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Por que sou contra o namoro (ou Porque Mr. Darcy me cativa) (Drika Vasconcelos)

Relutei muito para postar este texto!

Primeiro, porque ainda tenho muito que aprender e entender sobre todo esse assunto. Escrevo para melhor compreender um assunto. Esse post é um desses casos. Há muitos livros que ainda lerei, muitas referências bíblicas que ainda estudarei e muitos sábios que ainda consultarei.
Segundo, por causa do primeiro, confesso que não estou nem um pouco preparada para responder comentários e críticas sobre o que escrevi aqui. Talvez por isso esteja sendo um pouco precipitada. Mas não pretendo impor minhas ideias; pretendo apenas defendê-las. Caso você discorde, fique a vontade para comentar. Não prometo uma resposta certa, mas uma resposta honesta.
Terceiro, porque não sou madura o suficiente para dar continuidade. Tenho a sensação de que a ideia  está no caminho certo… Mas se um casal de namorados chegar para mim e perguntar o que fazer agora da vida, eu sinceramente não saberia responder. Apontaria para o primeiro pastor e conselheiro sábio que conheço.
Quarto, porque alguém pode dizer ou pensar: “É muito fácil você condenar namoro já estando casada” ou “Você se acha melhor do que nós namorados e que pode nos criticar porque você já está casada?” Mas estariam enganados. O casamento não é o troféu de uma corrida; o casamento faz parte da corrida em si. Cristo é nosso prêmio, e Ele se deu a nós, tanto a solteiros como a casados como a viúvos e divorciados, nos unindo como irmãos e irmãs, que devem se amar e se preocupar pelo bem-estar do outro. Isso inclui o bem-estar relacional.
Quinto, porque simplesmente não tem muito a ver com o tema deste blog: a vida de recém-casadas. Por isso, queridas e amadas leitoras fiéis do blog, peço perdão por fugir um pouco do assunto. Prometo que da próxima vez procurarei escrever sobre minhas aventuras na cozinha! (Aliás, essa semana mesmo aprendi a fazer uns pratos super práticos!)
Tendo dito essas coisas, o objetivo deste texto não é criticar, condenar ou julgar namorados e, sim, o conceito do namoro, até dos mais diferentes dos namoros, sua estrutura (ou falta de), sua funcionalidade e sua utilidade. É sugerir um raciocínio, uma visão diferente sobre a relação namoro-casamento, incentivar o uso do discernimento, o pensamento crítico e, mais importantemente, valorizar o casamento para a glória de Deus, custe o que custar.
É importante primeiro definir os termos. Quando falo namoro, estou me referindo a um relacionamento no qual duas pessoas do sexo oposto se comprometeram pública, romântica, emocional e exclusivamente (com ou sem relações físicas) uma à outra sem compromisso imediato de casamento. Eu acredito que cortejo seja consenso entre duas pessoas do sexo oposto para aprofundarem a amizade e o interesse romântico, sem se comprometerem fisicamente, visando em casamento no futuro próximo. Ao contrário do namoro, o cortejo não pode existir em função de si só, mas existe apenas em função de um futuro casamento. As pessoas cortejam para casar e não por cortejar. Noivado é quando há compromisso público de casamento, que é algo bíblico. Assim como cortejo, o noivado não existe em função de si mesmo, mas em função do casamento.
O que então são minhas razões para discordar do namoro?
  1. Não há limites definidos para o começo ou fim de um namoro. Hoje em dia, a mania é dizer que namoro só começa de verdade quando você “oficializa” no Facebook. O término é pior ainda. É comum ouvir também: “Eu acho que a gente acabou… Mas não tenho certeza. Ele ainda me liga, a gente se gosta…” ou “A gente tá namorando então?” ou “Então já posso te chamar de namorado/a?” ou “Estamos dando um tempo” ou “A gente tava ficando mas a coisa se tornou mais séria. Acho que já estamos namorando.”
  2. O namoro é desestruturado por natureza. Não há regras para o namoro. Os pastores e conselheiros com certeza tentam estabelecer regras e parâmetros, desesperados para guiar os jovens pelo parque de diversões sem comprometerem sua pureza, mas, sem uma orientação mais clara da Bíblia e sem a autoridade da mesma, dificilmente alguém dá ouvidos. Eu, pessoalmente, sou péssima para dar conselho sobre namoro porque não posso dizer nada bíblico a não ser “mantenha a pureza” e “ame ao seu próximo como a si mesmo”. O resto é psicologia, senso comum, opinião própria, fofoca e conceitos estabelecidos pela cultura.
  3. O namoro é um espaço que incentiva você a ver até onde pode ir fisicamente. Oferece uma falsa ilusão de que você pode se manter puro mesmo provocando aquilo que facilmente te dominará. O namoro te dá uma arma e diz: “Pode brincar.”
  4. Namoro dá espaço para “enrolar” sem culpa. “Estamos namorando pensando em casamento.” Só pensando? Se você está solteiro, não está namorando e quer casar, o primeiro passo não é arrumar uma namorada(o), não! É virar homem/mulher de verdade, aprofundar-se no seu amor por Deus e criar condições financeiras para poder se casar. Na Bíblia, não há muito requisito específico para quem quer casar, mas está escrito: “Deixará o homem pai e mãe, e se unirá a sua mulher, e serão dois numa só carne.” Primeiro, precisa ser homem de verdade e não criança. Segundo, precisa deixar pai e mãe, e só no final o homem se unirá a sua mulher. E só depois de tudo isso que se tornarão dois numa só carne. Qualquer outra ordem dessas etapas me parece ser uma distorção. No entanto, hoje em dia, todo mundo é incentivado a encontrar namorado e namorada antes de sequer ter a maturidade para lidar consigo mesmo.
  5. O namoro existe em função de si mesmo. Ele não necessita compromisso futuro para existir. Nem mesmo aqueles nos quais há sonhos de casamento. Ele não depende de casamento, noivado, nem qualquer outra promessa, apenas de si mesmo. Se namoro existisse em função do casamento, ele seria mais direcionado, objetivo e mais curto, entre outras coisas, pois o objetivo não seria namorar, mas casar.
  6. Namoro pode destruir laços de amizade. Enquanto casamento fornece um ambiente seguro para se desenvolver um relacionamento entre um casal de amantes e amigos, o namoro põe a amizade em cheque e, muitas vezes, a destrói com seu fim. Me lembro de um episódio de Smallville, no qual Clark Kent está pedindo Lana Lang em namoro e ela pergunta, “E a nossa amizade? Como fica? Ela sobreviverá esse relacionamento?” Será que Deus aprovaria algo que colocaria a amizade e o amor entre dois irmãos em Cristo em cheque? Mais uma coisa para se pensar!
  7. Por tudo isso, o namoro é compromisso sem compromisso. Nossos corpos prometem coisas que talvez não poderemos cumprir. Não há nada que o sustente a não ser a paixão de um pelo outro e, se em alguma altura um perder essa paixão, não há nada que mantenha os dois juntos. Portanto, além de ser um ensaio para casamento, também pode ser um ensaio para divórcio. É só vermos como nos referimos à família do namorado(a): sogra, sogro, cunhada, etc. ou então, quando terminamos: ex-sogra, ex-sogro, etc.
  8. Consequentemente, namoro abre espaço para “ver se dá certo”. Transforma as pessoas em roupas que devem ser provadas antes de serem compradas. “Vamos terminar, a gente não dá certo.” “Tem outra pessoa nesse mundo melhor para você do que eu.” E então, a pessoa nesse sistema pode passar por vários pseudo-casamentos até escolher o “certo”.
  9. O namoro serve muitas vezes como um tapa-buraco. Somos seres carentes. Não queremos estar sozinhos, então arrumamos alguém para “estar lá”, sem ter que abrir mão da vida de solteiro. Muitas vezes, em vez de procurarem aprofundar seu relacionamento com Deus e permitir que Ele supra essa carência, os cristãos procuram suprir esse vazio com um outro alguém. Relacionamentos são dádiva de Deus, mas qualquer um que nos tira a atenção do nosso relacionamento com Deus é um ídolo na nossa vida.
  10. Namoro rouba o cristão de seu tempo valioso como solteiro. A Bíblia nos diz que o solteiro serve ao Senhor muito mais eficientemente do que o casado pois não precisa cuidar de uma família. Como solteiro, você tem o tempo e a disposição e a liberdade para servir ao Senhor da melhor forma possível, sem ter a obrigação de cuidar de uma esposa ou um marido. No namoro, apesar de estarem solteiros legalmente e diante de Deus, os namorados se tratam como esposa e marido, exigindo tempo juntos, atenção, afeto, carinho, etc. e se roubam muitas vezes mutuamente do tempo que o outro poderia estar usando para servir melhor ao Senhor.
  11. Namoro desvaloriza o processo de maturação. Existem alguns pássaros cujo ritual de corte envolve os machos construindo o melhor ninho possível para então conquistar a fêmea. E os machos precisam aprender e adquirir experiência, construindo muitos ninhos até acertarem e conquistarem suas parceiras. Talvez poderíamos, além de aprender com a formiga, aprender com esses pássaros. O namoro no conceito de hoje rouba tanto o homem quanto a mulher desse processo precioso. Desvaloriza o processo de aprendizagem e maturação do homem que precisa se preparar para liderar e sustentar o lar. Afinal, se já conquistei a mulher, qual é a pressa? Além disso, incentiva as mulheres a escolherem seus homens precipitadamente. O critério da escolha muitas vezes é beleza, compatibilidade, maturidade falsa, tudo menos a capacidade de, de fato, ser um marido. Por isso, talvez não seja a melhor das ideias os pais usarem uma idade como critério para o namoro dos filhos, mas, sim, a maturidade, capacidade e desejo de ser uma boa esposa ou um bom marido. É uma boa ideia também ficarem de olho nos pretendentes das suas filhas para verem não se “é um bom menino” mas se “será um bom marido”.
  12. A Bíblia não fala de namoro, mas sim de casamento. Se o casamento é uma representação da aliança de Cristo com a Igreja, tudo que se refere, fala de, ou está ligado ao casamento deve ser submetido à luz deste conceito. O que seria o namoro nessa representação? Será que Cristo passaria um tempo de intimidade conosco para ver “se daria certo” antes de se comprometer? Por que então nós adotamos esse hábito?
  13. Deus é um Deus de pacto e aliança, não só de palavra. Ele nos mostra Seu amor por nós através da segurança de uma aliança. No caso de um compromisso desta proporção, de nada adianta você dizer que estará com a pessoa para sempre se não pactuar isso.

Vale a pena pensar sobre isso… Por que achamos que é necessário namorar para casar? É a Bíblia ou a sociedade que dita isso? O que será que a glória do namoro tem feito com a glória do casamento? Talvez seja hora de levarmos isso mais a sério. A ideia de namoro não precisa ser somente repensada e redimida. Talvez seja necessário trocá-la completamente por algo que glorifique o casamento para a honra de Cristo de todas as maneiras possíveis, algo que o namoro por natureza, falta de estrutura, regras e limites é incapaz de fazer.

Hoje em dia, querer evitar namoro é constrangedor e difícil. Isso porque já são poucas as pessoas que pensam assim, e namoro é tão comum que há o medo de que se você não pegar seu prêmio rápido, você o perderá para outros.
A pergunta que não quer calar: Como casar sem namorar? Como saber que ela ou ele é a pessoa “certa” para casar?
A resposta talvez não seja tão simples, mas começa assim: O namoro pode nos ensinar de relevante sobre uma pessoa que uma boa amizade não pode? A amizade nessa época é o que mais precisa ser cultivada. Cristo nos chamou de amigos! Conheçam-se, conversem, troquem ideias, discutam, saiam juntos com outros e cultivem uma amizade madura. Há tantas brigas e desentendimentos que podem ser evitados no casamento se houver uma boa base de amizade. O marido deveria ser o melhor amigo da esposa e a esposa a melhor amiga do marido. Claro, não estou descartando o interesse romântico, o estar “apaixonado”. Hoje em dia, na nossa cultura, não há motivo para se casar se você não tiver interesse romântico na pessoa. Mas uma paixão madura e duradoura no casamento é fruto de uma boa amizade.
Sou tendenciosa, mas a ilustração perfeita para isso é o meu filme/livro predileto: Orgulho e Preconceito, de Jane Austen, no qual o galante Mr. Darcy e a obstinada Elizabeth passam por todo um processo estranho de conhecimento e reconhecimento um do outro, no final do qual se tocam no quanto o outro é maduro e possui bom caráter e que estão apaixonados. E vão direto ao casamento! Sem namoro! Wow! Muitos chamam isso de cortejo e é uma opção muito válida!

Conclusão? Acredito que o namoro seja totalmente desnecessário para um casamento feliz. Não só isso, mas atrevo-me a dizer que talvez o namoro seja mais prejudicial ao casamento do que eu imaginava. Será que seria possível a construção pelas igrejas e famílias de um novo conceito de relacionamento pré-matrimonial, mesmo numa sociedade que com certeza nos taxará de antiquados e loucos? A mudança se dá aos poucos.

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Deus e o pensamento relacional (William de Oliveira)

Assistimos todos os dias o nascimento de inúmeras teologias, das mais bizarras como gente “no espírito” imitando animais, como outras que são simplesmente mais um fruto do pós-liberalismo teológico. Dentro dessa última categoria, existe um pensamento que considero muito, senão o mais nefasto e devastador deles, chamado de teologia relacional.

Essa teologia, de caráter profundamente humanista e reducionista. Tem como sua principal característica a imagem de um deus exclusivamente amoroso. O amor, que sem dúvida, constitui parte essencial do ser divino, tornou-se sua única prefiguração. Deus é amor, ponto e nada mais. Qualquer outro aparente atributo só será aceito se for “compatível” com aquele. O Senhor está preso e sujeito ao seu “sentimento” amoroso pelos homens, que por sua vez tornam-se “arquitetos” de seus próprios destinos.

Numa primeira olhada é um movimento muito atraente, especialmente porque é profundamente inclusivo, ainda que, como veremos adiante, não se defina bem o que é inclusão. Além disso, se propõe a refletir a fé de maneira bastante livre, o que é um prato cheio para os modernos ativismos sociais.

Eu mesmo fui seduzido por esse movimento e o defendi em alguns textos do meu antigo (e desativado) blog pessoal. No entanto, não precisei de muito tempo e reflexão, para que vários pontos negativos desse ensino saltassem aos meus olhos, e sua fragilidade tornar-se patente diante de uma leitura sincera das Escrituras.

Pois bem, preocupado com o avanço desse pensamento “aberto” sobre Deus, resolvi expor alguns desses pontos para tentar ajudar alguns irmãos que, assim como eu, foram seduzidos por essa teologia.

Ponto 1 – De que Deus estamos falando mesmo?

Essa é a primeira pergunta que vem a mente quando ouço ou leio os argumentos de um teólogo relacional.

Isso porque, quando se trata de cristianismo, a imagem que se busca de Deus só é encontrada em uma fonte, a Bíblia. Qualquer referencia sobre Jesus, por exemplo, tem que passar pelo crivo da Escritura, ou seja, só podemos dizer que Deus é isso ou aquilo, se a Bíblia disser que Ele é isso ou aquilo. Não apenas em um ou outro versículo, mas no conjunto dos textos sagrados. A imagem que se tem se tem de Deus em Juízes deve ser a mesma que encontramos nas cartas de Paulo.

Fora isso, ocorre também uma confusão entre as características de certas divindades de outras religiões e as do Deus revelado na Bíblia. Que me perdoem os favoráveis do diálogo inter-religioso, mas o Deus cristão não é de maneira nenhuma o deus espírita, nem o deus islâmico, muito menos as “energias” ou “forças” que outras formas de fé definem como divinas, ainda que tais religiosos queiram que seja. O que Jerusalém haver com Atenas?

É verdade que para nós cristãos só existe um Deus, criador e sustentador do universo, mas também é verdade que para o cristianismo autêntico ele só é revelado em dois lugares, de maneira insuficiente na própria criação (Romanos 1:20), e plenamente na revelação bíblica. Portanto, qualquer afirmação sobre Deus só terá valor para nós, se for baseada nas Escrituras, sendo qualquer outra fonte, no mínimo questionada.

Sendo assim, quando alguém quiser debater sobre o que Deus é ou não é, primeiro se faz mister que lhe faça a pergunta: De que Deus você esta falando?

Ponto 2 – Uma redução de quem é Deus

Se existe alguém no universo que possui muitos atributos que o definam é Deus. A Bíblia está repleta desses atributos. Uns patentes outros latentes, mas todos inegáveis.

No entanto, mesmo com tantas evidências opostas, a tal teologia tem reduzido Deus a apenas um atributo, o amor; deixando em segundo plano, ou simplesmente eliminando, outros atributos, como a santidade, o justo juízo, a soberania e, mais recentemente, a onisciência. Isso porque para eles o livre arbítrio, sua menina dos olhos, só será uma realidade se o homem for definitivamente livre de qualquer intervenção divina, e isso inclui saber o futuro.

Agora, é verdade que a vida e os ensinos de Jesus trazem a força amorosa de Deus pela humanidade, e o Abba à tona, seu próprio sacrifício nos conta isso, mas jamais Ele deixou de lado os outros atributos que formam Seu caráter. Aliás, é o próprio amor que traz a tona outros atributos. Por AMAR a verdade, Ele ODEIA mentira. Por AMAR o oprimido, Ele trará JUÍZO sobre o opressor, e assim por diante.

Além disso, me parece bastante claro que Jesus, ao longo de sua vida, continua odiando o pecado, prometendo juízo aos ímpios, ensinando sobre o inferno (até mais que sobre o céu) e sobre o juízo final, aborrecendo a hipocrisia dos religiosos, afugentando a chicotadas os cambistas do templo, e no seu famoso sermão da montanha, proclamou abertamente que a santidade, a retidão e a integridade devem ser a regra de vida para todos os servos de Deus.

Em suma, o mesmo Deus que anunciou o amor com tamanha vivacidade, também estabeleceu um alto padrão de justiça e santidade para os que amou. Não se engane, o mesmo Jesus que amou os homens, também os lançará no inferno (Mateus 10:28, João 15:6).

Devemos lembrar ainda, que o mesmo apóstolo João que elaborou a famosa definição “Deus é amor”, também disse que “Deus é luz, e nele não há trevas alguma” (João 1:5), o autor de Hebreus afirma sem pudor que “nosso Deus é um fogo consumidor” (Hebreus 12:29), e ainda, Ele mesmo fala de si como Santo , cabendo a nós imita-lo (Levíticos 11:44).

Portanto meu amigo me perdoe, mas crer nesse “deus” reduzido da teologia relacional é como ter um pai adulador e impotente. Seu amor não pode ser verdadeiro, pois que pai vendo seu filho caminhar em direção à morte não fará tudo para impedir tal tragédia (Lucas 11: 5-13). Um Deus “molenga”, que chora a morte do amigo, mas nunca poderá dizer “sai para fora!” (João 11:35-45). Esse não pode ser o mesmo Deus que livrou Israel das garras do Egito, que levantou poderosos profetas para trazerem a justiça aos povos e que escolheu antes da fundação do mundo pecadores para remi-los, regenera-los, santifica-los e formar com eles um povo Seu, que faz a Sua vontade. Um Deus digno de que todo joelho se dobre perante sua Majestade. Esse deus relacional, não pode ser de fato Deus, e não é.

Ponto 3 – Má compreensão do que a Bíblia entende por inclusão

Vou ser objetivo. O evangelho é realmente inclusivo, uma autentica “pescaria de almas”. O convite está aberto a todos quantos desejarem, prova disso é que Jesus sentou com todo tipo de gente, mas isso não significa que ao incluir pessoas o evangelho inclua os pecados delas. A salvação de Jesus inclui gente, não pecado. Com esse, Ele é totalmente exclusivo e agressivo.

Além disso, o fato Dele amar a humanidade não fechou seus olhos para a rebelião dos povos. Na verdade, ao contrário do que muitos dizem, Deus abomina não só o pecado, mas também aqueles que o praticam. “O perverso é abominável ao Senhor (..) na casa do ímpio habitará a maldição de Deus” (Provérbios 3: 32,33)

Devemos, ainda, saber que a inclusão no amor divino sempre carregará responsabilidades ao incluso. Porque se assim não fora, como se costuma dizer, o Reino de Deus seria a casa da sogra.

Para entender melhor o que digo, não precisamos ir muito longe, basta trazer a memória o famoso texto de Mateus 11 de 28 a 30:

“Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo e leve.”

Leia com atenção o texto! Mostre-me onde o consolo e alivio oferecidos por Jesus, de forma profundamente inclusiva, diga-se de passagem, (vinde a mim TODOS) está desligada do aprender a humildade e a mansidão, ou onde o amor de Deus nos impede de levar o fardo de Jesus, que, apesar de ser leve, continua sendo um fardo. Com uma grande salvação, vem grandes responsabilidades (Lucas 12:47-48; Efésios 2:10)

Portanto, engana-se a pessoa que acha que a inclusividade do Evangelho é inconsequente. Deus é paternal, não paternalista.

Ponto 4 – Falácia sobre a existência do livre arbítrio.

Arbítrio existe, o pecado é prova disso, mas livre arbítrio é uma das maiores mentiras que já foram inventadas. Mesmo se tirássemos a noção de Deus da história, que é o que a teologia relacional parece estar tentando fazer, essa liberdade plena do ser humano jamais teria existido. Todos, de alguma forma, estão amarrados a algo que os impede de agir com plena vontade.

Leis civis, carta de direitos humanos, supremacia do interesse público, casamento, contratos, a “polis” grega, a “pax” romana, o código de Hamurabi, sempre estivemos sujeitos a alguma autoridade que nos impõe conduta.

Alguém poderia dizer que nosso livre arbítrio está em cumprir tais normas ou não, mas isso é outra falácia, pois se o arbítrio fosse realmente livre, nesse caso, não haveria punição para o descumprimento. Não cumpra a lei e você verá seu precioso livre arbítrio encerrado dentro das grades de uma prisão.

Amigo você precisa despertar para a realidade de que sempre haverá um “senhor” sobre ti. Sua liberdade nunca será plena. Sua vontade nunca prevalecerá. Seja pelo pecado, seja pelo diabo, seja pelo mundo, ou, se você for um eleito de Deus, pela vontade graciosa do Senhor, você será vencido. É da sua natureza.

Sua escolha é: A QUEM SERVIREI? Essa é a pergunta que você deve fazer para sua natureza, ela vai se inclinar para alguém

Ponto 5 – Rejeição da Bíblia como Palavra de Deus.

Esse é um ponto inevitável para a sobrevivência de teologias como essa. Existe literatura vasta sobre isso sendo publicada no Brasil. Munidos das ferramentas da alta crítica, papas dessa teologia, como Andres Torres Queiruga e Jean Delumeau, dedicaram muitas páginas de suas obras, pondo em cheque qualquer possibilidade, não só da inspiração bíblica, como da literalidade das Escrituras. Obviamente, muitos dos conceitos bíblicos, tirando sua literalidade, caem em descrédito e desconfiança. Histórias clássicas do Antigo Testamento e noções como o de soberania, providência, juízo final, inferno e céu, são apagados do pensamento cristão. Centenas de anos de formação de pensamento cristão são descartados como inapropriados e obsoletos diante desses “inventores da roda”. O que pensar? Ou Deus de fato não deve intervir em nossa história, já que deixou sua igreja em total ignorância por quase dois mil anos sobre esse pensamento, ou os homens “pré-modernos”, eram na verdade “pré-históricos”, neandertais munidos de suas claves, que foram esmagadoramente superados pelos “sapiens” da teologia moderna.

O engraçado é que um Neandertal como eu perguntaria como um Deus, que ama tanto o homem, poderia deixar suas amadas criaturas por tanto tempo sem essas informações tão decisivas. Mas sei lá, de repente é só um delírio “das cavernas”.

Conclusão

Há outros pontos com certeza, mas acho que com esses já dei uma noção dos males que essa teologia tem trago para dentro das igrejas e seminários. É evidente que muito que já não tem a Bíblia como Palavra de Deus não concordarão comigo, e nem podem, mas oro para que os tais, assim como eu, sejam libertados desse engano.

Naquele que ama infinitamente e faz juízo de geração em geração.

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Religião e ciência (Alvin Plantinga)

A ciência empírica ocidental moderna tem certamente sido o desenvolvimento intelectual mais impressionante desde o séc. XVI. A religião tem marcado presença desde há bastante mais tempo, é claro, e está hoje em crescimento, talvez como nunca o esteve antes. (É verdade que há a tese do secularismo, segundo a qual a ciência e a tecnologia, por um lado, e a religião, por outro, estão inversamente relacionadas: à medida que a primeira cresce, a segunda diminui. Contudo, o ressurgimento da religião e da crença religiosa em muitas partes do mundo levantam dúvidas consideráveis a esta tese.) A relação entre estas duas grandes forças culturais tem sido tumultuosa, multifacetada e confusa. Este artigo concentrar-se-á na relação entre ciência e as religiões teístas: cristianismo, judaísmo, islamismo, sendo o teísmo a crença de que há uma pessoa imaterial todo-poderosa, omnisciente e perfeitamente boa que criou o mundo, criou os seres humanos “à sua imagem,” e a quem devemos reverência, obediência e fidelidade. A maior parte deste artigo aplicar-se-á também às variedades monoteístas e henoteístas de budismo e hinduísmo.

Há muitos problemas e questões importantes nesta área; este artigo concentrar-se-á apenas em alguns deles. A questão que talvez mais salte à vista é se a relação entre religião e ciência se caracteriza pelo conflito ou pela concórdia. (Claro que é possível que exista simultaneamente conflito e concórdia: conflito no que respeita a certos aspectos, e concórdia noutros.) Esta questão será o ponto central do artigo. Outras questões importantes a considerar serão a natureza da religião, a natureza da ciência, as epistemologias da ciência e, em particular, da crença religiosa, e a questão de como a última figura no conflito ou concórdia (alegado ou efectivo) entre a religião e a ciência.

1. A natureza da ciência e a natureza da religião

1. 1. Ciência

A primeira coisa a dizer, aqui, é que é extremamente difícil caracterizar estes fenómenos. Primeiro, considere-se a ciência: o que é exactamente a ciência? Como podemos caracterizá-la? Quais são as condições necessárias e suficientes para que uma dada investigação ou teoria ou tese seja científica, faça parte da ciência? Está longe de ser fácil sabê-lo. Propôs-se várias condições essenciais da ciência. Segundo Jacques Monod, “O crucial do método científico é o postulado de que a natureza é objectiva […] Por outras palavras, a negação sistemática de que o “verdadeiro” conhecimento possa ser obtido interpretando a natureza em termos de causas finais […]” (Monod 1971, 21, itálico de Monod). Na década de 1930, o eminente químico alemão Walter Nernst defendeu que a ciência, por definição, exige um universo infinito; logo, a teoria do Big Bang, afirmou, não é ciência (von Weizsäcker 1964, 151). Outra restrição proposta: a ciência não pode envolver juízos morais, ou juízos de valor mais em geral.

Há obviamente uma conexão íntima entre a natureza da ciência e o seu objectivo, as condições sob as quais algo é ciência bem-sucedida. Há quem diga que a ciência é explicação (seja isto posto, ou não, ao serviço da verdade). Há quem afirme (os realistas) que o objectivo da ciência é apresentar teorias verdadeiras; outros afirmam que o objectivo da ciência é fornecer teorias empiricamente adequadas, sejam verdadeiras ou não (van Fraassen 1980). Há quem diga que a ciência não pode lidar com o subjectivo, mas apenas como que é público e partilhável (e, portanto, os relatos sobre a consciência constituem uma matéria mais adequada de estudo científico do que a própria consciência). Há quem diga que a ciência só pode lidar como que é repetível; há quem o negue. No furor sobre o ensino do “Desígnio Inteligente” (DI) nas escolas públicas, houve quem dissesse que as teorias científicas têm de ser falsificáveis, e, dado que a proposição de que as coisas vivas (os coelhos, por exemplo) foram concebidas por um ou mais agentes inteligentes não é falsificável, o DI não é ciência. Há quem faça notar que muitas teses eminentemente científicas — por exemplo, há electrões — não são falsificáveis isoladamente: o que é falsificável são teorias completas sobre electrões. E apesar de a proposição de que as coisas vivas foram concebidas por um ser inteligentenão ser falsificável isoladamente, a proposição de que um ser inteligente concebeu e criou coelhos de meio quilo que vivem em Cleveland é claramente falsificável (e falsa). O primeiro grupo pode responder que esta proposição sobre coelhos de meio quilo é apenas equivalente, na verdade, às suas implicações empíricas, i.e., à proposição de que há coelhos de meio quilo que vivem em Cleveland, de modo que o pedaço sobre quem os concebeu desaparece, na verdade. O segundo grupo pode então retorquir que, sendo assim, o mesmo tem de se aplicar às teorias sobre electrões; mas nesse caso as teorias sobre electrões são apenas equivalentes, na verdade, às suas implicações empíricas, de modo que os electrões desaparecem.

Há ainda quem afirme que a ciência se limita ao “naturalismo metodológico” (NM) — a ideia de que nem os dados para uma investigação científica nem uma teoria científica podem referir-se apropriadamente a seres sobrenaturais (Deus, anjos, demónios); assim, não se poderia apropriadamente propor (como parte da ciência) uma teoria segundo a qual a irrupção recente de comportamentos estranhos e irracionais em Washington D.C. se deve ao aumento de comportamentos demoníacos nessa área. Como saber se o NM é realmente uma limitação essencial da ciência? Há quem diga que é apenas uma questão de definição; é o caso de Nancey Murphy: “[…] há o que poderíamos chamar ateísmo metodológico, que é por definição comum a toda a ciência da natureza” (Murphy 2001, 464). E continua: “Trata-se simplesmente do princípio de que as explicações científicas procedem em termos de entidades e processos naturais (e não sobrenaturais).” De modo semelhante, Michael Ruse: “ Os criacionistas crêem que o mundo começou milagrosamente. Mas os milagres estão fora dos limites da ciência, que por definição lida apenas com o natural, o repetível, o que é regido por leis” (Ruse 1982, 322). Por definição do quê? Por definição do termo “ciência,” supostamente. Mas há então quem pergunte: que dizer do Big Bang? Se afinal for irrepetível, teremos de concluir que não pode ser estudado cientificamente? E considere-se a tese de que a ciência, por definição, lida apenas com o que é regido por leis — leis da natureza, supostamente. Alguns empiristas (em particular, Bas van Fraassen) defendem que não há leis da natureza (só há regularidades): se tiverem razão, seguir-se-á que não há coisa alguma para ser estudada pela ciência? Além disso, apesar de algumas pessoas argumentarem que o NM é uma limitação essencial da ciência, outras põem isso em causa: mas pode uma disputa séria ser resolvida citando apenas uma definição?

Apresentar condições necessárias e suficientes plausíveis da ciência está consequentemente longe de ser trivial; e muitos filósofos da ciência desistiram do “problema da demarcação,” o problema de propor tais condições (Laudan 1988). Talvez o melhor que podemos fazer é apontar para exemplos paradigmáticos de ciência e exemplos paradigmáticos de não-ciência. Claro que pode ser um erro supor que estamos aqui perante uma só actividade, e um só objectivo. As ciências são muitíssimo variáveis; há o género de actividade que ocorre em ramos muitíssimo teóricos da física (por exemplo, investigações sobre o que aconteceu nos primeiros 10-43 segundos, ou a tentativa de descobrir como sujeitar a teoria das cordas a verificação empírica). Mas há também o género de projecto exemplificado por uma tentativa de saber como a população de touconderos respondeu à devastação da selva amazónica ao longo dos últimos vinte e cinco anos. No primeiro tipo de explicação pode fazer sentido pensar que o que se quer é uma teoria empiricamente adequada, pondo-se pelo menos temporariamente entre parêntesis a questão da verdade da teoria. Mas o mesmo não acontece em casos do segundo tipo; aqui, nada servirá a não ser a verdade sóbria.

O mesmo acontece com o naturalismo metodológico. Alguns projectos científicos são claramente limitados pelo NM (veja-se abaixo); uma condição de adequação teórica, nesses casos, será certamente que a explicação em causa seja naturalista. Mas é o NM em si parte da própria natureza da ciência enquanto tal? Segundo Isaac Newton, que se diz muitas vezes ter sido o maior cientista de todos os tempos, as órbitas dos planetas cairiam no caos sem intervenção externa; consequentemente, propôs que Deus ajustava periodicamente as suas órbitas. Apesar de esta ser uma hipótese de que já não precisamos, será óbvio que acrescentá-la à explicação de Newton dos movimentos dos planetas tem como resultado algo que não é realmente ciência? Isso parece desnecessariamente excessivo.

Talvez devamos ver o conceito de ciência como um daqueles conceitos aglomerativos para os quais Tomás de Aquino e Ludwig Wittgenstein chamaram a atenção. Talvez haja várias actividades bastante diferentes a que damos o nome “ciência;” estas actividades relacionam-se entre si por semelhança e analogia, mas não há uma actividade única que seja apenas ciência em si. Há projectos para os quais o critério de sucesso envolve fornecer teorias ¬verdadeiras; há outros onde o critério de sucesso envolve fornecer teorias que são empiricamente adequadas, sejam ou não também verdadeiras. Há projectos limitados pelo NM; há outros projectos que não têm essa limitação. Estes projectos ou actividades caem todos sob o significado do termo “ciência;” mas não há uma actividade única da qual todos sejam exemplos. (Do mesmo modo, o xadrez, o basquetebol e o póquer são todos jogos; mas não há um jogo único do qual todos sejam versões.) Talvez o melhor que podemos fazer, com respeito à caracterização da ciência, é dizer que o termo “ciência” se aplica a qualquer actividade que seja 1) uma actividade sistemática e disciplinada que visa descobrir a verdade sobre o mundo,1 e 2) tem um envolvimento empírico significativo. Isto é, evidentemente, vago (quão sistemática? Quão disciplinada? Quanto envolvimento empírico?) e talvez demasiado tolerante. (A astrologia conta como ciência, ainda que seja má ciência?) Apesar de tudo, temos muitos exemplos excelentes de ciência, e exemplos excelentes de não-ciência.

1.2. Religião

Se é difícil explicar a natureza da ciência, não é muito mais fácil dizer o que é exactamente uma religião. Claro que há muitíssimos exemplos: cristianismo, islamismo, judaísmo, hinduísmo, budismo e muitos outros. Que características são necessárias e suficientes para que algo seja uma religião? Como distinguimos uma religião de um modo de vida, como o confucionismo? Não é fácil dizer. Nem todas as religiões envolvem a crença em algo como o Deus todo-poderoso, omnisciente e moralmente perfeito das religiões teístas, ou até em seres sobrenaturais. (Claro que uma maioria substancial das religiões envolve tais crenças.) Com respeito à nossa investigação, o que é de especial importância é a noção de uma crença religiosa: como tem de ser uma crença para ser religiosa?

Uma vez mais, não é fácil dizer. Para citar uma vez mais o furor quanto ao desígnio inteligente, há quem diga que a proposição de que há um arquitecto inteligente do mundo vivo é religião, e não ciência. Mas nem toda a crença que envolva um arquitecto inteligente — na verdade, nem toda a crença que envolva Deus — é religiosa. Segundo o livro de Tiago do Novo Testamento, “os demónios crêem [que Deus existe] e enchem-se de terror”; as crenças dos demónios não são, presumivelmente, religiosas.2 Uma pessoa poderia propor teorias sobre um ser omnipotente, omnisciente e sumamente bom como parte crucial de um sistema metafísico: a crença em tais teorias não tem de ser religiosa. E que dizer de um sistema de crenças que responde às mesmas grandes questões humanas a que dão resposta os exemplos óbvios de religiões? Questões sobre a natureza fundamental do universo, e do que é sumamente real e básico nele, sobre o lugar dos seres humanos nesse universo, sobre se há pecado ou algo análogo e, se há, o que fazer quanto a isso, se temos de tentar melhorar a condição humana, se os seres humanos sobrevivem às suas mortes e como deve agir uma pessoa racional. Uma vez mais, não é fácil dizer; talvez não. A verdade aqui é, talvez, que uma crença não é religiosa apenas em si. A propriedade de ser religiosa não é intrínseca da crença; é antes uma propriedade que uma crença adquire quando funciona de certo modo na vida de uma dada pessoa ou comunidade. Para ser uma crença religiosa, a crença em questão teria de estar apropriadamente conectada com atitudes caracteristicamente religiosas por parte do crente, nomeadamente atitudes de veneração, amor, compromisso, maravilhamento e afins. Considere-se alguém que crê que a pessoa de Deus existe, certamente, porque a sua existência ajuda a resolver vários problemas metafísicos (por exemplo, sobre a natureza da causalidade, a natureza das proposições, propriedades e conjuntos, e a natureza da função apropriada em criaturas que não sejam artefactos humanos). Contudo, esta pessoa não tem qualquer inclinação para venerar ou amar Deus, nenhum compromisso para tentar levar por diante os projectos de Deus no nosso mundo; talvez, como os demónios, odeie Deus e faça intencionalmente tudo o que pode para frustrar os propósitos de Deus no mundo. Para tal pessoa, a crença de que a pessoa de Deus existe não tem de ser religiosa. Deste modo, é possível que duas pessoas partilhem uma dada crença que funciona como religiosa na vida de apenas uma delas.

Consequentemente, é extremamente difícil apresentar condições necessárias e suficientes (informativas) tanto da ciência como da religião. Talvez para os nossos propósitos presentes isso não seja um problema sério; temos vários excelentes exemplos de cada uma delas, e talvez isso seja suficiente para a nossa investigação.

2. Epistemologia e ciência e religião

Há muitas questões epistemológicas interessantes quanto à ciência. Um tópico central tem sido a subdeterminação da teoria pelos dados: os dados a favor de uma teoria raramente implicam a teoria, caso em que haverá várias teorias empiricamente equivalentes — teorias com as mesmas consequências com respeito à experiência. Podem as teorias empiricamente equivalentes diferir em estatuto ou valor epistémico? Em caso afirmativo, o que faz a diferença? Neste caso é comum apelar para as chamadas virtudes teóricas, como a simplicidade, fecundidade, beleza, etc. O que pensar da “indução pessimista,” segundo a qual quase todas as teorias científicas do passado foram mais tarde rejeitadas? Deve isso reduzir a nossa confiança nas teorias científicas actuais? Das convicções científicas actuais, quantas constituem conhecimento, se é que algumas o são? E até onde vai o método científico? Haverá assuntos que a ciência não tem competência para lidar? É a ciência mais competente para lidar com uns assuntos do que com outros? Os modos científicos de proceder parecem ter sido mais bem-sucedidos nas ciências duras; as ciências humanas parecem ficar para trás. Haverá diferenças quanto à boa fundamentação epistémica entre as diferentes ciências, ou talvez entre as ciências duras e as ciências mais leves? Perguntas deste género, apesar de serem de grande interesse intrínseco, não são directamente relevantes para a nossa investigação. O que é mais importante ver é que a epistemologia da ciência é na realidade a epistemologia das principais faculdades cognitivas humanas: memória, percepção, intuição racional (lógica e matemática), testemunho, talvez a empatia de Reid, indução, etc. O que é característico da ciência é que estas faculdades são empregues de um modo particularmente disciplinado e sistemático, e que há uma ênfase particular na experiência perceptiva.

Com respeito à crença religiosa, também há várias questões epistemológicas. Haverá bons argumentos a favor da existência de Deus? Se não há, é isso importante? É a existência do mal, em todas as horríveis formas que exibe, indício contra a crença teísta? É algo que refuta da crença teísta? E quanto à questão do pluralismo: a religião conhece tantos tipos diferentes — cristianismo, islamismo, judaísmo, hinduísmo, budismo (com diferentes versões de cada tipo), mas também vários tipos menos comuns. Segundo Jean Bodin, “cada uma é refutada por todas” (Bodin 1975, 256); constituirá esta diversidade algo que refuta cada variedade particular de crença religiosa? Algumas doutrinas religiosas — Trindade, Incarnação, Expiação — não são fáceis de entender; significa isso que não podem ser conhecidas ou sequer ser objecto de crença racional? Se a crença religiosa se baseia na fé e não na razão, significa isso que é na melhor das hipóteses seriamente insegura, de modo que é apropriado falar de um “salto de fé” ou de “fé cega”? Estas questões têm sido mais aturadamente investigadas no que respeita à crença cristã; assim, este artigo incide principalmente em algumas questões que dizem respeito à epistemologia da crença cristã.

Para os nossos propósitos, talvez a questão epistemológica central seja esta: qual é a fonte da racionalidade, ou aval, ou estatuto epistémico positivo da crença religiosa, se é que o tem? É do mesmo género do que o que tem a crença nos ensinamentos da ciência actual? São os indícios a favor da crença religiosa, se é que existem, do mesmo género do que os indícios a favor das crenças científicas? Ou há uma fonte especial de estatuto epistémico positivo da crença religiosa? Esta é, na verdade, uma versão contemporânea de uma questão bastante antiga: a questão sobre a relação entre a fé e a razão. Relaciona-se com a questão de haver ou não argumentos cogentes (argumentos racionais, argumentos que emanam do que a razão nos dá) a favor da crença religiosa, e se a existência de argumentos cogentes é necessária para a aceitação racional da crença religiosa.

Aqui, há fundamentalmente duas perspectivas. Segundo o “indiciarismo,” a fonte do estatuto epistémico positivo da crença religiosa, se é que tem tal estatuto, é apenas a razão — o conjunto das faculdades racionais, incluindo, principalmente, a percepção, a memória, a intuição racional, o testemunho, etc. A fonte do estatuto epistémico positivo da crença religiosa é, consequentemente, a mesma que existe para a crença científica. Esta perspectiva remonta pelo menos a John Locke (1689) e tem representantes contemporâneos proeminentes. Deste ponto de vista, a existência de argumentos cogentes a favor da crença religiosa é uma condição necessária da aceitação racional dessa crença, ou pelo menos está intimamente relacionada com a aceitação racional. Algumas pessoas que aceitam este ponto de vista crêem que esses argumentos cogentes não existem; assim, rejeitam a crença religiosa por ser infundada e racionalmente inaceitável (Mackie 1982); outros sustentam que há de facto excelentes argumentos a favor do teísmo, e até especificamente a favor da crença cristã. Aqui o porta-voz contemporâneo mais proeminente seria Richard Swinburne, cuja obra dos últimos trinta anos, aproximadamente, teve como resultado o desenvolvimento mais poderoso, completo e sofisticado da teologia natural que o mundo viu até hoje (veja-se, e.g., Swinburne 1979, 2004; 1981, 2005).

A outra perspectiva principal, adoptada, por exemplo, por Tomás de Aquino (Summa Theologiae) e João Calvino (1559), é que 1) a crença em Deus e 2) os ensinamentos cristãos podem ser objecto de aceitação racional ainda que não existam argumentos cogentes a seu favor que partam do que a razão nos oferece; têm uma fonte de aval ou estatuto epistémico positivo independente do que a razão nos dá. Este ponto de vista tem também representação contemporânea proeminente (Alston 1991; Plantinga e Wolterstorff 1984; Plantinga 2000). Usando a terminologia de Calvino, há o sensus divinitatis, que é uma fonte de crença em Deus, e o testemunho interno do Espírito Santo, que é a fonte da crença nas doutrinas próprias do cristianismo. As crenças produzidas por estas fontes ultrapassam a razão no sentido em que a fonte do seu aval não é o que a razão nos dá; claro que não se segue que tais crenças são irracionais, ou contrárias à razão; nem se segue que há algo nelas de especialmente arriscado ou inseguro, ou incerto, como se a fé fosse necessariamente cega ou um salto no escuro. Na verdade, João Calvino define a fé como “um conhecimento firme e certo da benevolência de Deus para connosco […]” (Calvino 1559, p. 551, itálico meu). Deste ponto de vista, a religião e a fé têm uma fonte de crença apropriadamente racional independente da razão e da ciência; seria portanto possível que a religião e a fé corrigissem a ciência e a razão, e também que fossem por estas corrigidas.

Há alguma razão para pensar que se o teísmo for de facto verdadeiro, se realmente houver uma pessoa todo-poderosa, omnisciente e perfeitamente boa que criou o mundo e os seres humanos à sua imagem, então a crença religiosa será independente dos argumentos baseados na razão; não exigirá tais argumentos para ser racional ou ter estatuto epistémico positivo. Pois se o teísmo for verdadeiro, Deus presumivelmente quererá que os seres humanos conheçam a sua presença (e de facto a vasta maioria da população humana acredita em Deus ou algo parecido a Deus); disporá portanto as coisas de modo a que os seres humanos sejam capazes de ter conhecimento de si. Mas se o conhecimento de Deus dependesse dos argumentos teístas, ou de outros argumentos que resultam do que a razão nos dá, então, como afirma Tomás, só alguns seres humanos chegariam ao conhecimento desta verdade, e mesmo assim só depois de muito tempo, e com uma mistura substancial de erro.

3. Conflito e concórdia

3.1. Concórdia

Comecemos com a concórdia. Os primeiros pioneiros e heróis da ciência ocidental — Copérnico, Galileu, Kepler, Newton, Boyle, etc. — eram todos seriamente cristãos, ainda que ocasionalmente, como no caso de Newton, não fossem cristologicamente ortodoxos. Além disso, muitos autores (Foster 1934, 1935, 1936; Ratzsch 2009) fizeram notar que a crença teísta e a ciência empírica exibem uma concórdia profunda, combinando-se bem entre si. Isto resulta em parte das doutrinas da criação que as religiões teístas abraçam — em particular, dois aspectos dessas doutrinas. Primeiro, há a ideia de que Deus criou o mundo, tendo também consequentemente, é claro, criado os seres humanos. Além disso, criou os seres humanos à sua imagem. Ora Deus, segundo a crença teísta, é uma pessoa: um ser que tem conhecimento, afeição (gosta de umas coisas e não de outras) e vontade executiva, podendo agir com base nas suas crenças para atingir os seus fins. Uma das características centrais da imagem divina nos seres humanos é, então, a capacidade para formar crenças e adquirir conhecimento. Como afirmou Tomás de Aquino, “Uma vez que se diz que os seres humanos foram feitos à imagem de Deus em virtude de terem uma natureza que inclui um intelecto, tal natureza é à imagem de Deus sobretudo em virtude de ser o que mais consegue imitar Deus” (ST Ia q. 93 a. 4). Deus criou portanto quer os seres humanos quer o mundo, e dispôs as coisas de modo a que os primeiros conheçam o segundo. Concebendo a ciência no seu nível mais básico como o projecto de adquirir conhecimento de nós e do nosso mundo, é claro, desta perspectiva, que a doutrina da imago dei subscreve este projecto. Na verdade, a ciência é um exemplo claro do desenvolvimento e aprofundamento da imagem de Deus nos seres humanos, tanto individual como colectivamente.

Segundo, há o pensamento de que a criação divina é contingente. Segundo o teísmo, muitas das propriedades de Deus — a sua omnisciência e omnipotência, a sua bondade e amor — são-lhe essenciais: tem-nas em todos os mundos possíveis em que existe. (E uma vez que, segundo o pensamento teísta, Deus é um ser necessário, existindo em todos os mundos possíveis, tem essas propriedades em todos os mundos possíveis.) Mas isso não acontece, contudo, com a sua propriedade da criação. Deus não está obrigado, pela sua natureza ou seja pelo que for, a criar o mundo; trata-se, antes, de uma acção livre da sua parte. Além disso, quando Deus cria, não está obrigado a fazê-lo de qualquer modo particular, nem a criar quaisquer tipos particulares de seres; que tenha criado os tipos de coisas que efectivamente encontramos é uma vez mais contingente, uma acção livre da sua parte.

É esta doutrina da contingência da criação divina que subjaz ao carácter empírico da ciência ocidental moderna (Ratzsch, 2009). Pois o domínio do necessário é (na sua maior parte) o domínio do conhecimento a priori; é onde temos a matemática e a lógica e grande parte da filosofia.3 O que é contingente, por outro lado, é o território ou domínio do conhecimento a posteriori,4 o género de conhecimento produzido pela percepção, memória e os métodos empíricos da ciência. Esta relação entre a contingência da criação e a importância do empírico foi reconhecida desde muito cedo. Assim, escreveu Roger Cotes, no prefácio ao Principia Mathematica, de Newton:

“Sem dúvida alguma, este mundo, tão diversificado com essa pluralidade de formas e movimentos que nele encontramos, de nada poderia provir senão da vontade perfeita de Deus, dirigindo-o e presidindo-o.

É desta fonte que essas leis, a que chamamos leis da natureza, fluíram, e nas quais se vê muitos traços do mais sábio engenho, mas nem a mínima sombra de necessidade. Esta,consequentemente, não devemos procurar partindo de conjecturas incertas, mas antes descobrir pela observação e pela experimentação.” (Cotes 1953, 132-133; itálicos meus)

O que vimos é que, de certo modo, a crença teísta sustenta a ciência moderna ao permitir ou sancionar todo o projecto da investigação empírica; afirma-se também por vezes que a ciência sustenta a crença teísta. Neste caso, há vários argumentos, que historicamente se agruparam em dois tipos básicos: biológicos e cosmológicos. Um exemplo do primeiro tipo é o argumento proposto por Michael Behe (Behe, 1996), segundo o qual algumas estruturas ao nível molecular exibem uma “complexidade irredutível.” Estes sistemas exibem várias partes que se ajustam delicadamente e interagem entre si, sendo que todas têm de estar presentes e funcionando apropriadamente para que o sistema faça o que faz; a eliminação de qualquer das partes impediria o seu funcionamento. Entre os fenómenos que Behe cita encontra-se o estolho bacteriano, os cílios usados por vários tipos de células para se locomoverem, entre outras funções, a coagulação do sangue, o sistema imunitário, o transporte de materiais nas células e a sequência incrivelmente complexa e em cascata de reacções bioquímicas e acontecimentos que ocorrem na visão. Tais estruturas e fenómenos irredutivelmente complexos, defende, não poderiam ter surgido por evolução darwinista gradual, passo-a-passo (sem a intervenção da mão de Deus ou de qualquer outra pessoa); em qualquer caso, a probabilidade de isso acontecer seria diminuta. Estes são exemplos que apresentam, pois, o que Behe denomina um desafio liliputiano ao darwinismo cego; se ele tiver razão, constituem também um desafio colossal ao darwinismo. Mas não se limitam a pôr em causa o darwinismo; foram também, afirma, obviamente concebidos; que foram concebidos é tão óbvio como um elefante numa sala de estar: “para uma pessoa que não se sinta obrigada a restringir a sua procura a causas não-inteligentes, a conclusão directa é que muitos sistemas bioquímicos foram concebidos” (Behe, p. 193). Outros, por exemplo, Paul Draper (2002) e Kenneth R. Miller (1999, 130-64), argumentam que Behe não provou o que pretendia.

Um segundo tipo de argumento a favor do teísmo parte do ajustamento delicado aparente de vários parâmetros físicos. A partir dos anos sessenta e do começo dos setenta, os astrofísicos, entre outros, deram-se conta que várias das constantes físicas básicas têm de se situar dentro de limites muito estreitos para que a vida inteligente se desenvolva — em qualquer caso, de um modo semelhante ao que pensamos que efectivamente ocorreu. Assim, B. J. Carr e M. J. Rees:

“As características básicas das galáxias, estrelas, planetas e do mundo quotidiano são essencialmente determinadas por algumas constantes microfísicas e pelos efeitos da gravitação […] Vários aspectos do nosso universo — alguns dos quais parecem pré-requisitos para a evolução de qualquer forma de vida — dependem muito delicadamente de “coincidências” aparentes entre as constantes físicas.” (Carr e Rees, 1979, 605).

Por exemplo, se a força da gravidade fosse mais forte, ainda que ligeiramente, todas as estrelas seriam gigantes azuis; se fosse muito ligeiramente mais fraca, todas seriam anãs vermelhas; em nenhum desses casos poderia a vida ter-se desenvolvido (Carter 1979, 72). O mesmo se pode dizer das forças nucleares fracas e fortes; se qualquer delas tivesse sido ainda que ligeiramente diferente, a vida, em qualquer caso a vida do género que temos, não poderia provavelmente ter-se desenvolvido.

Aparentemente, a vida é possível apenas porque o universo está a expandir-se na proporção exactamente necessária para evitar o colapso. E no passado o ajuste delicado teve de ser ainda mais extraordinário:

“[…] sabemos que teve de ter havido um equilíbrio muito delicado entre os efeitos contrários da expansão explosiva e da contracção gravitacional que, na época mais recuada sobre a qual podemos sequer fingir falar (denominada tempo de Planck, 10-43segundos depois do Big Bang), teria correspondido ao grau incrível de precisão representado por um desvio da unidade no seu rácio de apenas uma parte em 10 elevado à sexagésima.” (Polkinghorne 1989, 22)

Outros exemplos: o valor da constante cosmológica, do valor da expectativa de vácuo do campo de Higgs, e o rácio da massa entre o protão e o electrão têm de estar delicadamente ajustados num grau incrível para que o universo permita a vida (Barr 2003, 123-130). Uma explicação particularmente bem informada e tecnicamente pormenorizada de alguns destes ajustamentos delicados encontra-se em Robin Collins, “Evidence of Fine-Tuning” (Collins 2003). Há quem considere que estas enormes coincidências aparentes substanciam a tese teísta de que o universo foi criado por um Deus pessoal que tem a intenção de que haja vida, e na verdade vida inteligente; consideram que o ajustamento delicado oferece os elementos para um argumento teísta apropriadamente restringido. Estes argumentos assumem várias versões; talvez a mais bem-sucedida delas seja a que argumenta que a probabilidade epistémica destes fenómenos de ajuste delicado é muito maior sob a hipótese teísta do que a sua probabilidade epistémica sob a hipótese ateísta do acaso. Aqui, a conclusão não é (enquanto tal) que o teísmo é provavelmente verdadeiro, mas antes que o teísmo é muito mais bem sustentado por estes fenómenos do que a hipótese do acaso (Swinburne 2003; Collins 1999).

As objecções são muito diversificadas. Há quem ofereça estes argumentos, em particular quem está associado ao chamado movimento do “Desígnio Inteligente,” considerando-os contribuições para aciência e não para a filosofia ou para a teologia; a objecção mais comum é que não obedecem às condições necessárias para ser ciência, em particular porque a conclusão, que o universo foi concebido por um ser inteligente, não é falsificável. Outros há (como vimos) que respondem que a falsificabilidade não é comummente uma propriedade de proposições individuais, mas antes de teorias completas, e que as teorias que envolve o desígnio inteligente podem muito bem ser falsificáveis.

Uma objecção mais interessante aos argumentos do ajuste delicado é a sugestão da “multiplicidade de universos”: talvez haja muitíssimos universos ou mundos diferentes, talvez em número infinito; as constantes cosmológicas assumem diferentes valores em mundos diferentes, de modo que muitíssimos conjuntos diferentes de tais valores (talvez todos os possíveis) são exemplificados num ou noutro mundo. Não poderia haver um ciclo eterno de “Big Bangs,” seguidos de expansão até um certo limite, e depois uma contracção até ao “Big Crunch,” no qual os valores cosmológicos são arbitrariamente reiniciados? (Dennett 1995, 179) Alternativamente, não poderia ter ocorrido que no Big Bang houve uma inflação inicial enorme, resultando daí muitos cosmoi, com muitos valores diferentes nas suas constantes físicas? Em qualquer dos casos não é surpreendente que num ou noutro dos universos resultantes, os valores das constantes cosmológicas sejam tais que permitam a vida. Nem é surpreendente que o universo em que nos encontramos tenha valores que permitam a vida; não poderíamos existir em qualquer outro. Sendo assim, o argumento do ajuste delicado não é eficaz: a probabilidade de haver ajuste delicado dada a hipótese da pluralidade de mundos juntamente com o ateísmo é pelo menos tão grande quanto a probabilidade do ajuste delicado juntamente com o teísmo. Há respostas (por exemplo, que nesta maneira de ver as coisas teria de haver um gerador de universos que estivesse, também ele, delicadamente ajustado (Collins 1999), ou que mesmo que seja provável que alguns universos estejam delicadamente ajustados, continua a ser verdade que a probabilidade de que este universo esteja delicadamente ajustado não é afectada pela sugestão do pluriverso (White 2003)) e respostas às respostas, etc.; não há consenso, o que não é surpreendente, quanto a saber se estes argumentos do ajuste delicado são bem-sucedidos.

3.2. Conflito?

A doutrina cristã da criação sustenta uma concórdia profunda entre a crença cristã e a ciência; contudo, é claro que é compatível com este género de concórdia que também haja conflito. Muitos autores afirmaram existir conflito, ou até guerra, entre a religião e a ciência (Draper 1875; White 1895). Isto é certamente demasiado forte; mas é óbvio que a relação entre as duas nem sempre tem sido suave e irénica. Há o famoso incidente de Galileu, muitas vezes retratado como uma disputa no seio da hierarquia católica, representando as forças da repressão e da tradição, a voz do velho mundo, a mão morta do passado, e, por outro lado, as forças do progresso e a suave voz da razão e da ciência. Este modo de ver a questão é simplista (Brooke 1991, 8-9); em causa estavam muitos outros factores. O pensamento aristotélico dominante do dia era fortemente apriorístico; logo, parte do que estava em causa era uma disputa sobre a importância relativa da observação e do pensamento a priori na astronomia. Em causa estavam também questões sobre o que a Bíblia cristã (e judaica) ensina nesta área: será que uma passagem como a de Josué 10:12-15 (em que Josué ordenou ao Sol para se imobilizar) favorece o sistema ptolemaico em detrimento do coperniciano? E é claro que as questões habituais de poder e autoridade estavam também presentes.5

Mais recentemente, um lugar central de alegado conflito tem sido a teoria da evolução. Este pânico particular está, é claro, ainda muito presente. Muitos fundamentalistas cristãos aceitam uma interpretação literal da narrativa da criação dos primeiros dois capítulos do Génesis; consideram por isso incompatíveis as explicações darwinistas contemporâneas das nossas origens e a fé cristã, pelo menos tal como a entendem. Muitos fundamentalistas darwinistas (como o falecido Stephen J. Gould lhes chamava) aceitam essa moção: também eles defendem que há conflito entre a evolução darwinista e a crença cristã ou teísta clássica. Os contemporâneos que defendem esta perspectiva do conflito incluem, por exemplo, Richard Dawkins (1986, 2003) e Daniel Dennett (1995). Uma parte importante do alegado conflito depende da crença cristã de que os seres humanos e as outras criaturas foram concebidos — concebidos por Deus; segundo a evolução, contudo (pelo que dizem Dawkins e Dennett), os seres humanos não foram concebidos, sendo antes produto do processo cego sem direcção da selecção natural, operando sobre uma fonte de variação genética como a mutação genética. Eis Dawkins:

“Apesar das aparências em contrário, o único relojoeiro na natureza é as forças cegas da física, ainda que aplicadas de uma maneira muito especial. Um verdadeiro relojoeiro é dotado de antevisão: concebe as suas engrenagens e molas, e planeia as suas interconexões, tendo em mente um propósito futuro. A selecção natural, e o processo automático cego, inconsciente, que Darwin descobriu, e que sabemos hoje ser a explicação da existência e da forma aparentemente dotada de propósito de toda a vida, não tem em mente qualquer propósito. Não tem mente e não tem seja o que for em mente. Não planeia em função do futuro. Não tem qualquer visão, antevisão, não vê coisa alguma. Se podemos dizer que desempenha o papel de relojoeiro na natureza, é o relojoeiro cego.” (Dawkins 1986, 5)

Outros autores fazem notar que este suposto conflito está longe de ser óbvio. A característica central da doutrina moderna da evolução é que a força motriz do processo é a selecção natural, peneirando uma forma de variação genética, sendo a mais popular a mutação genética aleatória. Não faz parte da teoria a afirmação de que estas mutações ocorrem apenas ao acaso no sentido em que esse termo sugere que não têm causa; são aleatórias apenas no sentido em que não emergem do plano arquitectónico das criaturas que as sofrem, e não ocorrem para melhorar a capacidade reprodutiva do organismo. Eis Ernst Mayr, o decano da biologia do pós-guerra: “Quando se afirma que a mutação ou variação é aleatória, isto quer simplesmente dizer que não há qualquer correlação entre a produção de novos genótipos e as necessidades adaptativas de um organismo no meio ambiente em causa” (Mayr 1998, 98). Sendo assim, a evolução, tal como é actualmente formulada e entendida, é perfeitamente compatível com um deus que orquestre e supervisione todo o processo; na verdade, é perfeitamente compatível com essa teoria que Deus cause as mutações genéticas que são peneiradas pela selecção natural. Quem defende que a evolução mostra que a humanidade e as outras coisas vivas não foram concebidas, defendem os seus oponentes, confundem uma interpretação naturalista da teoria científica com a própria teoria. A afirmação de que a evolução demonstra que os seres humanos e as outras criaturas vivas não foram concebidas, contra todas as aparências, não faz parte nem é uma consequência da teoria científica, mas antes um acrescento metafísico ou teológico (van Inwagen 2003).6

Uma segunda área de alegado conflito tem a ver com a acção divina no mundo. Segundo a religião teísta clássica, Deus criou o mundo; também o sustém e preserva, mantendo-o em existência. Sem a sua actividade de preservação, o mundo desapareceria como a chama de uma vela ao vento. Assim, há criação e preservação; mas, afirmam as religiões teístas clássicas, há também acção divinaespecial, acção que vai além da criação e da preservação. Há milagres relatados tanto na Bíblia judaica como na cristã: a separação das águas do Mar Vermelho, por exemplo, assim como Jesus caminhando sobre as águas, o fornecimento de alimento a cinco mil pessoas, e o renascimento dos mortos. Os milagres são igualmente relatados no Alcorão. Muitos crentes não pensam que estas acções divinas especiais se restringem aos tempos bíblicos: ainda hoje Deus responde às orações e efectua curas milagrosas. Além disso, segundo o modo cristão de pensar, Deus opera nos corações e espíritos dos seus filhos, de modo a produzir a fé; Tomás de Aquino chamou a esta actividade divina “o incitamento interno do Espírito Santo” e João Calvino chamou-lhe “o testemunho interno do Espírito Santo.” Todos estes seriam exemplos de acção divina especial.

Ora, há quem veja aqui um conflito com a ciência moderna. Entre esses autores conta-se Langdon Gilkey:

“[…] A teologia contemporânea não espera, nem fala, de acontecimentos divinos assombrosos à superfície da vida natural e histórica. O nexo causal no espaço e no tempo que a ciência e filosofia do Iluminismo introduziram na mentalidade ocidental […] é também pressuposto pelos teólogos e estudiosos modernos; uma vez que participam no mundo moderno da ciência, tanto intelectual como existencialmente, dificilmente poderiam fazer outra coisa. Ora, este pressuposto de uma ordem causal entre os acontecimentos fenoménicos, e portanto da autoridade da interpretação científica dos acontecimentos observáveis, faz uma grande diferença no que respeita à validade que se atribui às narrativas bíblicas, e portanto ao modo como se entende o seu significado. Subitamente, uma vasta panóplia de feitos divinos e acontecimentos registados na escritura não são já encarados como se tivessem efectivamente acontecido […] Seja o que for que os hebreus acreditavam, nós acreditamos que as pessoas bíblicas viviam no mesmo contínuo causal do espaço e do tempo em que nós vivemos, e portanto um contínuo em que não ocorrem quaisquer prodígios divinos nem se ouve quaisquer vozes divinas.” (Gilkey 1983, 31)

Claro que muitos filósofos e cientistas concordariam. O problema é, supostamente, a acção especialde Deus no mundo; não há qualquer problema particular no que respeita à criação e preservação, mas a acção divina para lá disso é largamente considerada incompatível com a ciência moderna. Onde se considera exactamente que surge a incompatibilidade? Ao que parece, a ideia é que a actividade divina especial seria incompatível com as leis da natureza que a ciência põe a descoberto. Eis o distinto biólogo H. Allen Orr:

“Não que algumas facções de uma religião invoquem milagres: muitas facções de muitas religiões o fazem. (Afinal, Moisés separou as águas e Krishna curou os doentes.) Concordo, é claro, que nenhum cientista sensato pode tolerar tais excepções no que respeita às leis da natureza.” (Orr, 2004)

Ora, Gilkey, como outros autores, pensa aparentemente em termos de uma mundividêncianewtoniana, segundo a qual o universo é como uma máquina gigantesca que funciona segundo as leis postas a nu pela ciência. Mas isto não é suficiente para a teologia do afastamento e da não-intervenção destes teólogos. Afinal de contas, o próprio Newton, supostamente, aceitava a mundividência newtoniana, mas propôs que Deus ajustava periodicamente as órbitas planetárias, que sem isso, segundo os seus cálculos, dariam gradualmente para o torto. O que Gilkey e os seus amigos acrescentam aqui, aparentemente, é o determinismo: a ideia de que as leis da natureza, juntamente com o estado do universo em qualquer momento dado, implicam o estado do universo em qualquer outro momento. A fonte clássica aqui é Pierre Laplace:

“Devemos encarar o estado presente do universo como o efeito do seu estado anterior e como a causa do que se lhe seguirá. Dado, por um instante, um espírito que pudesse compreender todas as forças que animam a natureza, e a situação respectiva dos seres que a compõem — um espírito suficientemente vasto para analisar estes dados — esse espírito abrangeria na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e do menor dos átomos; para ele, nada seria incerto e o futuro, como o passado, estaria presente aos seus olhos.” (Laplace 1796)

É a mundividência de Laplace que aparentemente anima Gilkey, et al. Vale a pena fazer notar, contudo, que o determinismo e a mundividência laplaciana não se seguem da ciência clássica. Isto porque as grandes leis da conservação deduzidas das leis de Newton são formuladas para sistemasfechados ou isolados. Eis Sears e Zemansky (1963):

“O princípio da conservação da energia afirma que a energia interna de um sistema isolado permanece constante. Esta é a formulação mais geral do princípio da conservação da energia.” (p. 415)

As leis de Newton (tal como a posterior física da electricidade e do magnetismo de Maxwell) aplicam-se a sistemas isolados ou fechados; descrevem como o mundo funciona desde que o mundo seja um sistema fechado (isolado), não estando sujeito a qualquer influência causal externa. Mas não faz parte da mecânica newtoniana nem da ciência clássica em geral a declaração de que o universo material é realmente um sistema fechado. (Como poderia uma coisa dessas ser verificada experimentalmente?) Logo, nada há na ciência clássica (pelo menos nesta área) que seja incompatível com Deus mudar a velocidade ou direcção de uma partícula, ou de todo um sistema de partículas (ou, já agora, com a criação ex nihilo de um cavalo adulto). A energia, a força cinética e coisas do género conservam-se num sistema fechado; mas a tese de que o universo material é de facto um sistema fechado não faz parte da física clássica; é um acrescento metafísico ou teológico. Logo, não há conflito entre a física clássica e a acção divina especial no mundo.

Esta imagem clássica, laplaciana, foi, evidentemente, ultrapassada pelo desenvolvimento da mecânica quântica, que começou nos primeiros pares de décadas do séc. XX. Segundo a mecânica quântica, associado a qualquer sistema físico, um sistema de partículas, por exemplo, há uma função de onda cuja evolução ao longo do tempo é regida pela equação de Schrödinger para esse sistema. Ora, o interessante no que respeita à mecânica quântica é que, ao contrário da mecânica clássica, não especifica nem prevê uma configuração única para este sistema de partículas num momento futuro do tempo, t. A função de onda atribui um valor em t a cada uma das configurações possivelmente resultantes das condições iniciais; pela aplicação da regra de Born a esses valores, obtemos uma atribuição de probabilidades a cada uma dessas possíveis configurações em t. Assim, não nos é dito que configuração irá de facto resultar (dadas as condições iniciais) quando o sistema é medido em t; ao invés, é-nos dada uma distribuição de probabilidades para os muitos resultados possíveis. É claro que os milagres (a separação das águas, o renascimento dos mortos, etc.) não são incompatíveis com estas atribuições. (Sem dúvida que a tais acontecimentos seriam atribuídas probabilidades muito baixas; mas é claro que não precisamos da mecânica quântica para saber que tais acontecimentos são improváveis.) Além disso, em interpretações em termos de colapso, como as de Ghirardi, Rimini e Weber, há muito espaço para a actividade divina. Na verdade, Deus pode ser afinal a causa dos colapsos, e do modo como ocorrem (i.e., sendo P a possibilidade que é efectivada em t, pode ser Deus a causa de P se efectivar em t). (Isto poderia talvez ser visto como um meio caminho entre o ocasionalismo e a causalidade secundária.) Com o advento da mecânica quântica, portanto, parece haver ainda menos razão para ver a acção divina especial no mundo como uma coisa que de algum modo é incompatível com a ciência.

Contudo, muitos autores inteiramente cientes da revolução da mecânica quântica vêem mesmo assim um problema na acção divina especial. Por exemplo, há o “Divine Action Project” (Wildman 1988-2003, 31-75), uma série de conferências e publicações com quinze anos que começou em 1988. Até agora, estas conferências resultaram em seis volumes de ensaios, envolvendo pelo menos cinquenta ou mais autores de vários campos da ciência, juntamente com filósofos e teólogos, incluindo muitos dos mais proeminentes autores da área. A maior parte destes autores consideram problemática a acção divina especial. Isto porque crêem que uma explicação satisfatória da acção de Deus no mundo teria de ser não-intervencionista, como Wildman afirma. Eis Arthur Peacocke, comentando uma certa proposta de acção divina:

“Deus teria de ser concebido como alguém que efectivamente manipula micro-acontecimentos (aos níveis, atómico, molecular e, segundo alguns autores, quântico) nestas flutuações iniciais do mundo natural para produzir os resultados a nível macroscópico que Deus quer. Mas tal concepção da acção de Deus […] não seria então diferente em princípio da intervenção de Deus na ordem da natureza, com todos os problemas que isso evoca com respeito a uma crença racionalmente coerente em Deus como o criador dessa ordem.” (Peacocke 2004)

O projecto é assim, aparentemente, desenvolver uma concepção da acção divina especial (acção para lá da criação e da preservação) que não envolva intervenção. Mas o que seria a intervenção na imagem da mecânica quântica? Não é fácil dizer. Na verdade, não é fácil ver como a intervenção poderia ser diferente da acção divina para lá da criação e da preservação. Contudo, se não há qualquer diferença entre elas, a acção divina especial seria apenas intervenção, caso em que o projecto de desenvolver uma concepção da acção divina especial que não envolva intervenção não é promissora.

Mesmo assim, uma terceira área de alegado conflito entre a crença religiosa e a ciência tem a ver com as diferentes atitudes epistémicas associadas a cada uma delas. Eis, por exemplo, John Worrall:

“A ciência, ou antes, a atitude científica, é incompatível com a crença religiosa. A ciência e a religião estão num conflito irreconciliável […] Não há maneira de ter uma mentalidade apropriadamente científica e ser um verdadeiro crente religioso.” (Worrall 2004, p. 60).

Na ciência, a atitude epistémica dominante (segundo esta tese) é a investigação empírica crítica, propondo teorias que são sustentadas hipotética e temporariamente; estamos sempre dispostos a abandonar uma teoria a favor de uma sucessora mais satisfatória. Na crença religiosa (e.g., cristã), a atitude epistémica da  desempenha um papel importante, uma atitude que difere tanto quanto à fonte da crença em questão, como na disponibilidade para a abandonar.

Outros autores (Ratzsch, 2004), contudo, fazem notar que não há aqui obviamente um conflito. É claro que essas duas atitudes são diferentes, e talvez não possam ser assumidas simultaneamente com respeito à mesma proposição. Mas mostra isso um conflito entre a ciência e a crença religiosa? Talvez alguns modos de formar crenças sejam apropriados numa área e outros modos noutras áreas. Para que tenhamos um conflito, temos de acrescentar que a atitude epistémica científica é a única apropriada a qualquer área de actividade cognitiva. Esta tese, contudo, não é em si parte da atitude científica; é uma declaração epistemológica, a favor da qual se exige argumentação substancial (mas que até agora não é visível). Além disso, não parece que os próprios cientistas assumam a atitude epistémica científica (acima caracterizada) com respeito a tudo o que acreditam, ou mesmo com respeito a tudo o que acreditam como cientistas. Assim, é comum que os cientistas acreditem que houve passado, e na verdade dizem-nos muitas vezes há quanto tempo a Terra, ou a nossa galáxia, ou até o universo inteiro, se formou. Os cientistas raramente sustentam esta crença — que houve passado — em resultado da investigação empírica; nem comummente a sustentam desse modo hipotético, crítico, procurando sempre uma alternativa melhor.

Consequentemente, nestas áreas é difícil encontrar conflito entre a crença religiosa teísta e a ciência contemporânea.

4. Onde  conflito?

Parece haver outras áreas da ciência, contudo, que produzem conflito. Primeiro, há a disciplina relativamente nova mas em rápido crescimento da psicologia evolutiva. A alma e coração deste projecto é o esforço para explicar traços distintamente humanos — a nossa arte, humor, ludicidade, poesia, sentido de aventura, gosto por histórias, a nossa música, a nossa moralidade e a nossa religião — em termos da nossa origem e história evolutiva. E aqui encontramos realmente teorias incompatíveis com a crença religiosa. Um tópico importante nesta área tem sido o comportamento altruísta — comportamento que promove a boa adaptação reprodutiva de outra pessoa às custas da boa adaptação reprodutiva do próprio altruísta. Como explicar que haja pessoas como os missionários e a Madre Teresa, pessoas que dedicam as suas vidas ao serviço dos outros, dando pouca atenção às suas próprias perspectivas reprodutivas? Herbert Simon procura explicar o altruísmo de um ponto de vista evolutivo, em termos de dois mecanismos, a docilidade e a racionalidade limitada:

“As pessoas dóceis tendem a aprender e acreditar no que pensam que os outros membros da sociedade querem que elas aprendam e creiam. Assim, o conteúdo do que aprendem não será completamente analisado quanto ao contributo dado à boa adaptação reprodutiva.

Devido à racionalidade de grupo, o indivíduo dócil será muitas vezes incapaz de distinguir entre os comportamentos socialmente prescritos que contribuem para a boa adaptação e o comportamento altruísta [i.e., o comportamento socialmente prescrito que não contribui para a boa adaptação]. De facto, a docilidade irá reduzir a inclinação para avaliar de modo independente quão contribui um comportamento para a boa adaptação […]. Em virtude da racionalidade de grupo, a pessoa dócil não pode adquirir a aprendizagem pessoalmente vantajosa que fornece o incremento de boa adaptação sem adquirir também os comportamentos altruístas que têm como custo a sua diminuição.” (Simon 1990, 3, 4)

A teoria de Simon foi cuidadosamente trabalhada e bem desenvolvida, sendo de considerável interesse; é também incompatível com a crença religiosa. Segundo esta teoria, a explicação do comportamento altruísta consiste em não se ver que o comportamento em questão compromete a boa adaptação evolutiva. Assim, segundo a teoria de Simon, a resposta à pergunta “Por que razão se comporta a Madre Teresa de um modo que compromete a sua boa adaptação evolutiva?” é “Devido à racionalidade de grupo, ela é incapaz de ver que o seu modo de se comportar compromete a sua boa adaptação.” De uma perspectiva cristã, esta não é de modo algum a resposta correcta, que seria algo como “Ela quer seguir o exemplo de Jesus, fazendo o que pode para ajudar os pobres e doentes.”

Outro exemplo desta área é fornecido por muitas teorias da religião e da crença religiosa. Segundo algumas destas teorias, a crença religiosa é falsa, mas adaptativa; segundo outras, é falsa e contra-adaptativa. Um exemplo do primeiro grupo seria a teoria proposta por David Sloan Wilson, que afirma que a religião é uma adaptação de grupo: “Muitas características da religião, como a natureza dos agentes sobrenaturais e as suas relações com os seres humanos, podem ser explicadas como adaptações concebidas para permitir que os grupos de seres humanos funcionem como unidades adaptativas” (Wilson 2002, p. 51). A crença religiosa, afirma, é fictícia, mas adaptativa a nível de grupo: promove a cooperação, o respeito mútuo e a solidariedade, permitindo assim que o grupo se saia bem em competição com outros grupos.

Que a religião possa funcionar como uma adaptação de grupo é, evidentemente, consistente com a crença teísta; e que dizer do pedaço sobre a crença religiosa — a crença teísta, por exemplo — ser fictícia? Como poderia a tese de que a pessoa de Deus não existe fazer parte da ciência empírica? E mesmo que o pudesse, a teoria de Wilson, ao que parece, estaria em terreno mais sólido se esse acrescento teológico facilmente eliminável fosse excluído. O que não é tão fácil de excluir é a tese de que a crença religiosa (ao contrário da memória, crenças perceptivas, intuição racional) é produzida por faculdades cognitivas ou processos que não visam a produção de crenças verdadeiras. Segundo Wilson, estes processos ou faculdades têm uma função que lhes foi conferida pela evolução; mas essa função não é a de produzir crenças verdadeiras. É antes a função de produzir crenças que promovam a cooperação e a solidariedade; em última análise, a sua função é fornecer crenças que são adaptativas, i.e., promovem a boa adaptação reprodutiva.

Neste ponto, uma comparação com a perspectiva de Sigmund Freud da crença teísta pode ser esclarecedor. Freud sustenta que a crença teísta é uma ilusão. Isto não significa que seja falsa (apesar de Freud pensar que é falsa); o que significa é que a crença teísta é produzida por um processo cognitivo (sonhar alto) que não se “orienta pela realidade”; o seu propósito não é a produção da crença verdadeira, mas (neste caso) uma crença que permita ao crente evitar a depressão e apatia que se instalaria se ele visse claramente a miserável chocante condição em que os seres humanos se encontram. A perspectiva de Wilson é assim como a de Freud, uma vez que também ele propõe que a crença teísta é produzida por faculdades cognitivas que não se orientam pela realidade. Ao passo que Freud assume uma perspectiva pessimista da crença teísta, Wilson é muito mais elogioso:

“Em primeiro lugar, muitas crenças religiosas não estão separadas da realidade […] Ao invés, estão intimamente conectadas com a realidade, motivando comportamentos que são adaptativos no mundo real — um feito espantoso quando nos damos conta da complexidade exigida para ficarmos conectados neste sentido prático […]. A adaptação é o padrão máximo contra o qual a racionalidade tem de ser ajuizada, juntamente com todas as outras formas de pensamento. Os biólogos evolucionistas devem entender este aspecto especialmente bem porque estão cientes de que uma mente bem adaptada é em última análise um órgão de sobrevivência e reprodução.” (Wilson 2002, p. 228)

Apesar de Wilson dirigir palavras simpáticas à religião, a sua tese de que a crença religiosa não visa a verdade é incompatível com a crença religiosa teísta. Segundo o cristianismo, por exemplo, a fé, incluindo a crença nos aspectos essenciais da fé cristã, é uma dádiva divina; e o processo de a produzir no crente (o incitamento interno do Espírito Santo, segundo Tomás de Aquino, o testemunho interno do Espírito Santo, segundo João Calvino) visa realmente a verdade e tem como função a produção de crença verdadeira.

Assim, há um conflito entre a ciência e a religião. O que o explica? Várias coisas, sem dúvida; mas parte da explicação encontra-se no naturalismo metodológico, uma restrição muitíssimo aceite na ciência. Segundo o naturalismo metodológico (NM), ao fazer ciência temos de proceder “como se Deus não fosse dado,” para usar as palavras de Hugo Grócio. O que significa isto exactamente? Há várias sugestões; eis uma delas. Segundo o NM, 1) o conjunto de dados (o modelo) de uma teoria apropriadamente científica não pode referir Deus ou outros agentes sobrenaturais (anjos, demónios), ou empregar o que sabemos ou pensamos saber por meio da revelação (divina). Assim, os dados para uma teoria não incluiriam, por exemplo, a proposição de que houve recentemente um surto de possessão demoníaca em Washington, D. C. 2) Uma teoria científica apropriada não pode referir Deus ou quaisquer outros agentes sobrenaturais, nem empregar o que sabemos ou pensamos saber por meio da revelação. Assim, se o modelo contiver a proposição de que houve um surto de comportamentos bizarros e irracionais em Washington, D. C., não seria apropriado propor uma teoria que envolvesse a possessão demoníaca para o explicar. 3) Note-se, para começar, que a probabilidade ou plausibilidade de possíveis teorias e a sua capacidade para explicar os dados, assim como as suas implicações empíricas, é sempre relativa a uma série de informações de fundo ou umabase epistémica. A terceira restrição é, então, que a base epistémica de uma teoria apropriadamente científica não pode incluir proposições que impliquem obviamente7 a existência de Deus ou quaisquer outros agentes sobrenaturais, ou proposições que sabemos ou pensamos que sabemos por meio da revelação. Pois considere-se alguém que de facto aceita as linhas principais de uma das religiões teístas, e trabalha na área da psicologia evolucionista. Sem dúvida que irá honrar o NM como restrição à sua actividade científica. Se o fizer, para todos os propósitos científicos irá eliminar do seu corpo de dados as proposições que impliquem obviamente a existência de Deus ou de outros seres sobrenaturais, tal como o que ela sabe ou pensa que sabe por meio da fé ou da revelação. Mas então ela poderá muito bem produzir teorias do género que temos vindo a apontar, teorias incompatíveis com a religião teísta.

Uma área bastante diferente, mas com a mesma dialéctica: a crítica bíblica histórica (CBH). A CBH é diferente do comentário bíblico tradicional. O praticante deste último pressupõe que a Bíblia é a palavra de Deus, e tenta pôr a nu o significado do que é ensinado em várias partes da Bíblia. O praticante da CBH, por outro lado, põe especificamente entre parêntesis a crença de que a Bíblia é revelação divina, e tenciona ao invés estudá-la cientificamente. Assim, o falecido Raymond Brown, um estudioso católico das escrituras muitíssimo respeitado, crê que a CBH é “crítica bíblica científica” (Brown 1973, p. 6); dá origem a “resultados factuais” (p. 9); pretende que os seus próprios contributos sejam “cientificamente respeitáveis” (p. 11); e os praticantes da CBH investigam as escrituras com “exactidão científica” (pp. 18-19); veja- se também Meier 1991, p. 6. Estudar a Bíblia cientificamente, portanto, é estudá-la de um modo que obedeça às restrições do NM. (Veja-se também Sanders 1985, p. 5; Levenson 1993, p. 109; e Lindars 1986, p. 91).

Tem havido, como seria de esperar, uma tensão considerável entre a CBH, entendida deste modo, e os cristãos tradicionais, remontando pelo menos a David Strauss, em 1835: “Não, se fôssemos cândidos connosco mesmos, o que era história sagrada para o crente cristão é, para a porção iluminada dos nossos contemporâneos, apenas fábula.” Quanto a tensões contemporâneas, segundo Luke Timothy Johnson:

“Os investigadores do Jesus histórico insistem que temos de encontrar o “Jesus real” nos factos da sua vida antes da sua morte. A ressurreição é vista, quando chega a ser tida em consideração, em termos de uma experiência visionária, ou como uma continuação de uma “emancipação” que começou antes da morte de Jesus. Explícita ou não, a premissa operativa é que não há qualquer “Jesus real” depois da sua morte.” (Johnson 1997, p. 144)

E, segundo Van Harvey, “No que respeita ao historiador bíblico, […] não há praticamente qualquer crença tradicional popular sobre Jesus que não seja encarada com considerável cepticismo” (Harvey 1986, p. 193).

Uma característica absolutamente central da CBH é este esforço de ser científica. Claro que podemos perguntar-nos se a CBH, ou qualquer estudo histórico, é realmente ciência; os seus defensores dizem que o é, mas terão razão? Dada a dificuldade do problema da demarcação, contudo, não é provavelmente avisado transformar esta pergunta numa objecção. (Além disso, ainda que os estudos históricos deste tipo não sejam precisamente ciência, são certamente muitoparecidos à ciência.) E na medida em que a CBH exige a conformidade ao NM, quem a pratica põe entre parêntesis ou suspende ou põe de lado quaisquer perspectivas teológicas, ou o que é conhecido por revelação.8 Tal como acontece com a psicologia evolucionista, portanto, quem trabalha na CBH pode de facto aceitar uma ou outra religião teísta, mas no seu trabalho como praticante de CBH, chegar a conclusões incompatíveis com a sua crença religiosa. Até agora, portanto, temos aqui a mesma dialéctica que vimos na psicologia evolucionista: teorias incompatíveis com a religião teísta que resultam (pelo menos em parte) do NM.

Pelo menos nestas duas áreas, portanto, há um conflito entre as teorias científicas e a crença religiosa. Num aspecto muitíssimo importante, contudo, este conflito é superficial. Isto porque as teorias e teses da psicologia evolucionista e a CBH não precisam de refutar, nem sequer parcialmente,9 aqueles elementos da crença religiosa com os quais são incompatíveis — ainda que o teísmo esteja obrigado a levar a ciência muito a sério e ainda que se conceda que as teorias em questão constituem boa ciência. E isto precisamente porque o NM é encarado como uma restrição à actividade científica. Podemos ver isto como se segue. Como já foi sugerido, a investigação científica é sempre conduzida contra um pano de fundo de um corpo de dados, um corpo de conhecimento ou crença de fundo. Uma parte importante do NM, além disso, é que este corpo de dados não pode conter proposições que impliquem obviamente a existência de seres sobrenaturais, ou proposições que são aceites por meio da fé. Segue-se que o corpo de dados de um partidário de uma religião teísta irá conter o corpo científico de dados como uma parte própria; irá incluir todas as proposições que encontramos no corpo científico de dados, além de outros — talvez os que são específicos da crença cristã. Suponha-se agora que uma dada teoria — a teoria do altruísmo de Simon, ou a teoria da religião de Wilson, ou uma explicação minimalista da vida e actividade de Jesus — é de facto ciência apropriada, e que é de facto a resposta teórica mais plausível e cientificamente mais satisfatória aos dados, dado o CCD, o corpo científico de dados. Isto significa que do ponto de vista do CCD, juntamente com os dados actuais, essa teoria é o melhor ou mais plausível resultado. Mesmo assim, isso não dá automaticamente a um crente algo que refuta aquelas suas crenças com as quais a teoria é incompatível. Isto porque o CCD é apenas uma parte do seu corpo de dados. E pode muito bem acontecer que uma proposição P seja a resposta plausível, dada uma parte da minha base de dados (juntamente com os dados actuais), que P seja incompatível com uma das minhas crenças, e que P não me dê algo que refute essa crença.

Por exemplo, suponha-se que lhe digo que o vi ontem à tarde no centro comercial. Então, com respeito a parte do seu corpo total de dados — a parte que inclui o seu conhecimento de que eu lhe disse que o vi lá, juntamente com o seu conhecimento de que eu tenho uma visão decente e sou, de ordinário, confiável, etc. — a coisa certa a pensar é que você esteve no centro comercial. Contudo, suponhamos, você sabe perfeitamente que não esteve lá; lembra-se de ter estado toda a tarde em casa, pensando sobre o naturalismo metodológico. Aqui, a coisa certa a pensar da perspectiva de uma parte própria do seu corpo de dados é que você esteve no centro comercial; mas isto não lhe fornece algo que refute a sua crença de que não esteve lá. Outro exemplo: podemos imaginar um grupo renegado de físicos extravagantes que se propõem reconstruir a física, recusando-se a usar crenças de memória, ou, se isso for demasiado fantasioso, memórias com mais de um minuto. Talvez algo se possa fazer nesta direcção, mas seria uma coisa pobre, insignificante, mutilada e fútil. E agora suponha-se que a melhor teoria, do ponto de vista deste corpo limitado de dados, é inconsistente com a relatividade geral. Deve isso preocupar os físicos mais tradicionais que usam o que sabem por meio da memória, assim como o que os físicos renegados usam? Penso que não. Esta física mutilada dificilmente poderia pôr em questão a física mais ampla, e o facto de, ao partir de uma parte própria do corpo científico de dados, algo inconsistente com a teoria da relatividade constituir a melhor teoria — esse facto dificilmente daria aos físicos mais tradicionais algo que refutasse a teoria da relatividade.

O mesmo ocorre no caso em discussão. O cristão tradicional pensa que sabe pela fé que Jesus era divino e que ressuscitou dos mortos. Mas então não tem de ficar impressionado pelo facto de estas proposições não serem especialmente objecto de prova com base no corpo de dados a que a CBH se limita — i.e., um corpo de dados restringido pelo NM e que portanto elimina qualquer conhecimento ou crença que dependa da fé. As descobertas da CBH, se é que o são, não têm de lhe dar algo que refute as suas crenças com as quais são incompatíveis. O que está em causa não é que a CBH, a psicologia evolucionista e outras teorias científicas não podem em princípio fornecer algo que refute a crença cristã;10 o que está em causa é apenas o aparecimento de teorias, nessas áreas, incompatíveis com a crença cristã não produz automaticamente algo que a refute. Tudo depende dos dados particulares aduzidos no caso em questão, e as implicações desses dados dado o corpo completo de dados do crente. No caso em questão, por exemplo, pode ser que, dado o CCD e o corpo relevante de dados, é improvável que Jesus tenha renascido dos mortos. Mas dado um corpo de dados que inclua não apenas o CCD mas também a crença em Deus, juntamente com as crenças especificamente cristãs de que Jesus é a segunda pessoa da Trindade encarnada, e que o Novo Testamento é uma fonte de informação fidedigna nestas questões — dadas estas coisas, a proposição de que Jesus renasceu dos mortos pode não ser improvável. Considerações semelhantes se poderiam fazer, é claro, para outras religiões teístas, e com respeito a outras supostas refutações científicas.

Uma pessoa poderia protestar que isto parece uma receita para a irresponsabilidade intelectual, para nos agarrarmos a crenças face aos dados. Não poderá um crente dizer sempre algo como isto, seja qual for a refutação que se apresente? “Talvez B (a crença a refutar) seja improvável com respeito a uma parte do que acredito,” poderá o crente dizer, “mas certamente não é improvável com respeito à totalidade do que acredito, totalidade essa que inclui, é claro, a própria B.” É óbvio que isto não pode estar certo; se estivesse, tudo o que hipoteticamente poderia refutar algo seria posto de lado deste modo, e a refutação seria impossível. Mas a refutação não é impossível; acontece por vezes que adquirimos algo que refuta uma crença B, ao descobrir que B é improvável com respeito a um dado subconjunto próprio do nosso corpo de dados. Segundo o livro de Isaías (41:9), Deus afirma “fui buscar-te aos confins da Terra,

chamei-te dos cantos mais remotos. Eu disse-te: Tu é que és o meu servo. Foi a ti que escolhi e não te rejeitarei.” Uma pessoa poderia acreditar que R, a proposição de que a Terra é um sólido rectangular, com cantos, na base deste texto; terá algo que refuta esta crença quando for confrontada com os dados científicos — fotografias da Terra vista do espaço, por exemplo — que a contrariam. Em qualquer caso, terá algo que refuta R se o resto da sua estrutura noética for como a nossa. O mesmo acontece com alguém que sustente crenças pré-copernicianas com base em textos como “A Terra permanece imóvel; não será deslocada” (Salmos 104:5). Por que há refutadores em alguns casos, mas não noutros? O que faz a diferença?

Eis uma sugestão. Considere-se uma crença religiosa B, incompatível com um resultado de uma teoria científica actual: B poderia ser, por exemplo, a crença de que a Madre Teresa era perfeitamente racional ao comportar-se daquele modo altruísta. Seja a teoria científica a explicação do altruísmo de Herbert Simon, e seja CDC o corpo de dados do crente. A nossa questão é se A, a crença de que a teoria de Simon é apropriadamente ciência (e que implica a negação deB), refuta B. Acrescente-se A ao corpo de dados de S; agora a questão correcta é, talvez, esta: é Bepistemicamente improvável com respeito à conjunção de A com CDC? Claro que a própria Bpoderia ser inicialmente um membro do CDC, caso em que não seria certamente improvável com respeito a ele. Se isso fosse suficiente para não refutar B, contudo, nenhum membro do corpo de dados poderia alguma vez ser refutado por uma nova descoberta; e isso não pode estar certo. Assim, apague-se B do CDC. Chame-se ao resultado de apagar B do corpo de dados de S “CDC reduzido com respeito a B” — “CDC-B”, abreviando.11 E agora a sugestão — chamemos-lhe “o teste por redução da refutação” — é que A refuta B apenas se B for apropriadamente improvável com respeito à conjunção de A com CDC-B.

Suponha-se que aplicamos este teste à crença B de que a Madre Teresa era racional ao comportar-se de modo altruísta, sendo A a crença de que a teoria de Simon do altruísmo é boa ciência e é incompatível com B; e suponhamos que S é um crente cristão. Para aplicar o teste por redução temos de perguntar se B é improvável com respeito à conjunção de A com CDC-B. A resposta, penso, é que B não é improvável com respeito a essa conjunção. Pois CDC-B inclui os dados empíricos, seja eles quais forem exactamente, usados por Simon, mas também a proposição de que nós, seres humanos, fomos criados por Deus e fomos criados à sua imagem, juntamente com o resto das ideias principais da história cristã. Com respeito à conjunção de A com esse corpo de proposições, não é provável que se a Madre Teresa tivesse sido mais racional, mais esperta, teria agido para aumentar a sua boa adaptação reprodutiva, em vez de viver de modo altruísta. Logo, no proposto teste por redução, o facto de que a teoria de Simon é boa ciência, e é mais provável do que improvável com respeito ao corpo científico de dados — esse facto não dá a S algo que refute o que ele pensa sobre a Madre Teresa.

Considere-se, por outro lado, a crença B* de que a Terra tem cantos e arestas, e os dados fotográficos contra essa crença: aqui, plausivelmente, o teste por redução tem como resultado que os segundos refutam B*. (É verdade que um cristão poderia pensar que a Bíblia é infalível, dado Deus ser o seu autor último; mas é claro que isso deixa em aberto a questão de saber o que visa Deus ensinar-nos na passagem em questão.) Assim, o teste por redução dá resultados sensatos nestes dois casos. Contudo, não pode estar certo em geral — mais exactamente, está certo em geral apenas aceitando um pressuposto muito importante, que o crente provavelmente rejeitará. Pois poderá acontecer, obviamente, que B tenha bastante aval em si mesma, aval que não obtém dos outros membros do CDC ou, na verdade, de quaisquer outras proposições. B pode ser básica com respeito ao aval; B pode obter aval de uma fonte diferente de qualquer fonte envolvida na teoria científica com a qual é incompatível. Se isso acontecer, o facto de B ser improvável com respeito a CDC-B não mostra que S tem algo que refuta B pelo facto de B ser improvável com respeito a CDC-B juntamente com a A relevante.

Como exemplo ilustrativo, você está a ser julgado por um dado crime; os dados contra si são fortes, e você é condenado. Contudo, você lembra-se muito claramente que no momento em que o crime ocorreu estava a passear sozinho no bosque. A sua crença de que estava a caminhar no bosque não se baseia em argumentos ou inferências de outras proposições. (Você não repara, e.g., que se sente um pouco cansado e que os seus sapatos têm lama, e que está um mapa da área no bolso do seu casaco, concluindo que a melhor explicação destes fenómenos é que esteve a caminhar no bosque.) Assim, considere-se o seu corpo de crenças, SCC, menos P, a proposição de que não cometeu o crime e estava a caminhar no bosque quando este foi cometido. Com respeito a SCC-P, P é epistemicamente improvável; afinal, você tem os mesmos dados do que o júri a favor de ¬P, e o júri está muito apropriadamente (ainda que erradamente) convencido de que você cometeu o crime. Contudo, você não tem aqui, certamente, algo que refuta a sua crença de que está inocente. A razão, é claro, é que P é para si uma fonte de aval independente do resto das suas crenças: vocêlembra-se disso. No caso destes, ter ou não algo que refute a crença P em questão irá depender, por um lado, da força do aval intrínseco que tem P, e, por outro lado, da força dos dados contra Pquanto a SCC-P. O aval intrínseco será muitas vezes mais forte.

O mesmo se aplica a crenças religiosas, se estas de facto tiverem aval intrínseco. Se S tem uma crença religiosa B e se B tiver aval do modo básico, então mesmo que a probabilidade de B quanto a CDC-B juntamente com a A relevante seja baixa, não se segue que A refuta B para S. Talvez o teste por redução ofereça uma condição necessária para que A refute B para S; é também suficiente apenas se as crenças religiosas não tiverem aval ou estatuto epistémico positivo de um modo básico, e apenas se não adquirem aval ou estatuto epistémico positivo de uma fonte além das que conferem esse estatuto às crenças científicas. É por isso, em parte, que a questão mencionada na secção 2 é importante.

5. Naturalismo e ciência

Examinámos até agora o alegado conflito entre a crença religiosa e a ciência, com respeito a várias áreas: evolução, acção divina no mundo, a diferença entre a atitude científica e a religiosa, psicologia evolucionista e CBH. Mas houve quem sugerisse um conflito entre a ciência e a religião (ou entre a ciência e a quase-religião) de um género totalmente diferente: entre o naturalismo e a ciência (Otte 2002; Plantinga 1993, 2002a; Rea 2002; Taylor 1963; há também sugestões disto em Nietzsche 2003 e no próprio Darwin 1887).

Ora bem, o naturalismo é muito diversificado. Primeiro, há a perspectiva de que a natureza é tudo o que há; não há seres sobrenaturais. Claro que isto é um pouco fraco como explicação do naturalismo; precisamos de saber o que é a natureza, e como poderiam ser os alegados seres sobrenaturais. Talvez um modo de proceder seja dizer que o naturalismo, concebido deste modo, é a perspectiva de que não há uma pessoa como o Deus do teísmo, ou algo como Deus (veja-se, por exemplo, Beilby 2002). Chame-se a isto “naturalismo1.” Outra variedade de naturalismo, “naturalismo científico,” como lhe poderíamos chamar, seria a tese de que não há entidades além das que são sancionadas pela ciência actual (Kornblith 1994).12 Dado que a ciência actual não sanciona seres sobrenaturais, o naturalismo científico implica o naturalismo1. Há também o que poderíamos chamar “naturalismo epistemológico,” segundo o qual, grosso modo, os métodos da ciência são os únicos métodos epistémicos apropriados (Krikorian 1994). Com a ajuda de um par de premissas razoavelmente óbvias, o naturalismo epistemológico implica também o naturalismo1, e eu irei usar “naturalismo” para referir a disjunção das três versões de naturalismo esboçadas. Os partidários do naturalismo, concebido deste modo, seriam (por exemplo) Bertrand Russell (1957), Daniel Dennett (1995), Richard Dawkins (1986), David Armstrong (1978) e muitos outros de quem por vezes se diz que subscrevem “a mundividência científica.”

O naturalismo não é, presumivelmente, uma religião. Num aspecto muito importante, contudo, é parecido a uma religião: pode-se dizer que desempenha a função de uma religião. Há o domínio de questões profundamente humanas a que uma religião tipicamente responde (veja-se acima, secção I): qual é a natureza fundamental do universo: por exemplo, é a mente primordial, ou a matéria (não mental)? O que há de mais real e básico na realidade, e que tipos de entidades exibe? Qual é o lugar dos seres humanos no universo, e que relação têm com o resto do mundo? Há perspectivas de uma vida depois da morte? Existe pecado, ou algo a análogo ao pecado? Se sim, que perspectivas existem de o combater ou ultrapassar? Onde temos de atentar para melhorar a condição humana? Há realmente um summum bonum, um bem mais elevado para os seres humanos, e se sim, o que é? Como uma religião típica, o naturalismo dá um conjunto de respostas a estas e outras questões semelhantes. Podemos portanto dizer que o naturalismo desempenha a função cognitiva de uma religião, e portanto é sensato concebê-lo como uma quase-religião.

Acresce que muitos pensadores, remontando pelo menos a Nietzsche (2003) e possivelmente a William Whewell (Curtis 1986), fizeram notar uma implicação potencialmente preocupante da teoria da evolução. A preocupação pode ser formulada como se segue. Segundo o darwinismo ortodoxo, o processo da evolução é conduzido principalmente por dois mecanismos: mutação genética aleatória e selecção natural. O primeiro é a fonte principal de variabilidade genética; em virtude da segunda, uma mutação que resulte num traço transmissível geneticamente e que aumente a boa adaptação irá provavelmente espalhar-se por essa população e ser preservada como parte do genoma. São os comportamentos e traços que aumentam a boa adaptação que são recompensados pela selecção natural; o que é penalizado são traços e comportamentos que dificultam a boa adaptação. Ao produzir as nossas faculdades cognitivas, a selecção natural irá favorecer as faculdades e processos cognitivos que resultem em comportamento adaptativo; não se importa nem um pouco com a crença verdadeira (enquanto tal) nem com as faculdades cognitivas que conduzem de modo fidedigno à crença verdadeira. Como afirmou o psicólogo evolucionista David Sloan Wilson, “a mente bem adaptada é em última análise um órgão de sobrevivência e reprodução” (Wilson 2002, 228). Se as nossas mentes servem para algo, não é a produção de crenças verdadeiras, mas antes a produção de comportamento adaptativo: que a nossa espécie tenha sobrevivido e evoluído garante, no máximo, que o nosso comportamento é adaptativo; não garante, nem sequer torna provável, que os nossos processos de produção de crenças sejam na sua maior parte fidedignos, ou que as nossas crenças sejam na sua maior parte verdadeiras. Isto porque o nosso comportamento poderia perfeitamente ser adaptativo, mas as nossas crenças serem tão frequentemente falsas como verdadeiras. O próprio Darwin se preocupou aparentemente com esta questão:

“Comigo, levanta-se sempre a dúvida horrível de as convicções da mente humana, que foi desenvolvida a partir da mente dos animais inferiores, terem ou não algum valor, ou serem realmente dignas de confiança. Confiaria alguém nas convicções da mente de um macaco, se é que em tal mente há quaisquer convicções?” (Darwin 1887)

Podemos formular brevemente a dúvida de Darwin como se segue. Seja R a proposição de que as nossas faculdades cognitivas são fidedignas, N a proposição de que o naturalismo é verdadeiro e E a proposição de que nós e as nossas capacidades cognitivas surgimos dos processos apontados pela teoria evolucionista contemporânea: qual é a probabilidade condicional de R dado N&E? I.e., qual é o valor de P(R | N&E)? Darwin receia que seja muito baixo.

Mas é claro que só a evolução natural que não seja guiada dá origem a esta preocupação. Se a selecção natural for guiada e orquestrada pelo Deus do teísmo, por exemplo, a preocupação desaparece; Deus usará todo o processo, presumivelmente, para criar criaturas do género que quer, criaturas à sua própria imagem, criaturas com faculdades cognitivas fidedignas. Assim, é a evolução que não é guiada, e as crenças metafísicas que implicam a evolução que não é guiada, que dão origem a esta preocupação quanto à fiabilidade das nossas faculdades cognitivas. Ora, o naturalismo implica que a evolução, se ocorre, não é realmente guiada. Mas então, segundo esta sugestão, é improvável que as nossas faculdades cognitivas sejam fidedignas, dada a conjunção do naturalismo com a proposição de que nós e as nossas faculdades cognitivas surgimos por meio da selecção natural, peneirando a variação genética aleatória. Sendo assim, quem crê nesta conjunção terá algo que refuta a proposição de que as nossas faculdades são fidedignas — mas se isso for verdadeiro, terá também algo que refuta qualquer crença produzida pelas suas faculdades cognitivas — incluindo, é claro, a conjunção do naturalismo com a evolução. Assim se vê que essa conjunção é auto-refutante. Se o for, contudo, tal conjunção não pode racionalmente ser aceite, caso em que há um conflito entre o naturalismo e a evolução, e portanto entre o naturalismo e a ciência.

Podemos formular esquematicamente o argumento como se segue:

  1. P(R | N&E) é baixa.
  2. Quem aceitar N&E e vir que 1 é verdadeira, tem algo que refuta R.
  3. Quem tem algo que refuta R tem algo que refuta qualquer outra crença que tenha, incluindo a própria N&E.
  4. Logo, quem aceitar N&E e vir que 1 é verdadeira, tem algo que refuta N&E; logo, N&E não pode ser racionalmente aceite.

Claro que esta é uma versão concisa e meramente esquemática do argumento; não há aqui espaço para as necessárias qualificações.

A defesa de 1 seria algo como o seguinte. Primeiro, para evitar a influência do nosso pressuposto natural de que as nossas faculdades cognitivas são fidedignas, pensemos não sobre nós, mas sobre criaturas hipotéticas muito parecidas connosco, existindo talvez noutra parte do universo; e suponha-se que N e E são verdadeiras com respeito a elas. De seguida, note-se que o naturalismo implica aparentemente o materialismo (quanto aos seres humanos); a ciência actual não sustenta a existência de almas imateriais ou mentes ou eus. Assim, considere-se que o naturalismo inclui o materialismo. O que seria uma crença, deste ponto de vista? Presumivelmente, algo como um acontecimento ou estrutura de longo prazo no sistema nervoso — talvez um grupo estruturado de neurónios conectados e relacionados de certos modos. Tal estrutura neuronal terá propriedadesneurofisiológicas (“propriedades NF”): propriedades que especificam o número de neurónios envolvidos, o modo como estes neurónios estão conectados entre si e com outras estruturas (como músculos, glândulas, órgãos dos sentidos, outros acontecimentos neuronais, etc.), a cadência e intensidade médios dos disparos neuronais em várias partes deste acontecimento, e os modos como estas cadências de disparos mudam ao longo do tempo e em resposta aos dados de entrada de outras áreas. Se este acontecimento for realmente uma crença, contudo, terá também conteúdo; será a crença de que p, para uma dada proposição p — talvez a proposição de que o naturalismo está na berra hoje em dia.

Qual é a relação entre as propriedades NF, por um lado, e as propriedades do conteúdo — propriedades como ter como conteúdo a proposição de que o naturalismo está na berra hoje em dia —, por outro? Talvez a posição mais popular aqui seja o “materialismo não redutor” (MNR): as propriedades do conteúdo são distintas mas são sobrevenientes relativamente às propriedades NF.13A sobreveniência pode ser ou lógica, em termos latos, ou nómica. Neste último caso, haveria leis psicofísicas relacionando as propriedades NF com as propriedades do conteúdo: leis do géneroqualquer estrutura com tais e tais propriedades NF terão tal e tal conteúdo. Estas leis serão presumivelmente contingentes (no sentido lógico lato ou no sentido metafísico). No primeiro caso, haverá também tais leis, mas serão necessárias e não contingentes.

Ora, tome-se qualquer crença B da parte de um membro dessa hipotética população: qual é a probabilidade (epistémica) de que B seja verdadeira, dado N&E e o materialismo não redutor — qual é o valor de P(B | N&E&MNR)? O que sabemos é que B tem um certo conteúdo (chamemos-lhe “C”), e (podemos admitir ou conceder) ter B é adaptativo nas circunstâncias em que a criatura se encontra. Qual é então a probabilidade de que C, o conteúdo de B, seja verdadeiro? Bem, qual é a probabilidade de que a lei psicofísica relevante L que liga as propriedades NF e as propriedades do conteúdo produza uma proposição verdadeira como conteúdo neste caso? Ter B é adaptativo, nas circunstâncias em que a criatura se encontra; exibir as propriedades NF sobre as quais C sobrevém causa comportamento adaptativo. Mas porquê pensar que o conteúdo conectado às propriedades NF por L será verdadeiro nas circunstâncias desta criatura? O que conta como adaptatividade são as propriedades NF e o comportamento que estas causam; não importa se o conteúdo sobreveniente é verdadeiro. As propriedades NF são de facto adaptativas; mas isso não fornece qualquer razão, até agora, para pensar que o conteúdo sobreveniente é verdadeiro. Ter B é adaptativo em virtude de causar comportamento adaptativo, e não em virtude de ter um conteúdo verdadeiro. Claro que se o teísmo for verdadeiro, então os seres humanos (ao contrário dessas hipotéticas criaturas, para quem o naturalismo é verdadeiro) são feitas à imagem divina, o que inclui a capacidade de conhecimento; assim, Deus escolheria presumivelmente as leis psicofísicas de modo a que, nas circunstâncias relevantes, a neurofisiologia produza conteúdo verdadeiro. Mas nada disto é verdadeiro dado o naturalismo; supor que as propriedades do conteúdo que são adaptativas conduzem também, na sua maior parte, a conteúdo verdadeiro, seria um optimismo totalmente injustificado.

Assim, qual é o valor de P(B | N&E&MNR)? Bem, dado que a verdade de B não faz diferença quanto à adaptatividade de B, esta poderia efectivamente ser verdadeira, mas é igualmente provável que seja falsa; teríamos de calcular que a probabilidade de que é verdadeira é mais ou menos a mesma do que a probabilidade de que é falsa. Mas isto significa que é improvável que o crente em questão tenha faculdades cognitivas fidedignas, i.e., faculdades que produzem uma preponderância suficiente de crenças verdadeiras em relação às falsas. Por exemplo, sendo assim, se o crente em questão tiver mil crenças independentes, cada uma delas tendo igual probabilidade de ser falsa ou verdadeira, a probabilidade de, digamos, 3/4 delas serem verdadeiras (e isto seria uma exigência modesta de fiabilidade) seria muito baixa — menos de 10-58. Assim, P(B | N&E&MNR), aplicada a estas criaturas, será baixa. Mas é claro que o mesmo se aplicaria a nós, se o naturalismo fosse verdadeiro: P(B | N&E&MNR), aplicada a nós, seria igualmente baixa.14

Este é o argumento para a primeira premissa. Segundo a premissa 2, quem vê isto e também aceitaN&E tem algo que refuta R, uma razão para a abandonar, para deixar de crer nela. A defesa oferecida desta premissa é por meio de uma analogia partindo de casos claros. Suponha-se que acredito que há uma droga — chamemos-lhe XX — que destrói a fiabilidade cognitiva; eu acredito que 95% dos que ingerem XX perdem a fiabilidade cognitiva. Suponha-se ainda que eu acredito agora que ingeri XX e que P(R | ingeri XX) é baixa; tomadas conjuntamente, estas duas crenças dão-me algo que refuta a minha crença inicial ou pressuposto de que as minhas faculdades cognitivas são fidedignas. Além disso, não posso apelar para qualquer das minhas outras crenças para mostrar ou argumentar que as minhas faculdades cognitivas ainda são fidedignas; qualquer dessas outras crenças está também agora sob suspeita ou está comprometida, tal como R. Qualquer outra crença B é um produto das minhas faculdades cognitivas: mas então, ao reconhecer isto, e tendo algo que refuta R, tenho também algo que refuta B. Claro que haverá muitos outros exemplos: chego ao mesmo resultado se acreditar que sou um cérebro numa cuba e que P(R | sou um cérebro numa cuba) é baixa; o mesmo se aplica à versão cartesiana clássica da mesma ideia (nomeadamente, que fui criado por um ser que gosta de me enganar) e também para cenários mais corriqueiros, por exemplo, a crença de que enlouqueci (talvez porque tenha sido contaminado com a doença das vacas loucas). Em todos estes casos, tenho algo que refuta R.

Ora, segundo a premissa 3, quem tem algo que refuta R, tem algo que refuta qualquer crença que considere que é um produto das suas faculdades cognitivas — que são, é claro, todas as suas crenças. Essa pessoa tem portanto algo que refuta a própria N&E; quem aceita N&E (e vê que P(R | N&E) é baixa) tem algo que refuta N&E, uma razão para duvidar dela ou rejeitá-la ou para ser agnóstico com respeito a ela. Nem poderia essa pessoa obter indícios independentes a favor de R; o processo de o fazer iria é claro pressupor que as suas faculdades são fidedignas. Ela estaria a apoiar-se na precisão das suas faculdades para acreditar que os alegados indícios estão de facto presentes e que são de facto indícios a favor de R. Thomas Reid (1785, 276) formulou este aspecto como se segue:

“Se a honestidade de um homem é posta em causa, seria ridículo basearmo-nos na sua própria palavra, seja ele honesto ou não. O mesmo absurdo há ao procurar provar, por qualquer tipo de raciocínio, provável ou demonstrativo, que o nosso raciocínio não é falacioso, dado que o que está em causa é o nosso raciocínio ser ou não digno de confiança.”

O argumento conclui que a conjunção de naturalismo com a teoria da evolução não pode ser racionalmente aceite — em qualquer caso, por alguém que seja posto ao corrente deste argumento e veja a conexão entre N&E e R.

Como seria de esperar, este argumento tem sido controverso. Várias objecções lhe foram levantadas (Beilby 1997; Ginet 1995, 403; O’Connor 1994, 527; Ross 1997; Fitelson e Sober 1998; Robbins 1994; Fales 1996; Lehrer 1996; Nathan 1997; Levin 1997; Fodor 1998). Houve respostas a estas objecções (Plantinga 2002a; 2003), respostas a estas respostas (Talbott, 2010), etc.; não há qualquer consenso com respeito ao argumento. Se o argumento for correcto, contudo, e N&E não puder ser racionalmente aceite, então há um conflito entre o naturalismo e a evolução; não se pode racionalmente aceitar ambos. Assim, há um conflito entre o naturalismo e uma das bases principais da ciência contemporânea. Na medida em que o naturalismo é uma quase-religião em virtude de desempenhar a função cognitiva de uma religião, há uma espécie de conflito entre a religião e a ciência —não entre a religião teísta e a ciência, mas entre o naturalismo e a ciência.

 

Tradução: Desidério Murcho

Artigo originalmente publicado em The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Summer 2010 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = http://plato.stanford.edu/archives/sum2010/entries/religion-science/.

 

Agradecimentos

Pelos conselhos sábios e boas sugestões, agradeço a Brian Boeninger, Thad Botham, E.J. Coffman, Robin Collins, Tom Crisp, Chris Green, Jeff Green, Marcin Iwanicki, Nathan King, Dan McKaughan, Dolores Morris, Brian Pitts, Luke Potter e Del Ratzsch.

 

Notas

  1. Mas o que dizer do empirista construtivo e do instrumentalista? Bem, em qualquer caso visam fazer previsões verdadeiras, ou teorias que visam fazer previsões verdadeiras, ainda que não teorias verdadeiras.
  2. Distinguimos aqui entre a crença em Deus e a crença de que Deus existe. crença em Deusinclui a crença de que Deus existe e, além disso, envolve confiar em Deus, fazer dos seus os nossos propósitos, identificarmo-nos com ele e/ou com os seus propósitos, venerá-lo, comprometermo-nos com ele, etc.
  3. Há excepções. Você usa um computador para calcular o produto de um par de números com seis algarismos; o computador devolve um certo número n. O seu conhecimento de que o produto é de facto n — que é, evidentemente, necessário — é a posteriori; depende do seu conhecimento a posteriori de que o computador apresenta respostas correctas. Denomino o mundo efectivo “α;” então, é uma verdade necessária que (digamos) houve uma guerra civil em α, mas a única maneira de você conhecer esta verdade necessária é a posteriori.
  4. Houve quem afirmasse haver verdades contingentes de que temos conhecimento a priori.Outros afirmam que isto é um erro; veja-se Plantinga 1974, p. 8, n. 1.
  5. “Se existisse uma explicação simples, seria antes em termos da habitual autoridade societal implacável na supressão da opinião minoritária, e, no caso de Galileu, com o aristotelismo, e não o cristianismo, no lugar de autoridade.” (Drake 1980, v).
  6. A sugestão não é que nenhuma teoria científica pode conter elementos metafísicos; a sugestão é apenas que esta afirmação particular é claramente metafísica, e também claramente um acrescento: não faz parte da teoria evolucionista tal como esta é actualmente entendida.
  7. “Impliquem obviamente”: segundo a maior parte das crenças teístas tradicionais, a existência de Deus é uma verdade necessária. Se o for, contudo, todas as proposições a implicariam, de modo que a condição em questão tem de ser formulada com maior circunspecção.
  8. Devo sublinhar que a CBH é um projecto, e não um instrumento. Os instrumentos usados pelos especialistas em crítica bíblica histórica — conhecimento da língua, cultura e história relevante, crítica da resposta do leitor, crítica narrativa, ideias das ciências sociais — são também, é claro, instrumentos dos comentadores bíblicos tradicionais, assim como de quem levanta as questões levantadas pelos especialistas em crítica bíblica histórica, mas de uma perspectiva não limitada pelo NM.
  9. Algo que refuta uma crença B que eu tenha é outra crença D que adquiro tal que, dada a minha série particular de crenças e a força com que as mantenho, não posso racionalmente continuar a aceitar B desde que aceite D; se D for algo que refuta parcialmente B, então não posso continuar a aceitar (acreditar) B com a mesma força.
  10. Suponha-se que se descobre uma série de cartas e as últimas técnicas de datação as localizam na primeira parte do séc. I; nas cartas mais antigas os apóstolos planeiam o embuste, e nas mais recentes congratulam-se por ter tudo corrido muito bem… Veja-se van Fraassen (1993), p. 322.
  11. Claro que temos também de eliminar proposições que implicam B, e talvez certas proposições probabilisticamente relacionadas com B. Em geral, haverá mais de uma maneira de o fazer. Sem entrar em pormenores, digamos (um pouco vagamente) que CDC-B é qualquer subconjunto de CDC que não implica B e, à parte isso, é maximamente semelhante a CDC.
  12. Alternativamente, o naturalismo científico deve ser visto como a injunção ou resolução de não tolerar quaisquer entidades que não sejam sancionadas pela ciência contemporânea; see van Fraassen (2002).
  13. Ou, para acomodar o externismo quanto ao conteúdo (“o significado não ‘tá na cabeça”), relativamente às propriedades NF juntamente com certas propriedades do meio ambiente. Esta qualificação estará pressuposta mas não mencionada no que se segue.
  14. Podemos argumentar de modo semelhante a favor da baixa probabilidade de R dado N&E e o materialismo redutor, a ideia de que as propriedades de conteúdo são apenas propriedades NF (complexas); limitações de espaço não permitem apresentar aqui o argumento.

 

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Acidentes, não castigos (Charles Spurgeon)


No. 408

Um sermão pregado no Domingo, 8 de setembro de 1861

Por Charles Haddon Spurgeon

No Tabernáculo Metropolitano, Newington, Londres.

 

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“E, naquele mesmo tempo, estavam presentes ali alguns que lhe falavam dos galileus, cujo sangue Pilatos misturara com os seus sacrifícios. E, respondendo Jesus, disse-lhes: Cuidais vós que esses galileus foram mais pecadores do que todos os galileus, por terem padecido tais coisas? Não, vos digo; antes, se não vos arrependerdes, todos de igual modo perecereis. E aqueles dezoito, sobre os quais caiu a torre de Siloé e os matou, cuidais que foram mais culpados do que todos quantos homens habitam em Jerusalém? Não, vos digo; antes, se não vos arrependerdes, todos de igual modo perecereis.” Lucas 13:1-5

O ano de 1861 será notório entre seus companheiros por ser um ano marcado por calamidades. Justo na época quando o homem sai para receber o fruto de seus labores, quando a colheita da terra está madura e os celeiros começam a se encher, cheios de trigo novo, a Morte também, essa poderosa segadora, saiu para cortar sua própria colheita – feixes completos foram recolhidos em seu celeiro: a tumba. Terríveis foram os lamentos que formam o hino da colheita da morte.

Ao ler os jornais nessas ultimas semanas, até mesmo as pessoas mais impassíveis experimentaram sentimentos muito dolorosos. Não só ocorreram calamidades tão alarmantes que só de lembrar gelam o sangue, mas também as colunas dos periódicos foram dedicadas a certas calamidades de menor nível de horror, mas que, somadas todas, são suficientes para encher a mente de terror pela tremenda quantidade de mortes inesperadas que recentemente corresponderam aos filhos dos homens.

Não somente temos tido acidentes a cada dia da semana, mas sim até dois ou três – não fomos simplesmente aturdidos pelo alarmante ruído de um terrível estrondo, mas com outro, outro, outro e outro, que seguiram suas pisadas, como os amigos de Jó, até que tenhamos tido necessidade da paciência e da resignação de Jó para escutar a terrível narrativa dessas calamidades. Agora, homens e irmãos, coisas como essas ocorreram sempre em todas as épocas do mundo. Não pensem que isso é algo novo – não considerem, como alguns o fazem, que isso é o produto de uma civilização excessiva, ou resultado dessa descoberta moderna tão maravilhosa como é o vapor. Se jamais se tivesse conhecido a máquina a vapor, e se jamais tivesse sido construído uma ferroviária, de todas as formas teriam ocorrido mortes inesperadas e acidentes terríveis.

Ao revisar os velhos arquivos nos que nossos antepassados registraram os acidentes e as calamidades de seus dias, encontramos que a antiga diligência ofereceu à morte uma presa tão custosa como o trem que roda ferozmente o fez; existiam então tantas portas para o Hades como as que existem hoje – caminhos tão empinados e íngremes que conduziam para a morte que eram transitados por uma multidão tão vasta como em nossa época; por acaso vocês duvidam disso?

Peço a todos que nos dirijamos ao capítulo treze de Lucas. Lembrem-se desses dezoito sobre os quais a torre de Siloé caiu. E dai se nenhuma colisão os tivesse esmagado?[1] Ou que se não tivessem sido destruídos pelo ingovernável cavalo de ferro que os arrastou para água desde um aterro?[2] No entanto, alguma torre mal construída, ou alguma parede golpeada pela tempestade poderia ter caído sobre dezoito de uma vez, e eles teriam perecido igualmente.

Ou, pior que isso, um governante déspota, levando as vidas dos homens penduradas em seu cinto como se fossem as chaves de seu palácio, poderia ter caído subitamente sobre os que estavam adorando no próprio templo, e poderia ter misturado o sangue deles com o sangue dos bezerros que nesse momento estavam sendo sacrificados ao Deus do céu. Não pensem, então, que essa é uma época na que Deus está tratando mais duramente com nós do que antes. Não pensem que a providência de Deus se tem voltado mais dura do que antes: sempre ocorreram mortes inesperadas, e sempre haverá delas – sempre tem ocorrido estações onde os lobos da morte tem caçado em manadas famintas, e provavelmente, até o fim dessa dispensação, o último inimigo terá seu festival periódico e satisfará os vermes com carne humana.

Portanto, não estejam abatidos pelas mortes inesperadas, nem tampouco estejam perturbados com essas calamidades. Continuem com suas atividades normais, e se seus chamados os levam a cruzar o campo da própria morte, o façam, e façam corajosamente. Deus não soltou as rédeas do mundo, não tirou Sua mão do timão do grande barco, ainda:

“Ele em todas as partes possui império,

e todas as coisas servem a Seu propósito;

Cada ato Seu é pura benção,

Seu caminho é luz sem mancha.”

Só aprendam a confiar Nele, e vocês não terão nenhum temor à morte inesperada; “A sua alma pousará no bem, e a sua semente herdará a terra.” (Salmo 25:13)

O tema particular dessa manhã, no entanto, é esse: o uso que devemos encontrar para esses terríveis textos que Deus está escrevendo com letras maiúsculas na história do mundo. Deus falou uma vez, sim, duas vezes; que não se diga que o homem não prestou atenção. Temos visto um vislumbre do poder de Deus, contemplamos alguma coisa da rapidez com que Ele pode destruir nossos concidadãos. “Presta atenção ao castigo e a quem o estabelece;” e ao prestar atenção, façamos duas coisas.

Primeiro, não sejamos tão insensatos para tirar a conclusão a que chegam as pessoas supersticiosas e ignorantes; essa conclusão que está sugerida no texto, quer dizer, que os que são destruídos por meio de acidentes, são pecadores que estão acima de todos os pecadores que habitam o lugar. E, em segundo lugar, cheguemos à conclusão apropriada e correta; façamos um uso prático de todos esses eventos para nossa própria melhoria pessoal: escutemos a voz do Salvador que diz: “se não vos arrependerdes, todos de igual modo perecereis.”

I. Primeiro, então, TENHAMOS MUITO CUIDADO DE NÃO CONCLUIR APRESSADAMENTE E IRREFLETIDAMENTE SOBRE ESSES TERRIVEIS ACIDENTES: QUE OS QUE OS SOFREM, OS SOFREM POR CULPA DE SEUS PECADOS.

É dito de maneira mais absurda que os que viajam no primeiro Dia de Descanso, e sofrem um acidente, devem considerar esse acidente como um juízo de Deus sobre eles, devido a estarem violando o dia de adoração cristão. É dito, ainda por parte de ministros piedosos, que essa ultima colisão deplorável dos trens deve ser considerada uma notável visitação e sumariamente maravilhosa da ira de Deus contra esses infelizes que por casualidade encontravam-se no túnel Clayton.

Porem, eu apresento meu protesto mais enérgico contra uma conclusão assim, não só em meu nome, mas também em nome Daquele que é o Senhor do cristão e Mestre do cristão. Eu pergunto sobre essas pessoas que foram esmagadas nesse túnel, vocês pensam que elas era maiores pecadoras do que todos os pecadores? “Não, se não vos arrependerdes, todos de igual modo perecereis.”, ou os que morreram na segunda feira passada, vocês imaginam que eles eram maiores pecadores que todos os pecadores que estavam em Londres?[3] “Se não vos arrependerdes, todos de igual modo perecereis.”

Agora, fixem bem, eu não negaria que existem ocasiões em que houve juízos de Deus sobre pessoas particulares devido a seus pecados; algumas vezes, e eu penso que muito raramente, tais coisas ocorreram. Alguns de nós ouvimos, em nossa própria experiência, que certos homens blasfemaram a Deus e o desafiaram a que os destruísse, e depois morreram repentinamente – e em tais casos, o castigo seguiu tão rapidamente à blasfêmia que era impossível não ver a mão de Deus nele. O homem havia perdido perversamente o juízo de Deus, e sua oração foi atendida, e logo veio o juízo.

E alem de toda dúvida, existe o que se pode descobrir como juízos naturais. Vocês veem a um homem vestindo farrapos, pobre, sem casa; foi um libertino, um bêbado, perdeu seu caráter, e isso não é senão o justo juízo de Deus sobre esse homem, que esteja morrendo de fome e que seja um proscrito dos homens. Vocês podem ver nos hospitais repugnantes exemplos de homens e mulheres que estão terrivelmente enfermos. Que Deus não queira que, em tais casos, nós neguemos que existe um juízo de Deus sobre essas concupiscências ímpias e licenciosas.

E o mesmo pode se disser de muitos casos onde existe um vínculo tão claro entre o pecado e o castigo que até os homens mais cegos podem discernir que Deus converteu a Miséria na filha do Pecado. Porem, em casos de acidente, tal como esses a que me refiro, e em casos de morte repentina e instantânea, repito, eu apresento meu mais sincero protesto contra essa insensata e ridícula ideia que os que perecem dessa forma são mais pecadores que todos os pecadores que sobrevivem sem sofrer dano algum.

Simplesmente permitam-me raciocinar esse assunto com o povo cristão – pois há alguns cristãos sem maior iluminação que se sentirão horrorizados pelo que eu disse. E, os que tendem a ser perversos podem sonhar inclusive que eu estou fazendo uma apologia para o quebrantamento do dia de adoração. Porem, eu não faço tal coisa. Eu não diminuo a gravidade do pecado; eu só testifico e declaro que os acidentes não devem ser vistos como castigos, pois o castigo não pertence a esse mundo, mas sim ao futuro. A todos aqueles que se apressam em considerar cada calamidade como um juízo, eu quero lhes falar na esperança sincera de corrigir-lhes.

Então, permitam-me começar perguntando, meus amados irmãos, por acaso não enxergam que o que vocês dizem não é certo? E essa é a melhor das razões do porque não devem dizê-lo. Suas próprias experiências e observações não lhes ensinam que um evento ocorre tanto ao justo como ao malvado? É certo que o homem malvado às vezes cai morto na rua – mas o ministro também não caiu morto no púlpito, por acaso? É certo que um iate de prazer, no qual os homens buscavam sua própria felicidade em um dia de domingo, afundou precipitadamente – mas não é igualmente certo que um barco que levava somente homens piedosos, cujo destino era um giro para pregar o Evangelho, não afundou também?

A providência de Deus não tem respeito para com as pessoas: e uma tormenta pode abater-se sobre o barco missionário “John Williams[4] , da mesma forma que pode abater-se sobre outro barco repleto de pecadores desenfreados. Ó, acaso não percebem que a providência de Deus foi de fato, e seus tratos externos, mais dura com os bons do que com os maus? Paulo não disse ao contemplar as misérias dos justos em seus dias: “Se esperamos em Cristo só nesta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens.” (1 Coríntios 15:19)

O caminho da justiça frequentemente conduziu os homens ao cavalo selvagem do tormento, da prisão, do patíbulo e para fogueira – enquanto que o caminho do pecado, muitas vezes os levou ao império, ao dominio e à alta estima de seus companheiros. Não é certo que nesse mundo Deus castigue os homens por seu pecado, e os premie por suas boas obras. Não disse Davi: “Vi o ímpio com grande poder espalhar-se como a árvore verde na terra natal? (Salmos 37:35)” E isso deixava o Salmista perplexo durante um tempo, até que foi ao santuário de Deus, e enfim entendeu o fim deles?

Ainda que sua fé lhe assegure que o resultado final da providência trabalhará unicamente para o bem do povo de Deus, no entanto, sua vida, ainda que seja somente uma breve parte do drama divino da história, deve ter-lhe ensinado que a providência não discrimina externamente entre o justo e o ímpio – que o justo perece inesperadamente igual que o ímpio – que a peste não conhece diferenças entre o pecador e o santo – e que a mesma espada da guerra é impiedosa com os filhos de Deus como é com os filhos de Belial.

Quando Deus envia o flagelo, ele mata inesperadamente o inocente da mesma forma que ao perverso e ao insolente. Agora, meus irmãos, se a ideia de vocês de uma providência que castiga e que premia não é certa, por que falam como se ela fosse? E, por que, se não é correta como regra geral, vocês supõem que seja verdadeira nessa instância particular? Demovam essa ideia de suas cabeças, pois o Evangelho de Deus jamais requer que vocês creiam em algo que não é certo.

Porem, em segundo lugar, existe outra razão. A ideia de que sempre que ocorre um acidente devemos considerá-lo como um juízo de Deus, faria que a providência fosse, em vez de um grande abismo, uma poça d’água bem rasa. Pois, qualquer criança pode entender a providência de Deus, se é certo que quando há um acidente ferroviário, é porque as pessoas viajavam em um domingo. Eu posso escolher qualquer menininho da classe mais elementar da escola dominical, e ele me dirá: “sim, eu vejo isso.” Mas então, se a providência é uma coisa assim, se é uma providência que pode ser compreendida, evidentemente não é a ideia de providência da Escritura, pois na Escritura nos é sempre ensinado que a providência de Deus é “um grande abismo”, e mesmo Ezequiel, que possuía a asa do querubim e podia voar muito alto, quando viu as rodas que eram o grande quadro da providência de Deus, só podia dizer que os aros das rodas eram tão altos, tão espantosos e cheios de olhos, de tal forma que lhes era gritado, “roda!

Repito isso para que fique muito claro: se em todos os casos uma calamidade fosse o resultado de algum pecado, então a providência seria algo tão simples como dois mais dois são quatro – seria uma das primeiras lições que uma criancinha poderia aprender. Porem, as Escrituras nos ensinam que a providência é um grande abismo no qual o intelecto humano pode nadar e mergulhar, mas não pode encontrar nem o fundo nem a orla; e se você e eu pretendemos encontrar as razões da providência, e torcer as dispensações de Deus com nossos dedos, só demonstramos nossa insensatez, e não estamos evidenciando que temos começado a entender os caminhos de Deus.

Pois, olhem senhores – suponham por um momento que está acontecendo uma grandiosa representação de uma obra teatral, e que vocês se intrometem na obra e ven a um ator no cenário por um instante, e dizem: “Sim, eu entendo a obra”, que tontos vocês seriam! Acaso não sabem que as grandes transações da providência começaram aproximadamente uns seis mil anos? E vocês vieram a esse mundo faz uns trinta, quarenta anos, e tem visto um ator em cena, e vocês dizem que já entendem a obra. Oras! Vocês não a entendem – apenas começaram a conhecer. Somente Ele conhece o fim desde o principio, somente Ele entende quais são os grandes resultados, e qual é a grandiosa razão pela que o mundo foi feito, e pela qual Ele permite que ocorra tanto o bem como o mal. Não pensem que vocês conhecem os caminhos de Deus; isso equivale a degradar a providência e baixar Deus ao nível dos homens, quando pretendem entender essas calamidades e descobrir os desígnios secretos da sabedoria.

Porem, continuando, vocês não percebem que uma ideia assim animaria o farisaísmo? Essas pessoas que morreram esmagadas, ou queimadas até as cinzas, ou destruídas debaixo das rodas dos vagões do trem, eram piores pecadoras do que nós. Muito bem, então nós devemos ser excelentes pessoas – que excelentes exemplos de virtude! Não fazemos as coisas que elas fazem, e, portanto Deus nos facilita todas as coisas. Na medida em que viajamos, alguns de nós a cada dia da semana, e jamais fomos despedaçados, sobre essa suposição, podemos nos catalogar como os favoritos da Deidade.

Então, não enxergam irmãos, que nossa própria segurança seria um argumento para nos fazer cristãos? Que ós tenhamos viajado em um trem com segurança seria um argumento de que somos regenerados, porem eu jamais li nas Escrituras, “Nós sabemos que passamos da morte para a vida, por que viajamos de Londres a Brigton sem nenhum problema duas vezes ao dia.” Jamais encontrei nenhum versículo que se pareça com isso – e, no entanto, se fosse certo que os piores pecadores sofrem os acidentes, se derivaria supoer como um contraponto natural a essa proposição que os que não sofrem acidentes devem ser pessoas muito boas, e assim que noções farisaicas geramos e nutrimos dessa maneira.

Porem, eu não posso tolerar essa insensatez nem por um instante. Quando contemplo por um momento os pobres corpos mutilados dos que foram sacrificados tão inesperadamente, meus olhos se enchem de lágrimas, mas meu coração não se vangloria, nem meus lábios acusam – longe de mim tal expressão cheia de orgulho: “Deus, lhe dou graças porque não sou como os outros homens.” Não, não, não, esse não é o espírito de Cristo, nem o espírito do cristianismo. Ainda que possamos agradecer a Deus porque somos preservados, no entanto, podemos dizer: “As misericórdias do SENHOR são a causa de não sermos consumidos” (Lamentações 3:22), e devemos atribuir tal fato a Sua graça e unicamente a Sua graça. Porem, não podemos crer que existia algo melhor em nós porque fomos preservados vivos estando a morte tão perto. É somente porque Ele teve misericórdia, sendo muito paciente para conosco, não querendo que pereçamos, mas sim que nos arrependamos, que nos preservou dessa maneira para que não desçamos à tumba, e nos manteve a vida preservando-nos da morte.

Logo, permitam-me comentar que a suposição contra a qual estou contendendo é muito cruel e dura. Pois se esse fosse o caso, que todas as pessoas que assim se encontram com a morte de uma maneira extraordinária e terrível são maiores pecadoras que as demais, isso não seria um duro golpe para os afligidos sobreviventes? E não é pouco generoso da nossa parte consentir nessa ideia, a menos que sejamos forçados a aceitá-la como uma terrível verdade, por razões que não podem ser respondidas?

Agora, eu os desafio a sussurrar ao ouvido da viúva. Vão a sua casa e digam-lhe: “seu esposo era pior pecador que o resto dos homens, por isso morreu.” Vocês não possuem a suficiente brutalidade para isso. Um pequeno bebê inconsciente, que jamais havia pecado, ainda que, sem dúvida, um herdeiro da queda de Adão, é encontrado esmagado em meio dos escombros do acidente. Agora, pensem por um momento, qual seria a infame consequência da suposição que os que pereceram era piores que os outros. Teriam que supor que essa inconsciente criança era pior pecadora que muitos que habitam as guaritas da infâmia e cujas vidas são ainda respeitadas. Não percebem que a coisa é radicalmente falsa?

E talvez eu pudesse mostra-lhes melhor a injustiça disso, lembrando-lhes que um dia isso poderia suceder com vocês. Suponham que lhes caiba encontrarem-se com uma inesperada morte desse tipo; vocês estão anuentes a que se lhes corresponda a condenação sobre essa base? Um incidente assim pode ocorrer na casa de Deus. Permitam-me recordar o que ocorreu uma vez em que estávamos congregados – posso afirmar de coração puro que não nos reunimos com nenhum outro objetivo de não ser o de servir a Deus, e esse ministro não tinha nenhuma meta em ir a esse lugar, exceto o de congregar a muitos que de outra maneira não teriam tido a oportunidade de escutar sua voz. E, no entanto houve funerais como resultado desse esforço santo – pois ainda declaramos que foi um esforço santo, e a benção de Deus o demonstrou. Houve mortes e mortos entre o povo de Deus – quase estou a ponto de dizer que estou contente que foi entre o povo de Deus mais que em outros povos. Um tremendo terror apoderou-se da congregação, e o povo fugiu, e não enxergam que se os acidentes devem ser considerados como juízos, então é uma sã conclusão que nós estávamos pecando ao estar lá. Essa é uma insinuação que nossas consciências categoricamente repudiam.[5]

No entanto, se essa lógica fosse verdadeira, é tão certa contra nós como o é contra outros, e na medida em que vocês repeliriam com indignação a acusação que alguns foram feridos ou golpeados devido ao pecado, estando ali no Music Hall para adorar a Deus, o que rejeitam para vocês o rejeitem para outros, e não querem ser parte da acusação que é apresentada em contra os que foram destruídos durante as ultimas duas semanas, que pereceram por causa de qualquer grande pecado.

Aqui eu antecipo o clamor de pessoas prudentes e zelosas que temem pela arca de Deus, e a querem tocar com a mão e Uzá. “Bem,” dirá algum, “mas nós não devemos falar assim, pois é uma superstição muito útil, pois haveria muitas pessoas que já não viajariam nos domingos devido ao acidente, e, portanto, devemos dizer-lhes, que os que pereceram, pereceram devido que viajaram no domingo.”

Irmãos, eu não diria uma mentira para salvar uma alma, e isso seria dizer mentiras, pois não é verdade. Eu faria qualquer coisa para interromper o trabalho aos domingos e o pecado, mas não forjaria uma falsidade, ainda mesmo para conseguir isso. Essas pessoas poderiam ter falecido na segunda-feira igual como no domingo. Deus não dá uma imunidade especial a algum dia da semana, e os acidentes podem ocorrer em qualquer momento, e é somente uma fraude piedosa quando buscamos jogar assim com a superstição dos homens por causa de Cristo.

O sacerdote da Igreja Católica Romana pode consistentemente usar um argumento assim, porem, um cristão honesto que crê que a religião de Cristo pode cuidar-se a si mesma sem necessidade de falar falsidades, desdenha fazer isso. Esses homens não pereceram porque viajaram num domingo. Que sirva de testemunha o fato de que outros pereceram em uma segunda-feira quando andavam em missão de misericórdia.

Eu não sei por que razão ou por que motivo Deus enviou o acidente. Deus não queira que ofereçamos nossas próprias razões quando Ele não deu Sua razão, mas não nos é permitido converter a superstição dos homens em um instrumento para avançar a glória de Deus. Vocês sabem que entre os protestantes existem muitos fanatismos papais. Conheço pessoas que aprovam o batismo infantil argumentando: “Bem, ele não faz dano nenhum, e existem muitas boas intenções nele, e pode fazer muito bem, e ainda a confirmação pode resultar de benção para algumas pessoas, portanto não falemos contra isso.

A mim não corresponde se esse tema faz dano ou não, tudo o que me importa é se é correto, se é Escriturístico, se é verdadeiro, e se a verdade é prejudicada, que é uma suposição que não podemos aceitar de nenhuma maneira, esse prejuízo não estará em nossa porta. Não temos outro dever que dizer a verdade, ainda que os céus caiam sobre nós. Repito, qualquer avanço do Evangelho que se deva à superstição dos homens, é um avanço falso, e logo se voltará contra as pessoas que usam dessa arma não consagrada.

Nos possuímos uma religião que apela ao juízo do homem e ao sentido comum, e quando não podemos avançar com isso, eu não aceito que devamos prosseguir utilizando outros métodos – e, irmãos, se existe alguma pessoa que queira endurecer seu coração e dizer: “pois bem, eu estou tão certo em um dia como em qualquer outro dia,” o que é muito certo, eu devo responder-lhe: “o pecado de que faça tal uso como o que faz de uma verdade deve jazer a sua porta, não na minha – porem, se eu pudesse evitar que você viole o dia do descanso cristão, colocando diante de você uma supersticiosa hipótese, não o faria, pois parece-me que ainda que consiga lhe manter afastado desse pecado por um pouco de tempo, logo você se converteria demasiadamente inteligente para ser enganado por mim, e logo chegaria a considerar-me como um sacerdote que brincou com seus temores em vez de apelar a seu juízo.”

Oh, já é tempo que saibamos que nosso cristianismo não é uma coisa débil e temerosa, que apela aos pequenos temores supersticiosos de mentes ignorantes. É a algo valente, que ama a luz, e que não precisa de fraudes ‘santas’ para sua defesa. Sim, crítico! Foca sua lanterna em nós, e que brilhe em nossos próprios olhos; nós não temos medo, a verdade é poderosa e pode prevalecer, e se não pode prevalecer à luz do dia, não temos nenhum desejo de que o sol se ponha para dar a verdade uma oportunidade.

Eu creio que brotou muita infidelidade do desejo muito natural de alguns cristãos de se aproveitarem de erros comuns. “Oh”, disseram, “esse erro popular é muito bom, mantém o povo na posição correta – vamos perpetuar esse erro, pois evidentemente faz muito bem.” E logo, quando o erro foi descoberto, os infiéis disseram: “Oh, agora vejam que esses cristãos foram descobertos em seus estratagemas.” Não tenhamos nenhum truque, irmãos – não falemos aos homens como se fossem crianças que podem ser amendrotados por histórias de fantasmas e de bruxas. O fato é que esse não é o tempo de retribuição, e é pior que inútil que nós ensinemos que o é.

E agora, por último – e já irei passar a outro ponto – por acaso vocês não percebem que essa suposição, que não é cristã nem Escriturística, que quando os homens se encontram inesperadamente com a morte é resultado do pecado, rouba do cristão um de seus argumentos mais nobres para a imortalidade da alma? Irmãos, nós afirmamos diariamente, com a Escritura como nossa garantia, que Deus é justo, e na medida em que Ele é justo, deve castigar o pecado e premiar o justo. Manifestadamente Ele não o faz nesse mundo, e um mesmo evento ocorre a ambos: o homem justo é pobre igual que o mal, e morre repentinamente igual que o maior répobro. Muito bem, então, a conclusão é natural e clara, que deve existir um mundo contínuo em que essas coisas serão endireitadas.

Se há um Deus, Ele deve ser justo; e se Ele é justo, Ele deve castigar o pecado; e já que não o faz nesse mundo, deve existir outro estado em que os homens receberão a recompensa de suas obras – e os que semearem para a carne, da carne colherão corrupção, enquanto os que semearem para o Espírito, do Espírito colherão vida eterna. Se fizerem desse mundo o lugar de colheita, vocês terão tirado o aguilhão do pecado.

“Oh,” diz o pecador, “se as aflições que o homem suporta aqui é todo o castigo que terão, vamos pecar com voracidade.” Você responda-lhe: “não – esse não é o mundo do castigo, mas sim o mundo de prova – não é a corte da justiça, mas sim a terra de misericórdia; não é a prisão de terror, mas a casa de paciência;” e lhe terá aberto diante de seus olhos as portas do futuro; terá posto o trono do juízo diante de seus olhos; lhe recordou: “Vinde, benditos,” e “Apartai-vos de mim, malditos;” e assim possui um fundamento mais a razoável e consequentemente mais Bíblico para apelar às suas consciências e corações.

Falei com a intenção de sufocar, na medida do possível, a ideia que está muito propagada entre os ímpios, que nós como cristãos sustentamos que cada calamidade é um juízo divino. Não é assim; nós não pensamos que aqueles dezoito sobre os quais caiu a torre de Siloé eram mais culpados que todos os homens que habitavam em Jerusalém.

II. Agora passamos a nosso segundo ponto. QUE USO, ENTÃO, DEVEMOS FAZER DESSA VOZ DE DEUS QUE É OUVIDA EM MEIO DOS AGUDOS GRITOS E GEMIDOS DOS MORIBUNDOS? Dois usos; primeiro, perguntas, e segundo, uma advertência.

A primeira pergunta que devemos fazer é a seguinte: “Por que não pode acontecer comigo que muito prontamente e inesperadamente eu seja cortado? Tenho eu um contrato de aluguel da minha vida? Tenho algum amparo especial que me garanta que não atravessarei inesperadamente os portais da sepultura? Recebi um título de privilégio de longevidade? Fui coberto com uma armadura tal que sou invulnerável às flechas da morte? Por que não irei eu mesmo morrer?”

A segunda pergunta que deve sugerir é essa: “Não sou um grande pecador como esses que morreram? Não há em mim, sim, em mim mesmo, pecados contra o Senhor meu Deus? Se em pecados visíveis outros me superaram, acaso os pensamentos de meu coração não são malvados? Porventura a mesma lei que os amaldiçoa não amaldiçoa a mim também? Não perseverei em todas as coisas escritas no livro da Lei para que as cumprissem. É tão impossível que eu seja salvo por minhas obras como que eles o sejam. Não estou debaixo da lei, por natureza como eles estão, e pela mesma não estou eu também debaixo de maldição, como eles o estão? Essa pergunta deve ser feita. Em vez de pensar em seus pecados, o que me converteria um orgulhoso, devo pensar em meus próprios pecados, o que me converterá humilde. Em lugar de especular sua culpa, que é assunto que não é de minha responsabilidade, devo voltar meus olhos até meu interior, e considerar minha própria transgressãopela qual devo responder pessoalmente diante do Deus Altíssimo.”

Logo, a seguinte pergunta é: “eu me arrependi de meu pecado? Eu não preciso ficar investigando se eles se arrependeram ou não: eu me arrependi? Posto que eu esteja exposto à mesma calamidade, estou preparado para enfrentá-la? Senti, por meio do poder do convencimento do Espírito Santo, a negridão e a depravação de meu coração? Tenho sido guiado a confessar diante de Deus que eu mereço a Sua ira, e que Seu desagrado, se ele pousar sobre mim, será um justo pago? Odeio o pecado: Aprendi a aborrecê-lo? Apartei-me do pecado, por meio do Espírito Santo, como de um veneno mortal, e busco agora honrar a Cristo meu Senhor: Fui lavado em seu sangue: Reflito sua semelhança? Mostro Seu caráter? Busco viver para Seu louvor? Pois, se não é assim, estou em grave perigo como eles estavam, e posso ser cortado tão depressa e repentinamente, e logo, onde estou? Eu não irei perguntar onde eles estão? E logo, de novo, em vez de estar espiando no futuro destino desses infelizes homens e mulheres, quanto melhor seria nos perguntar sobre nosso destino e de nossa própria situação! –

O que eu sou? minha alma, desperta

E faz uma analise imparcial.”

Estou preparado para morrer? Se as portas do inferno abrem-se agora, eu entraria ali? Se debaixo de mim se abrirem as bocas da morte, estou preparado com confiança para atravessá-las, não temendo o mal, porque Deus está comigo?” Esse é o uso correto que podemos fazer desses acidentes; essa é a maneira mais sábia de aplicar os juízos de Deus a nós mesmos e a nossa própria condição.

Ó senhores, Deus tem falado a cada homem em Londres durante as últimas duas semanas; Ele falou para mim, Ele falou para vocês, homens, mulheres e crianças. A voz de Deus há soado desde o escuro túnel Clayton: falou desde o poente do sol e da deslumbrante fogueira em redor da qual jazem os cadáveres de homens e mulheres, e Ele lhes disse, “Portanto, estai vós também apercebidos; porque virá o Filho do homem à hora que não imaginais. (Lucas 12:40)” Isso está tão dirigido a vocês, que eu espero que os levem a perguntarem-se: “Estou preparado, estou pronto? Estou disposto a enfrentar a meu Juiz e escutar a sentença pronunciada sobre minha alma?”

Quando tenhamos usado a voz de Deus para nos inquirirmos dessa maneira, permitam-me lembrar-lhes que devemos usá-la também como uma advertência. “Todos de igualmente perecereis.” “Não,” dirá alguém, “não igualmente. Não todos seremos esmagados; muitos de nós morreremos em nossas camas. Não todos morreremos queimados; muito de nós fecharemos tranquilamente nossos olhos.” Ai! Porem, o texto diz “todos de igual modo perecereis.” E deixem-me lembrar-lhes que alguns de vocês podem perecer de uma maneira idêntica. Não possuem nenhuma razão para crer que vocês não podem ser cortados inesperadamente, enquanto caminhem pelas ruas. Podem cair mortos enquanto comem; quantos não têm perecido com o cajado da vida em suas mãos! Estarão em sua cama, e sua cama subitamente se converterá em sua tumba. Vocês poderão ser fortes, sãos, robustos e, quer seja por acidente, ou porque a circulação do sangue se detém, serão rapidamente levados diante de seu Deus. Ó, que a morte inesperada seja para vocês glória súbita!

Porem, pode ocorrer a algum de nós que, da mesma maneira surpreendente em que outros morrerem, morreremos assim também. Faz só um pouco de tempo, nos Estados Unidos, um irmão, enquanto pregava a Palavra, entregou seu corpo e seu cargo simultâneamente. Vocês lembram da morte do Dr. Beaumont, quem, enquanto proclamava o Evangelho de Cristo, fechou seus olhos ao mundo. E eu recordo a morte de um ministro nesse pais, que acabava de pronunciar esse verso –

“Pai, eu anelo, eu anseio ver

O lugar de Tua habitação;

Eu quero deixar teus átrios terrenos e fugir

Até Tua casa, meu Deus”

E então agradou a Deus conceder-lhe o desejo de seu coração, e apareceu diante do Rei em Sua beleza. Não poderia uma morte imprevista como essa suceder a vocês e a mim mesmo?

Porem, é muito certo que, quer venha a morte de maneira que venha, existem alguns quantos aspectos na que virá aos justos da mesma maneira como veio aos que sofreram esses acidentes. Em primeiro lugar, virá, com toda certeza. Eles não teriam tido possibilidade de escapar do perseguidor, não importa qual rápido viajassem. Eles não teriam tido a chance de escapar da seta, não importando a que lugar houvessem ido, escondendo-se de casa em casa, quando seu tempo lhes chegou. E nós pereceremos assim.

Com a mesma certeza, tão certo como a morte colocou seu selo sobre os cadáveres que agora estão cobertos de terra, com a mesma certeza porá seu selo sobre nós (a menos que o Senhor venha antes), pois “aos homens está ordenado morrerem uma vez, vindo depois disso o juízo (Hebreus 9:27)” Não existe exoneração nesse caminho; não existe escape por nenhum atalho para nenhum indivíduo; não existe nenhuma ponte sobre o rio; não há nenhum barco em que possamos passar esse Jordão sem molharmos nossos pés.

Para suas geladas profundidades, ó rio, cada um de nós deve descer – em sua fria corrente nosso sangue deve congelar-se – e debaixo de suas espumosas ondas nossa cabeça deve submergir! Nós também devemos morrer com certeza. “Trilhado” você diz, “e cheio de lugares comuns;” e a morte é um lugar comum, mas que só nos ocorre uma vez. Que Deus nos conceda que essa única vez que morreremos possa estar perpétuamente em nossas mentes, até que morramos diariamente, e assim não nos resulte ser um trabalho difícil morrer ao final.

Bem, então, como a morte chega a eles e a nós com certeza, assim virá tanto a eles como a nós poderosa e irresistivelmente. Quando a morte os surpreendeu, que ajuda tiveram então? Um casebre de papelão de uma criança não poderia ser tão facilmente esmagado que esses pesados vagões? O que podiam fazer para ajudarem uns aos outros? Eles iam sentados uns juntos a outros, conversando. Escutou-se um grito, e antes que houvessem gritado segunda vez, foram esmagados e destroçados. O esposo trata de resgatar dos escombros sua esposa, porem as pesadas tábuas de madeira cobriram seu corpo; ao fim só pode encontrar sua pobre cabeça, e ela está morta, e ele senta-se junto a ela embargado pela tristeza, e coloca sua mão em seu rosto, até que se torna frio como uma pedra; e ainda que tenha visto a um e outro que tenha sido resgatado com os ossos quebrados ao meio da massa de escombros, ele têm que deixar o corpo de sua esposa ali.

Ai! Seus filhos ficaram sem mãe, e ele perdeu a companheira de seu coração. Eles não puderam resistir; eles poderiam fazer o que quisessem, porem, tão logo chegou o momento, seguiram adiante, e o resultado foi a morte e ossos quebrados. O mesmo sucederá com vocês e comigo – vocês podem subornar o médico com os honorários mais altos, porem, ele não poderia colocar sangue fresco em suas veias[6] – vocês podem pagar-lhe grandes quantidades de ouro, mas ele não poderia conseguir que o pulso desse outro bramido. Oh, Morte, irresistível conquistadora dos homens, não há ninguém que possa prevalecer contra ti; sua palavra é lei, sua vontade é destino! Assim virá a nós como chegou a eles; virá com poder, e nenhum de nós poderá resistir a ela.

Quando a morte chegou-lhes, veio instantaneamente, sem aceitar demoras. Assim virá a nós. Poderíamos ter um aviso mais antecipado do que eles, porem quando chegue a hora, não haverá forma de adiá-la. Encolha seus pés na cama, ó, patriarca, pois deve morrer e não vai viver! Dá o último beijo em sua esposa, veterano soldado da cruz; coloca suas mãos sobre a cabeça de seus filhos, e dá-lhes a benção do moribundo, pois todas suas orações não podem alargar sua vida, e todas as lágrimas não podem agregar nem uma só gota ao poço seco de seu ser.

Você deve ir, o Senhor demanda por você, e Ele não suporta atrasos. Não, ainda que sua família esteja disposta a sacrificar suas vidas para lhe comprar uma hora de trégua, isso não pode ser. Ainda que uma nação seja entregue em holocausto, um sacrifício voluntário, para dar a seu soberano outra semana adicional a seu reino, não se pode conseguir tal coisa. Ainda que a congregação inteira consinta voluntariamente em recorrer as escuras abóbadas da tumba para salvar a vida de seu pastor, por mais outro ano, não se pode alcançar esse intento. A morte não aceita atraso – e o tempo chegou, e o relógio soou, a areia da ampulheta consumiu-se, e tão certamente como eles morreram quando chegou-lhes seu tempo, no campo, inesperadamente, assim certamente nós devemos morrer.

Logo, novamente, recordemos que a morte chegará a nós como chegou a eles, com terrores. Não com o estrondo de madeiras quebradas, talvez, nem com a escuridão de um túnel, não com o vapor e a fumaça, não com os gritos das mulheres e os gemidos dos moribundos, mas, no entanto, com terrores. Pois se encontrar com a morte, onde quer que seja, se não estamos em Cristo, e se a vara e o cajado do pastor não nos infundem alento, deve ser uma coisa terrível e tremenda.

Sim pecador, com suaves almofadas debaixo de sua cabeça, e o terno braço de sua esposa para o sustentar e uma doce mão para limpar seu frio suor, em seu corpo encontrará que é um terrível trabalho enfrentar o monstro e sentir seu aguilhão, e entrar em seus espantosos domínios. É um terrível trabalho em qualquer instante, mesmo sob as melhores e mais propícias circunstâncias, que um homem morra sem estar preparado.

E agora, eu desejaria enviar-lhes de volta para casa com um pensamento que fique gravado em sua memória: nós somos criaturas moribundas, não criaturas viventes, e logo teremos ido embora. Talvez, estando eu de pé aqui, e falando rudemente dessas coisas misteriosas, logo essa mão se estendera e cerrará minha boca que balbucia com tão gaguejante esforço; o poder supremo, o Rei eterno, venha quando queiras, oh! Porem, nunca venha em uma hora desperdiçada – que me encontre em elevada meditação, cantando hinos a meu grandioso Criador: fazendo obras de misericórdia aos pobres e aos necessitados, ou carregando em meus braços aos pobres e necessitados do rebanho; ou consolando o desconsolado, ou tocando o sonido da trombeta do Evangelho aos ouvidos das almas surdas que estão perecendo.

Então, vem quando Tu queiras; se Tu estás comigo em vida, não temeria encontrar a Ti na morte: mas, ó, que minha alma esteja preparada com seu vestido de bodas, com sua lâmpada preparada e sua luz acesa, pronta para ver a seu Senhor e entrar no gozo de seu Deus!

Almas, vocês conhecem o caminho de salvação; o escutaram frequentemente, porem, ouçam de novo: “O que crê no Senhor Jesus, têm a vida eterna.” “O que crer e for batizado, será salvo; mas o que não crer, será condenado.” “Crê em teu coração e confessa com sua boca.” Que o Espírito Santo lhes dê graça para fazer ambas as coisas, e tendo feito, possam dizer –

“Vêm, morte, com uma congregação celeste,

Para levar a minha alma.”

 

NOTA: Davi Livingstone, o famoso explorador e missionário, levou em seu bolso uma cópia desse sermão, em suas viagens por toda a África. Ele tinha escrito na margem superior da impressão desse sermão o comentário: “Muito bom. D.L” Quando da morte do missionário, essa mesma cópia foi entregue ao próprio Spurgeon, que a guardou durante toda sua vida como um tesouro. Hoje em dia, essa cópia pode ser vista exposta no Spurgeon’s College, em Londres.

ORE PARA QUE O ESPIRITO SANTO USE ESSE SERMÃO PARA TRAZER UM CONHECIMENTO SALVÍFICO DE JESUS CRISTO E PARA EDIFICAÇÃO DA IGREJA

FONTE:

Traduzido de http://www.spurgeon.com.mx/sermon408.html

Todo direito de tradução protegido por lei internacional de domínio público e com autorização de Allan Roman.

Sermão nº 408—Volume 7 do Metropolitan Tabernacle Pulpit

ORIGINAL: Accidents, Not Punishments

Tradução: Armando Marcos Pinto

(Fonte)

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As gêneses do Gênesis

Apreciação da estrutura e da teologia do primeiro livro do cânon veterotestamentário

I.    Introdução
Gênesis (palavra grega que significa origem) é o nome dado pelos tradutores da Septuaginta (versão grega do Antigo Testamento, conhecida como LXX) ao primeiro livro da Bíblia.  Na Bíblia Hebraica, o livro de Gênesis (que está nessa mesma ordem, sendo o primeiro – o que não acontece com outros como Malaquias, por exemplo, que não é o último como nas nossas Bíblias) recebe como título a primeira palavra do livro: “No princípio” (bereshith).  Nele, temos o relato da origem do Universo e do ser humano, da obra criativa de Deus, da drástica queda do homem, contendo biografias que tecem a origem do povo de Deus.

Gênesis possui uma extensão histórica que começa com a criação do Universo e do homem e termina com a morte de José, filho de Jacó.  Geograficamente, o livro abrange desde o vale da Mesopotâmia, o “berço” da raça humana, até o vale do Nilo no Egito, o “berço” da raça hebraica.  Essa área, com uma configuração crescente, é conhecida e chamada de “Crescente Fértil”.

O fato mais antigo do Gênesis, a criação, conforme cálculo feito pelo rabino José ben Halafta em cerca de 125 d.C., é remontado ao ano 3.760 a.C. (Louis Finkelstein, “The Jews” – Os Judeus – Vol II, p. 1786).  Porém, o Arcebispo James Ussher, data a criação em 4.004 a.C. Já mais recentemente, Stanley A. Ellisen estruturou a cronologia de Gênesis a partir de 4.173 a.C. Tal variedade de sistemas cronológicos deve-se a questões exegéticas, das quais não temos tempo para tratar aqui e nem seriam relevantes para nossa reflexão.

II.    Estrutura de Gênesis
O material literário de Gênesis está acomodado em dez partes ou seções, que são introduzidas pela palavra hebraica tôledôt, traduzida como “história das origens” ou “descendentes” ou “gênese” ou “genealogia” etc. Com exceção do primeiro relato, que é o das “origens do céu e da terra”, os outros nove levam o nome das pessoas, contando suas histórias subseqüentes, sem se preocupar necessariamente com a origem das mesmas.  Derek Kidner diz que essa expressão em Gênesis sempre visa o futuro, introduzindo um novo estágio do livro.  Contudo, P.J. Wiseman argumenta que é sempre uma conclusão.  Não se deve ser tão rígido nesta questão, pois tôledôt pode ser aplicável em Gênesis tanto ao passado (parece ser o caso de 2.4) quanto ao futuro (parece provocar menos anomalia nos outros nove casos).

Trata-se de pequenas histórias, que às vezes se estendem em função de detalhes como no caso da de Jacó expressa em José que ocupa desde o capítulo 37 até o 50.  Essas histórias são de pessoas que fazem parte de famílias que, num dado momento histórico, obtém a atenção do relato revestindo-se de importância no meio em que estão vivendo por estarem também inseridas no programa histórico da aliança divina.  No entanto, essa diversidade de relatos não deve ofuscar nossa visão com respeito à unidade do livro. Observar essa estrutura com base no tôledôt é útil para a correta interpretação do Gênesis, pois revela o “desenho do texto”, mas não se deve desprezar o todo composto por essas partes.  Portanto, vamos a elas:

1. A Gênese dos céus e da terra:
A expressão aparece a em 2.4 e o relato vai até 4.26.  Se partirmos do pressuposto de que tôledôt pode ser flexível entre introdução e conclusão, essa parte começa em 1.1.  Essa porção narrativa descreve a criação do Universo em seis dias, a formação do homem e, posteriormente, da mulher.  O capítulo 3 revela como o mal, na figura da serpente sagaz, entrou na criação de Deus e tentou o homem a se rebelar contra a vontade do Criador.  O capítulo 4 demonstra como a maldade se espalhou rapidamente a ponto de Caim e Abel, os dois irmãos filhos de Adão e Eva, travarem um conflito que culminou com o assassinato de Abel. Não se deve deixar de notar que essa parte termina informando que “nessa época começou-se a invocar o nome do Senhor” (4.26 – conforme tradução da NVI).

2.  A Gênese de Adão:
Essa parte vai desde 5.1 (introduzido com a expressão tôledôt) até 6.8, traçando as gerações desde Adão até Noé.  Um tema notável desse relato é a “morte”, pois todos os homens aqui nomeados morreram, com exceção de um que “andou com Deus”: Enoque (5.22-24).  O desfecho do relato registra a corrupção na qual gradativamente os descendentes de Sete se envolveram.  É a maldade inicial que continua a se expandir. O mal incipiente foi encontrando recipiente favorável para se proliferar. Todavia, em 6.8, Noé é apontado como um que achou graça diante de Deus!

3.    A Gênese de Noé:
Começando em 6.9 (tôledôt) até 9.29, esse relato nos dá uma dupla e surpreendente mensagem concernente à justiça e a graça de Deus.  Fora da Arca o dilúvio destruía toda vida, mas dentro da Arca uma família era preservada, porque “Noé andava com Deus” (6.9).  O mesmo dilúvio universal, que trouxe o juízo divino sobre o pecado e a dura incredulidade, revelou também a graça de Deus ao salvar da morte e da destruição a Arca com sua carga preciosa: um homem, acompanhado de sua família, que alcançou graça diante de Deus.

4.    A Gênese dos filhos de Noé:
Com início em 10.1 (tôledôt) e se estendendo até 11.19, descreve a distribuição dos três filhos de Noé em várias nações e idiomas.  Este quadro examina o mundo das nações que foram conhecidas do antigo Israel. Aquelas nações que o povo escolhido de Deus teve maior contato são descritas com detalhes.  Concluindo esse relato, aparece a dispersão em Babel demonstrando que aqueles que buscaram sua própria glória em lugar de glorificar o nome de Iahweh (Javé) caíram outra vez no juízo de Deus.

5.    A Gênese de Sem:
Esse curto relato que vai de 11.10 (tôledôt) ao verso 26, traz a genealogia de Sem a Terá, pai de Abrão.  Sua importância está fora dele mesmo e se dá ao apontar para a origem do pai de Abrão e fazer a ligação deste com Sem e, conseqüentemente, com Noé e sua ascendência. Abrão será uma figura importante no relato seguinte de Gênesis e colocá-lo em “cena” sem revelar seu “berço” seria a criação de um hiato na história dos patriarcas.

6.    A Gênese de Terá:
Constitui um dos maiores relatos, ocupando o espaço entre 11.27 (tôledôt) e 25.11, cobrindo quase um quarto do livro de Gênesis.  Registra a história da escolha de Abrão e da promessa feita a ele de que seria uma grande nação.  Abraão é desafiado a confiar completamente na promessa de Deus, mas concorda com Sara, sua esposa, e tem um filho com Hagar – a quem chama Ismael – por causa da aparente demora de Deus em cumprir sua promessa. Dentro desse relato há a descrição do nascimento de Isaque e da prova a qual Deus submeteu Abraão, pedindo-lhe que lhe oferecesse seu filho em sacrifício (Gn 22).  O relato encerra-se com a morte do agora chamado “Abraão” demonstrando que, após sua morte, a promessa da benção é passada ao seu filho Isaque (25.11).

7.    A Gênese de Ismael:
Um curto relato de 25.12 (tôledôt) a 25.18; na verdade, o mais curto dos dez relatos.  O verso 12 deixa claro que este filho de Abraão é com Hagar “a serva egípcia de Sara”.  Trata-se de uma linha secundária na história da graça salvadora de Iahweh.  Esses sete versículos documentam como Deus cumpriu a sua promessa de que multiplicaria a descendência de Ismael (cf. 16.10).

8.    A Gênese de Isaque:
Razoavelmente extenso esse relato, que se inicia em 25.19 (tôledôt) e se estende até 35.19, apresenta as gerações que se seguiram a Abraão, através da família de Isaque.  Diferente de seu ilustre pai, Isaque foi de uma natureza tranqüila e introvertida e sua esposa, Rebeca, embora estéril fora agraciada com filhos gêmeos: Esaú e Jacó.  Desde antes do nascimento, o relato aponta para um conflito existente entre eles.  No desenrolar da história (de uma forma intrigante e atraente), Jacó – que seria o mais novo, pois nascera minutos após Esaú – obtém o direito de primogenitura e a benção de Isaque, tendo seu nome trocado para Israel.

9.    Gênese de Esaú:
Esse relato que começa em 36.1 (tôledôt) e se encerra em 37.1, concentra sua atenção nos descendentes de Esaú e, aparentemente, quer justificar a existência de Edom ao revelar a origem deste povo vizinho de Israel, que reaparecerá em outras partes da literatura do Antigo Testamento.

10.    Gênese de Jacó:
Este é o último e o maior de todos os relatos.  Começa em 37.2 (tôledôt) e vai até o último versículo de Gênesis em 50.26.  A história é de Jacó, mas quem ocupa boa parte da cena (quase toda!) é José, um de seus doze filhos.  Este é o registro da forma misteriosa como Deus usou a maldade dos irmãos de José para levar adiante seu plano para a nação que havia escolhido e que paulatinamente vai surgindo no cenário da história.  Aqui se tem a explicação de como o povo de Deus se estabeleceu no Egito e arma o cenário para o livro do Êxodo.

III.    Teologia do Gênesis
Em Gênesis encontramos material suficiente para discorrer acerca de vários pontos da teologia sistematizada.  No entanto, analisemos aqui as contribuições de Gênesis para a Teologia Própria – Deus, a Antropologia – o homem e a Soteriologia – a salvação.

1.    Teologia Própria
O Livro do Gênesis começa apresentando Deus sem, contudo, justificar sua origem ou existência.  Em Gênesis, Deus existe e o que não existe Ele vai criar!  O Livro não se propõe a responder todas as perguntas humanas acerca do Criador, mas O revela como pessoal, enfatizando o persistente interesse de Deus por relações pessoais com os seus servos.  Ele é único, Criador e Senhor Soberano sobre tudo o que existe.  Em Gênesis a questão de outras divindades não aparece, exceto no episódio de Labão (31.19,30,34; 35.4) onde há breves menções à ídolos ou deuses. Ele é responsável pelas “macro-ações”, como a criação de todas as coisas e o surgimento dos povos, mas também pelas “micro-ações” como a concepção de uma criança ou a chamada de um seguidor.  Deus é o regente capaz de pôr em ordem as situações mais intratáveis (cf. 45.5-8), sendo juiz amoroso cujos juízos são suavizados pela misericórdia (hesed) (cf. 3.21; 4.15; 6.8; 18.32, 19.16,21) e, às vezes, tarda para sobrevir (cf. 15.16).  Sua justiça contém amor e seu amor inclui exigência e excelência morais.  Em Gênesis, Deus é sempre Aquele que se dá, em alguma medida.  Neste livro, Ele é conhecido por muitos nomes: Iahweh; Elohim; El.  Alguns são títulos que exprimem facetas de seu ser como Altíssimo (14.18-22), Todo-poderoso (17.1), etc. Outros comemoram um momento especial de encontro, como Deus que vê (16.13), Deus de Israel (33.20), Deus de Betel (35.7).  Ainda outros declaram uma idéia de relação como Deus de Abraão (28.13); Temor de Isaque (31.42, 53), Poderoso de Jacó (49.24).

2.    Antropologia:
Gênesis apresenta a formação do homem, sua vocação, sua queda e sua situação em conseqüência da queda.  Na literatura de Gênesis o homem é um ser social que vive dentro de certo padrão de responsabilidade, isto é: na dimensão das coisas – onde seu dever é cultivar e guardar seu meio ambiente imediato e dominar e encher a terra; na dimensão das pessoas – onde o companheirismo é visto como uma necessidade primária do homem e alvo da atenção de Deus ao prover companhia complementar para o homem, bem como demonstrar as relações familiares ameaçadas por tensões motivadas pelo egoísmo e inveja; e na dimensão da autoridade – onde a responsabilidade de governar confiada ao homem tem por finalidade a ordem e o bom andamento de todas as coisas.

3.    Soteriologia:
Gênesis aponta a graça que, longe de ser mera resposta ao pecado, é fundamental para a própria criação.  A entrada do pecado põe em cena muitos aspectos da graça, ao revelar os meios e os modos que Deus se utilizou para preservar a humanidade e levar certos homens a entrarem em aliança com Ele, por meio dos quais abençoaria finalmente o mundo todo (cf. 18.18).  Deus, em Gênesis, restringe a corrupção e a anarquia produzidas pelo pecado, como no caso do dilúvio, da Torre de Babel e na decadência de Sodoma.  Num livro considerado tão antigo e com características primitivas, a obra salvadora de Deus não é menos completa nem menos variada.  É Ele, e não o homem, quem busca.  Aquela expressão pós queda “Adão, onde estás” (3.9) ecoa por todo o livro.  A salvação é muito mais que simples aceitação, é uma intimidade com o céu, de matizes tão variados como os personagens que a desfrutam; uma relação assumida e firmada numa aliança, na qual Deus prometia ser o Deus da descendência deles.

IV.    A Relevância de Gênesis para o Corpo Literário Neo e Veterotestamentário
O relato de Gênesis é de extrema relevância para a compreensão do Antigo e Novo Testamentos.  Há contribuições singulares como as que se seguem:

1. A apresentação de Deus como Soberano:
Deus é o criador e nada revela sobre sua origem ou passado, apenas surge da eternidade misteriosa para iniciar a sua obra de criação. A soberania de Deus é uma grande tônica no livro.

2.    Um registro específico das Origens:
Embora se tenha encontrado documentos antigos com vagos relatos sobre a criação do homem, nenhum deles, remotamente, pode ser comparado ao registro simples, específico e majestoso do Gênesis.   Sem esse registro não teríamos uma visão objetiva de como o mundo começou, de como as várias formas de vida tiveram seu início, da verdadeira origem do homem, de como entrou o pecado na história da humanidade, de como as várias raças foram formadas e por que os idiomas são variados.

3.    O Pecado original:
Gênesis demonstra claramente que Deus não criou o pecado e o mal, e o pecado não ficou inativo nem permaneceu apenas como um defeito de menor importância.  O livro descreve como o pecado foi se multiplicando e o resultado descrito em 6.11-12 é demonstrado em vidas e famílias no decorrer do relato (cf. 19.31-36 – as filhas de Ló).

4.    Julgamentos sobrenaturais:
A revelação de Deus como justo juiz em Gênesis é indiscutivelmente relevante para as Teologias veterotestamentária e neotestamentária.Os vários julgamentos, como a maldição após a queda, o dilúvio, a confusão de idiomas em Babel, a destruição de Sodoma e Gomorra, retratam a intolerância de Deus para com o pecado e a rebelião.

5.    O proto-evangelho:
A promessa divina de redenção descrita em 3.15 é uma descrição resumida do plano divino para resgatar a humanidade.  Isso é plenamente compreendido no Novo Testamento, onde entendemos que a vinda de Jesus não é um “arranjo” divino para uma situação que fugiu do seu controle, mas o cumprimento de promessas tão primevas quanto a criação do próprio homem.

6.    O conceito de Aliança:
A Chamada aliança Abraâmica é a base de todo o programa divino para a humanidade e reportam-se a ela vários autores da literatura canônica. Traria sérias dificuldades à exegese das outras alianças descritas nos relatos bíblicos se houvesse a inexistência do relato desta aliança.

7.    Cristologia:
Ainda que veladas à mente secular, há referências cristológicas sutis no relato do Gênesis.  A referência ao descendente da mulher (3.15), a semente de Abraão (12.3) e a um “Leão” da tribo de Judá (49.9-10) apontam para o Jesus do Novo Testamento, além das referências ao Anjo do Senhor que precisam ser intensamente estudadas e analisadas para ser corretamente identificadas como manifestações de Deus na terra, o que confirmaria o Jesus pré-existente (ou pré-encarnado).

Assim sendo, Gênesis constitui-se de suma importância para o estudo das Escrituras Sagradas em função de suas informações cósmicas, étnicas, históricas, religiosas e proféticas.

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Referências Bibliográficas:
ELLISEN, Stanley A. “Conheça Melhor o Antigo Testamento” – Editora Vida, São Paulo.SP, 1991. 371p.
JESKE, John C. “Gênesis” – Editorial Northwestern, Milwaukee, Wisconsin USA, 1996. 402 p.
KIDNER, Derek “Gênesis: Introdução e Comentário” – Edições Vida Nova e Mundo Cristão, São Paulo.SP, 1991. 208p.
RAD, Gerhard Von. “Gênesis: A Commentary” – SCM Press LTD. USA, 1972. 440 p.
SCHMIDT, Werner H. “Introdução ao Antigo Testamento” – Editora Sinodal, São Leopoldo.RS, 1994. 395p.

(Fonte)

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A tragédia de Santa Maria (Solano Portela)

A tragédia de Santa Maria está na mente de todos os brasileiros. Mais de 230 mortes – a maioria de jovens, deixando centenas de famílias enlutadas, como consequência do terrível incêndio. O que era uma noite de diversão transformou-se em um rio de lágrimas que transborda por todo o país. Mais uma vez, as últimas viradas de anos têm sido marcada por tragédias. Em janeiro de 2011, avalanches de terra e enchentes ceifaram centenas de vidas, na região serrana do Rio. Em 2008/2009 foram inundações e deslizamentos assoladores em Santa Catarina. Na transição 2009/2010 tivemos também mortes e prejuízos causados pelas águas, no sudeste do Brasil. Naquela ocasião escrevíamos, também, sobre o terremoto no Haiti e choramos com o conseqüente sofrimento chocante e intenso daquele evento que dizimou cerca de 200 mil pessoas. Três anos depois, aquele povo ainda geme com a orfandade, dissolução social, promessas não cumpridas pela “comunidade internacional” e com a extrema e endêmica corrução arraigada naquela terra. Isso porque ainda não nos saiu da memória o Tsunami de 26.12.2004, no Oceano Índico, quando pereceram cerca de 220 mil pessoas, situação recentemente lembrada no filme “O Impossível”.
Enquanto vemos as cenas de dor e tristeza, e avaliamos tudo isso, somos levados às Escrituras para procurar alguma compreensão trazida pelo próprio Deus, para esses desastres. É no meio dessas circunstâncias que decidimos recolocar aqui alguns pensamentos que já foram expressos neste Blog em posts anteriores.
Na ocorrência de tragédias devemos resistir à tentação de procurar respostas que diminuem a bíblica soberania e majestade de Deus, e conseqüentemente não fazem justiça à sua pessoa, ou aquelas que nos colocam com Deus – pontificando um julgamento divino sobre a situação imediata da ocorrência. Tais “explicações”, “conclusões” e “construções” aparentam ser plausíveis, mas revelam-se meramente humanas, pois contrariam a revelação das Escrituras. Esses tipos de respostas sempre aparecem, quando ocorrem desastres; quando diversas vidas são ceifadas e pessoas que estavam entre nós desaparecem, de uma hora para outra. Interpretações estranhas dessas circunstâncias não são novidade e nem têm surgido apenas em nossos dias.
Por exemplo, em novembro de 1755 a cidade de Lisboa foi praticamente arrasada por um grande terremoto. A conclusão emitida por padres jesuítas foi a de que: “Deus julgou e condenou Lisboa, como outrora fizera com Sodoma”. Voltaire (François Marie Arouet), que era um deísta, escreveu em 1756 “Poemas sobre o desastre em Lisboa”. Ali, ele culpa a natureza e a chama de malévola, deixando no ar questionamentos sobre a benevolência de Deus. Jean Jacques Rousseau, respondeu com “Carta sobre a providência”. Nela ele culpa “o homem” como responsável pela tragédia. Ele aponta que, em Lisboa, existiam “20 mil casas de seis ou sete andares” e que o homem “deveria ter construído elas menores e mais dispersas”. Ou seja, procurando “inocentar a Deus e a natureza” ele coloca a agência da tragédia no desatino dos homens, de maneira bem semelhante à que os especialistas contemporâneos e comentaristas da mídia adoram fazer.[1]
Quando do terremoto no Haiti, à semelhança do que ocorreu no Tsunami, alguns depoimentos de pastores, que li, falavam sobre a “mão pesada de Deus, em julgamento”; opinião semelhante à emitida quando do acidente com o avião que transportava o grupo “Mamonas Assassinas”, em 1996. No entanto, nenhuma pessoa tem essa capacidade de julgamento, que reflete apenas orgulho e prepotência.
 Mas outros procuram uma teologia estranha às Escrituras, para “isolar” Deus da regência da história. São os mesmos que, quando da ocorrência do Tsunami e do acidente ocorrido com o Vôo 447 da Air France em junho de 2009, emitiram a seguinte conclusão: “Diante de uma tragédia dessa magnitude, precisamos repensar alguns conceitos teológicos” (veja as excelentes reflexões sobre esse último desastre, no post do Augustus Nicodemus, neste mesmo blog). No entanto, em vez de formularmos nossa teologia pelas experiências, voltemo-nos ao ensinamento do próprio Jesus.
Graças a Deus que temos, em Lucas 13.1-9, instrução pertinente sobre como refletir sobre desastres e tragédias. A primeira tragédia tratada é aquela gerada por homens (Vs 1-3). Certos galileus haviam sido mortos por soldados de Pilatos. A Bíblia diz que “alguns” colocaram-se como críticos e juízes (a resposta de Jesus infere isso); deduziram que aqueles que haviam sofrido violência humana, sangue derramado por armas (um paralelo às situações que vivemos nos nossos dias) seriam mais pecadores do que os demais. No entanto, o ensino ministrado pelas Escrituras é o seguinte: Não vamos nos colocar no lugar de Deus. Não vamos nos concentrar em um possível juízo ou julgamento sobre as vítimas. Jesus, em essência diz: cuidem de si mesmos! Constatem os seus pecados! Arrependam-se!
Mas ele nos traz, também, um segundo tipo de tragédias. Esta que é referida é semelhante, guardadas as proporções, a essas enchentes e deslizamentos, ou ao terremoto do Haiti. São tragédias classificadas como “fatalidades”. Jesus fala da Torre de Siloé. O texto (Vs 4-5) diz que ela desabou, deixando 18 mortos. Jesus sabia que mesmo quando, aos nossos olhos, mortes ocorrem como conseqüência de acidentes, isso não impede que rapidamente exerçamos julgamento; não impede que tentemos nos colocar no lugar de Deus. E Jesus pergunta, sobre os que pereceram: “Acham que eram mais culpados do que todos os demais habitantes da cidade”? O ensino é idêntico: Não se coloquem no lugar de Deus; não se concentrem em um possível juízo ou julgamento sobre as vítimas; cuidem de si mesmos! Constatem a sua culpa! Arrependam-se!
O surpreendente é que Jesus passa a ilustrar o seu ensino com uma parábola (Vs.6-9). Ele fala de uma figueira sem fruto. Aparentemente, a parábola não teria relação com as observações prévias, mas, na realidade, tem. Ela nos ensina que vivemos todos em “tempo emprestado” pela misericórdia divina. O texto nos ensina que:
• Figueiras existem para dar frutos – o homem vinha procurar frutos – essa era sua expectativa natural. Todos nós fomos criados para reconhecer a Deus e dar frutos. Esse é o nosso propósito original.
• Figueiras sem frutos “ocupam inutilmente a terra”. O corte é iminente, e justificado a qualquer momento.
• O escape: É feito um apelo para que se espere um pouco mais, na esperança de que, bem cuidada e adubada, a figueira venha a dar fruto e escape do corte.
• Lições para o vizinho? Jesus não apresenta a figueira como um paralelo para fazermos uma comparação com outras pessoas – cujas existências foram ceifadas como vítimas de violência ou fatalidades. Ele quer que nos concentremos em nós mesmos, em nossas próprias vidas, pecados e na necessidade de arrependimento.
• Tempo emprestado: O que ele está ensinando e ilustrando, aqui, é que nós, você e eu, como os habitantes de Santa Maria, as vítimas do Tsunami, na Ásia, ou os habitantes do Haiti, vivemos em tempo emprestado; vivemos pela misericórdia de Deus; vivemos com o propósito de frutificar, de agradar o nosso proprietário e criador.

Creio que a conclusão desse ensino, é que, conscientes da soberania de Deus e de que ele sabe o que deve ser feito, não devemos insistir em procurar grandes explicações para as tragédias e fatalidades. Jesus nos ensina que teremos aflições neste mundo (João 1.33) – essa é a norma de uma criação que geme na expectativa da redenção. 1 Pe 4.19 fala dos que sofrem segundo a vontade de Deus. Lemos que não devemos ousar penetrar nos propósitos insondáveis de Deus; não devemos “estranhar” até o “fogo ardente” (1 Pe 4.12).

Assim, as tragédias, desde as locais pessoais até as gigantescas, de características nacionais e internacionais, são lembretes da nossa fragilidade; de que a nossa vida é como vapor; de que devemos nos arrepender dos nossos pecados; de que devemos viver para dar frutos.
Também, não cometamos o erro de diminuir a pessoa de Deus, indicando que ele está ausente, isolado, impotente. Como tantas vezes já dissemos, “Deus continua no controle”. Lembremos-nos de Tiago 4.12: “um só é legislador e juiz – aquele que pode salvar e fazer perecer”. Não sigamos, portanto, nossas “intuições”, no nosso exame dos acontecimentos, mas a Palavra de Deus. Como nos instrui 1 Pe 4.11: “ se alguém falar, fale segundo os oráculos de Deus”.
Em adição a tudo isso, não podemos cometer o erro de ser insensíveis às tragédias – Pv 17.5 diz: “o que se alegra na calamidade, não ficará impune”; mesmo perplexos, sabendo que não somos juízes nem videntes. Devemos nos solidarizar com as vítimas, na medida do possível e atravessar portas de contato e transmissão das boas novas divinas àqueles que Deus venha, porventura, colocar em nosso caminho.
 [1] Folha de S. Paulo 28/12/2004; Jornal do Commércio – Recife – 2/1/2005, de onde foram extraídas as citações desse trecho.
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Adaptado de estudos e sermões proferidos em 2005, e de POST de janeiro de 2010
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A. W. Pink Encorajamento Sofrimento

Consolo nas aflições, sofrimentos compensados (A. W. Pink)

“Porque para mim tenho por certo que as aflições deste tempo presente não são para comparar com a glória que em nós há de ser revelada”. (Romanos 8:18)
 
 Ah, alguém diz, que essa passagem deve ter sido escrita por um homem que não conhecia o sofrimento, ou por alguém familiarizado com nada mais do que as leves irritações da vida. Não é isso. Estas palavras foram escritas sob a direção do Espírito Santo, e por alguém que bebeu profundamente do cálice do sofrimento, sim, por alguém que sofreu aflições em suas formas mais intensas. Veja o seu próprio testemunho: “Recebi dos judeus cinco quarentenas de açoites menos um. Três vezes fui açoitado com varas, uma vez fui apedrejado, três vezes sofri naufrágio, uma noite e um dia passei no abismo;  Em viagens muitas vezes, em perigos de rios, em perigos de salteadores, em perigos dos da minha nação, em perigos dos gentios, em perigos na cidade, em perigos no deserto, em perigos no mar, em perigos entre os falsos irmãos; Em trabalhos e fadiga, em vigílias muitas vezes, em fome e sede, em jejum muitas vezes, em frio e nudez”(2 Coríntios 11:24-27). “Porque para mim tenho por certo que as aflições deste tempo presente não são para comparar com a glória que em nós há de ser revelada”.
Esta, então foi a firme convicção, não de alguém “favorito da sorte”, não de alguém que encontrou na jornada da vida um caminho atapetado, rodeado com rosas, mas, ao contrário, de alguém que foi odiado por seus parentes, que foi muitas vezes espancado, que sabia o que era ser privado não só do conforto, mas também das necessidades básicas da vida. Como, então explicar o seu alegre otimismo? Qual foi o segredo da sua dignidade sobre seus problemas e provações?
A primeira coisa com a qual o apóstolo penosamente provado consolou-se era que os sofrimentos do cristão são de curta duração – que estão limitados ao “tempo presente”. Isto está em nítido e em solene contraste com sofrimentos dos que rejeitam a Cristo. Seus sofrimentos serão eternos: para sempre atormentados no Lago de Fogo. Mas muito diferente é para o crente. Seus sofrimentos são restritos a esta vida na Terra, que é comparado a uma flor que sai e é cortada, a uma sombra que foge e não permanece. Uns poucos anos no máximo, e vamos passar deste vale de lágrimas para aquele país abençoado, onde lamentos e choros nunca mais serão ouvidos.
Em segundo lugar, o apóstolo olhou além, com os olhos da fé para “a glória”. Para Paulo “a glória” era algo mais do que um sonho lindo. Era uma realidade prática, exercendo uma poderosa influência sobre ele, consolando-o nas horas mais críticas e difíceis da adversidade. Este é um dos verdadeiros testes da fé. O cristão tem um sólido suporte na hora da aflição, quando o incrédulo não tem. O filho de Deus sabe que na presença do Pai “háfartura de alegrias”, e que à sua mão direita “há delícias perpetuamente”. E a fé se apodera deles, apropria-se deles, e vive na alegria reconfortante deles até agora. Assim como Israel no deserto foi encorajado por uma visão do que os esperava na terra prometida (Nm 13:23,26), assim, aquele que hoje caminha pela fé, e não por vista, contempla o que os olhos não viram, nem ouvidos ouviram, mas o que Deus pelo Seu Espírito Santo tem revelado a nós (1 Cor. 2:9,10).
Em terceiro lugar, o apóstolo se regozijou “com a glória que em nós há de ser revelada”. Tudo isso significa que ainda não somos capazes de ter uma compreensão plena dessas coisas. Mas mais do que uma dica foi concedida a nós. Haverá:
(a) A “glória” de um corpo perfeito. Naquele dia esta corrupção se revestirá da incorruptibilidade, e isto que é mortal, da imortalidade. O que foi semeado em ignomínia será ressuscitado em glória, e o que foi semeado em fraqueza será ressuscitado em vigor. Assim como trouxemos a imagem do terreno, devemos trazer também a imagem do celestial (1 Coríntios. 15:49). O conteúdo dessas expressões é resumido e amplificado em Filipenses 3:20,21: “Mas a nossa cidade está nos céus, de onde também esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo. Que transformará o nosso corpo abatido, para ser conforme o seu corpo glorioso, segundo o seu eficaz poder de sujeitar também a si todas as coisas”.
(b) Haverá a glória de uma mente transformada. “Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido” (1 Cor 13:12). Oh, que envolvimento de luz intelectual com que cada mente será glorificada! Que faixa de luz vai envolvê-la! Que capacidade de entendimento vai deleitá-la! Então todos os mistérios serão desvendados, todos os problemas resolvidos, todas as discrepâncias reconciliadas. Então cada verdade da revelação de Deus, cada evento de Sua providência, cada decisão de seu governo, ficará ainda mais transparentemente clara e resplandecente como o próprio sol. Você, em sua busca presente pelo conhecimento espiritual, lamenta a escuridão da sua mente, a fraqueza de sua memória, as limitações de suas faculdades intelectuais? Então nos regozijemos na esperança da glória que está para ser revelada em você – quando todos os seus poderes intelectuais serão renovados, desenvolvidos, aperfeiçoados, de modo que você conhecerá como você é conhecido.
(c) Melhor de tudo, haverá a glória da santidade perfeita. A obra da graça de Deus em nós, então, será completada. Ele prometeu que aperfeiçoará “o que me toca” (Salmo 138:8). Então será a consumação de pureza. Fomos predestinados para sermos “conformes à imagem de Seu Filho” (Rm 8:29), e quando O veremos “seremos semelhantes a ele” (1 João 3:2). Então, nossas mentes não serão mais contaminadas por imaginações do mal, nossas consciências não serão mais manchadas por um sentimento de culpa, nossas afeições não serão mais enganadas por objetos indignos. Que perspectiva maravilhosa é esta! A “glória” que será revelada em mim agora dificilmente pode refletir um raio solitário de luz! Em mim – tão desobediente, tão indigno, tão pecador, vivendo tão pouco em comunhão com Aquele que é o Pai das luzes! Pode ser que em mim esta glória seja revelada? Assim afirma a infalível Palavra de Deus. Se eu sou um filho da luz por estar “nele”, que é o resplendor da glória do Pai, mesmo que agora habite em meio a tons escuros do mundo, um dia irei ofuscar o brilho do firmamento. E quando o Senhor Jesus retornar a esta terra ele deve ser “admirável naquele dia em todos os que creem” (II Tes. 1:10).
Finalmente, o apóstolo aqui pesa o “sofrimento” do tempo presente em oposição a “glória”, que deverá ser revelada em nós, e como ele declarou que uma “não é digna de ser comparada” com a outra. Uma é transitória, outra é eterna. Como, então, não há proporção entre o finito e o infinito, não há comparação entre os sofrimentos da terra e a glória do céu. Um segundo de glória superarão uma vida de sofrimento. O que são os anos de labuta, de doença, de lutar com a pobreza, de tristeza em qualquer forma, quando comparados com a glória da terra de Emanuel! Beber do rio da vida na mão direita de Deus, uma respiração no paraíso, um instante em meio ao sangue lavado ao redor do trono, será mais do que compensador do que todas as lágrimas e gemidos da terra.  “Porque para mim tenho por certo que as aflições deste tempo presente não são para comparar com a glória que em nós há de ser revelada”.
Que o Espírito Santo permita que tanto o escritor quanto o leitor se agarrem a isso e apropriem-se com fé e vida na posse presente e gozo disso para o louvor da glória da graça divina.
 
Da obra “Comfort for Christians” de A.W. Pink – Consolo nas Aflições, sofrimentos compensados, capítulo 3 – Traduzido por Edimilson de Deus Teixeira – Li em: Discernimento Bíblico.
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Citações Espírito Santo História João Calvino Martinho Lutero

A cessação dos dons apostólicos (Nathan Busenitz)

A opinião de dez líderes da história da Igreja:

1. João Crisóstomo (344–407)

A passagem inteira (falando sobre 1 Coríntios 12) é muito obscura, mas a obscuridade é produzida por nossa ignorância dos fatos referidos e por sua cessação, fatos que ocorriam, mas agora não tem mais lugar.

(Fonte: João Crisóstomo, Homilias em I Coríntios, 36.7 Crisóstomo está comentando 1 Co. 12:1-2 como introdução ao capítulo inteiro. Citado de 1-2 Coríntios in: Ancient Christian Commentary Series, 146.)

2. Agostinho (354-430)

Nos tempos antigos o Espírito Santo veio sobre os crentes e eles falaram em línguas, que não haviam aprendido, conforme o Espírito concediam que falassem. Estes foram sinais adaptados ao tempo. Pois aquilo foi o sinal do Espírito Santo em todas as línguas [idiomas] para mostrar que o Evangelho de Deus era para ser espalhado a todas as línguas sobre a terra.  Isto foi feito por um sinal, e o sinal findou.

(Fonte: Agostinho. Homilias sobre a Primeira Epístola de João, 6.10. Cf. Schaff, NPNF, First Series, 7:497-98)

3. Teodoreto de Ciro (393-466)

Em tempos antigos, aqueles que aceitaram a divina pregação e que foram batizados para a sua salvação, receberam sinais visíveis da graça do Espírito Santo trabalhando neles. Alguns falaram em línguas que eles não sabiam e que ninguém lhes havia ensinado, enquanto outros realizaram milagres ou profetizaram.  O coríntios também fizeram essas coisas, mas não usaram os dons como deveriam ter usado. Eles estavam mais interessados em se mostrar do que em usar os dons para a edificação da igreja . . . Mesmo no nosso tempo a graça é dada para aqueles que são julgados dignos do santo batismo, mas não pode assumir a mesma forma que possuía naqueles dias.

(Fonte: Teodoreto de Ciro. Comentário sobra a primeira epístola aos Coríntios, 240, 43; em referência à 1Co 12:1,7.  Citado de 1-2 Coríntios, ACCS, 117).

4. Martinho Lutero (1483-1546)

Na Igreja primitiva, o Espírito Santo foi enviado de forma visível.  Ele desceu sobre Cristo na forma de uma pomba (Mt. 3:16), e à semelhança de fogo sobre os apóstolos e outros crentes.  (Atos 2:3) Esse derramamento visível do Espírito Santo foi necessário para o estabelecimento da Igreja primitiva, como também foram necessários os milagres que acompanharam o dom do Espírito Santo. Paulo explicou o propósito destes dons miraculosos do Espírito em I Coríntios 14:22, “as línguas são um sinal, não para os que crêem, mas para os que não crêem”.  Uma vez que a Igreja tinha sido estabelecida e devidamente anunciada por estes milagres, a aparência visível do Espírito Santo cessou.

(Fonte: Martinho Lutero, traduzido por Theodore Graebner [Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 1949], pp  150-172. A respeito do comentário de Lutero sobre Gálatas 4:6.)

5. João Calvino (1509-1564)

Embora Cristo não declare expressamente se Ele pretende que esse dom [de milagres] seja temporário ou a permaneça perpetuamente na Igreja, é mais provável que os milagres tenham sido prometidos apenas por um tempo, para dar brilho ao evangelho enquanto ele era novo ou em estado de obscuridade.

(Fonte: João Calvino, Comentário sobre os Evangelhos Sinóticos, III:389.)

O dom de cura, como o resto dos milagres, os quais o Senhor quis que fossem trazidos à luz por um tempo, desapareceu, a fim de tornar a pregação do Evangelho maravilhosa para sempre.

(Fonte: João Calvino, Institutas da Religião Cristã, IV: 19, 18.)

6. John Owen (1616-1683)

Dons que em sua própria natureza excederam completamente o poder de todas as nossas habilidades, essa dispensação do Espírito há muito cessou e onde ela agora é simulada por alguém, pode ser justamente presumida como um delírio entusiasmado.

(Fonte: John Owen, Obras, IV:518.)

7. Thomas Watson (1620-1686)

Claro, há tanta necessidade de ordenação hoje como no tempo de Cristo e no tempo dos apóstolos, quando então havia dons extraordinários na igreja, os quais agora cessaram.

(Fonte: Thomas Watson, As Bem-Aventuranças, 140.)

8. Mattew Henry (1662-1714)

O que eram esses dons nos é largamente dito no corpo do capítulo [1 Coríntios 12], ou seja, ofícios e poderes extraordinários, concedidos a ministros e cristãos nos primeiros séculos, para a convicção dos descrentes, e propagação do evangelho.

(Fonte: Mattew Henry, Comentário Completo, em referência a 1 Coríntios 12)

O dom de línguas foi um novo produto do espírito de profecia e dado por uma razão particular, retirar o judeu e demonstrar que todas as nações podem ser conduzidas à igreja. Estes e outros sinais da profecia, começaram como sinais, e há muito cessaram e foram deixados para trás, e nós não temos nenhum incentivo para esperar um avivamento deles; mas, pelo contrário, somos direcionados para o chamado das Escrituras a mais certa palavra de profecia, mais certa que vozes dos céus, e ela nos orienta a tomar cuidado, a busca-la e se firmar nela.

(Fonte: Mattew Henry, Prefácio ao Vol IV de sua Exposição do At e NT, vii.)

9. John Gill (1697-1771)

Agora esses dons foram concedidos comumente, pelo Espírito, aos apóstolos, profetas e pastores, ou anciãos da igreja, naqueles primeiros tempos: a cópia de Alexandria, e a versão Latina da Vulgata, dizem, “por um só Espírito”.

(Fonte: Comentário de John Gill de 1 Coríntios 12:9)

Não; quando estes dons estavam presentes, nem todos os possuíam.  Quando a unção com óleo, a fim de curar o doente, estava em uso, ela só foi executada pelos anciãos da igreja, e não pelos seus membros comuns, que deveriam buscar o doente nesta ocasião.

(Fonte: Comentário de John Gill de 1 Coríntios 12:30.)

10. Jonathan Edwards (1703-1758)

Nos dias de sua [Jesus] encarnação, os seus discípulos tinham uma medida dos dons miraculosos do Espírito, sendo habilitados desta forma para ensinar e fazer milagres.  Mas, depois da ressurreição e ascensão, ocorreu o mais completo e notável derramamento do Espírito em seus dons milagrosos que já existiu, começando com o dia de Pentecostes, depois da ressureição Cristo e Sua ascenção ao céu.  E, em conseqüência disto, não somente aqui e ali uma pessoa extraordinária era dotada de dons extraordinários, mas eles eram comuns na igreja, e assim continuou durante a vida dos apóstolos, ou até a morte do último deles, mesmo o apóstolo João, que viveu por cerca de cem anos desde nascimento de Cristo, de modo que os primeiros cem anos da era cristã, ou o primeiro século, foi a era dos milagres.

Mas, logo após a finalização do cânon da Escritura quando o apóstolo João escreveu o livro do Apocalipse, não muito antes de sua morte, os dons miraculosos tiveram seu fim na igreja. Pois, agora, a revelação escrita da mente e da vontade de Deus estava completa e estabelecida. Revelação na qual Deus havia perfeitamente gravado uma regra permanente e totalmente suficiente para Sua igreja em todas as eras.  Com a igreja e a nação judaica derrotadas, e a igreja cristã e a última dispensação da igreja de Deus estabelecidas, os dons miraculosos do Espírito já não eram mais necessários e, portanto, eles cessaram; pois embora eles tenham continuado na igreja por tantas eras, eles se extinguiram, e Deus fez com que fossem extintos porque já não havia ocasião favorável a eles.  E assim foi cumprido o que está dito no texto: “Havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão;. Havendo ciência, desaparecerá”.  E agora parece ser o fim para todos os frutos do Espírito tais como estes, e não temos mais razão de esperar que voltem.

(Fonte: Jonathan Edwards, sermão intitulado “O Espírito Santo deve ser comunicado ao Santos para sempre, In na graça da caridade, ou amor divino”, em 1 Coríntios 13:8)

Os dons extraordinários foram dados para a fundação e o estabelecimento da igreja no mundo. Mas, depois que o cânon das Escrituras foi concluido e a igreja cristã foi plenamente fundada e estabelecida, os dons extraordinários cessaram.

(Fonte: Jonathan Edwards, Caridade e seus frutos, 29.)

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A profunda superficialidade de nossos dias (Walter Mcalister)

Uma das características que melhor definem a época da História em que vivemos é a superficialidade. Somos pensadores superficiais. Somos cristãos superficiais. Aliás, eu diria até que somos profundamente superficiais. Claro que ser “profundamente superficial” é o que chamamos de um oximoro – uma expressão que se contradiz e, ao fazê-lo, afirma uma contradição. Assim como “água seca”, ou uma “verdadeira mentira”, “profunda superficialidade” soa como um absurdo. Mas é isso mesmo o que somos. Pois somos superficiais até as mais profundas profundezas da nossa alma. Não importa quão profundamente cavemos na nossa alma contemporânea, nunca chegamos a algo que seja substancial. Tudo é superficial. Nossos sentimentos mais profundos são superficiais. Nossas paixões mais arrebatadoras são superficiais, efêmeras, passageiras. Somos pessoas cuja alma se assemelha a uma floresta inteiramente composta por árvores sem raízes. Por mais que você consiga adentrar os recônditos mais escondidos da floresta, não achará uma árvore que tenha firmeza. Pois, sem raízes, qualquer uma delas é facilmente arrancada pelo vento e substituída.

Essa constatação não significa que não tenhamos sentimentos fortes. Temos. Não quer dizer que nossas atitudes não sejam profundamente sentidas. São. Mas todas as profundezas do nosso ser, de nossos sentimentos e das nossas atitudes são, em última análise, superficiais.

Tomemos como exemplo a postura atual da maioria da sociedade brasileira contra a homofobia. “Todos” se dizem profundamente inconformados com os “tão intolerantes” cristãos. Afinal, “todos sabem” que qualquer opção de vida que um indivíduo faça é seu direito e é algo “absolutamente normal”. Esse é o discurso feito em público. Só que o bloco político que fez da sua campanha a defesa dos homoafetivos foi derrotado nas urnas de uma maneira tão absoluta e humilhante que ninguém quer falar a respeito do assunto. Na hora do “vamos ver”, da defesa política da opção dessas pessoas, ninguém compareceu. Multidões aparecem para fazer uma parada festiva. Mas, na hora de transformar esse discurso em ação… nada. E, quando não há um gay por perto, a grande maioria dos que os defendem não hesita em fazer piadas sobre os seus trejeitos.

Mas não sejamos duros com os que não compartilham da nossa fé. Afinal, vivemos numa casa cujo telhado também é de vidro. Se começarmos a jogar pedras, estilhaços vão voar para todos os lados.

Vejo pessoas demonstrarem uma enorme paixão ao defender o culto “gospel”, com todas as suas manifestações emotivas e bombásticas, e que afirmam ter um profundo “amor” para com Deus e seu Filho, Jesus Cristo, para não mencionar também o Espírito Santo. Derramam lágrimas. Fiéis se prostram e até se arrastam pelo chão, rugindo como leões. Muitos abanam os seus braços numa comoção em massa, enquanto alguém grita ao microfone algo sobre render honra, glória e louvor ao Deus Altíssimo, criador dos céus e da terra.

Pouco tempo depois, muitos (sim, muitos) estão tomando umas e outras no barzinho e contando piadas sujas. Não são poucos os jovens que até terminam no motel uma noitada após um “cultaço”. Sua paixão profunda no culto não passa de uma profunda superficialidade. Sim, porque não há ligação entre uma paixão e a outra. Arrebatados pelo culto, são, em seguida, igualmente arrebatados pelos seus instintos mais baixos, traindo tudo o que o culto deveria representar.

Leio a lista dos interesses que pessoas escrevem em seu perfil do Facebook e me espanto. Enquanto dizem “curtir” o reverendo Paul Washer, “curtem” programas de televisão que promovem sexo ilícito e toda sorte de perversão, justo aquilo que o reverendo Washer combate tão claramente: True Blood, Sexo sem compromisso, Friends, Vampire Diaries, Crepúsculo e uma infinidade de filmes e seriados que vomitam sua imundície sobre o mundo todo. Qualquer um que fizesse um estudo do perfil da maioria dos jovens que povoam a nação virtual teria que chegar à conclusão de que são insanos, hipócritas, e ímpios disfarçados de crentes. E é exatamente o que são. Iludem-se ao pensar que podem ser amigos do mundo e também de Deus.

Seus corações não estão alicerçados em Jesus. Sua paixão por Cristo é tão profundamente superficial como sua paixão pelas inúmeras cores de esmalte (que é a moda atual entre as mocinhas de Cristo) ou por sapatos – sim, sapatos. De cabeças ocas e corações esfacelados, vivem sendo arrebatados pela última novela (sim, porque isso é normal e achar que não é torna-se legalismo), moda, filme ou música. Põem Jesus Cristo ao lado de Lady Gaga nas suas páginas de “curtir”.

É insano. Uma geração sem moral, sem raízes e sem um norte.

Mas… será que são todos assim? Claro que não. Alguns estão começando a pensar. Alguns estão começando a se questionar. Nem tudo está perdido. Mas a maioria, lamento dizer, está.

Na paz,

+W

(Fonte)

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