o véu sobre a cabeça das mulheres possui esse real significado (…)”.

Portanto, o tamanho e a cor não são coisas fundamentais; o que verdadeiramente importa é a sujeição das mulheres às determinações contidas na Palavra de Deus. As cores e tamanhos serão adequados por elas próprias segundo a graça que interiormente possuem pela habitação do Espírito Santo.

Isto equivale dizer que o não-uso do véu significa a inexistência de reverência e temor a Deus, e é uma questão definitiva e incontestável na Palavra de Deus. A recusa ou omissão das mulheres com respeito ao uso do véu nas reuniões públicas da igreja são demonstrações de rebeldia a Deus. As vozes discordantes são por conta de interpretações de particular elucidação, não por revelação divina.

Que diremos, pois, à vista destes argumentos? Atentemos para o convite de Paulo: “Sede meus imitadores, como também eu o sou de Cristo” (1Co 11.1). Permita Deus que assim seja!

 

(Extraído de um xerox desse artigo na revista Amados…, 32, sem identificação de editora ou de local de publicação. Se alguém conhecer os detentores dos direitos autorais desse texto ou se a revista ainda é publicada, favor entrar em contato.)

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Apostolado ou apostolice? (Márcio Redondo)

Uma leitura atenta do Novo Testamento nos leva a questionar não apenas certas práticas do movimento apostólico moderno, mas o próprio movimento.

Já faz algum tempo eu andava curioso por conhecer melhor o chamado movimento apostólico. Não estou falando da Igreja Primitiva, não. Refiro-me aos apóstolos de nossos dias, esses que começaram a pipocar depois de 1980. Então, há pouco mais de um mês, reencontrei meu amigo Freddy Guerrero, que mora em Quito, no Equador. Tive a grata surpresa de saber que ele está investigando o assunto, como parte de seus estudos de pós-graduação. Eu, um leigo no assunto, diante de um “expert”… É claro que bombardeei-o de perguntas.

Descobri várias coisas. Existem pelo menos três grandes redes apóstolicas. É isso mesmo. São três redes. Quer dizer, estão divididos. Desde logo, vê-se que os apóstolos do século XXI não são um exemplo de unidade em Cristo. Em todas as três redes há uma fortíssima ênfase na batalha espiritual. A maior das redes é de linha carismática. Outra é messiânica, e a terceira é judaizante. Aliás, fiquei de queixo caído ao saber que os apóstolos da linha judaizante negam que Jesus seja Deus.

O movimento apostólico ensina que cada apóstolo possui autoridade espiritual sobre territórios específicos. Um é apóstolo de Buenos Aires, outro é da Cidade do México, e assim por diante. É claro que o Brasil também já está “loteado”. Segundo cálculos feitos por Freddy, existem hoje no mundo todo uns 10 mil “apóstolos”. Estes alegam possuir a mais alta autoridade espiritual em suas respectivas regiões. Todas as igrejas, de qualquer denominação, e mesmo aquelas sem filiação denominacional estão sob a autoridade deles. Bem, pelo menos é assim que pensam.

Aproveito para mencionar que Freddy chegou a ser convidado por um “apóstolo” argentino para se tornar “apóstolo” de Quito. Se tivesse aceito, o argentino teria imposto as mãos sobre Freddy e hoje eu seria amigo de um “apóstolo”. Felizmente, Freddy teve o bom senso de rejeitar o convite. Fica um pouco a idéia de clube do Bolinha, com um apóstolo convidando alguém para se tornar um deles.

Pessoalmente, creio que alguns desses “apóstolos” são sinceros em seu desejo de servir a Deus, embora estejam equivocados. Mas não posso dizer isso de todos. Sem citar nomes, Freddy me contou casos de “apóstolos” envolvidos em escândalos sexuais, disputas por poder, enriquecimento à custa das igrejas, etc. Um outro amigo me contou de um “apóstolo” aqui no Brasil que, na sua estratégia de batalha espiritual, resolveu delimitar as fronteiras de sua jurisdição. Como Jesus Cristo é apresentado na Bíblia como o leão de Judá (Apocalipse 5.5) e como os leões demarcam seu território com urina, esse “apóstolo” começou a sair pelas ruas de sua cidade e circunscrever sua área com… sua própria urina! Quanta ingenuidade!

Uma leitura atenta do Novo Testamento nos leva a questionar não apenas certas práticas do movimento apostólico, mas o próprio movimento. Se não, vejamos:

Biblicamente a palavra “apóstolo” tem a idéia de procurador ou representante de alguém. A ênfase do vocábulo não está na tarefa em si, mas em quem deu a tarefa ao apóstolo. Por esse motivo, em várias de suas cartas, Paulo se apresenta como “apóstolo de Cristo Jesus” (Galátas 1.1; Efésios 1.1; Colossenses 1.1; 1 Timóteo 1.1; 2 Timóteo 1.1), pois é Jesus quem o havia comissionado. E essa procuração era intransferível. Nem Paulo nem os demais apóstolos da Igreja Primitiva tinham o direito de chamar alguém para ser apóstolo junto com eles. A escolha de alguém para o apostolado era prerrogativa do próprio Jesus (Atos 1.2).

Além disso, apóstolo era alguém que viu pessoalmente a Jesus ressuscitado (Atos 1.21-26). Aliás, ao defender seu apostolado, Paulo faz uma clara associação entre ser apóstolo e ter visto Jesus (1 Coríntios 9.1). Ele também afirma que Jesus ressuscitado apareceu a todos os apóstolos. No seu caso pessoal, Jesus apareceu-lhe “como a um que nasceu fora de tempo” (1 Coríntios 15.7), pois foi em circunstâncias excepcionais, após Jesus ter subido ao céu, que Paulo viu Jesus (Atos 9.3-6).

Os apóstolos do Novo Testamento caracterizavam-se, entre outras coisas, por “sinais, prodígios e poderes miraculosos” (2Co 12.12; ver tb At 5.12). Isso funcionava como confirmação de que o apóstolo recebera autoridade da parte do Senhor Jesus. Os acontecimentos não eram coisas do tipo cair no culto, mas verdadeiros milagres, como cura de aleijados de nascença (At 3.2-8; 14.8-10) e ressurreição de um jovem (At 20.9-12).

Para concluir, o ministério apostólico neo-testamentário não era delimitado geograficamente. Paulo, por exemplo, foi apóstolo dos gentios (Galátas 2.8; Romanos 11.13). Não estava preocupado com territórios, mas com pessoas. Para ele não havia fronteiras. Seu interesse era levar não-judeus ao conhecimento de Jesus, não importa onde estivessem.

Minha dificuldade em aceitar o movimento apostólico dos nossos dias reside em que os “apóstolos” modernos não viram Jesus ressucitado, não foram designados pessoalmente pelo próprio Jesus, não realizam prodígios e sinais como na época do Novo Testamento e, ao contrário dos apóstolos do século I, se preocupam com a distribuição territorial. Minha conclusão é que tais pessoas declaram-se apóstolos, mas na verdade nunca o foram (2 Coríntios 11.13; Apocalípse 2.2).

Se, apesar das objeções acima, você ainda está pensando em seguir a profissão de apóstolo, é melhor se apressar. Infelizmente as áreas nobres já estão ocupadas. Mas ainda existem cidades menores sem dono. A propósito, parece que a Antártida ainda não tem apóstolo. Um continente inteiro à disposição! Alguém se candidata?

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Márcio Redondo, membro da Igreja Batista Bairro Aeroporto (Londrina, PR), é professor de tempo integral da Faculdade Teológica Sul-Americana, onde também exerce as funções de Vice-Diretor e Coordenador de Pós-Graduação e Pesquisa e edita a revista eletrônica Teologia Hoje. Pastor e professor de teologia desde 1976, é também conhecido por seu trabalho de tradução de livros acadêmicos, inclusive Bíblias. É casado com Marilza e pai de Ester e Rute.

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A intolerância bíblica (Martin Lloyd-Jones)

Gostaria de enfatizar esta verdade, asseverando que existe, na fé cristã, um lado de intolerância. Vou mais além e afirmo que, se não temos visto este lado intolerante da fé, provavelmente nunca vimos verdadeiramente a fé. Existem muitos mandamentos nas Escrituras que substanciam a afirmativa de que colocar mais alguém ao lado de Jesus, ou falar de salvação a parte dEle, ou sem que Ele seja o centro dela, é traição e negação da verdade. O apóstolo Pedro, dirigindo-se ao sinédrio em Jerusalém, disse: “porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome dado, entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos” (At 4:12).

Todo falso ensinamento deve ser odiado e combatido. O Novo Testamento nos diz que assim fez nosso Senhor e todos os apóstolos, e que eles se opuseram e advertiram as pessoas contra isso. Mas pergunto novamente: isto é realizado hoje? Qual sua atitude pessoal quanto a isso? Acaso é você uma daquelas pessoas que diz que não há necessidade dessas negativas, e que deveríamos estar contentes com uma apresentação positiva da verdade? Subscrevemos o ensinamento prevalecente que discorda de advertências e críticas ao falso ensinamento? você concorda com aqueles que dizem que um espírito de amor é incompatível com a denúncia crítica e negativa dos erros gritantes, e que temos de ser sempre positivos? A resposta mais simples a tal atitude é que o Senhor Jesus Cristo denunciou o mal e os falsos mestres. Repito que Ele os denunciou como “lobos vorazes” e como “sepulcros caiados” e como “guias cegos”. O apóstolo Paulo disse de alguns deles: “o deus deles é o ventre, e a glória deles está na sua infâmia”. Esta é a linguagem das Escrituras. Pode haver pouca dúvida, mas a Igreja está como é hoje porque não seguimos o ensinamento do Novo Testamento e as suas exortações, e nos restringimos ao positivo e ao assim chamado “Evangelho simples”, e fracassamos em acentuar negativas e críticas. O resultado é que as pessoas não reconhecem o erro, quando se defrontam com ele.

Aceitam aquilo que aparenta ser bom, e se impressionam com aqueles que vem às suas portas falando da Bíblia e oferecendo livros sobre a Bíblia e profecias e coisas deste tipo. E eles, na condição de sua ignorância infantil, freqüentemente ajudam a propagar o falso ensinamento, porque não conseguem ver nada de errado nele. Além disso não compreendem que o erro deve ser odiado e denunciado. Eles imaginam-se a si mesmos cheios de um espírito de amor, são iludidos por satanás, a fera destruidora que estava no encalço delas, e que, num bote súbito, os agarrou com sua esperteza e sutileza.

Não é agradável ser negativo; ter que denunciar e expor o erro não dá alegria. Mas qualquer pastor que sinta, em pequena medida, e com humildade, a responsabilidade que o apóstolo Paulo conhecia num grau infinitamente maior pelas almas e o bem estar espiritual de seu povo, é forçado a fazer estas advertências. Isto não é desejado nem apreciado por esta moderna geração moralmente fraca. Muito amiúde a bancada tem controlado o púlpito e grande dano tem sobrevindo à Igreja. O apóstolo adverte a Timóteo que virá um tempo em que as pessoas “não suportarão a sã doutrina”. Este é freqüentemente o caso no tempo presente, e assim tem sido durante este século. Por isso é importante que cada membro deva ter uma concepção real da Igreja e do oficio do ministro em particular.

Hoje há no mundo igrejas que na superfície parecem ser igrejas florescentes. Multidões se agregam a elas e demonstram demasiado zelo e entusiasmo. Mas num exame mais acurado descobre-se que a maior parte do tempo é tomado por música de vários tipos, e com clubes e sociedades e atividades sociais. O culto começa às 11:00h e tem que terminar exatamente ao meio-dia, e haverá sérios problemas se isso não ocorrer! Há apenas uma breve “reflexão” de quinze minutos, vinte minutos no máximo. O infeliz ministro, se não enxergar estas coisas com clareza, teme ir contra os desejos da maioria.

Sua sobrevivência depende dos membros da igreja, e o resultado é que tudo é feito para se conformar aos desejos e anseios da congregação.

Mas deixe-me acrescentar que o ministro também não pode impor. É o próprio Senhor quem determina, Aquele que está assentado à mão direita de Deus e que deu “alguns para apóstolos, e outros para profetas, e outros para evangelistas, e outros para pastores e doutores” (Ef 4:11 ). Ele os deu para a edificação dos membros da Igreja, e é a mensagem dELE que deve ser pregada sem temor nem favor. Precisamos recuperar algo do espírito de John Knox cuja pregação fazia tremer a Maria, Rainha dos Escoceses.

O trabalho do ministro é edificar o corpo de Cristo. A ocupação do ministro é edificar a Igreja, não a si mesmo! Ai! Eles têm muito freqüentemente edificado a si mesmos, e temos lido de príncipes da igreja vivendo em posições de grande pompa e riqueza. Isto é uma gritante deturpação dos ensinamentos de Paulo! Observemos que os ministros são  chamados para edificar, não para agradar nem entreter. O modo pelo qual deveriam fazer isso está resumido perfeitamente naquela passagem, imensamente lírica, de Atos 20 . O apóstolo Paulo está se despedindo dos presbíteros da igreja de Éfeso, à beira mar, e eis o que ele diz: “Agora, pois, encomendo-vos ao Senhor e È Palavra da Sua graça, que tem poder para vos edificar e dar herança entre todos os que são santificados” (v.32). “Palavra da Sua graça, que tem poder para vos edificar”! Não é surpresa que a igreja seja o que é hoje, pois lhe têm sido dados filosofia e entretenimento. Por meio delas um ministro pode, por enquanto, atrair e segurar uma multidão; mas não pode edificar; a tarefa dos pregadores é edificar, não atrair multidões. Nada edifica a não ser a inadulterada Palavra de Deus. Não há autoridade fora dela; e ela não pode de modo algum ser modificada ou nivelada para se adaptar à moda da ciência moderna, ou a alguns supostos “resultados confirmados da crítica” que está sempre em modificação.

É o “eterno Evangelho” e é: a “Eterna Palavra a mesma que Paulo e os demais apóstolos pregaram, a mesma Palavra que os Reformadores protestantes pregaram, os Puritanos, e os grandes pregadores de duzentos anos atrás, como também Spurgeon no último século, sem qualquer modificação que fosse. É pelo fato de isso ter sido tão amplamente esquecido nos últimos cem anos que as coisas hoje estão como estão.

Extraído do jornal Os Puritanos, ano III, n. 3

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Igreja Modernismos

Um templo ou um teatro? (Charles H. Spurgeon)

Os homens parecem nos dizer: “Não há qualquer utilidade em seguirmos o velho método, arrebatando um aqui e outro ali da grande multidão. Queremos um método mais eficaz. Esperar até que as pessoas sejam nascidas de novo e se tornem seguidores de Cristo é um processo demorado. Vamos abolir a separação que existe entre os regenerados e os não-regenerados. Venham à igreja, todos vocês, convertidos ou não-convertidos. Vocês têm bons desejos e boas resoluções: isto é suficiente; não se preocupem com mais nada. É verdade que vocês não crêem no evangelho, mas nós também não cremos nele. Se vocês crêem em alguma coisa, venham. Se vocês não crêem em nada, não se preocupem; a ‘dúvida sincera’ de vocês é muito melhor do que a fé”.

Talvez o leitor diga: “Mas ninguém fala desta maneira”.

É provável que eles não usem esta linguagem, porem este é o verdadeiro significado do cristianismo de nossos dias. Esta é a tendência de nossa época. Posso justificar a afirmação abrangente que acabei de fazer, utilizando a atitude de certos pastores que estão traindo astuciosamente nosso sagrado evangelho sob o pretexto de adaptá-lo a esta época progressista.

O novo método consiste em incorporar o mundo à igreja e, deste modo, incluir grandes áreas em seus limites. Por meio de apresentações dramatizadas, os pastores fazem com que as casas de oração se assemelhem a teatros; transformam o culto em shows musicais e os sermões, em arengas políticas ou ensaios filosóficos. Na verdade, eles transformam o templo em teatro e os servos de Deus, em atores cujo objetivo é entreter os homens. Não é verdade que o Dia do Senhor está se tornando, cada vez mais, um dia de recreação e de ociosidade; e a Casa do Senhor, um templo pagão cheio de ídolos ou um clube social onde existe mais entusiasmo por divertimento do que o zelo de Deus?

Ai de mim! Os limites estão destruídos, e as paredes, arrasadas; e para muitas pessoas não existe igreja nenhuma, exceto aquela que é uma parte do mundo; e nenhum Deus, exceto aquela força desconhecida por meio da qual operam as forças da natureza. Não me demorarei mais falando a respeito desta proposta tão deplorável.

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