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A cruz e o Deus de esperança (T. Austin-Sparks)

Deus opera por meio da cruz

“Ora, o Deus de esperança vos encha de todo o gozo e paz em crença, para que abundeis em esperança pelo poder do Espírito Santo” (Rm 15.13)

“O Deus de esperança vos encha […] para que abundeis em esperança!”

Como você sabe, o apóstolo desenvolveu seu caminho até esse ponto ao longo de um argumento longo e detalhado. Ele seguiu o curso completo das coisas desde o primeiro pecado de Adão, traçando todas as suas consequências e seus desdobramentos, ao longo de todas as gerações, até Cristo; então, colocou no fim de tudo isso a cruz do Senhor Jesus. A partir desse ponto, abriu um panorama e um futuro totalmente novos. A cruz é o ponto terminal até o qual todas as coisas conduziram e a partir do qual tudo recebe uma nova ascensão. Seguindo toda essa história, explicação e ensino, o apóstolo chega à plenitude deste título abrangente: o Deus de esperança.

Conforme vemos a grande situação que é apresentada neste livro e no Novo Testamento, encontramo-nos diante de algo estranho, que parece um paradoxo. Trata-se disto: Deus escreveu por todo o curso da história o significado da cruz de tal forma que a única resposta que Ele pode dar ao pecado, ao mal, à desobediência, e a todos seus frutos e consequências, é tribulação, desespero e morte. E mesmo assim, não obstante, Ele é o Deus da Esperança. Ele está dizendo que tribulação, paixão, desespero e morte são o único meio de esperança. Isso está escrito em toda a história dos tratos de Deus com o homem. Desde o pecado de Adão, e da queda da raça (nele), Deus tem tido de trabalhar sobre a base da cruz de Cristo. A cruz está implícita em todos os tratos de Deus com o homem, e não apenas com o homem em geral, mas em particular com Seu próprio povo.

A cruz está implícita em todos os tratos de Deus com o homem.

A cruz significa sofrimento; é o próprio símbolo do sofrimento – nós sabemos disso. A cruz significa tribulação e angústia – nós sabemos disso. A cruz significa desespero. O grande clamor no final daquela provação foi o clamor de desespero: “Deus Meu, Deus Meu, por que Me desamparaste?” E a cruz é morte. Mas, com tudo isso, na intenção e no desejo de Deus, ela é para alegria, para pura gratidão; ela é para esperança, uma nova esperança; ela é para vida – todas as coisas que são exatamente o oposto do que a cruz parece dizer.

Deus é o Deus de esperança, mesmo quando você olha para o Calvário, e para tudo o que está acontecendo naquele lugar, e vê o Eleito ali, e ouve Seu amargo clamor. Se você entende isto, e se você olha para a história – o pecado de Adão, a queda, e tudo aquilo no que a raça foi envolvida a partir de então, toda a tragédia e a angústia e a paixão e o mal das gerações – e vê porque Deus, não apenas permitiu isso, mas teve de estabelecer esse regime, resultando em desespero – a resposta, estranho dizer, é: Ele é o Deus de esperança. Esse é Seu meio de esperança, e Seu único meio de esperança.

A cruz sempre foi o meio de salvação de Deus, a solução de Deus. É uma solução muito drástica, muito terrível, mas é a solução de Deus. E, se for uma solução efetiva, então, ela produz esperança; é algo com esperança – nova esperança – como seu resultado. A cruz não é um símbolo; a cruz não é um objeto. A cruz é um grande poder, um poder perpétuo; um decreto único na história, mas um poder operando por todas as eras – nós dissemos que ele está implícito na velha dispensação e explícito nesta dispensação. Do primeiro ao último pecado, a cruz é um poder operante.

Agora, existe uma coisa contra a qual a cruz se mantém: a saber, um estado que é diferente daquele que Deus planejou. Isso tem, claro, muitos aspectos. Vamos olhar apenas para um ou dois deles. Eles são perfeitamente claros na Bíblia.

A cruz contra um estado alterado

Primeiramente, a cruz se levanta contra a natureza das coisas quando essa natureza se torna diferente. Sempre que a natureza das coisas foi alterada daquilo como Deus fez no início, ou planejou que o fosse, Deus introduziu a cruz de alguma forma; imediatamente Ele apresentou a cruz. A natureza do homem foi alterada no princípio; ele se tornou algo diferente em natureza daquilo que Deus planejou. Todos nós sabemos disso por nossa herança. E imediatamente o Senhor introduziu a cruz na lei da tribulação, da paixão, da adversidade; Ele escreveu imediatamente acima desse estado: Desespero e Morte. A cruz se levantou contra esse estado alterado. A única esperança de recuperar o estado, a condição e a natureza das coisas divinamente planejados repousa na cruz.

A cruz é o grande agente purificador – e purificar significa simplesmente tornar-se livre de mistura. Quando há coisas que não se correspondem ou não se adéquam exatamente, que são de duas naturezas, de duas esferas – dois elementos conflitantes –; quando há impureza, adulteração, a cruz se levanta firmemente contra isso, a fim de purificar. A primeira coisa com respeito a Deus – seja no indivíduo, ou em alguma associação de Seu povo localmente ou na Igreja universal – é a pureza, a incorruptibilidade, a separação de toda iniquidade e de toda mistura. A vida cristã é baseada na cruz, individualmente, localmente e universalmente. A cruz vê a poderosa, terrível e eterna declaração de Deus contra a impureza – a contaminação e corrupção que veio para criar um estado, no homem e no mundo, que Ele nunca planejou.

A única forma de purificação é por tornar perfeitamente claro, em crua realidade, a desesperança, do ponto de vista de Deus, daquilo que não é puro. Quão verdadeiro isto é, de maneira geral, quando olhamos para o mundo: a desesperança de um estado de coisas impuro, maculado e misturado. O Deus de esperança exige, portanto, completa limpeza nessa esfera e a constituição de algo puro, algo limpo, algo não-misturado, imaculado. Se você olhar na Bíblia, com todo seu maravilhoso simbolismo do que é o pensamento de Deus, descobrirá que Seu pensamento é a transparência, a clareza do cristal. O fim da operação de Deus nessa criação, como vemos por fim no livro de Apocalipse, é uma pedra de jaspe – uma coisa pura, clara como cristal. E são a cruz e o sangue do Cordeiro que conduzem a isso.

Se, portanto, o Senhor enxergar algum estado que Ele nunca planejou que fosse, que contradiz Sua mente sobre o assunto, Ele introduzirá a cruz como um poder operante; e, onde aquilo for encontrado, começará a se manifestar uma situação. Nós descobrimos que chegamos a uma paralisação, que Deus não está avançando; estamos estressados; estamos atribulados; estamos angustiados; estamos em desespero; estamos morrendo. A cruz está operando dessa forma a fim de produzir uma situação cheia de esperança, cheia de expectativa. A lei é bastante clara.

A primeira coisa que vemos, então, é que qualquer estado que não esteja de acordo com a intenção de Deus deve ser limpo mediante a aplicação do excelente princípio da cruz. Não há esperança para nada que não seja puro ao olhos de Deus.

A cruz contra a diminuição das coisas divinas

A seguir, suponha que as coisas tenham se tornado menos do que aquilo que Deus planejou que fossem. Deus planejou algo pleno, grande, e as coisas se tornaram menores do que Ele planejou. E a história do cristianismo é a história dessa tendência – é mais do que uma tendência, é um trabalho real – de o homem reduzir Deus e as coisas de Deus a sua própria medida humana, trazer tudo de Deus e a próprio Deus para dentro do compasso do homem; é o homem reduzindo Deus a sua própria medida, tornando Deus menor do que Ele é e as coisas de Deus menores do que realmente são. Nós podemos ver como isso prosseguiu e está em todo o tempo prosseguindo, como uma tendência, como uma orientação, como alguma operação. E nós estamos sempre próximos do risco de as coisas se tornarem menores do que Deus planejou que fossem. Deus planejou algo muito excelente; e aqui há perda, ou o risco da perda, redução; as coisas se tornando menores, perdendo algo.

Sempre que o Senhor vê essa operação, ou esse risco, tornando-se muito real, Ele introduz a cruz, e a tribulação, o estresse e o sofrimento começam; tudo chega a uma esfera de incerteza e fraqueza e questionamento. Uma sensação de fracasso e desespero está desenhada – “Nós não vamos prosseguir, não vamos conseguir passar por isso!”. Deus planejou algo grande, e algo dessa grandeza se perdeu, ou falhou em seguir para essa grandeza; tornou-se algo menor do que Ele planejou. Ele não permitirá isso; Ele reage. E, oh!, que tremendas reações a história nos mostra relacionadas a isso.

Tome apenas o caso ilustrativo de Israel. Embora Israel fosse o povo escolhido, tomado de dentre as nações para Deus, Deus nunca, nunca planejou que Israel se tornasse algo em si mesmo. Ele nunca quis que Israel fosse o princípio e o fim de todo Seu trabalho. Ele planejou que Israel fosse uma “luz para os gentios”; que fosse um testemunho de Deus para todas as nações; que fosse um ministério, um instrumento missionário, para todos os povos, para todas as nações andarem na luz de Israel ou se achegarem à luz de Deus juntamente com os israelitas. Eles foram levantados, não para si mesmos como um fim, mas para o mundo todo, como nação apostólica de Deus, para evangelizar as nações com o conhecimento de Deus.

O que Israel veio a fazer? Desprezar as nações; chamá-las de “cães”, excluí-las e manter-se fechado para elas, em si mesmo, nada tendo a ver com elas; olhar para elas como coisas a serem desprezadas, serem rejeitadas, serem cortadas. “Nós somos o povo; tudo começa e termina conosco!” A nação se tornou algo menor do que Deus planejou que fosse, e não há esperança nessa direção. O fim da história é que Israel, enquanto mantiver essa mente, deve ser deixado de lado, ser quebrado, esmagado, levado ao desespero, à falta de esperança.

Existe uma ampla lição para nós aprendermos e sempre trazer à mente: tudo o que Deus deu para Israel, e tudo que Deus está desejando derramar sobre nós, não é para nós mesmos, não é para terminar em nós mesmos. Nem é para permitir que nos faça algo em nós mesmos, que “Nós somos o povo”. É uma confiança – uma confiança para todos os homens. O apóstolo Paulo reconheceu isso; e que tremenda coisa significou seu reconhecimento em seu próprio caso, quando se pensa nele como um típico israelita. Sua visão e seu ministério abrangeram “todos os homens” – “para que apresentemos todo homem – não todo judeu!, mas –, “todo homem perfeito em Jesus Cristo” (Cl 1.28). Ele é o homem que traz à tona a imensidão das coisas, não é? A imensidão de Cristo, a imensidão da Igreja. Se há alguma coisa sobre a Igreja que é tão evidente no Novo Testamento é sua grandeza. Quão grande é isso! Ela toma seu caráter e suas dimensões do Senhor Jesus. Qualquer um que tenha visto a grandeza de Cristo nunca poderá tolerar uma Igreja “pequena”, uma comunhão “pequena” – uma coisa pequena e exclusiva que é um fim em si mesma. Deve haver uma visão universal e um coração universal. Para alcançar isso, qualquer tendência a se tornar algo menor será encontrada pela cruz e, então, virá a falta de esperança, o desespero, a apreensão, uma sensação de falta de caminho, uma grande dose de sofrimento interior, dificuldade e perplexidade.

A cruz é o meio de salvação. Porém, é um meio doloroso.

A cruz é o meio de salvação: é o meio de salvação de algo ser menor do que Deus planejou. Porém, é um meio doloroso, é o caminho de tribulação. A cruz liberta de toda pequenez. O Senhor Jesus tornou isso claro em Suas próprias palavras: “Vim lançar fogo na terra […] Importa, porém, que seja batizado com um certo batismo; e como Me angustio até que venha a cumprir-se!” (Lc 12.49,50). “Como Me angustio!” Pelo batismo da cruz, da paixão, sendo cumprido, Ele é liberto de toda a Sua angústia. Isso não é um movimento nacional agora; isso não é limitado à Palestina ou a qualquer outro lugar. Ele é libertado, pela cruz, de toda pequenez do judaísmo, do israelitismo, do palestinianismo! Ele é libertado para o universal. Mas essa libertação é por um meio doloroso; é um quebrantar-se e um rasgar-se. Então, o Senhor sempre nos fará lembrar que Ele reage, e reage muito dolorosamente por nós, se algo que planejou para representar Sua grandeza e Sua plenitude se torna menos do que isso.

A cruz contra a sabedoria humana

Mais uma vez, quando algo se torna governado pela sabedoria humana, pela mente dos homens, quando é trazido para o cativeiro dos “escribas”, o Senhor sempre introduz a cruz contra isso. Você vê isso novamente em Israel. A cruz foi introduzida contra aquela situação em que os escribas e os governantes de Israel deram às coisas divinas sua própria interpretação humana, impondo sobre as coisas de Deus sua própria mente, criando esse grande e intolerável fardo ao qual Cristo se referiu: simplesmente a mente do homem imposta sobre as coisas divinas. E isso sempre significa cativeiro. O Senhor não permitirá isso. E, então, Ele reage novamente, e chega-se a um impasse. E qual é a natureza dessa nova crise? Absoluta desorientação; uma situação em que você não sabe o que fazer, para onde olhar, em que direção se mover, como resolver a situação. É completamente além da sabedoria humana. É um impasse de contradição, confusão e desespero. “O que podemos fazer? O que devemos fazer? Como resolver essa situação?” Você será derrotado a despeito de qualquer esforço que aplique.

O Senhor deve nos resgatar para fora de qualquer exploração meramente humana ou mental das coisas divinas e levar-nos para dentro da esfera da revelação divina. É uma coisa tremenda que Deus deve – essa esfera onde Ele é perfeitamente livre, se Ele quiser, para dar nova luz que pode parecer derrubar todas as nossas interpretações – todo o poder mental dos escribas e dos fariseus – derrubar a coisa toda.

Isso é o que você encontra no Novo Testamento, no livro de Atos. Aqui está Pedro, um representante de Israel; aqui está Paulo, um daqueles intérpretes da lei, que mantiveram todas as coisas dentro dos limites de seus próprios intelectos, e disseram, Nossa palavra é final! Nossa interpretação é a autoridade! Você deve se curvar diante dela! O que o Senhor está fazendo com homens como Pedro e Paulo, e outros neste livro? Ele os está levantando contra situações em que, se Deus não entrar agora com alguma nova luz e alguma nova revelação, eles ficam estagnados. Ele os levou juntamente para além de suas melhores tradições, suas mais fortes convicções, e a suas interpretações enraizadas, e os fez ver que a Bíblia significava mais do que eles, com todo seu aprendizado e conhecimento, perceberam que ela significava.

Sim, Levítico 11 mantém-se verdadeiro acerca de não se comer criaturas imundas e répteis. O Espírito Santo se contradiz quando ordena a Pedro: “Levanta-te, mata e come” (At 10.11-16)? De forma alguma. Levítico 11 tinha um significado que Pedro nunca havia visto. Ele se levanta contra algo que parece contradizer seu conhecimento da Escritura, mas em princípio não contradiz – simplesmente não contradiz. Alguém pode apenas dar um palpite em relação a isso. Nós amarramos a Palavra de Deus, e não deixamos Deus livre para alargar a revelação, para Ele que está querendo dar nova luz. E, se isso é um risco ou se chegamos ao ponto em que nossas interpretações estão amarrando e limitando, Ele introduzirá a cruz e nos levará a um ponto de total confusão, no qual, se Deus não fornecer alguma nova luz, estaremos acabados – nós não possuímos a sabedoria para a situação. O que Ele está fazendo? O Deus de esperança está se livrando de uma situação sem esperança. E é sempre sem esperança quando o homem é a última palavra em alguma coisa!

A cruz contra o legalismo

Por fim, quando as coisas se tornam um sistema legal, levando cativa qualquer coisa de Deus, Ele tem reagido com a cruz, e tem sido uma reação terrível, devastadora. A quebra do legalismo, da servidão à Lei, foi um negócio terrível, e sempre é. O Senhor não tolerará nada como tornar em uma tirania da lei Suas coisas do Espírito. Ele reagirá pela completa liberdade do Espírito em todas as coisas.

Então, nós vemos que a cruz se mantém entre um estado puro, não-adulterado, e uma condição misturada e, portanto, impura. A cruz se mantém entre a plena intenção de Deus e algo menor do que aquilo que Ele planejou. Sim, a cruz exige plenitude, não imperfeição, não algo menor, mesmo em grau. Se a cruz realmente é um poder operante em qualquer lugar, ela não permitirá paralisação. Ela sempre exigirá um prosseguir, e se manter sempre prosseguindo, porque ela abre o caminho para isso.

A cruz se mantém entre um conhecimento ou uma sabedoria sem vida e o conhecimento espiritual que é vida. Adão fez sua escolha, seu apelo pelo conhecimento, e ele o obteve sem vida. A árvore da vida foi guardada – ele teve conhecimento sem vida. Deus não tolera isso. Sabemos como mesmo o conhecimento religioso pode ser sem vida e morto! Isso pode ser verdade em relação a nós, que possuímos um monte conhecimento, mas onde está a vida mensurável? O Senhor é contrário a isso, e Ele diz: “Eu não posso continuar”. Nós temos algum problema em relação a isso; nós devemos ter alguma dor, alguma angústia em relação a isso: todo conhecimento deve possuir uma vida correspondente. O conhecimento deve ser vivo, deve ser associado com a vida. Você pode comer da “árvore do conhecimento” (eu me refiro àquela outra árvore do conhecimento, o conhecimento do Senhor, das coisas celestiais), mas, mesmo assim, você deve comer da “árvore da vida” para manter o equilíbrio. Conhecimento e vida se correspondem, andam juntos. O Senhor é contrário a qualquer estado diferente deste.

A cruz se mantém entre um conhecimento ou uma sabedoria sem vida e o conhecimento espiritual que é vida.

Novamente, formato, formato exato, formato perfeito, no ensino e na prática, sem poder, é algo que Deus não permitirá. Ensino e prática devem ser perfeitamente corretos: sim, mas e quanto ao poder? Israel possuía os oráculos, tinha a Lei, tinha a verdade, mas onde estava o poder espiritual? Não havia nenhum. A cruz agirá para corrigir isso. Não há nada a ser dito contra o procedimento “correto” e a acurada e sã doutrina; eles devem existir. Mas o Senhor garantirá que, ao manter as coisas avançando, em prática, em dores de parto, em dificuldade, toda a questão de poder se tornará bastante real. Temos tanto ensino, mas temos muito pouco poder – isso deve se tornar em angústia, uma verdadeira angústia. Tudo o que temos, e todo o nosso jeito de fazer as coisas que pensamos estar tão certo, de acordo com o Novo Testamento, deve possuir um poder e um impacto correspondentes. E, então, o Senhor não permitirá pausa nisso.

De todas as formas, Ele é o Deus de esperança: pela tribulação há esperança, pelo desespero há esperança. Esse é o Seu caminho, Seu modo de agir. Que Ele nos dê entendimento.

 

(Primeira publicação na revista A Witness and A Testimony, julho-agosto 1959, vol. 37-4)

 


 

(Traduzido por Erik Cabral de The Cross and the God of Hope, de T. Austin-Sparks. Revisado por Francisco Nunes. A maior parte dos textos de Austin-Sparks é transcrição de suas mensagens orais. Os irmãos que as transcrevem não fazem nenhuma edição ou aprimoramento. Por isso, o texto conserva bastante de sua oralidade, o que, em muitas circunstâncias, não permite uma tradução mais apurada. Se houver qualquer sugestão para aprimoramento deste trabalho, por favor, deixe um comentário. Este artigo pode ser distribuído e usado livremente, desde que não haja alteração no texto, sejam mantidas as informações de autoria, tradução e fonte e seja exclusivamente para uso gratuito.)

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Em Adão ou em Cristo

Leitura: Rm 5.12-19; 1Co 15.5-49; Cl 2.11-13; 3.1-3

Essas passagens colocam diante de nós várias coisas bem precisas. Elas nos trazem uma série de dísticos, de duplas.

Dois homens

Em primeiro lugar, elas apresentam dois homens, Adão e Cristo, e os apresentam como dois homens raciais, ou seja, dois homens que são a cabeça e o representante inclusivo de duas raças diferentes. E elas tornam perfeitamente claro que é impossível estar em ambos os homens ao mesmo tempo ou pertencer a ambas raças. Se você está vivo em Adão, está morto para Cristo. Se você está vivo em Cristo, está morto para Adão. Esses dois, portanto, são definidos por nenhum fato menor, menos importante, do que vida e morte, e essas duas coisas são bem separadas, pois é muito diferente, no sentido divino, estar vivo de estar morto no sentido divino.

Dois homens – e a Palavra de Deus diz que estamos em um ou em outro. Por natureza, não podemos mudar isso por nós mesmos, não temos escolha. Nós nascemos em e de Adão. Ele é nossa cabeça natural, o progenitor de nossa raça e de nossa ordem naturais. Estamos nele por natureza, e não podemos deixar de estar. E, ainda assim, Deus fez provisão para que saíssemos de Adão, para que não tivéssemos mais de estar em Adão, mas pudéssemos estar em Cristo. Ele diz: “Todos morrem em Adão” (1Co 15.22) ou: “Todos estão mortos”. A morte reina sobre toda a raça de Adão. Em Cristo, todos estão vivos, pois Cristo está vivo e vive no pleno sentido divino. Mas surge a pergunta: “Como podemos sair de Adão e entrar em Cristo?” E esse é o ponto sobre o qual vamos concentrar nossa meditação hoje, quando passamos pelas outras verdades que se apresentam naquelas passagens.

Há dois homens, para começar, e eles são totalmente separados. Eles não têm nenhuma amizade, nenhum relacionamento, nenhuma comunhão, nada em comum. Adão e Cristo são dois tipos distintos e pertencem a dois mundos e reinos distintamente diferentes, e, fora de Cristo, estamos em Adão. Em Adão, estamos fora de Cristo. Em Cristo, não estamos mais em Adão. É isso que a Escritura torna perfeitamente claro e é assim que temos perfeita clareza sobre isso. Há um grande empenho sendo feito hoje para, de alguma forma, criar uma ponte sobre essa separação, a fim de atravessá-la, para torná-la menos diferente e distinta do que é. Você encontra pessoas trabalhando com o objetivo de tentar levar outras pessoas para Cristo indo à terra delas, considerando onde elas estão e tentando encontrá-las em seu próprio território. Isso é apresentado numa frase muito comum: “É preciso encontrar as pessoas em seu próprio território1”, mas isso é um erro fatal quando você está procurando trazer as pessoas para o terreno de Cristo. Muitas vezes ouvimos de coisas sendo feitas e de métodos sendo adotados a fim de tentar ganhar pessoas para Cristo por considerar cuidadosamente o que preocupa as pessoas ou tendo as pessoas em vista. Por exemplo, considere uma turma de estudantes. Para ganhá-los, você deve ir ao território dos estudantes, assumir uma posição intelectual e lidar com eles segundo uma linha intelectual. Isso é tomar uma base natural, e nunca resulta realmente em uma posição definida e real em Cristo. E em muitas outras áreas esse tipo de coisa é feita.

Eles não têm nenhuma amizade, nenhum relacionamento, nenhuma comunhão, nada em comum.

O Senhor Jesus sabia muito bem, como alguém que sabia de tudo, que esse tipo de coisa não pode funcionar. Aproximou-se Dele aquele que era um bom homem: Nicodemos. Nicodemos era, em primeiro lugar, um homem naturalmente religioso e, sem dúvida, um homem educado, e, por fim, um homem de posição social e de influência, um homem que tinha conquistado muitas coisas em seu próprio lado da natureza, as quais lhe deram uma base e feito dele alguém. Ele veio ao Senhor Jesus e começou a falar sobre seu próprio procedimento, de seu próprio caminho. “Bem sabemos que és Mestre, vindo de Deus” (Jo 3.2). “Pare, Nicodemos! Você não pode ir mais longe. Se você veio para obter ajuda de Mim, Eu não posso ajudá-lo enquanto você não ver para Meu terreno. Você está em um reino, Eu estou em outro. Você pertence a um homem; Eu sou totalmente outro homem. Eu não posso seguir com você em seus passos. Nicodemos, se quiser ter alguma coisa de Mim, você deve nascer de novo, você deve nascer de cima. Você deve vir para Meu terreno, sair de seu próprio terreno. Eu não posso encontrar você .” Ele parou a coisa toda de uma vez e colocou a questão: “Somos dois homens diferentes. Você pertence a uma raça, Eu pertenço a outra. Você pertence a um mundo, Eu pertenço a outra. Há muitas coisas boas sobre você para seu mundo, mas, no Meu mundo, elas não têm importância. Você tem de sair de um para o outro e reconhecer que nada do que está em Adão tem qualquer valor quando se trata de salvação. Não, há uma grande lacuna entre nós e nada pode preenchê-la. Você tem de sair desse terreno e ir para outro antes que possa haver um real começo em entender as coisas de Cristo.”

Dois nascimentos

Dois homens que representam dois reinos e duas naturezas tão absoluta e completamente diferentes tornam fazer a comunhão entre si completamente impossível. Bem, dois homens: isso é o que está estabelecido, e temos de ser muito francos sobre isso. Vamos reconhecer isso e sempre apresentá-lo para as pessoas e nunca tentar ir para o terreno delas e tomar a posição delas, na esperança de ganhá-las para o nosso ou para o de Cristo. Não vai funcionar. Temos de estar no terreno de Cristo e dizer: “Você precisa nascer de novo antes que possa ter um começo, antes que possa ter o primeiro vislumbre da luz ou da vida no que diz respeito ao céu”. Assim, os dois homens, como essas palavras deixam claro, representam dois nascimentos: “O que é nascido da carne”, como o Senhor Jesus disse a Nicodemos, “é carne, e o que é nascido do Espírito é espírito” (v. 6) – dois nascimentos distintos. O nascimento em Adão é o nascimento segundo a carne. O nascimento em Cristo é o nascimento do Espírito. “Você deve nascer de novo.”

Duas hereditariedades

Depois, por causa dos diferentes nascimentos certamente haverá duas hereditariedades: a que o Novo Testamento chama de “o velho homem” e a que é chamada de “o novo homem”. Sabemos muito bem que temos nosso homem velho por hereditariedade; temos a hereditariedade de Adão. Nós não estamos apenas em Adão pelo nascimento, mas Adão está em nós pelo nascimento. Quando os filhos de Israel estavam no Egito, eles estavam no Egito, e então Deus os tirou do Egito, mas por 40 anos ficou bastante claro que o Egito não havia saído deles. Este era o problema: durante 40 anos no deserto, o Egito que neles estava foi sendo tratado. O coração deles estava sempre ligado com o Egito. A única coisa que se tornou tão manifestamente necessária era que o Egito no coração tinha de ser suplantado pela Terra da Promessa, e aquelas pessoas que não tinham a terra no coração pereceram no deserto porque o Egito ainda estava em seu coração, mas a nova raça, a nova geração, em cujo coração a terra estava, entrou e a possuiu. Estamos em Adão, mas Adão está em nós também. Temos a hereditariedade de Adão e sabemos disso muito bem. Mas há também outro aspecto.

Quando estamos em Cristo, quando nascemos de novo do Espírito, então, temos a nova hereditariedade. Nós herdamos o que há em Cristo. Pedro fala de nos tornarmos “participantes da natureza divina” (2Pe 1.4). É implantada em nós no novo nascimento a hereditariedade do Senhor Jesus Cristo. Nós herdamos algo por nascermos Dele, e isso está em Cristo como está em nós, que é a esperança de tudo. Como Paulo afirmou: “Cristo em vós, a esperança da glória” (Cl 1.27). Agora, não somente em Cristo, mas Cristo em nós pelo novo nascimento, de modo que não é só que viemos para o reino do cristianismo, uma esfera chamado “Cristo”, mas que entraram em nós as poderosas energias da própria vida de Cristo e da própria disposição e natureza de Cristo a crescer. Assim como o que nasce no corpo se manifesta mais cedo ou mais tarde em natureza – e toda nossa vida natural nada mais é do que o desdobramento gradual do que está em nós por natureza, e quanto mais velhos ficamos, mais consciente de que somos como certas pessoas que existiram antes de nós, quantos vestígios de nossos antepassados somos capazes de descobrir –, assim é em Cristo. Conforme avançamos, se de fato seguimos em Cristo, o que herdamos Dele cresce e se torna cada vez mais evidente.

Dois cursos2

Então, há dois cursos. Há o curso de Adão e o curso de Cristo. O curso de Adão é chamado, ou denominado, de “terreno, da terra”. Uma vez que Adão pecou e caiu, seu curso foi inteiramente terreno. Tudo relativo a ele – todos os seus interesses, sua visão toda, todas as suas energias – aponta para baixo e é da terra, é terreno. Paulo fala disso, como você observa na passagem em 1 Coríntios 15: “O primeiro homem, da terra, é terreno […] Assim como trouxemos a imagem do terreno […]” (vv. 47-49). Gosto do modo como isso é colocado. O Espírito Santo sabe o que está fazendo quando usa palavras. Ele poderia facilmente ter usado “terrestre” aqui, mas usou “terreno”. Você pode pensar que há muito pouca diferença. Se você diz “terrestre”, isso significa que você pertence a certo reino e sua associação é com esse reino. Mas se diz “terreno”, isso significa que você é da própria natureza desse reino, e essa é uma grande diferença. Você pode estar no mundo no que diz respeito a seu ser físico, mas não é de todo necessário para você ser um com o mundo em sua natureza e disposição. O Senhor Jesus disse: “Eles estão no mundo, mas não são do mundo” (Jo 17.14), e “terreno” significa que não somos apenas ligados à terra, mas que participamos de algo que é chamado de “terra”, de uma natureza, e nosso curso é este – um curso terreno – e não há céu aberto para nós.

Em Cristo, o que herdamos Dele cresce e se torna cada vez mais evidente.

Mas, então, há o curso de Cristo, e você sabe que, sempre em conexão com Cristo, está a palavra “celestial”. “Vós sois de baixo, Eu sou de cima” (Jo 8.23). “Eu desci do céu” (6.38). O homem celestial, o último Adão, é o Senhor do céu, e o curso em Cristo significa que nosso curso é celestial, nossos interesses são celestiais, nossos recursos são celestiais, nosso objetivo é celestial, nossas obras são celestiais. Nossa vida é celestial em natureza, substância e força. “Portanto, se já ressuscitastes com Cristo, buscai as coisas que são de cima, onde Cristo está […] A vossa vida está escondida com Cristo em Deus” (Cl 3.1,3). O curso de Cristo é celestial.

Não se esqueça que o único objetivo do grande inimigo, Satanás, é criar uma ligação entre os filhos de Deus e aquilo que é terreno. Ele tem tentado e conseguido com a Igreja quase como um todo ao longo de séculos, tornando-a algo terreno, algo aqui de baixo, pertencente à terra, enquanto ela, em seus primórdios, era inteiramente e só celestial – muito simples. Seus locais de reunião eram muito simples, não considerados pelo mundo; todas as suas formas e seus caminhos eram muito simples, na verdade. Não havia nada aqui nesta terra e no mundo para ganhar o favor dela, sua reputação ou seu reconhecimento, mas sua vida era celestial. A única coisa que ela tinha aqui embaixo era um testemunho, e era um testemunho de um Cristo celestial e reinante. Satanás triunfou tremendamente ao fazer da Igreja algo terreno, e ele está sempre tentando fazer isso com você e comigo, a fim de obter uma ligação entre nós e o que está aqui e roubar-nos de nossa vida essencialmente celestial. Se ele não pode fazê-lo de uma maneira, tentará fazê-lo de outra. Inconscientemente, imperceptivelmente, a coisa opera até que nosso coração seja afastado do Senhor celestial e tenha um interesse no que está aqui.

Dois destinos

Então, finalmente, temos dois destinos. Em Adão: juízo de condenação. Este é o destino para a raça de Adão, para a vida de Adão: condenação, julgamento, morte, morte eterna. O outro destino, em Cristo, é um destino glorioso, a vida eterna, honra e glória eternas.

Estou falando muito brevemente sobre essas coisas, mas esse é o grande divisor de águas em todos os aspectos.

O caminho para fora de Adão e para dentro de Cristo

Agora, como sair de um e entrar no outro? Como sair de Adão e entrar em Cristo? Como sair do velho nascimento para o novo nascimento? Como sair da hereditariedade do velho homem para a do novo homem? Como afastar-se desse velho curso terreno e ir para o novo curso celestial? Como sair do destino de julgamento e morte e ir para o destino de vida e glória? Como? Bem, as Escrituras deixam isso perfeitamente claro. Como sair de Adão? Você nunca poderá lutar para sair de Adão e entrar em Cristo. Você nunca poderá, por qualquer força de vontade, sair de Adão e entrar em Cristo. Se sua vontade é mais forte do que a de Satanás, então, você pode controlá-la, mas todos os que têm tentado descobriram que isso não acontece. Satanás é muito inteligente e muito poderoso, e ele não deixa o que é dele ir facilmente. Como, então?

Há apenas um caminho. Deus encontrou uma maneira e Deus determinou um caminho. “Como posso sair de Adão?” Bem: morra – isso é tudo. “Se eu morrer…” Bem, isso é o fim de tudo. Para sair de Adão, somente pela morte. E como entrar em Cristo? Pela ressurreição. Por isso, somos apresentados como tendo morrido em Cristo. Como podemos morrer? Não podemos cometer suicídio, não podemos nos matar, não podemos pôr fim a essa relação miserável de vida com Adão por qualquer meio a nosso alcance. Deus providenciou um caminho, e Ele fez Seu Filho nosso representante a morrer uma morte poderosa e inclusiva como nossa morte. Ele morreu como nós aos olhos de Deus, e a morte de Cristo é uma coisa poderosa. Ela é tornada eficaz pelo Espírito Santo. Então, o que temos de fazer é ver, em primeiro lugar, Cristo como nosso representante morrer em nosso lugar como nós. Então, pela fé, aceitara a Ele e a Sua morte como nossos e nos considerar como tendo morrido em Cristo, e, em seguida, pela mesma fé na ressurreição do Senhor Jesus, ver que Ele é ressuscitado por nós e como nós para nossa justificação, e na fé tomá-Lo como o Senhor ressuscitado, como nossa nova vida, para ser em nós a nova vida. Nós morremos Nele, somos ressuscitados Nele, e contamos com o Espírito Santo para tornar isso real.

Então, o Senhor diz3: “Aqui está uma maneira que projetei para que você possa testemunhar a todas as inteligências visíveis e invisíveis sobre a posição que tomou. Eia aqui água, eis aqui um túmulo. Desça a ele e, ao fazê-lo, declare na terra e diante do céu e diante do inferno que, na morte de Cristo, você morreu, e que isso é o fim de Adão e de tudo o que pertence a Adão. Em Cristo, você vive de novo, mas não mais em Adão”. “De agora em diante, Nele” e em tudo o que Ele representa. Essa é a sua maneira de fazer uma declaração, e o Senhor aplica Seu selo sobre esse testemunho. Isso não é o fato, mas provê uma maneira de nosso testemunho dele, e Deus a ordenou.

Tudo isso é muito elementar, mas é muito importante que haja muita clareza sobre as coisas que são claras, e que coloquemos as coisas em seu lugar e vejamos que há reinos e relacionamentos distintamente diferentes separados por Deus, sem qualquer comunhão um com o outro, e estamos em um ou estamos em outro, e nunca podemos estar em ambos ao mesmo tempo. Estamos em Adão ou estamos em Cristo. Se estamos em Adão, não estamos em Cristo. Se estamos em Cristo, não estamos em Adão; Cristo é a nossa vida. Espero que você tenha feito essa distinção e se posicionado no território divino.


1Talvez no Brasil se diga algo como: “É preciso ir onde o povo está.” (N. do T.)

2No sentido de fluir, de corrente, como o curso de um rio. (N. do T.)

3Evidentemente, o autor está fazendo uma paráfrase de várias declarações do Senhor Jesus e do significado delas, não citando uma passagem específica. (N. do T.)

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Cativeiro no Senhor (T. Austin-Sparks)

Plantado como semente na prisão

“Eu, Paulo, sou o prisioneiro de Jesus Cristo por vós, os gentios” (Ef 3.1).

“Rogo-vos, pois, eu, o preso do Senhor, que andeis como é digno da vocação com que fostes chamados” (4.1).

“Sofro trabalhos e até prisões, como um malfeitor; mas a palavra de Deus não está presa” (2Tm 2.9).

“Não te envergonhes do testemunho de nosso Senhor, nem de mim, que sou prisioneiro seu; antes participa das aflições do evangelho segundo o poder de Deus” (2Tm 1.8).

Há um sentido muito real em que o apóstolo Paulo, em sua pessoa e experiência, foi uma corporificação da história da Igreja nesta era. Na verdade, parece ser um princípio na economia divina que aqueles a quem uma revelação foi confiada devem tê-la tão trabalhada em seu próprio ser e em sua história que sejam capazes de dizer: “Eu sou um sinal para vocês”. Ao considerar os trechos citados, vemos que o fim da vida de Paulo experimentou um processo de estreitamento e limitação operando por meio de “uma grande apostasia”, por um lado, e um confinamento do geral para o específico, em que ele, Paulo, representou o testemunho do outro. Isso é precisamente o que está predito quanto às condições relativas ao “fim”, e não é sem importância que seja especialmente mencionado nas declarações proféticas a Timóteo, na carta final. Desse modo, a ocorrência da expressão “o prisioneiro do [no] Senhor” nos últimos escritos é profética em seu significado, e maravilhosamente explicativa da forma final da soberania do Senhor.

O que temos aqui, então, é

1. O instrumento do testemunho do Senhor em um lugar de limitação, pela vontade de Deus.

Ao lermos o registro dos incidentes que levaram Paulo a Roma como prisioneiro – especialmente quando lemos as palavras de Agripa: “Bem podia soltar-se este homem, se não houvera apelado para César” (At 26.32) –, não podemos deixar de sentir que houve erros e acidentes, mas para os quais poderia ter havido um resultado muito mais propício, e o ministério geral do apóstolo poderia ter-se estendido. Pode ter havido momentos de estresse, quando o próprio Paulo foi tentado a se perguntar se não tinha sido impulsivo ao apelar ao imperador. Mas, conforme avançava, e quando o Senhor falou com ele, ocasionalmente, dando-lhe luz, ficou claro que, apesar da coisa ter sido humanamente realizada, havia o governo soberano de Deus em tudo e que ele estava na prisão, não como prisioneiro do imperador, mas como o prisioneiro no Senhor.

Não está relacionado com querer ser ou não querer ser, mas a não poder ser nada a não ser um prisioneiro, algo feito pela soberania de Deus.

Talvez Paulo não tenha aceito isso tudo de uma vez. Possivelmente ele não tenha percebido como isso iria operar. Um julgamento e uma libertação mais ou menos rápidas podiam ter estado em sua mente. Alguma esperança de um ministério posterior entre os amados santos parece não estar ausente de sua correspondência. (Provavelmente, havia decorrido um curto período desde a libertação da primeira prisão.) Por fim, no entanto, ele aceitou totalmente que estava se tornando cada vez mais claro como o caminho do Senhor, e cresceu nele a certeza de que esse caminho estava de acordo com os maiores interesses do Corpo de Cristo. Assim, vemos que, quando vem o momento do povo do Senhor ser colocado face a face com as coisas últimas e supremas da revelação de Jesus Cristo – coisas além da salvação pessoal, coisas que se relacionam com a mente de Deus desde os tempos eternos e bem além de ser salvo –, então, tem de haver um estreitamento, um confinamento, um limitante. Muita atividade que foi feita, e tudo que foi feito a fim de trazer coisas para determinada posição e estado, agora cessam para levá-los mais adiante, e algo mais intensivo é necessário.

O que representa o testemunho em sua aproximação mais completa e mais próxima do propósito final de Deus, então, tem de ser despojado de muito do que tem sido bom, necessário e de Deus numa forma preparatória, e deve ser encarcerado para o que é final . O cativeiro não é uma verdade concebida ou uma aceitação doutrinária imposta. Ele é operado em cada fibra do ser pela experiência que segue à revelação, e a revelação interpreta a experiência. Não é a vitória de alguma interpretação defendida: é a própria vida dos instrumentos, e o instrumento é aquilo em seu próprio ser. Não está relacionado com querer ser ou não querer ser, mas a não poder ser nada a não ser um prisioneiro, algo feito pela soberania de Deus.

2. A importância e o valor de ver e aceitar as coisas na luz de Deus

Isso se aplicava a Paulo e àqueles que estavam com ele. Para o apóstolo, estar confortável na soberana ordenação de Deus em sua prisão resultava em iluminação crescente que levava à emancipação espiritual.

Ninguém pode deixar de reconhecer o enorme enriquecimento do ministério como o contido nas que são chamadas de “epístolas da prisão”: [ Efésios, Filipenses, Colossenses, Filemom]. Se ele tivesse sido obstinado, ressentido, rebelde ou amargo, não teria havido o céu aberto, e um espírito de controvérsia com o Senhor teria fechado e selado a porta para as mais plenas revelações e aclaramentos divinos.

Quando tudo foi aceito de acordo com a mente do Senhor, logo “os lugares celestiais” se tornaram as extensões eternas de sua caminhada sobre a terra, e servidão terrena deu lugar à liberdade celestial. Assim deve ser com cada instrumento separado para os interesses superiores do testemunho do Senhor.

A leitura de certas passagens em suas cartas e o registro de sua prisão mostra como isso se aplicava aos outros. Considere as seguintes:

“Portanto, não te envergonhes do testemunho de nosso Senhor, nem de mim, que sou prisioneiro seu” (2Tm 1.8).

“E Paulo ficou dois anos inteiros na sua própria habitação que alugara, e recebia todos quantos vinham vê-lo […] e ensinando com toda a liberdade as coisas pertencentes ao Senhor Jesus Cristo” (At 28.30,31).

“O Senhor conceda misericórdia à casa de Onesíforo, porque muitas vezes me recreou, e não se envergonhou das minhas cadeias. Antes, vindo ele a Roma, com muito cuidado me procurou e me achou” (2Tm 1.6,7).

É evidente que essas passagens indicam que tinha de haver uma compreensão divina e não apenas uma apreciação humana da posição de Paulo. Níveis humanos de mentalidade teriam produzido uma atmosfera de dúvida, desconfiança, questionamentos, e teriam deixado elementos de falsa imputação. Considerada em linhas meramente naturais, a associação com o prisioneiro teria envolvido tais associados em suspeita e preconceito. A dúvida sobre o servo do Senhor era muito difundida, e até mesmo muitos do povo do Senhor não tinham certeza sobre ele. Mas o Senhor estava fechando uma revelação muito importante para esse canal, e para os que estavam realmente em necessidade espiritual; estes que tinham de permanecer em uma relação viva com a plenitude do testemunho da identificação com Cristo na morte e na ressurreição, na união no trono com Ele, o poder sobre principados e potestades, e para o ministério “nos séculos vindouros”, tinham de ser postos de lado de todas considerações humanas, pessoais e diplomáticas, e permanecer bem ali com o instrumento com que Deus os colocou na prisão honrosa. Para a posse do que estava por vir por meio do vaso, tinha de haver uma ida ao lugar em que o vaso1 estava, sem consideração por reputação, influência ou popularidade.

Dessa forma, o Senhor peneira Seu povo e encontra quem realmente é inteiramente para Ele e para Seus testemunho, e quem age em qualquer medida por outras considerações e interesses. O instrumento nessa posição de rejeição popular é, portanto, a ferramenta de busca do Senhor pelos realmente necessitados e pobres de espírito. Eles serão encontrados e terão suas necessidades satisfeitas.

A outra verdade que permanece aqui, então, é que

3. Vergonha, desprezo e limitação são muitas vezes formas de Deus enriquecer todo o Corpo de Cristo.

Tem sido sempre assim. A medida de aproximação à plenitude da revelação tem sido sempre acompanhado por um custo relativo. Cada instrumento do testemunho tem sido colocada sob suspeita e desprezo em uma medida proporcional ao grau de valor para o Senhor, e isso fez com que, humanamente, eles sejam limitados a esse ponto. Muitos têm apostatado, caído, se afastado, duvidado, temido e questionado. Mas, como Paulo pôde dizer: “Portanto, vos peço que não desfaleçais nas minhas tribulações por vós, que são a vossa glória” (Ef 3.13.), ou: “Eu, Paulo, sou o prisioneiro de Jesus Cristo por vós, os gentios” (v. 1), então, a medida de limitação no Senhor é a medida de enriquecimento de Seu povo. Quanto mais completa a revelação, menos aqueles que a apreendem ou maior o número daqueles que permanecem ao longe. Revelação só vem por meio de sofrimento e limitação, e tê-los experimentalmente significa compartilhar o custo de alguma forma. Mas essa é a maneira divina de garantir para Deus um lote2 de semente espiritual.

Revelação só vem por meio de sofrimento e limitação.

Um lote de sementes é uma coisa intensiva. Ali as coisas são reduzidas a dimensões muito limitadas. Não é algo visível de grande extensão que está imediatamente em vista, mas as coisas são consideradas, em primeiro lugar, à luz da semente. O verdadeiro significado das coisas não é sempre reconhecido , mas você pode viajar por todo o mundo e encontrar um grande número de jardins que são a expressão daquele intensivo e restrito lote de sementes. Se alguma vez houve tal lote de semente, foi a prisão de Paulo em Roma.

Tudo isso pode se aplicar a vidas individuais em relação ao testemunho do Senhor. Muitas vezes pode haver um atrito contra a limitação, o confinamento, e um desejo inquieto por aquilo que chamaríamos de algo mais amplo ou menos restrito. Se o Senhor nos quer no lugar em que estamos, nossa aceitação disso em fé pode provar que isso se torna uma coisa muito maior do que qualquer avaliação humana pode julgar. Gostaria de saber se Paulo tinha alguma idéia de que sua prisão significaria sua contínua expansão de valor para o Senhor Jesus ao longo 1.900 anos? O que se aplica a indivíduos também se aplica aos ajuntamentos, assembléias ou grupos do povo do Senhor espalhados na terra, mas um em sua comunhão com respeito ao testemunho pleno do Senhor.

Que o Senhor esteja graciosamente agradado de fazer com que o aspecto meramente humano dos muros da prisão sejam expulso e nos dê a percepção de que, longe de ser limitada por homens e circunstâncias, é prisão no Senhor, e isso significa que todas as era e todos os reinos entram por essa prisão.

(De Toward a Mark (Em direção à marca), jan-fev 1980, vol. 9-1.)

(Traduzido por Francisco Nunes. Original aqui. A maior parte dos textos de Austin-Sparks é transcrição de suas mensagens orais. Os irmãos que as transcrevem não fazem nenhuma edição ou aprimoramento. Por isso, o texto conserva bastante de sua oralidade, o que, em muitas circunstâncias, não permite uma tradução mais apurada. Se houver qualquer sugestão para aprimoramento deste trabalho, por favor, deixe um comentário. Este artigo pode ser distribuído e usado livremente, desde que não haja alteração no texto, sejam mantidas as informações de autoria, tradução e fonte e seja exclusivamente para uso gratuito.)

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1Instrumento e vaso, como visto neste artigo, são termos normalmente usados por Austin-Sparks para se referir aos servos de Deus. (N.T.)

2No sentido de um canteiro, um terreno pequeno. (N.T.)

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Um Deus que se oculta (T. Austin-Sparks)

O Deus que se oculta sempre se revela

“Verdadeiramente tu és o Deus que te ocultas, o Deus de Israel, o Salvador” (Is 45.15).

É como se o profeta tivesse sido subitamente intimidado e maravilhado com o que ele estava fazendo para profetizar! No meio de seu ministério, algo de maravilhoso abriu-se sobre ele e interrompeu essa declaração.

Deixando, por um momento, muito do que isso poderia implicar tanto como profecia quanto como previsão e sua vindicação, vamos ficar com a própria exclamação. Essa declaração é única, em princípio, com vários exemplos nas Escrituras. Olhando para o presente contexto, vemos que é a libertação de Israel do cativeiro e o retorno à Terra Prometida para reconstruir Jerusalém e o templo que está em vista. Sem dúvida, houve muita especulação e discussão a respeito de como as profecias do retorno dos judeus seria cumprida. Setenta anos tinham sido determinados e dados a conhecer como a duração do cativeiro. Os poderes gentios estavam em indubitável ascensão, e parecia muito pouco provável ou possível que Israel reconquistasse seu poder e glória nacionais entre as nações. O estado de coisas em seu próprio país – o templo destruído, a cidade queimada, a terra invadida por feras, os emissários do inimigo instalados – e a desintegração entre o povo no exílio criaram um panorama repleto de problemas aparentemente insuperáveis, e isso poderia muito bem ter levado à completa perplexidade e, até mesmo, ao desespero.

Então, o profeta é chamado para prever tudo o que ia acontecer – esta restauração – pelas mãos ou pela vontade do próprio poder gentio; que o Espírito soberano de Deus desceria sobre um homem que, por enquanto, não estava em posição de fazer isso e, provavelmente, cujo nome ainda não era totalmente conhecido. Babilônia ainda não fora derrubada: o império babilônico ainda não fora destruído; as profecias de Daniel ainda não haviam sido cumpridas. Mas aquele que faria isso foi mencionado pelo nome, e os detalhes de sua conquista são dados neste 45o. capítulo de profecias de Isaías. (Leia-o trecho por trecho.) E, em seguida, muito embora esse homem seja ignorante quanto a Deus, ele seria constrangido e compelido por Deus como um ungido para cumprir as Escrituras, libertar o povo, fornecer os meios e facilitar amplamente a restauração.

Como o profeta vê tudo em sua “visão” (“a visão de Isaías”, 1.1, uma visão que inclui tudo), ele está sobrecarregado com admiração. Todos os problemas são resolvidos, as perguntas, respondidas, as “montanhas”, aplainadas! Quem teria pensado nisso? Quem teria sonhado com tal coisa? Oh, quão profundos são os caminhos de Deus, inferiores a nossa imaginação, escondidos de nossas especulações mais intensas. “Verdadeiramente tu és o Deus que te ocultas, o Deus de Israel, o Salvador”.

Quem teria pensado na cruz para o Deus Encarnado como o método e os meios de resolver o maior problema já conhecido neste universo?

Houve vários outros grandes e notáveis exemplos do mistério dos caminhos de Deus no cumprimento de Seus principais propósitos. Toda a raça [humana] tinha se afastado Dele e se envolvido em impiedade e idolatria. Foi universal. Como Deus iria atender Sua própria necessidade? Bem, Ele moveu-se para colocar a mão sobre um homem, e desse homem Ele fez uma nação. Em graça soberana, Ele fez dessa nação Seu mistério, Seu segredo, entre as nações. Israel era o mistério de Deus, o caminho oculto de Deus. Sempre havia algo misterioso sobre Israel. Paulo, contemplando esse método de Deus e vendo-o erguer-se com tal poder esmagador, fez exatamente o que Isaías fez. Enquanto escrevia o verso a seguir, ele o interrompeu com uma exclamação forte e retumbante:

“Ó profundidade das riquezas, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos e quão inescrutáveis os seus caminhos!” (Rm 11.33).

Ele poderia muito bem ter acrescentado: “Tu és um Deus que te ocultas”. Quem poderia ter pensado na Encarnação, e nela, não em glória, mas em humilhação até ofender toda a expectativa do homem? Quem teria pensado na cruz para o Deus Encarnado como o método e os meios de resolver o maior problema já conhecido neste universo? Quem teria suspeitado que tudo isso estava incorporado naquele Homem de Nazaré, “o filho do carpinteiro” como O chamavam? Foi o maior mistério de Deus! Funcionou? Tem provado ser o caminho, o único caminho, e o caminho transcendentemente bem-sucedido?

E o que é verdade quanto ao mistério de Israel e ao mistério de Cristo, também é verdade quanto ao mistério da Igreja. Há um ocultamento sobre a verdadeira Igreja. Nenhum olho natural pode discerni-la. Nenhuma mente natural pode explicá-la. Reduza-a ao senso e à descrição humanos e você a perde, você capta a coisa errada. “A sabedoria de Deus (é) em mistério”, disse Paulo. Tente confiar a Igreja ao mundo sem fé, e você terá retirado da Igreja seu poder secreto! A menos que os homens consigam se dar bem vindo contra o Deus inescrutável que os esmaga, aquilo que afirma ser morada Dele é uma concha vazia.

E gostaríamos de lembrar você que aquilo que é verdadeiro nessas grandes épocas de progresso soberano ao longo dos séculos, essas intervenções e esses adventos na história da vida espiritual do mundo, é verdade na vida de cada um do verdadeiro povo de Deus. Eles serão constantemente confrontados com o “como?” de situações impossíveis, a fim de que sejam compelidos a repetidas exclamações na presença das soluções simples de Deus:

“Verdadeiramente tu és o Deus que te ocultas.”

“Profundamente, em minas insondáveis,
com perícia que nunca falha,
Ele entesoura Seus esplêndidos desígnios
e opera Sua vontade soberana.”1

“Dar-te-ei os tesouros escondidos, e as riquezas encobertas, para que saibas que eu sou o SENHOR, o Deus de Israel, que te chama pelo teu nome” (Is 45.3).

(Traduzido por Francisco Nunes. Original aqui. A maior parte dos textos de Austin-Sparks é transcrição de suas mensagens orais. Os irmãos que as transcrevem não fazem nenhuma edição ou aprimoramento. Por isso, o texto conserva bastante de sua oralidade, o que, em muitas circunstâncias, não permite uma tradução mais apurada. Se houver qualquer sugestão para aprimoramento deste trabalho, por favor, deixe um comentário. Este artigo pode ser distribuído e usado livremente, desde que não haja alteração no texto, sejam mantidas as informações de autoria, tradução e fonte e seja exclusivamente para uso gratuito.)

1 Segunda estrofe do hino God Moves in a Mysterious Way (Deus se move de uma maneira misteriosa), de William Cowper (1731–1800). (N.T.)

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Entrar no descanso de Deus (T. Austin-Sparks)

O primeiro dia de Adão nesta Terra foi um sábado. Deus criou o homem no sexto dia, e o primeiro dia completo que o homem teve foi o sábado, que se tornou o primeiro dia para ele. Considerado no Novo Testamento – em que Deus termina e aperfeiçoa Sua nova obra de criação no Senhor Jesus e entra em Seu descanso –, é o sábado de Deus, e lá nós começamos. Aquele é nosso primeiro dia: o descanso de Deus.

Começamos em algo que já é perfeito. Essa é a base do “pacto eterno”. Alcançar o significado disso é ver o que é o “pacto eterno”, é começar sobre a base perfeita e crescer a partir dela. O que importa não é como nos vemos ou como nos sentimos a esse respeito, mas é o lugar de Deus para nós. O fato é que em Jesus Cristo você e eu nunca seremos mais perfeitos do que somos agora. Esses aperfeiçoamentos podem ser lavrados em nós progressivamente, entretanto, no que diz respeito à base da nossa aceitação, somos “aceitos no Amado” (versão King James), e Ele satisfaz completamente ao Pai, que veio a descansar Nele. Essa obra é perfeita.

Nossa aceitação está sempre fundamentada em o objetivo de Deus ter sido alcançado. Até que isso esteja bem estabelecido, não temos nada em que nos firmar quando Deus começar a trabalhar em nós. Não se esqueça disso. Se, quando Deus começa a lidar conosco em disciplina e castigo, em treinamento, moldagem e formação, passamos em dado momento qualquer a dizer: “Isso está acontecendo porque sou tão mau, tão perverso, e o Senhor tem de fazer algo comigo para que eu seja aceitável”, então já abandonamos nossa base. Nunca seremos mais aceitáveis; no entanto, Deus faz muito em nós. Fomos aceitos, não com base no que somos – não importando quão bons ou maus fôssemos –, mas com base no Amado. “Aceitos no Amado.”

Nós cantamos – e eu desejo que isso habite mais e mais profundamente em nosso coração – que Suas perfeições são a medida de nossa própria aceitação. É ali que começamos. Bendito seja Deus, que essa é a base de confiança! E, quando o Senhor começa a nos tomar em Sua mão e sentimos quão abomináveis criaturas somos, isso nunca implica por um instante sequer que não sejamos aceitos. O pacto eterno significa aqui, em primeiro lugar, que somos aceitos com base na satisfação de Deus com Seu Filho. Se fôssemos aceitos com base em nós mesmos, e permanecêssemos em nós mesmos, não haveria pacto eterno e absolutamente nenhuma base segura. Tudo dependeria de como estivéssemos a cada dia. Mas não, não é uma questão de quem somos ou seremos. A base está firmada em Cristo. Deus está apenas trabalhando para tornar real em nós o que é verdadeiro em Seu Filho, mas Ele não muda a base para isso. Que não abandonemos nossa base.

(Traduzido por Francisco Nunes da revista A Witness and A Testimony, mar-abr de 1940, Vol. 18-2. O leitor tem permissão para divulgar e distribuir esse texto, exclusivamente de forma gratuita, desde que não altere seu formato, conteúdo e / ou tradução e que informe os créditos tanto de autoria como de tradução.)

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“Nem cheiro de fogo” (T. Austin-Sparks)

1Responderam Sadraque, Mesaque e Abednego, e disseram ao rei Nabucodonosor: “Não necessitamos de te responder sobre este negócio. Eis que o nosso Deus, a quem nós servimos, é que nos pode livrar; ele nos livrará da fornalha de fogo ardente, e da tua mão, ó rei. E, se não, fica sabendo ó rei, que não serviremos a teus deuses nem adoraremos a estátua de ouro que levantaste.”

Então Nabucodonosor se encheu de furor, e mudou-se o aspecto do seu semblante contra Sadraque, Mesaque e Abednego; falou, e ordenou que a fornalha se aquecesse sete vezes mais do que se costumava aquecer. E ordenou aos homens mais poderosos, que estavam no seu exército, que atassem a Sadraque, Mesaque e Abednego, para lançá-los na fornalha de fogo ardente. Então estes homens foram atados, vestidos com as suas capas, suas túnicas, e seus chapéus, e demais roupas, e foram lançados dentro da fornalha de fogo ardente. E, porque a palavra do rei era urgente, e a fornalha estava sobremaneira quente, a chama do fogo matou aqueles homens que carregaram a Sadraque, Mesaque, e Abednego. E estes três homens, Sadraque, Mesaque e Abednego, caíram atados dentro da fornalha de fogo ardente.

Então o rei Nabucodonosor se espantou, e se levantou depressa; falou, dizendo aos seus conselheiros: “Não lançamos nós, dentro do fogo, três homens atados?” Responderam e disseram ao rei: “É verdade, ó rei.” Respondeu, dizendo: “Eu, porém, vejo quatro homens soltos, que andam passeando dentro do fogo, sem sofrer nenhum dano; e o aspecto do quarto é semelhante ao Filho de Deus.”

Então chegando-se Nabucodonosor à porta da fornalha de fogo ardente, falou, dizendo: “Sadraque, Mesaque e Abednego, servos do Deus Altíssimo, saí e vinde!” Então Sadraque, Mesaque e Abednego saíram do meio do fogo.

E reuniram-se os príncipes, os capitães, os governadores e os conselheiros do rei e, contemplando estes homens, viram que o fogo não tinha tido poder algum sobre os seus corpos; nem um só cabelo da sua cabeça se tinha queimado, nem as suas capas se mudaram, nem cheiro de fogo tinha passado sobre eles.

(Daniel 3.16-27)

 

Em que vós grandemente vos alegrais, ainda que agora importa, sendo necessário, que estejais por um pouco contristados com várias tentações, para que a prova da vossa fé, muito mais preciosa do que o ouro que perece e é provado pelo fogo, se ache em louvor, e honra, e glória, na revelação de Jesus Cristo; ao qual, não o havendo visto, amais; no qual, não o vendo agora, mas crendo, vos alegrais com gozo inefável e glorioso.

(1Pedro 1.6-8)

 

A prova da vossa fé”. Vamos considerar quatro coisas que são o resultado da prova.

O resultado da prova
1. A autodestruição do inimigo

Quão maravilhosamente superior foi a situação daqueles três homens! Com a proximidade da provação, com a ameaça sobre a cabeça, quão sumamente despreocupada foi sua resposta ao rei! “Não necessitamos de te responder sobre este negócio.” Isso era uma bem estabelecida confiança de coração, o resultado de integridade de vida e de caminhar diante de Deus. A preocupação deles é que, de modo algum, poderiam comprometer seu relacionamento com o Deus Altíssimo. Ameaçaram-nos com a fornalha ardente – eles estavam muito acima disso. E o primeiro efeito de lançarem aqueles três homens na provação justificou a confiança deles, porque os que foram usados pelo inimigo para lançá-los no fogo foram consumidos pelo fogo.

Se nossa vida está corretamente posicionada em relação ao Senhor a quem confessamos e servimos, não precisamos temer o fogo. Certamente, devemos ser sábios para não convidar o fogo, mas, se no curso de nossa vida e de nosso testemunho, se e quando o fogo vier, não precisamos temê-lo. Os próprios instrumentos que o inimigo usa para levar-nos à situação ardente serão consumidos. Isso é uma palavra muito solene para qualquer um que seja achado criando condições ardentes para os santos. A preocupação dos santos deve ser apenas seu relacionamento com o Senhor.

2. O desatamento das amarras
Outro resultado do fogo é o desatamento das amarras. Você está no fogo? Quer uma boa razão para estar ali? Aqui está uma, que pode se aplicar a você: o fogo é ordenado por Deus com o propósito de desprender você de amarras. Sim, as limitações que as circunstâncias e as condições fora de nós impõem a nós, as frustrações das quais estamos tão conscientes – elas são tratadas com o fogo.

Mas o que dizer das limitações, as amarras, que são particularmente nossas, dentro de nós – as amarras de nossa constituição, as características de nosso temperamento? O mesmo é verdade. Aqui está um Deus amoroso ordenando o fogo e permitindo que o inimigo esquente a fornalha sete vezes mais, com o propósito, no coração de Deus, de desprender-nos das amarras. Oh, isso está acontecendo conosco? Os fogos estão sendo atiçados a uma intensidade tal que nunca pensamos ser possível suportar, e estamos sendo libertados por meio deles? Estamos sendo levados à gloriosa liberdade dos filhos de Deus? Estamos sendo livrados daquelas coisas que tanto arruinaram nossa vida, nosso testemunho, nosso ministério?

Talvez você sinta que não tenha muitas amarras. Bem, alguns de nós têm, e alguns de nós estão satisfeitos que seja isso o que Deus está fazendo no fogo. Há uma libertação no fogo.

3. Comunhão próxima com o Senhor
Outra coisa que aconteceu no fogo é que aqueles três homens se encontraram com Alguém numa comunhão e companhia mais próximas do que eles já houvessem experimentado. Nós conhecemos um pouco sobre isto, não é? No fogo, virmos a um conhecimento [especial] de nosso Senhor. Passamos pela fase do fogo e dizemos: “Eu nunca teria conhecido o Senhor desta maneira se não fosse pelo fogo. Foi no fogo que eu O encontrei dessa forma. Antes, eu sabia toda a teoria sobre isso, mas eu alcancei a realidade aqui.” Algumas versões registram que Nabucodonosor disse, em sua ignorância: “O aspecto do quarto é semelhante a um filho dos deuses”, mas, no que diz respeito a nós, era o Filho de Deus. Passamos pelo fogo em comunhão com nosso amado Senhor. Bem, o fogo é justificado.

4. A suprema glória: nenhum cheiro de fogo, mas alegria inefável
Mas, para mim, a coroa de tudo isso foi o que se seguiu, e este é o real encargo de meu coração. Eles saíram do fogo, e não havia nem mesmo cheiro de fogo sobre eles. Eu penso que isso é maravilhoso. Sim, maior conhecimento do Senhor; sim, libertação e emancipação; sim, mas nem mesmo o cheiro de queimado! Qual é a interpretação disso? Bem, eu penso que não há dúvida de que um esforço muito grande do adversário na fornalha ardente – se ele não puder nos impedir de sair e não puder consumir-nos no fogo – é, então, deixar as marcas e o cheiro sobre nós para que, nos dias subseqüentes, as pessoas irão associar conosco o tema do sofrimento e da provação. Você vê o que isso faz: atrai atenção para nós, e o diabo não se importa que, por ser a atenção desviada para nós, o Senhor seja ocultado. Ter cheiro de queimado sobre nós significa que o sofrimento e a provação pelos quais passamos eclipsaram a glória. Sair da provação de fogo de nossa fé sem o cheiro de queimado significa, eu penso, o cumprimento da palavra de Pedro: “Jesus Cristo; ao qual, não o havendo visto, amais; no qual, não o vendo agora, mas crendo, vos alegrais com gozo inefável e glorioso [cheio de glória]” (1Pe 1.8). Isto é o que se segue à palavra concernente à provação em fogo de nossa fé: “gozo inefável e glorioso”. Aqui está a coroa de um tempo desesperadamente negro, de talvez anos de sofrimento, de teste de nossa fé: alegria além do que é possível falar, cheia de glória. O inimigo sempre busca roubar nossa alegria e frustrar o desejo do Senhor de que sejamos irradiadores de Sua glória – e por meio da provação de fogo ele freqüentemente consegue.

Recentemente tive ocasião de ver um irmão que antes da última guerra2 estava no Continente3. Ele havia sido aprisionada por anos em um dos maiores campos de concentração. Sem tentar descrever suas lancinantes experiências em detalhes, é suficiente dizer que, em razão da posição que ele tomou, por pelo menos três vezes ele foi amarrado de cabeça para baixo no galho de uma árvore e espancado até ficar inconsciente. Eu estava interessado em vê-lo e notar quais foram os efeitos do sofrimento sobre ele. A fé daquele homem estava intacta; sua força foi aumentada e a marca proeminente não é o sofrimento, mas a glória. Ele é cheio de alegria. Sim, eu penso que ele conhece alguma coisa sobre a alegria inefável.

 

A necessidade de vigilância

O inimigo está, agora, fazendo um esforço muito grande para roubar nossa alegria. Se ele não puder nos manter na fornalha, jogará sobre nós algum cheiro de fogo para que, por onde quer que formos, as pessoas digam: “Tadinho! Ele está passando por uma situação terrível. Eu não sei como ele agüenta! Eu não sei o que ele vai fazer!” Você vê o que o cheiro de fogo está fazendo: está atraindo a atenção para nós mesmos.

Eu tenho sido bastante impressionado com quanto júbilo e alegria estão relacionados com a unção. Estamos familiarizados com o pensamento de que a unção traz poder e o exercício da autoridade do Trono, mas lembremos a palavra em Salmos 45.7 citada em Hebreus 1.9: “Tu amas a justiça e odeias a impiedade; por isso Deus, o teu Deus, te ungiu com óleo de alegria mais do que a teus companheiros”. Aqui está Aquele que se posiciona por Deus supremamente, entregue por um caminho de provação, de sofrimento, à fornalha ardente; sim, mas Esse é proeminente em júbilo e alegria. Outra vez, o Senhor toma a profecia concernente a Si mesmo em Isaías 61 e diz: “O Espírito do Senhor Deus está sobre mim; porque o Senhor me ungiu” (v. 1). Olha para essa profecia e veja quanto júbilo e quanta alegria se seguem à unção: “glória em vez de cinza, óleo de gozo em vez de tristeza, vestes de louvor em vez de espírito angustiado” (v. 3). Por causa da grandeza da pressão e da adversidade em que você se encontra, você está em perigo de perder a alegria? Você está tão feliz no Senhor agora que está bem na estrada como estava quando começou? Sem dúvida, podemos desdenhosamente atribuir a alegria inicial à superficialidade das coisas no começo. “Esses jovens crentes”, nós dizemos, “não sabem o que sofrimento, provação e teste significam. Se eles soubessem, não estariam tão radiantes!” Ah, sim, mas será que não perdemos alguma coisa? Teremos seguido com o Senhor e perdido a alegria do Senhor? Se estamos conscientes de termos perdido alguma coisa dela, devemos adotar atitudes para recuperá-la.

Eu li uma propaganda que foi colocada no jornal: “Procuram-se cristãos – alegres, se possível”. Sim, nós rimos disso, mas evidentemente quem fez o anúncio não pensa que haja muita chance de encontrar alguém assim! Piedade verdadeira e mau humor não andam juntos. Temos de vigiar, pois o inimigo está pronto para roubar-nos e manter o cheiro de fogo sobre nós. Oh, que passemos pelas mais negras experiências e sejamos aqueles que são tão cheios do que ganhamos no fogo que o fogo fica em lugar secundário e que todos que se encontrarem conosco após a provação encontrem-nos “com gozo inefável e glorioso”!

Pode ser que alguns que lêem essas palavras não saibam do que estamos falando, desta “prova de nossa fé”. Tudo o que eu posso dizer a eles é: “Não se preocupe com isso. Apenas entesoure a palavra, pois, se você está andando com o Senhor, se você tem alguma fé para ser purificada, Deus irá purificá-la e, de algum modo, em algum dia, de alguma forma, você vai se encontrar no fogo e não terá como escapar. Esta não é a experiência de alguns santos especiais somente. O Senhor está por trás da purificação da fé de todo Seu povo, e você chegará ao dia do fogo. Quando isso acontecer, lembre-se que o Senhor quer que estas coisas [alegria inefável e cheia de glória e fé purificada] resultem disso. Não fique tão preocupado com o inimigo; ele não está no comando de nada. Em sua fúria e malícia, em seu ódio ele está fazendo certas coisas, mas Deus as está tornando em algo importante e as usando para aperfeiçoar aquilo que diz respeito a Ele e a nós, a fim de levar-nos ao fim que Ele deseja, que é a glória de Deus em nós.”

 

 

(Traduzido por Francisco Nunes do livreto “Nor… the smell of fire…”, publicado por Emmanuel Church, Tulsa, OK, EUA; 1a. Edição, 1994. A reprodução é permitida desde que o texto não seja alterado, essas informações sejam mantidas e seja usado em publicações gratuitas.)

1Da revista A Witness and A Testimony, jul-ago, 1949, pp. 86,87

2Segunda Guerra Mundial (N. do T.)

3Europa (N. do T.)

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Cruz Igreja T. Austin-Sparks Vida cristã

O altar (a cruz) governa tudo (T. Austin-Sparks)

Em Ezequiel 43.13-27, temos o grande altar e seu serviço. Não vamos ler toda a seção, mas apenas seus primeiros versos: “E estas são as medidas do altar, em côvados (o côvado é um côvado e um palmo): e o fundo será de um côvado de altura, e um côvado de largura, e a sua borda em todo o seu contorno, de um palmo; e esta é a base do altar.” Então, são dadas mais informações sobre as medidas e o ministério. Todos entendemos que o altar no Antigo Testamento é sempre um tipo da Cruz. Esse altar é o lugar do holocausto, o que corresponde a Hebreus 10, onde o Senhor Jesus é comparado ao holocausto. Então, nesta manhã, vamos pensar sobre a centralidade e a universalidade da Cruz.

Vimos que toda a área do templo era quadrada. Se desenharmos linhas diagonais a partir de cada canto, elas se encontrarão no local onde o grande altar estava. O lugar central de toda a área era o altar. Você vai reconhecer que isso é diferente do tabernáculo no deserto. O átrio do tabernáculo não era quadrado, e o altar do holocausto ficava à direita da entrada, mas, nesse templo, o altar está no centro de um quadrado. É importante perceber isso. Todas as linhas se encontram no altar, e todas as linhas saem do altar. O lugar central de tudo é o altar.

O altar governava tudo. Governou tudo na casa, isto é, tudo o que estava de fato no templo era governado pelo altar. Governou tudo o que estava imediatamente ao redor da casa. Se você tivesse uma planta de toda a casa, com os diferentes caminhos e toda a área, você veria que todas as câmaras dos sacerdotes e os lugares onde as ofertas eram elaboradas estavam todos ao redor. Tudo estava reunido em volta da casa, mas tudo na casa e em toda a área era governado pelo altar.

E também todo o ministério da casa era governado pelo altar. Poderíamos dizer que não havia nenhum ministério que não fosse relacionado ao altar. Além disso, para além da casa, e para além da área imediata, mesmo fora de toda a terra, tudo era governado pelo altar. Podemos ver isso ao notar que o rio, que desceu por toda a terra, veio por meio do altar. Mas voltemo-nos para dentro da casa primeiro.

 

A cruz em seu lugar

Aqui temos uma verdade muito importante e vital. Quando a Cruz está em seu lugar, com sua medida plena, tudo vai estar em ordem, e a tudo o mais será dado seu significado e seu valor. Sinto não conseguir dizer com a força que deveria. Estamos muitas vezes preocupados com as coisas exteriores, com a ordem da Casa do Senhor, com o ministério da casa do Senhor, com as pessoas que estão relacionadas com a Casa do Senhor. Estamos sempre começando com o exterior. Estamos tentando estabelecer uma ordem para a Casa de Deus. Estamos tentando colocar as pessoas no lugar correto na Casa. Estamos muito preocupados com os ministros e os ministérios. Mas, se a Cruz está realmente em seu lugar, com suas dimensões totais, todas essas coisas podem cuidar de si mesmas. O povo estará certo se a Cruz estiver no lugar. Os ministérios serão vivos, se a Cruz estiver no lugar. A ordem da Casa estará certa se a Cruz estiver no lugar. Funciona desta maneira: se a cruz está bem no centro, na medida plena – e note que é um altar grande –, então, tudo o mais irá para seu lugar certo, numa relação viva.

Embora não seja dito aqui, penso ser correto concluir que esse altar era de bronze. O altar no tabernáculo era de bronze, o altar do templo de Salomão era de bronze, e acho que podemos assumir que este altar era também de bronze. Nós já encontramos o bronze. Vimos bronze no Homem à porta, e dissemos que com sua cana de medir Ele mediu tudo de acordo com o que Ele era (40.3). O bronze é tipo dos julgamentos justos de Deus. Esse grande altar representa a plenitude dos justos juízos de Deus. Esse altar de bronze é medido pelo Homem de bronze, de modo que o altar representa os pensamentos de Deus acerca do julgamento.

Nesse altar do holocausto, o homem injusto é completamente removido. Esse altar de bronze vê um homem produzir cinzas. As cinzas foram tiradas desse altar e despejadas no chão, ao lado do altar. Isso é um retrato da mente de Deus sobre o homem injusto, ou o homem natural. Ele é consumido no fogo do juízo de Deus, ele é reduzido a cinzas e é derramado no chão. Isso é a mente de Deus sobre o homem natural. Por outro lado, somente o homem justo pode ficar aqui, na presença deste altar. Claro, esses são os dois lados da pessoa e da obra do Senhor Jesus. Por um lado, Ele foi feito pecado por nós e, nessa qualidade, foi totalmente consumido e convertido em cinzas. Quando ele gritou: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste”, esse era o grito das cinzas! Ele tinha sido tornado em cinzas e derramado no chão.

Mas então há o outro lado da Cruz: “Ele não conheceu pecado” (2Co 5.21). Nele não havia injustiça e, portanto, ele pôde passar pelo altar, Ele pôde viver além do fogo! “Nem permitirás que o teu Santo veja corrupção” (Sl 16.10). Porque Nele não havia pecado, não poderia ser retido pela morte. Sua própria natureza poderia superar todos os juízos de Deus! Este é o significado do grande altar: um homem é levado a um fim, e outro Homem está em seu lugar. Tudo foi julgado no altar. Tudo é julgado na Cruz.

Fomos julgados na Cruz do Senhor Jesus, e em nós mesmos fomos levados a um fim. Tudo do natural foi julgado e levado a um fim na Cruz do Senhor Jesus. É uma coisa muito importante reconhecer isso. Perceba que isso faz qualquer coisa possível. É por isso que disse que, se a cruz está em seu lugar, tudo estará certo. A Casa estará certa, isto é, a Igreja estará certa. O ministério estará certo. A ordem estará certa. Você não terá de se esforçar para tentar produzir uma ordem certa. Ela espontaneamente virá da obra da Cruz.

Eu espero que você esteja escrevendo isso em sua mente. Você pode encontrar desordens na Casa de Deus. Você pode encontrar o homem natural na Casa de Deus. Você pode encontrar condições que sejam totalmente erradas na Casa de Deus. Como você vai lidar com isso? Você só pode tratar com essas coisas pelo princípio da Cruz. Você não pode lidar com as próprias pessoas, não pode lidar com as próprias coisas, mas, se você tão somente trouxer a Cruz àquela situação, terá resolvido todo o problema. Se tão-somente a Cruz tomar o lugar dela, todos os outros problemas serão resolvidos. É assim. Não começamos a partir do exterior. Não começamos com as pessoas, não começamos com a ordem da casa do Senhor, não começamos com o ministério: começamos com a cruz. E se tão-somente as pessoas virem a cruz, tudo o mais será endireitado. Tudo é julgado pela Cruz.

A Epístola aos Romanos é a mensagem da Cruz em sua plenitude. Nessa carta, você vê a grande medida da Cruz. Ali, a Cruz alcança todas as coisas. Ela traz toda a raça em Adão ao fim, e começa uma raça totalmente nova em Cristo ressuscitado! É muito impressionante que a primeira carta do Novo Testamento apresenta a Cruz em sua plena medida. Vocês todos sabem que a Epístola aos Romanos não foi a primeira carta escrita por Paulo, mas o Espírito Santo a colocou em primeiro lugar na disposição [dos livros]. Eu penso que o Espírito Santo tinha algo a fazer com o arranjo dos livros do Novo Testamento e, em Seu arranjo soberano deste livro, colocou o altar em sua plenitude logo no início. Bem, é claro, você tem de lembrar de tudo o que sabe sobre Romanos para ver isso.

Em 1Coríntios, a Cruz é aplicada ao homem natural e ao homem carnal dentro da Igreja. O homem natural e o carnal vieram para o lugar em que não tinham o direito de estar. Esse homem maligno se enfiou pela porta, e, por isso, o apóstolo traz Cristo crucificado sobre e contra o homem natural e o carnal. A Cruz em 1Coríntios tem relação com aquele homem, não fora da igreja, como em Romanos, mas dentro da Igreja.

A Segunda Epístola aos Coríntios estabelece a Cruz em relação ao ministério. Essa carta nos mostra que o ministério flui de um vaso quebrado e humilhado. Posso dizer apenas isso e deixar [para outro momento] a explicação completa.

Em Gálatas a Cruz é diminuída ao fazer do cristianismo outro sistema legalista e levar os cristãos à escravidão. Quão forte é o apóstolo nessa carta e ver como ele usa a Cruz. Ele usa a Cruz com vigor contra esse esforço de tornar o cristianismo um sistema legalista e levar os crentes de volta à escravidão.

Em Efésios, o trabalho da Cruz é colocar a Igreja em solo celestial. A Cruz em Efésios corta completamente a Igreja de toda a base terrena. Ela coloca a Igreja fora do tempo. Ela coloca a Igreja fora do mundo.

Em Filipenses, a Cruz é aplicada àquilo que corrompe a harmonia do povo do Senhor. Há uma dolorosa desarticulação dentro da Igreja. Há um ponto em que as coisas estão infelizes, e isso é causado por interesse pessoal e orgulho. Algumas pessoas não vão abandonar seu interesse pessoal. Algumas pessoas não vão deixar o orgulho. Elas foram ofendidas, e não vão perdoar. Assim, o apóstolo traz a Cruz contra essa discórdia e desarticulação, e ressalta que, se tão-somente a Cruz estiver naquelas vidas, tudo será corrigido.

A Epístola aos Colossenses mostra que a Cruz liberta de toda falsa espiritualidade. A Cruz coloca de lado tudo o que é mero misticismo e tudo o que faria Cristo menos do que Ele é.

Em seguida, há as cartas aos Tessalonicenses. Ali, a cruz é a força para o sofrimento, uma inspiração até a vinda do Senhor. Pode não haver muito, de fato, sendo dito sobre a Cruz nessas cartas, mas o princípio delas é o princípio da Cruz. As pessoas estavam sofrendo por amor a Cristo. Elas estavam sofrendo a perda de todas as coisas, e pensavam que o Senhor viria para libertá-las, e que Ele estava retardando Sua vinda. Assim, o apóstolo diz que os sofrimentos delas culminarão na vinda do Senhor e da glória. Os sofrimentos de sofrer com Cristo. Aqueles irmãos estavam sofrendo por amor a Cristo: é a comunhão na Cruz, mas os sofrimentos levam à glória. O Senhor está vindo, e então tudo vai estar certo. A Cruz tem uma mensagem muito real para os crentes em sofrimento.

E vamos apenas concluir isso com Hebreus.

Em Hebreus, a Cruz mostra como tudo é levado à plenitude e à finalidade. E tudo isso se relaciona com a Casa em seu interior. Ela toca a conduta. Ela toca o caráter. Ela toca a ordem. Ela toca o ministério. Se a cruz está em seu lugar, tudo vai ser eficaz.

Eu não lhes dei apenas alguns ensinamentos da Bíblia. A Cruz é a chave para tudo. Então, o que é verdadeiro para o interior é também verdadeiro para o exterior. É a cruz que afeta todos os aspectos de influência da Igreja. O rio vem pelo caminho da cruz, isto é, a influência que sai do santuário para toda a terra. É a cruz que dá eficácia ao ministério para o mundo todo. Então, os apóstolos pregaram por toda parte Cristo crucificado.

 

A Cruz é a defesa contra o mundo

E notemos outra coisa: o altar foi a grande defesa contra o inimigo. Em Esdras 3.3 lemos: “E firmaram o altar sobre as suas bases, porque o terror estava sobre eles, por causa dos povos das terras”. Porque o medo dos povos das terras estava sobre si, os israelitas colocaram o altar em seu lugar. A Cruz é uma grande defesa: a Cruz nos defende do mundo. O mundo é o grande inimigo da Igreja. O espírito do mundo sempre foi o grande inimigo da Igreja. Satanás sempre tentou trazer o mundo para dentro da Igreja e, assim, afundar a Igreja e seu ministério, destruir a influência da Igreja no mundo. É um movimento muito inteligente e sutil do inimigo para destruir a influência da Igreja no mundo: trazer o mundo para dentro da Igreja. Paulo disse: “Longe esteja de mim gloriar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo” (Gl 6.14).

Um povo verdadeiramente crucificados nunca está em perigo no mundo. É somente quando a Cruz não fez sua obra que o mundo tem um lugar. O mundo não tem lugar em um homem ou em uma mulher crucificado, ou em um grupo de crentes crucificados. A Cruz é uma grande defesa contra o mundo. Se você quer manter o mundo fora, coloque a Cruz no lugar dela. Se a cruz está verdadeira e plenamente em seu lugar, então, tudo o mais estará em ordem. A Cruz é a grande defesa contra o mundo. A Cruz é a grande defesa contra os poderes do mal. A Cruz torna tudo seguro; torna tudo seguro para o Senhor.

O Senhor quer se comprometer. Ele quer se confiar a Seu povo, mas, se a cruz não está operando, o Senhor não pode fazê-lo. O Senhor diz: “Não é seguro para Mim dar-me, ou eu estarei envolvido em sua condição não-crucificada.” A Cruz torna tudo seguro para o Senhor, e a Cruz faz tudo seguro para a Igreja. Se a Cruz está operando em todos nós, podemos confiar uns nos outros. É bastante seguro confiar-se a um homem ou a uma mulher crucificado.

Concluo essa manhã enfatizando que a Cruz não é uma doutrina a ser ensinada. Não é um assunto a ser pregado. É claro que deve ser ensinada pregada. Mas, em primeiro lugar, não é um assunto a ser ensinado. Não é apenas uma doutrina. A Cruz é poder. A Cruz é uma experiência. A Cruz é um evento em nossa vida. A Cruz é uma crise. A Cruz é uma revolução. A Cruz é um terremoto. Houve um terremoto quando Jesus foi crucificado. Se a Cruz entra em nossa vida, haverá um terremoto. Tudo vai ser abalado, tudo vai ser derrubado. A Cruz é um terremoto. É algo tremendo. A Cruz não é apenas uma teoria, não apenas uma doutrina: a Cruz governa tudo. Bem, essa é nossa mensagem sobre a centralidade e a universalidade da cruz.

O Senhor conceda que sejamos homens e mulheres crucificados. Que a assembléia à qual pertencemos seja uma assembléia crucificada. Que o Senhor conceda a toda a Sua Igreja ver o significado da Cruz.

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(Traduzido por Francisco Nunes do livreto The Altar (the Cross) Governs Everything, capítulo de The Persistent Purpose of God (O persistente propósito de Deus), por Emmanuel Church, Tulsa, OK, EUA, 1996. Editado de uma mensagem dada em Taiwan, em janeiro de 1957.)

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Biografia T. Austin-Sparks Testemunho

Uma consideração sobre T. Austin-Sparks (Harry Foster)

Publicado pela primeira vez na revista A Witness and A Testimony, jul/ago de 1971, vol. 49-4.

 

Depois de quarenta anos de associação ativa com o irmão Austin-Sparks nas coisas de Deus, coube a mim liderar o laudatório culto funeral em 19 de abril de 1971, quando um grande número de irmãos se reuniu em Honor Oak1 para magnificar ao Senhor pela vida longa e serviço frutífero de nosso irmão. Durante a maior parte desses anos, fui um colaborador de A Witness and A Testimony; assim, aceitei com gratidão a oportunidade de escrever uma pequena consideração sobre nosso irmão e seu trabalho para Deus.

Aqueles que estão familiarizados com seus livros vão lembrar que um deles é intitulado The School of Christ (A Escola de Cristo, disponível gratuitamente aqui). O próprio título sugere sua concepção do que a vida cristã é, pois ele ensinou que o principal propósito de Deus para todos nós é direcionado para a eternidade e direcionado para nos conformar à imagem de Seu Filho. O irmão Sparks foi capaz de ajudar muitos discípulos na escola de Cristo, pois, ao longo de seus muitos anos de serviço, ele estava pronto para assumir o lugar do aluno bem como do professor.

Seu discipulado começou quando, com dezessete anos, ele andava desanimado por uma rua de Glasgow, em uma tarde de domingo, e parou para ouvir alguns jovens testemunhando ao ar livre. Naquela mesma noite, ele entregou a vida ao Salvador, e no domingo seguinte encontrou-se com os mesmos ávidos jovens cristãos em sua reunião ao ar livre. Ele continuou com eles e, em pouco tempo, abriu a boca para falar algumas palavras simples de testemunho, entrando, assim, em uma vida de pregação do Evangelho que durou 65 anos.

Aqueles anos foram preenchidos com muitas atividades para Deus, mas a pregação era seu maior dom e sua maior alegria. Ele lia avidamente em seu desejo de compreensão espiritual e, acima de tudo, estudava a Bíblia, sempre em uma busca ansiosa pelos tesouros novos e antigos que podem ser encontrados lá por aqueles que são instruídos no reino dos céus. Uma de suas primeiras escolhas para o hinário suplementar que ele preparou para o uso no Honor Oak Christian Fellowship Centre foi o hino que tem como refrão o famoso lembrete do pastor John Robinson aos peregrinos do Mayflower: que “o Senhor ainda tem mais luz e verdade para irromper de Sua Palavra”2. Quantas vezes cantamos essas palavras inspiradoras no início de uma conferência em Honor Oak! E quantas vezes elas provaram ser verdadeiras aos ouvintes que as apreciavam!

O irmão Sparks sempre atribuiu grande importância à “revelação”, não se referindo ao desvendamento original de verdade pelos escritores inspirados das Escrituras, mas à iluminação e percepção dada pelo Espírito sobre o que a Palavra realmente ensina. Por essa razão, a maioria de seus livros, e quase todos os artigos publicados nesta revista, eram transcrições de mensagens faladas que haviam sido dadas com algum sentimento real de capacitação divina: pareciam-lhe ser mais aptas a ter um impacto espiritual se viessem não só do estudo, mas também do envolvimento em alguma situação prática. Provavelmente, sua maior utilidade foi quando ele estava falando de suas próprias experiências, tirando lições do que havia aprendido, não só do estudo, mas do que tinha acontecido com ele na escola de Cristo, onde o Pai trata Seus filhos com aquela correção, ou treinamento de filhos, pela qual somente pode prepará-los para a verdadeira filiação de acordo com o padrão do Filho perfeito. Ele foi muitas vezes capaz de interpretar para as pessoas o significado do que elas vinham atravessando, mostrando-lhes a importância e o propósito dos tratamentos, do lidar de Deus com eles.

Especialmente em seus primeiros anos, o irmão Sparks costumava dar grande ênfase sobre a necessidade da aplicação interior da Cruz na vida do crente. Ele pregou um evangelho da plena salvação pela fé simples no sacrifício de Cristo, mas ele ressaltou adicionalmente que o homem que conhece a purificação pelo sangue de Jesus deve também permitir que a mesma cruz trabalhe nas profundezas de sua alma, a fim de libertá-lo de si mesmo e levá-lo para um caminhar menos carnal e mais espiritual com Deus. Ele próprio havia passado por uma crise de auto-ruína por sua aceitação do veredito da Cruz sobre sua velha natureza, e viu nessa crise a introdução a um desfrute completamente novo da vida de Cristo, tão grande que ele só conseguia descrevê-lo como “um céu aberto”. Na igreja, a vida de pessoas entre as quais ministrava, ele também viu uma transformação impressionante produzida por essa mensagem da Cruz para o crente. Não é de admirar, portanto, que ele tenha aproveitado cada oportunidade de afirmar que não há outro caminho para a experiência plena da vontade de Deus a não ser pela união com Cristo em Sua morte. Repetidamente ele voltava ao ensino de Romanos 6, não apenas como um tópico favorito, mas com a convicção de que tal união era o meio seguro de conhecer o poder da ressurreição de Cristo.

A Cruz é sempre dolorosa; assim, podemos compreender que o irmão Sparks freqüentemente considerou os tratos de Deus com ele difíceis de suportar. Até 1950, ele era seguidamente prostrado com dor e incapaz de continuar seu trabalho; no entanto, vez após vez ele foi erguido [ressuscitado]3, às vezes literalmente do leito de doença, e ninguém podia deixar de reconhecer o impacto espiritual adicional que veio de tal situação. Nós oramos muito por ele durante esses anos, mas sem alívio duradouro, até que ele pôde ter o tratamento cirúrgico, que provou ser um meio da graça de Deus para responder a nossas orações, a fim de que, a partir de então, ele tivesse mais vinte anos de atividade em muitos países, e até sua última doença foi um exemplo notável de como a vida divina pode energizar o corpo mortal.

Por várias razões, padeceu de muitos outros sofrimentos, mas isso era coerente com seu próprio ensino de que, na Escola de Cristo, a pessoa aprende mais pelo sofrimento do que pelo estudo ou por ouvir mensagens. Se, no entanto, a Cruz envolve sofrimento, é também o segredo da graça abundante, como ele certamente provou. Seu último lema anual, elaborado para 1971, foi dedicado ao tema da suficiência da graça de Deus. Em novembro, ele escreveu um editorial nesta revista, registrando o fato de que, para ele, 1970 tinha sido um ano de pressão e dificuldade incomuns. Talvez como um espectador, pode-me ser permitido comentar que, aos olhos daqueles mais próximo a ele, também foi um ano de nova e mais plena evidência da graça de Deus, e que, de minha parte, me foram deixadas abençoadas lembranças de comunhão em conversa e oração que nunca teria sido possível entre nós sem o triunfo da graça divina. A Deus seja a glória!

A Cruz não é apenas dolorosa, é unificadora. O irmão Sparks cria e pregava que, por meio dela, o crente não é apenas levado a um mais amplo gozo pessoal da vida de ressurreição, mas também a uma verdadeira integração na comunhão da Igreja, que é o Corpo de Cristo. Ele nunca poderia pensar em si mesmo como um cristão isolado, nem nas assembléias como grupos isolados, mas tentou manter diante de si o propósito divino da redenção, que é a incorporação de todos os crentes numa membresia vital de um só corpo. Tem acontecido algumas vezes que cristãos muito ansiosos para expressar essa unidade têm, no entanto, contradito o espírito dela por traírem-na em uma atitude de superioridade em relação aos outros cristãos, assim se permitindo estar erradamente divididos de seus companheiros em Cristo. Nós aqui tivemos de confessar nossas próprias falhas a esse respeito, percebendo que nossa própria ânsia de ser fiel à revelação bíblica do que a Igreja deveria ser pode ter produzido intencionalmente uma espécie de separação entre o povo de Deus. Se o irmão Sparks, por vezes, tendeu nessa direção, ele certamente se moveu cada vez mais para longe disso conforme se aproximava da eternidade, aumentando progressivamente seu cuidado de mostrar uma apreciação adequada por todos os verdadeiros crentes, independentemente da conexão deles.

Ele deve ter sido tentado, por vezes, a afastar-se da comunhão prática com a igreja aqui em Honor Oak, pois talvez nós o limitássemos e, ocasionalmente, o irritávamos, mas Deus lhe deu a graça de nunca sucumbir a essa compreensível tentação. Ele ficou conosco até o final, mantendo o vínculo de comunhão intacto, mostrando um interesse amoroso pela próxima geração e participando conosco em adoração e oração, enquanto tinha condições físicas. Devemos muito a suas orações para nós, e ele apreciava profundamente o apoio em oração que pudemos lhe dar, especialmente nas conferências que ministrou em muitos lugares. Suas últimas mensagens à igreja, que me foram confiadas em seu leito, foram de grande gratidão por nossas orações. Nos últimos dias de grande fraqueza, quando muitas vezes ele parecia incapaz de lidar com qualquer tipo de comunicação, ele nunca deixou de dar um sussurrado “Amém” quando orações eram feitas, mostrando que, enquanto tudo o mais estava se tornando cada vez mais irreal, ele ainda poderia responder à grande realidade da oração “no Nome”.

Na verdade, a oração tinha sido sua vida, mais do que a pregação. Nesse assunto, ele estabeleceu um fundamento para o trabalho e estabeleceu um padrão que, pela graça de Deus, vamos procurar manter. Enquanto ainda era pastor da igreja batista local, ele costumava viajar toda terça-feira a fim de passar a hora do almoço orando com seus dois colegas, George Paterson e George Taylor, que trabalhavam secularmente na cidade naquela época. Após a igreja haver se mudado para as atuais instalações em 1926, primeiro Paterson e, em seguida, o Taylor renunciaram a seus cargos, a fim de serem totalmente livres para o trabalho espiritual, o que deixou ainda mais oportunidades para a oração unida, que se tornou uma característica proeminente tanto na vida da igreja como também na vizinha Guest House4.

Para o irmão Sparks, a oração tinha muitos aspectos, como é demonstrado por seu livro In Touch with the Throne (Em contato com o trono; disponível gratuitamente aqui). Ele nos deu o exemplo da oração que é adoração, não pedindo ou intercedendo, mas apenas oferecendo a Deus a adoração e o amor que Lhe são devidos. Frisou constantemente a importância do que chamou de “oração executiva”, que significava não apenas um pensamento anelante com o carimbo de “Amém” no final, mas a reivindicação ousada das promessas de Deus em nome do Senhor. Ele introduziu muitos de nós na realidade da “batalha de oração”, pois sabia que, só por chegar ao confronto com os inimigos invisíveis da vontade de Deus, é que a Igreja pode aplicar a vitória de Cristo a situações reais. Porque a oração é uma batalha, às vezes ele ficava muito triste quando nossas reuniões de oração tendiam a enfraquecer, mas ele nos reunia de novo para a luta e estava sempre pronto para se alegrar quando parecíamos romper na vitória da fé e estar “em contato com o trono”.

Talvez um de seus primeiros livros possa melhor nos dar uma indicação real para toda a sua vida e ministério. Ele é chamadoThe Centrality and Supremacy of the Lord Jesus Christ (A centralidade e a supremacia do Senhor Jesus Cristo). Foi aí onde ele começou, e foi aí onde ele terminou, pois se tornou perceptível em seus anos finais que perdeu o interesse em assuntos e concentrou sua atenção na pessoa de Cristo. Cristo é central! Nenhum de nós vai alegar ter estado sempre “no centro”, e ele certamente não faz tal afirmação, mas era o objetivo de sua vida e o alvo de toda a sua pregação e ensino reconhecer aquela centralidade e reverenciar [e submeter-se à]5 aquela supremacia. Em seu funeral, havia centenas que responderam plenamente à sugestão de que o irmão Sparks os tinha ajudado a conhecer Cristo de forma mais plena e mais satisfatória. Se alguém pode fazer homens perceberem algo mais do valor e da maravilha de Cristo, de modo que O amem mais e O sirvam melhor, então, tal pessoa não viveu em vão. Muitos no mundo inteiro podem dizer sinceramente que, por meio das palavras escritas ou faladas de “T. A-S.” [ou TAS], foi isso que lhes aconteceu e, especialmente com aqueles que vieram à fé em Cristo como Salvador graças a seu ministério, serão sua alegria no dia de Jesus Cristo. Além disso, algumas das verdades, que não eram de forma alguma aceitas quando proclamou-as anos atrás, já se tornaram amplamente aceitas entre os cristãos evangélicos. Por isso, é possível que, no longo prazo, seu ministério possa provar ter sido mais frutífero do que pareceu para ele ou para outros. É função do mordomo ser fiel, e isso ele buscou ser: apenas o Mestre é competente para julgar seu sucesso.

A primeira mensagem que eu o ouvi dar, em 1924, foi um apelo aos presentes para se apressarem em direção ao alvo para o prêmio, e concluiu com uma referência à entrada abundante no reino eterno que é prometida em 2Pedro 1:11. Agora, depois de mais de 47 anos de alegrias e provações por viver para Cristo, ele terminou sua carreira, e nós confiamos que sua entrada tenha sido de fato rica e abundante. Embora ele tenha ido embora, sua mensagem ainda traz o desafio para nós, que fomos deixados para trás, e, embora seus lábios estejam agora em silêncio, suas orações por nós ainda serão respondidas.

Parece algo significativo o fato de que ele foi para estar com Cristo imediatamente após o feriado da Páscoa, pois o culto de encerramento de nossas Conferências de Segunda-feira da Páscoa sempre foram um destaque, como muitos dos que estavam presentes concordarão. O irmão Sparks poderia dar mensagens longas, e muitas vezes o fez, mas sua mensagem de encerramento na ocasião era invariavelmente breve e direta ao ponto. O ponto era freqüentemente a Segunda Vinda de Cristo, e, à medida que nos reuníamos em grande número ao redor da mesa do Senhor e concluíamos com uma música triunfante sobre “A esperança da vinda do Senhor”, realmente o céu desceu e a glória encheu nossa alma. Naquela segunda-feira de Páscoa não houve essa reunião, mas na manhã seguinte cedo, nosso irmão passou tranquilamente para a presença de Cristo, a fim de aguardar ali o momento em que a esperança se tornará uma realidade gloriosa e vamos todos juntos encontrar o Senhor “nos ares”.

A voz do irmão Sparks não é mais ouvida entre nós, mas no culto de sepultamento a voz de seu Senhor e a nossa pareciam soar pelas salas, gritando: “Certamente, venho sem demora!” Como um só homem, toda a multidão respondeu: “Vem, Senhor Jesus.” Nesse ambiente, nós saímos para a luz do sol a fim de colocar o corpo de nosso irmão para descansar e cantar triunfantemente em torno de seu túmulo aberto: “Um dia Ele virá. Oh, glorioso dia!”

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(Traduzido por Francisco Nunes de An Appreciation of T Austin-Sparks by Harry Foster, original aqui. Se houver qualquer sugestão para aprimoramento deste trabalho, por favor, deixe um comentário.)

1The Honor Oak Christian Fellowship & Conference Centre, geralmente chamado de Christian Fellowship Centre ou Honor Oak, era uma construção para conferências cristãs e treinamento localizada na rodovia Honor Oak, na região sudeste de Londres. O centro foi a base para o ministério de seu fundador, o evangelista e escritor britânico T. Austin-Sparks, que havia sido anteriormente o ministro da igreja batista Honor Oak, de 1921 a 1926. Mais informações aqui. (N.T.)

2Este é o refrão do hino We limit not the truth of God (Não limitemos a verdade de Deus), letra de George Rawson. A letra completa e a melodia estão aqui.

3Raised up, no original, permite ambas traduções. (N.T.)

4Local de hospedagem junto ao Honor Oak. (N.T.)

5Bow, no original, permite ambas traduções. (N.T.)

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A casa, o nome e a glória (T. Austin-Sparks)

(Notas1 de uma mensagem proferida por Austin-Sparks na Conferência de dezembro)

 

Publicado pela primeira vez na revista A Witness and A Testimony, abril de 1927, Vol 5-4.

 

“Glorifica a teu Filho, para que também o teu Filho te glorifique a ti […] Para que vejam a minha glória que me deste: porque tu me amaste antes da fundação do mundo […] E todas as minhas coisas são tuas, e as tuas coisas são minhas; e nisso sou glorificado” (Jo 17.1,24,10).

“Pai, glorifica o teu nome. Então, veio uma voz do céu, que dizia: Já o tenho glorificado, e outra vez o glorificarei” (Jo 12.28).

“O zelo da tua casa me devorará” (Jo 2.17).

“Jesus Cristo, filho de Davi” (Mt 1.1).

E há de ser que, quando forem cumpridos os teus dias, para ires a teus pais, suscitarei a tua descendência depois de ti, um dos teus filhos, e estabelecerei o seu reino. Este me edificará casa; e eu confirmarei o seu trono para sempre. Eu lhe serei por pai, e ele me será por filho; e a minha benignidade não retirarei dele, como a tirei daquele que foi antes de ti” (1Cr 17.11-13).

“Pois a qual dos anjos disse jamais: Tu és meu Filho, hoje te gerei; e mais uma vez: Eu lhe serei Pai, e ele será para mim um Filho?” (Hb 1.5).

 

Salomão tornou-se um tipo de Cristo ao construir a casa e ao ter um trono. Lembre-se sempre de que a casa e o trono são combinados em Cristo. O templo espiritual, ou Igreja, e a soberania de Cristo entronizado e eterno: essas duas coisas sempre andam juntas. Em 2Crônicas 6 lê-se que Salomão construiu seu templo e dedicou-o ao Senhor, e em sua oração ele pede que (o Senhor tinha dito que Seu nome estaria lá) sempre que a oração fosse dirigida àquela Casa e qualquer homem, em qualquer parte da terra, se voltasse para lá com olhos de desejo e fome espirituais, pois o nome do Senhor estava lá, que esse homem percebesse a bondade amorosa do Senhor e experimentasse o poder do Senhor e libertação. Você verá, sem que eu precise apontar isso, muito naturalmente, a associação de três coisas nessas passagens:

 

A casa, o nome, a glória

“O zelo da tua casa me devorará”, disse Aquele que construiu uma casa mais gloriosa do que a de Salomão, um templo mais maravilhoso do que aquele que maravilhou a rainha de Sabá por sua beleza incrível. “Cristo, como Filho, sobre a sua própria casa; a qual casa somos nós, se tão somente conservarmos firme a confiança e a glória da esperança até ao fim” (Hb 3.6). Sobre a casa, que é mais familiarmente conhecida por nós como a Igreja, que é Seu Corpo, está Seu nome. E o nome é o objeto da glória: “Pai, glorifica o Teu Nome” (Jo 12.28). Você pode conectar essas coisas mais plenamente, mas tomamos a sugestão inclusiva delas na mensagem desta noite: que, de eternidade a eternidade, o objeto e a base da glória de Deus é Seu nome. E essa glória, por causa do nome, deve ser revelada e manifestada na Casa sobre a qual repousa o nome. Perceba o resumo proposto:

 

A glória antes dos tempos eternos e a glória encarnada

Agora coloque essas duas coisas juntas: “O zelo da tua casa me devorará”. Não é notável que imediatamente associado [à declaração “Manifestou a sua glória” (Jo 2.11)]2 haja esta declaração: “O zelo da tua casa me devorará” após os fariseus dizerem: “Dê-nos um sinal, nos mostre Suas credenciais: qual é Sua autoridade para fazer isto: usar essas cordas e expulsar do templo os que compram e vendem? Dê-nos um sinal de autoridade para fazer isso.” Isso foi perguntado na base deste dito: “O zelo da tua casa me devorará.” A resposta de Jesus foi: “Destruam este templo, e em três dias eu o levantarei”, falando a respeito de Seu corpo. A vindicação da soberania de Cristo está no corpo da ressurreição, no triunfo sobre a morte no corpo da ressurreição. E quando você chega ao terreno da ressurreição e fala sobre o Corpo, sempre lembre que – tanto quanto este mundo está em vista para propósitos presentes, e além deles, é claro, mas imediatamente para propósitos presentes – corpo é um Corpo coletivo, composto por todos os que foram unidos a Cristo na vida de ressurreição. Lembre-se de 1Coríntios 10:11.

Em primeiro lugar, o versículo 16: “O pão que partimos não é porventura a comunhão do corpo de Cristo?” Este é o pão que representa inclusivamente Cristo e Seus membros como um pão.

Em 11.24 lemos: “Isto é o meu corpo que é partido por vós”.

Agora, aqui você tem esse fato de que Ele imediatamente se refere a Sua ressurreição corporal corporativamente como a vindicação de Suas atividades e do estabelecimento de Sua soberania. “Destruam esse santuário, esse lugar de morada divina, e em três dias Eu o levantarei. Este é Meu sinal e esta é Minha vindicação: o Santuário de ressurreição, o Corpo de Cristo.” Deus vindica Cristo, justifica-O, e sobre aquele Corpo Seu nome repousa. Como o nome do Senhor simbolicamente pousou sobre o templo de Salomão, assim o Nome em realidade repouso sobre esse Corpo de ressurreição, e o nome é a base da glória divina. “Glorifica o Teu Nome.”

Se tivéssemos tempo e estivéssemos dispostos, poderíamos percorrer a Palavra e seguir as frases “o nome do Senhor” ou “Meu nome” ou “Meu santo nome”. Encontraríamos muita luz lançada sobre isto: que a única coisa sobre a qual Deus é ciumento é Seu nome, e é na sustentação de Seu nome que Ele mostra Sua Glória.

Tudo isso é básico. Acho que está perfeitamente claro, mas isso nos leva de volta para o princípio de coisas que tiveram início antes dos tempos eternos3. Lembremo-nos de que o nome não representa necessariamente um título humano. É aquele valor intrínseco que é consagrado dentro do mome do Senhor. Senhor: é o que o nome representa. Weymouth4 dá uma tradução esplêndida que nos ajuda aqui. Ao traduzir a expressão “nome que é sobre todo o nome” (Fp 2.9), ele verte: “Título de soberania acima de qualquer título de soberania”. Para fins de definição, eu faria uma melhoria e diria: “O título para soberania acima de todos os títulos para soberania”, pois é aí que você começa. Você percebe que foi o título da soberania suprema e todo-inclusiva e indivisível no Universo que foi atacado, vituperado. Ele foi atacado no céu. A igualdade do Filho com o Pai no título de soberania foi – como tantas vezes dissemos – desafiado e atacado por alguém que buscou ter a mesma igualdade – o ser igual a Deus – e, assim, entrar e dividir e ocupar um lugar ao qual não tinha direito, e tomar esse nome para si mesmo ilegalmente, para ser adorado como Deus. Seu último esforço todo-inclusivo será buscado no Templo de Deus ao ser adorado como Deus no anticristo.

Quando digo todo-inclusivo, quero dizer que ele vai reunir todas as formas ao longo dos séculos de sua tentativa de conseguir a posse. Toda forma em que ele veio ao longo dos tempos, em diferentes épocas e lugares, para tomar o lugar de Deus na raça humana e capturá-la para si mesmo. Nos deuses dos egípcios, você tem a coisa por trás de um sistema com toda sua parafernália. Na adoração cananéia, você tem um sistema de demonologia, a adoração de demônios e o rito de iniciação de passar pelo fogo. Esse aspirante à posição do Filho de Deus tem procurado capturar a raça humana, e no anticristo você vai ver que todos esses métodos são somados, em espiritismo e culto ao demônio, velado, coberto e glorificado, tanto quanto ele pode revesti-las com as coisas que capturarão a imaginação e a alma do homem, e ele será adorado como Deus. Contra o nome do Senhor essa coisa foi organizada e projetada e afirmada.

O título para a soberania por parte do Filho é o que o nome representa, e é para a santificação desse nome que o Filho saiu do seio do Pai, e entrou nessa tremenda obra e, por meio de Sua cruz, ganhou por herança um nome mais excelente que anjo e arcanjo, e esse nome é o símbolo de Sua justa autoridade e soberania no universo, nos céus e na terra. É o que Deus deseja glorificar, e o diabo deseja caluniar.

Agora talvez você entenda, se olhar para esse assunto sob essa luz, por que é que cada armadilha e laço e recurso diabólico está instituído e é contra aqueles que levam o nome do Senhor, pois, amados, temos de cumprir o que ninguém mais tem para fazê-lo nesses esforços do adversário, simplesmente porque o Nome está sobre nós, para caluniar e desantificar esse nome em nós e por meio de nós. Na medida em que o Senhor determinou que Seu nome deveria repousar sobre uma casa espiritual, um templo não feito por mãos, e que esse nome será a única coisa que Ele fará glorioso na casa, por meio da casa e para a casa, assim, no mesmo grau e medida, o adversário determinou, se puder, por qualquer meio desonrar o Nome que está sobre nós conforme o sustentamos, e cada vez que ele ganha uma vantagem sobre nós, ele é capaz de, em algum grau, de macular o nome e, portanto, roubar de Deus a glória. Então, a glória de Deus está envolta com a santificação do Nome. O objetivo do Senhor é trazer um povo para Seu nome, que seja consumido com o zelo de Sua casa e que, ao mesmo tempo, seja enviado daquela casa: “Pelo seu Nome saíram” (3Jo 7).

Naqueles primeiros dias, o Senhor sempre glorificou o Nome conforme ele era usado corporativamente contra as tentativas do adversário de assumir a soberania e desafiar a autoridade divina. Onde quer que iam os homens sobre para quem o nome descansava, o inimigo se opunha ao nome e Deus vindicava o nome. Em seu ato de testemunha e testemunho para sua identificação com Cristo, o nome do Senhor era invocado sobre eles. Tiago diz: “Porventura não blasfemam eles o bom nome que sobre vós foi invocado?” (Tg 2.7; cf. Dt 28.10; At 15.17). O nome não é apenas um rótulo; é um título ou direito e, por fim, a confissão universal deverá ser feita do direito a reinar.

Então, o Senhor diz, a fim de que ele não seja caluniado, para que não haja nenhum motivo para que ele seja profanado: “Qualquer que profere o nome de Cristo aparte-se da iniqüidade” (2Tm 2.19). Pois, imediatamente, se você tomar esse nome e a iniqüidade for encontrada em você, o nome é profanado e desonrado e a glória é presa, pois há terreno sobre o qual o inimigo pode operar para destruir as obras do Senhor.

Eu posso ver em tudo isso uma explicação para os assaltos do inimigo contra o Corpo de Cristo e seus membros, em particular. Como se tem dito muitas vezes a você, isso não é simplesmente por causa de sua importância individual ou de minha importância individual. Nós não contamos para nada em nós mesmos, mas é porque o santo Nome tem sido invocado sobre nós que nos tornamos, fora da eternidade, o objeto de interesse e da malícia do inimigo. Antes dos tempos eternos, mas começando em um plano muito mais elevado do que nós mesmos, do que a raça humana, ele começou contra o próprio Filho de Deus, que carregava o nome, o título de soberania igual a Deus.

E isso, amados, por outro lado, é o motivo para nossa permanência firme e recusa, não importa o que custar, de ceder à pressão do inimigo e cair. Não podemos, por causa do nome, falhar com o Senhor. Não podemos ceder porque esse nome está sobre nós. Não podemos desonrar esse nome por dar lugar ao inimigo sob sua pressão. O motivo é o Nome; por causa do Nome devemos permanecer firmes. Assim, a glória de Deus vai se manifestar onde Seu nome está, e a glória, sem dúvida, é mais ampliada pela intensidade dos ataques do adversário sobre nós, se permanecermos no poder do Nome. Cristo, como sabemos, era o centro dos ataques e assaltos. Todo o inferno se jogou sobre Ele por ser quem Ele era e o que era, mas, na presença do ataque mais cruel do inferno, como veio sobre Ele imediatamente sob a sombra do Getsêmani e da cruz, Ele disse: “Agora a minha alma está perturbada; e que direi eu? Pai, salva-me desta hora; mas para isto vim a esta hora. Pai, glorifica o teu nome.” Então, o Pai respondeu: “Já o tenho glorificado, e outra vez o glorificarei” (Jo 12.27,28).

Amados, creiam nisto: a hora do ataque mais feroz e terrível ao Nome pode ser a hora em que ele é mais glorificado. Quando você sente que todo o inferno se abriu para engoli-lo, então, o Senhor é mais glorificado. Conhecemos que é assim: na hora da mais terrível e profunda angústia por causa da pressão, temos apelado para a honra desse Nome, e o Senhor tem vindo e sido glorificado naquela hora – naquela hora!, em que a cruz estava sendo compartilhada em seu significado mais profundo, Ele veio e foi glorificado no que Ele tem feito.

O Senhor é muito zeloso de Seu nome, pela santificação de Seu nome5. Ele disse: “Vós orareis” – não dizer essa oração – “assim”, mas orar desta maneira, de acordo com estas leis eternas: “Pai, santificado seja o teu nome”. Essa é a busca, essa é a luta de oração, que é a questão no campo de batalha de oração: a santificação do Nome em uma esfera na qual o adversário está tentando profaná-lo. E acreditem em mim, amados: somos chamados para a luta e o fogo, para o conflito, para o próprio sangue de Cristo e para a angústia de Cristo em benefício do Nome. Estamos nessa coisa por causa do Nome, estamos sendo batizados6 na honra do Nome. Honrar o Nome nesta era é uma tarefa tremenda, você sabe disso. Você reconhece que ele está registrado em sua vida, você sabe que de centenas de maneiras todos os dias o Nome pode ser facilmente profanado. Oh!, as armadilhas – nunca poderemos mencionar todas elas. Não podemos catalogar as armadilhas que o diabo põe para o povo de Deus. Se ele conseguir tão-somente obter uma aliança profana, alguma pequena ligação carnal, algum movimento por mesmos na força da carne, algo que ele possa fazer-nos dizer ou fazer de qualquer forma que seja, se ele conseguir tocar no Nome que carregamos, o Nome será profanado e desonrado.

Esse é, portanto, o clamor pela santificação do Nome pela santificação de nós mesmos, os que carregam o Nome, a consagração de nossa vida aos interesses daquele Nome, para que Deus seja glorificado onde Seu nome for honrado. A vida tem de ser ajustada pela graça de Deus mediante a cruz – o cortar fora a carne – para a santificação desse nome, e você aparece em Sua presença por causa do Nome que está entre nós. Ser santificado! “Santificai-vos”, e há apenas um meio de santificação: a cruz.

A cruz é o meio de santificação, e, portanto, o meio de santificação do Nome e, portanto, o meio da glorificação de Deus em Cristo. Isso, então, é a ênfase sobre a necessidade da cruz ser aceita e plantada profundamente em nossa vida para o corte de tudo aquilo sobre o que o inimigo pode, na menor medida, atingir os fins que tinha em vista na eternidade para tomar a glória do Filho de Deus. A cruz deve cortar toda a carne. Então, o Senhor é glorificado em nós.

Mas há o outro lado, mais positivo e prático, no trabalho intenso para que o Senhor seja glorificado por meio de nós: mover-nos Nele pelo Espírito para o bem do nome. Essa é uma confiança e uma esperança. Qual é a nossa garantia de que, quando seguirmos, algo vai acontecer, algo vai ser feito, algo vai ser cumprido? Que garantia temos de que, quando sairmos, não haverá um problema? Bem, nós não temos nenhuma garantia em nós mesmos. Não é o valor de nossa oração em si mesma, nem de nossa pregação em si mesma nem de todos os nossos esforços em si mesmos. Não é nada que possamos fazer, da forma que for, que pode nos dar garantia de qualquer eficácia, mas apenas o Nome. Essa é uma base suficientemente sólida. Ele é reconhecido no céu, na terra e no inferno, nas coisas acima e nas debaixo da terra.

Temos muitas vezes citado esta passagem muito útil, que sempre nos ajuda, em que o apóstolo enfrentou uma situação relativa ao Nome (cf. At 19.1-12), e ele efetivamente o usou, mas alguém veio e tentou usá-lo de segunda mão: “Esconjuro-vos por Jesus, a quem Paulo prega” (v. 13). E foi tudo muito diferente! Em vez de sucesso, fracasso total, e, mais do que fracasso, um desastre horrível! Sair no Nome, não apenas usá-lo de segunda mão, adotando-o como fraseologia, mas sair experimentalmente no Nome por estarmos cortados pela cruz das coisas que desonram o Nome – sair naquele Nome –: esta é a base de nossa certeza de que algo deve acontecer. Deus é zeloso de Seu nome, muito zeloso, e sempre glorificará Seu nome onde ele é verdadeira e profundamente proclamado no Espírito e posto em prática sob a liderança do Espírito Santo. Essa é a nossa garantia.

Amados, você tomam o nome de Jesus, cada um de vocês, e vêem que é uma coisa tremenda carregar o Nome, tomar o Nome. Isso os liga com algo de significado e de importância infinitos, que teve início antes do mundo ser. Liga vocês com a batalha das eras, e liga com a glória da eternidade, quando Ele vier para ser glorificado em Seus santos, que é Sua igreja, onde Seu nome está. Estamos ligados com essa coisa eterna, à glória de Deus associada com o Nome que está para ser estabelecido pelo “Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo” (Ap 13.8), e nós, no tempo, unimo-nos a ele em Sua cruz. Mesmo assim, será a glória de Deus revelada, e de mil maneiras a glória do Senhor pode ser revelada a cada dia. Não tenho certeza de que o Senhor esteja ansioso para fazer uma demonstração de Sua glória para os mortais – “lançar pérolas aos porcos”–, mas há um reino em que a glória do Senhor tem uma significação que transcende a deste mundo por dimensões infinitas. Oh!, entre principados e potestades a glória do Senhor significa alguma coisa, não é um espetáculo vazio. É o estabelecimento de Seu título infinito à soberania e a manifestação do poder daquela soberania. Estamos em algo enorme, e, por isso, nossos triunfos diários, pela graça, percorrem um longo caminho para além da situação local, um longo caminho para além de nossa própria gratificação por não termos falhado; eles têm registrado algo para a glória de Deus em um universo, cuja altura, largura e profundidade você nunca imaginou.

A glória de Deus é manifestada em cada vitória ganha, em cada permanecer firme, em cada recusa a desistir; o Nome é salvo da desonra, e o próprio Senhor, o Cristo de Deus, que leva esse nome, é vindicado diante de anjos e demônios. […] É a revelação da Palavra que é assim; por isso, nossa união com Ele é uma união com Seu nome a fim de que Ele seja glorificado. E porque Ele nos chamou sob Seu nome para encararmos, com Ele, o desafio com toda a fúria, veemência e implacabilidade, e sentimos também o impacto desse desafio e do ódio ao Nome. Ele nos assegurou que, se sofremos com Ele, seremos glorificados com Ele. E se fomos escolhidos antes da fundação do mundo Nele – isso é a verdade –, como diz a Palavra, se fomos escolhidos para Sua glória eterna, vamos chegar à glória, experimentar a glória, conhecer a glória, assim como agora. Por causa do nome suportamos as dificuldades. Fique firme. Que esse nome saia das mãos dos inimigos de Cristo e seja vindicado como o título de toda a soberania sobre todo o título de soberania nesta era e na que está por vir.

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1Ao ler o texto, deve-se ter em mente que ele é o resultado de anotações feitas por alguém presente à mensagem dada por TAS. Por isso, há frases curtas ou sem o devido contexto; algumas de difícil compreensão; outras, assertivas demais, sem a necessária explicação ou o detalhamento acerca do ponto de vista do autor. O público para quem ele falou já o conhecia, conhecia sua forma de expor as Escrituras, suas ênfases, etc. Além da limitação das anotações, isso deve ser lembrando também. Como o texto original traz essas dificuldades, com certeza, a tradução sofrerá com elas também. No entanto, o encargo espiritual de Austin-Sparks é profundo e necessário. Creio que as possíveis falhas não impedirão que, quem tem um coração de busca pelas verdades de Deus, encontre pedras preciosas aqui. (N.T.)

2No original, está: “à oração ‘Glorifica’”, referindo-se a Jo 12.28. No entanto, no texto bíblico, evidentemente, essa passagem não está imediatamente associada ao texto de Jo 2. Não há como precisar se Austin-Sparks estava mencionando a ordem dos versículos que ele selecionou para a mensagem ou se foi falha de quem fez as anotações. Tomei a liberdade de fazer a alteração acima para tornar a mensagem coerente com o texto bíblico. Creio que isso em nada altera a importância do que o autor está apresentando. (N.T.)

3O autor, usando um jogo de palavras e a informalidade de uma apresentação oral, fala de coisas eternas, sem início, por serem antes do tempo, como tendo princípio antes dos tempos eternos, no caso, o nome do Senhor. Ele pode estar também falando em termos comparativos, entre o nome do Senhor, que é eterno, e o nome de outras soberanias ou poderes. A pontuação no original dá margem a diferentes leituras. (N.T.)

4Richard Francis Weymouth (1822-1902) editou The Resultant Greek Testament [O testamento grego resultante] que formou a base para sua tradução. Ele morreu antes que ela fosse impressa. A primeira edição é de 1903.

5Como o autor explicou antes, o Pai e o Filho partilham do nome em seu aspecto de direito soberano sobre todas as coisas, de vindicação desse direito. (N.T.)

6O autor não advoga aqui um novo tipo de batismo, mas usa o termo no sentido de imersão total, de completo envolvimento, de participação. (N.T.)

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(Traduzido por Francisco Nunes de The House, The Name, and The Glory, original aqui. Se houver qualquer sugestão para aprimoramento desse trabalho, por favor, deixe um comentário.)

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A comunhão dos Seus sofrimentos (T. Austin-Sparks)

Publicado pela primeira vez na revista A Witness and A Testimony de set/out de 1951, vol. 29-5

Leitura: 2Coríntios 1.3-5; 6:8-13; 2.4; 11.23-28; 1Coríntios 4.9-13; 2Coríntios 1.8-10

 

“As aflições de Cristo são abundantes em nós” (2Co 1.5).

 

Há uma grande quantidade de temas sumarizada nas passagens que acabamos de ler, mas o que tenho no coração para dizer vai se limitar a duas coisas: em primeiro lugar, os sofrimentos e o sofrimento, e, em segundo, a necessidade e os valores do sofrimento.

 

O fato e o alcance dos sofrimentos

Pouco precisa ser dito, eu penso, quanto ao fato dos sofrimentos. Sabemos que o povo de Deus não está isento de sofrimentos. Isso, eu acho, não precisa ser detalhado. Mas há muitos sofrimentos em que entramos por sermos o povo de Deus; isso, talvez, precise de alguma consideração. Há sofrimentos que podemos trazer sobre nós mesmos, sofrimentos desnecessários, mas eu não estou pensando sobre esses. Estou falando sobre os sofrimentos de Cristo, do fato deles, e que eles são a porção comum do povo de Deus, e que, quando eles vêm sobre nós, não há nada de errado nisso. De fato, veremos antes de passarmos por eles que é exatamente o contrário.

Mas quando você pensa sobre esses sofrimentos, com Paulo como seu grande exemplo e intérprete, você é levado a ver que eles não são apenas incidentes, coisas locais ou terrenas. Mesmo quando eles tomam forma e coloração legal e terrena em razão de situações, circunstâncias e eventos, eles têm um alcance muito maior do que qualquer coisa incidental, local, temporal, terrena. O alcance desses sofrimentos não é menos do que espiritualmente universal. Eles vão além de nós mesmos, de nosso círculo, de nossa vida, de nosso tempo, e além de tudo aqui e agora. Eu usaria a palavra “dispensacional”, mas ela pode, talvez, ser mal interpretada. Os sofrimentos de Paulo superam a dispensação e são virtuosos hoje, depois de tantos séculos, e tem tocado cada esfera do celestial e do diabólico. Esses sofrimentos são mais do que apenas incidentes na vida, mesmo que dolorosos. Eles são colocados dentro de uma vasta esfera de significado e eficácia. Eles são, em geral, uma amostra de um vasto e poderoso sistema de antagonismo a tudo o que é de Cristo.

Devemos, portanto, aceitar o fato de tais sofrimentos, e ajustar-nos para o significado espiritual disso. Se você e eu mantivermos a idéia de que a vida cristã deve ser um piquenique perpétuo, vamos nos meter em todo tipo de dificuldades, perplexidades e decepções. Se procurarmos escapar dos sofrimentos de Cristo, estamos cortando as próprias entranhas de nossa digna vida temporal espiritual. Devemos nos acautelar disso. Temos de aceitar o fato de que, sendo do Senhor aqui, nossa herança é uma herança dos sofrimentos de Cristo, e não devemos tentar evitá-los.

 

O sofrimento dentro dos sofrimentos

Eu usei as palavras os sofrimentos e o sofrimento, o plural e o singular. O sofrimento, isto é, o sofrimento que está dentro dos sofrimentos. Às vezes, é o sofrimento que traz os sofrimentos. Tome Paulo, por exemplo, e o sofrimento a que ele se refere em 2Coríntios 1.8-10: “A tribulação que nos sobreveio na Ásia”. A palavra “tribulação” é de uma raiz latina que significa “um mangual1”, e retrata o manejo de um mangual sobre o corpo nu de um homem amarrado, sendo machucado, quebrado e espancado; é uma palavra forte. Paulo diz que foi o que aconteceu com ele na Ásia. “Fomos sobremaneira agravados mais do que podíamos suportar, de modo tal que até da vida desesperamos. Mas já em nós mesmos tínhamos a sentença de morte […]”. “Nós tivemos resposta a nossa pergunta, e a resposta foi: é a morte!”

Isso é o sofrimento dentro dos sofrimentos. Não pense, nem por um momento, que era apenas uma coisa física. Um homem que podia passar por todas essas experiências, registradas por Paulo, e que podia dizer que partir e estar com Cristo era muito melhor, não tinha medo de morrer. De modo nenhum! Deve ter havido algum sofrimento dentro dos sofrimentos. “Sobremaneira agravados mais do que podíamos suportar”: isso era algo interior; não era algo por ele estar desesperadamente doente, podendo morrer a qualquer momento. O que era, então? Sua situação pode ter sido devida ao relatório que veio a ele sobre as condições de Corinto, pois foi nessa época que ele recebeu as notícias do terrível estado de coisas em Corinto, registrado nessas cartas, e ele fala: “Além das coisas exteriores, me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas” (2Co 11.28). Mesmo que tenha sido doença física que o assaltou, sabemos que a doença do corpo é muitas vezes causada pela tristeza de coração, e os sofrimentos exteriores são, por vezes, o resultado de angústia interior Assim, temos o sofrimento dentro dos sofrimentos.

Há um sofrimento espiritual por amor a Cristo, ao qual Paulo se refere nessa porção como “sentença de morte”, que apesar de estar além de nossa explicação, parece sugerir que ele entrou em um estado espiritualmente terrível por causa de certas condições. Se eu fosse tentar descrever a situação, eu diria que Paulo havia recebido aquelas notícias terrivelmente más sobre as coisas na igreja em Corinto, com mais, talvez, de outros lugares também, e ele tinha desabado sob seu sofrimento e disse: “Vale a pena? Não é tudo em vão? Não é uma situação totalmente sem esperança? Eu não estou desperdiçando minha vida ao derramá-la para essas pessoas?”

Quando você começa algo assim, não há fim. Você pode afundar mais e mais até que as águas do desespero gradualmente cheguem perto de você. Você tenta orar e não consegue, pois um homem com dúvidas nunca pode orar. Ele pode chorar, mas não pode orar. Um homem que é levado a esse tipo de coisa não pode orar; o céu está fechado. E Paulo, por assim dizer, se questiona e diz: “Qual é o significado disso?” A resposta é: “É a morte; ao longo dessa linha é a morte. Se você chegar lá, não há caminho de volta e nenhuma maneira de sair. Isto é o fim de tudo: a morte!”

Eu não vou prosseguir para ver como Paulo chegou ao ponto de virada e a tão grande livramento. Isso não está em nossa atual consideração. Meu ponto neste momento é que a morte aqui era espiritual, não física. Ele estava provando algo da verdadeira natureza da morte. A morte é uma sensação de ser excluído de Deus, de céu sendo fechado, de não haver caminho nem saída, confinado e aprisionado, no final de tudo, e que isso é registrado em e sobre sua alma. Isso é mais do que a morte física. Alguns de nós, mais de uma vez, teriam ficado felizes em morrer fisicamente. Mas coisa diferente é a morte espiritual, e ela é terrível, é assustadora; não há alegria nela. Provar isso é saber alguma coisa sobre os sofrimentos de Cristo. Esses sofrimentos podem ser conhecidas por meio de outras passagens, mas não estamos aqui tentando definir em detalhes toda a gama de sofrimentos de Cristo, mas apenas enfatizando o fato deles.

 

A necessidade e os valores dos sofrimentos de Cristo

Qual é a aplicação para nós? Cada um de vocês terá de fazer a própria aplicação, pois eu não sei por que fui levado a essa mensagem; somente o Senhor conhece Sua própria sabedoria. Mas há algumas questões muito práticas vinculadas a isso; e assim chegamos à segunda parte de nosso assunto, ou seja, a necessidade e os valores desse tipo de sofrimento. Vamos deixar estabelecido, de uma vez por todas, que os sofrimentos de Cristo são uma necessidade absoluta. Eu vou dizer uma coisa muito forte: se você não sabe nada sobre os sofrimentos de Cristo, há algo de errado com você como cristão. Eu não estou, é claro, falando de quem recentemente entrou na vida cristã, embora o sofrimento às vezes seja encontrado desde o início. Mas a obediência e a fidelidade em breve levam à experiência de alguma forma dos sofrimentos de Cristo. Se você está evitando tais sofrimentos, se está se rebelando contra eles, você está assumindo uma direção totalmente errada. Eles são a verdadeira porção dos filhos de Deus. Eu não digo que vocês terão cada um deles na mesma medida ou do mesmo tipo, mas vocês vão tê-los. Peça ao Senhor caso seus maus momentos não estejam, afinal, de acordo com isso. Você tem pensado deles meramente como circunstâncias, como decepções, trabalhando para seu infortúnio, sua desvantagem. Mas veja se eles não estão, na verdade, ligados com sua vida espiritual, se eles não têm uma relação com seu crescimento espiritual. Interrogue-se, examine esta questão.

 

Realidade pelo sofrimento

Eles são necessários por vários motivos. Em primeiro lugar, para manter as coisas reais, práticas e atualizadas. O Senhor não vai permitir que qualquer um de nós viva de um passado, sobre uma teoria, sobre uma tradição, sobre uma doutrina apenas como doutrina. Ele vai nos permitir viver apenas do que é real, prático e atualizado, e, sendo nós feitos como somos, não viveremos assim a não ser que isso seja feito em nós. Eu poderia fazer muitas confissões pessoais agora, mas elas seriam de muito valor, exceto a título de ilustração. Se eu conheço mesmo apenas um pouco sobre o Senhor e as coisas do Senhor, posso dizer-lhe, de modo perfeitamente franco, que é por causa do sofrimento. Eu não poderia e não teria aprendido a não ser que o Senhor me fizesse aprender, e me ensinou em uma escola muito profunda e prática, na qual as coisas são mantidas sempre em dia e onde cada mínima parte do ministério surgiu de alguma nova experiência. É uma lei que se aplica a todos nós. O fato é que esses sofrimentos são absolutamente essenciais para manter as coisas reais; e você sabe tão bem quanto eu que as pessoas querem realidade. Elas têm o direito de dizer: “Como você conhece isso? Você já provou isso? Como foi para estar nas horas mais profundas da vida, quando as coisas estavam além de seu poder? Teve de provar que eram verdade?” Se não formos capazes de dizer de todo coração em absoluta sinceridade: “Descobri que Senhor é assim em minha experiência real. Eu coloquei a verdade para um teste completo e provei-a”, somos uma fraude. O Senhor não tem lugar para fraudes; por isso Ele nos mantém em dia. A realidade vem pelo sofrimento.

 

Crescimento pelo sofrimento

Progresso e crescimento também são garantidos por esse meio. Toda a natureza declara isso. Crescimento, desenvolvimento, aumento são por meio do poder que cria um rangido e um gemido e uma dor no organismo; e na vida espiritual é assim também. Nós falamos sobre as dores do crescimento. Creio que isso é considerado não científico agora, mas é uma frase muito útil. Sim, existem dores de crescimento, e os sofrimentos de Cristo nos membros de Seu corpo estão relacionados ao crescimento. A diferença é esta: no que temos chamado de dores de crescimento é o crescimento que está realmente acontecendo que provoca as dores, enquanto aqui, no que temos diante de nós, são as dores que produzem o crescimento posterior. Nós crescemos por meio de sofrimento, não há nenhuma dúvida sobre isso. Mostre-me uma vida espiritual madura, e você me mostrará a personificação de muito sofrimento de algum tipo, nem sempre físico, uma vida que passou por muitas coisas. Paulo encontrou seu ponto de virada aqui: “Para que não confiássemos em nós, mas em Deus, que ressuscita os mortos” (2Co 1.9). Uma nova descoberta das profundezas. Onde ele tocou o fundo, descobriu Deus de uma nova maneira: “Deus, que ressuscita os mortos”. Tal saber Dele vem ao longo dessa linha. Os valores do sofrimento estão lá.

 

Habilidade pelo sofrimento

Mas, então, observe novamente o que ele diz nesse primeiro capítulo: “Deus […] que nos consola em toda a nossa tribulação, para que também possamos[…](vv. 3,4). Oh, há muito nisso! Fala de um estoque no comércio, os meios para servir, não é mesmo? Muitas vezes podemos ter momentos ruins por causa de nossa falta de habilidade em muitos aspectos, comparando-nos com outras pessoas e deplorando nossa falta de habilidade nesse aspecto ou naquele. Mas, afinal, qual é a maior habilidade? A melhor e mais frutífera habilidade é ser capaz de ajudar as pessoas nas experiências profundas da vida espiritual, ser capaz de explicar-lhes o significado dos tratos de Deus com elas, ser capaz de mostrar-lhes qual deve ser o resultado de tudo, ser capaz de dar-lhes algum apoio por meio de conselho que vem do conhecimento real – algo do conforto que nós mesmos recebemos de Deus. Isto é o serviço real, isto é a edificação do Corpo de Cristo, a Casa de Deus: ser realmente capaz, de uma forma espiritual, de fortalecer os aflitos. Isso vem mediante o sofrimento.

Você está passando por isso, está tendo um momento difícil? O que o está colocando para baixo? Você é do Senhor? Sua vida é comprometida com Ele? Então, veja se você realmente pode, de modo correto e preciso, separar seu momento de dor de sua vida espiritual. Se puder, tudo bem! É só pôr tudo isso de lado como a porção comum de qualquer um que não é cristão. Não, você não pode separar isso. Estão ligados. Isso terá um efeito sobre você, de uma forma ou de outra, seja para aumento espiritual ou para perda espiritual. Mas, oh!, vamos nos ajustar. Se os sofrimentos de Cristo abundam sobre nós, eles são os sofrimentos de Cristo. Eles podem ser sofrimentos de alma, podem ser no plano físico, podem ser uma combinação de ambos, mas o Senhor é soberano nesses sofrimentos, para fins grandes, benéficos e valiosos.

Termino lembrando você desta outra palavra que o apóstolo dirigiu aos coríntios: “E escrevi-vos isto […] para que conhecêsseis o amor que abundantemente vos tenho” (2.3,4). Você não pode ter amor sem sofrimento. As duas coisas andam juntas, e marcam você, sua disposição de sofrer, sua atitude com relação ao sofrimento, provando seu amor pelo Senhor. Muitas pessoas não estão experimentando os sofrimentos de Cristo por não terem amor suficiente por Seu povo. Se você realmente tem um coração de amor por um filho de Deus, você vai sofrer por aquele filho de Deus. Se você tem um coração de amor pelo povo de Deus, você vai sofrer pelo povo de Deus. Se você tem um coração de amor por uma pessoa do povo do Senhor que Ele uniu a você, você vai sofrer por essa pessoa. Se você tem um coração de amor por seu Senhor, você vai sofrer com seu Senhor quando vir o nome Dele desonrado e seus interesses anulados ou pervertidos. Nosso amor é a medida de nosso sofrimento. Se nosso sofrimento é pequeno, pode ser que o grande erro seja que nosso amor é muito pequeno.

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1Instrumento com que se malha cereal, composto de dois paus (o mango e o pírtigo) ligados por uma correia. Bras. Chicote, relho. Fonte: aulete.uol.com.br/mangual.

(Traduzido por Francisco Nunes do livreto The Fellowship of His Sufferings, de T. Austin-Sparks, publicado pela Emmanuel Church, Tulsa, Oklahoma, reimpresso em 2000. A maior parte dos textos de Austin-Sparks é transcrição de suas mensagens orais. Os irmãos que as transcrevem não fazem nenhuma edição ou aprimoramento. Por isso, o texto conserva bastante de sua oralidade, o que, em muitas circunstâncias, não permite uma tradução mais apurada. Se houver qualquer sugestão para aprimoramento desse trabalho, por favor, deixe um comentário.)

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A atitude do Senhor em relação a Seus filhos em adversidade (T. Austin-Sparks)

Publicado pela primeira vez na revista A Witness and A Testimony, mar/abr de 1948, vol. 26-2

Em toda a angústia deles ele foi angustiado, e o anjo da sua presença os salvou; pelo seu amor e pela sua compaixão ele os remiu; e os tomou e os conduziu todos os dias da antiguidade” (Isaías 63.9).

A primeira cláusula deste versículo é o que vai nos ocupar por uns poucos minutos, e será na mais correta tradução encontrada como nota marginal em algumas Bíblias. Apesar de haver alguma autoridade para a tradução comum das palavras aqui, a verdadeira redação do original é: “Em toda a adversidade deles, Ele não foi adversário”1. Você pode escolher entre as traduções aquela de que mais gosta, e você não estará errado se preferir uma à outra. Mas essa tradução alternativa para o texto usual transmite uma mensagem por si mesma, a qual penso deveria ser grande ajuda, encorajamento e força para nós.

 

O fato da adversidade

Em primeiro lugar, notamos que a adversidade contra o povo de Deus é reconhecida e aceita, isto é, é dada como certa. É desnecessário dizer que, entre o povo de Deus, a adversidade é um fato. Nenhum de nós precisa dizer isso. Aqui a Palavra de Deus destaca o fato de que o povo do Senhor conhece a adversidade e a sofre, e que ela está sob os olhos de Deus. Só resta dizer que ninguém deve pensar que a adversidade significa que as coisas estão erradas. Talvez, às vezes, sintamos que, por causa da severa e contínua adversidade, deve haver alguma coisa errada. Embora possa haver uma esfera na qual a adversidade é o resultado de alguma coisa errada que foi feita, e o inimigo tem um terreno legítimo, no entanto não é a isso que se refere aqui. Em primeiro lugar, não era adversidade por causa do mal ou do erro; era a adversidade que é a experiência comum do povo de Deus que está se movendo com Ele. E, quando é assim, conforme podemos ver em um momento, não há nada errado de modo algum. É isso, a propósito, quanto ao fato da adversidade.

 

A natureza da adversidade

Então, sigamos para a natureza da adversidade referida aqui. A palavra “angústia” ou “adversidade” é a palavra “aperto” [em sentido físico ou figurado]: “Em todo o aperto deles, Ele não foi adversário”. E a idéia de aperto é apta para múltiplas aplicações. Qual é o aperto referido aqui? Bem, Israel é aqui visto como no deserto. Você nota que todas as frases que se seguem levam você de volta à vida de Israel no deserto, e é a essa vida com suas muitas formas de aperto que a palavra se refere.

Em primeiro lugar, os israelitas estavam confinados com respeito a muitas coisas que o mundo tinha e que o mundo pode fazer, as quais constituem toda a vida do mundo e dão ao mundo seu prazer e, tanto quanto ele pode, sua satisfação. Eles foram cortados de tudo aquilo, e por vezes essa forma de aperto veio para eles de forma dura e severa. Você sabe que, quando eles passaram por um tempo especialmente difícil, o coração deles quis voltar para o Egito e eles pensaram nos alhos e cebolas e em tudo o mais que havia lá e os desejaram. No Egito, nós temos isso e também as outras coisas de sentimos falta agora, e é difícil ser separado, como fomos, dessas coisas. Havia um elemento de certeza no Egito, mas fora dali você nunca sabe para onde está indo, tendo de viver um dia após o outro, ou o que vai acontecer com você – tudo o que as evidências atuais conseguem é fazer você se preocupar por não saber o que vai comer amanhã. Isso é uma vida de fé, e fé é uma vida de aperto muito freqüente, separado de muitas coisas e confinado a esse deserto em as coisas são, para a mente natural, “reduzidas” a Deus. (Sabemos que essa é a maneira errada de apresentar isso. Para a mente espiritual, as coisas são expandidas a Deus, mas quem foi plenamente levado para esse lugar, onde o aperto terreno é sempre um alargamento celestial?) Naturalmente, era assim com Israel: confinado, reduzido, enclausurado, apertado no que diz respeito às muitas coisas deste mundo. Porque eles eram o povo de Deus, não podiam fazer nem ter nada. Havia uma esfera inteira de coisas cortadas deles; naturalmente, na alma, isso era aperto.

 

A adversidade não prova que o Senhor é nosso adversário

Quando você e eu começamos a sentir isso – e há dias em que a alegria pura e sem mácula do próprio Senhor e das coisas celestiais se tornam nubladas, veladas e remotas, e percebemos estar mais sensíveis ao aperto e a como estamos confinados –, quão rapidamente o inimigo vem e diz: “O Senhor está contra você! Isso não é a bondade do Senhor, isso não é a beneficência e a graciosidade do Senhor, esse tipo de vida realmente não é a vida que o Senhor prometeu a você.” Ele tenta fazer com que, em nosso coração e em nossa mente, o Senhor seja nosso adversário por causa da consciência da presente situação de dificuldade. Ele deturpa o Senhor; ele pinta o Senhor com as cores de nossa provação, de nossa dificuldade, e diz: “O Senhor é assim; Ele é um mestre difícil de servir. Essa vida cristã não é tudo que disseram que seria. O Senhor enganou você, Ele falhou com você. E mais…”. Ele mistura tudo para maldizer o Senhor.

O que a Palavra está dizendo aqui é definitivamente isto: em todo esse aperto, essa privação, esse confinamento, o Senhor não estava contra os israelitas; por mais que pareça, o Senhor não estava mesmo contra eles. Então, temos de encontrar outra explicação. Os fatos são muito reais, aquelas condições são muito verdadeiras. Adversidade, provação, sofrimento são muito reais, e se eles não significam que o Senhor está contra nós, qual é a explicação?

 

A intenção do Senhor para o bem

A única alternativa, com certeza, é que o Senhor está pretendendo o bem, que Sua intenção não é, em última instância, nossa limitação e privação, mas nosso alargamento, nosso enriquecimento. Evidentemente, o Senhor pode dizer algo diferente do que aquilo que as circunstâncias parecem indicar que ele quer dizer. Em todos esses apertos, Ele não é contra você. “Se Deus é por nós…” (Rm 8.31). Na adversidade, no aperto, no privar de muitas coisas, no dizer “Não” muitas vezes, o Senhor não é contra você, Ele não está roubando você de qualquer coisa realmente boa, tirando de você qualquer prazer real, Ele não está trabalhando contrariamente a seus interesses, Ele não é o adversário. Mas em tudo isso, Ele é por você enquanto você estiver no caminho da vontade Dele, seguindo com Ele.

Eu disse que a palavra “aperto” tem múltiplas aplicações. Eu não vou detalhar de que modo ela pode ser aplicada. Eu conheço o aperto. Quantas vezes o inimigo chuta as portas e, então, diz que o Senhor as chutou porque Ele é contra você! Quão freqüentemente o inimigo leva você ao sofrimento, coloca sobre você alguma coisa, e, então, diz: “Isso é o Senhor!” Quantas vezes o inimigo tenta anuviar sua segurança e trazer condenação e acusação sobre você, e colocar você sob uma sensação de julgamento e, depois, dizer: “É o Senhor!” Não é nenhum pouco!

Essa não é necessariamente a explicação ou a interpretação para tudo. Você percebe que a primeira fase dessas coisas encontra o povo fora e se movendo com o Senhor, e, conforme isso acontecia, os membros do povo iam entrando nessa adversidade de várias formas. E a declaração é que isso não significa que o Senhor era contra eles. Se quisermos, podemos acrescentar muitas outras passagens para mostrar como o Senhor era, na verdade, a favor deles exatamente naqueles dias de dificuldade e de adversidade. Eu só quero dar a você algo sobre o que firmar os pés.

 

O Senhor é o adversário dos rebeldes

A passagem segue para outro e escuro estágio. “Mas eles foram rebeldes […] por isso se lhes tornou em inimigo” (Is 63.10), seu adversário. Mas mesmo quando afirmamos o aspecto negro da coisa, isso amplia o outro. Você se rebelou contra o Senhor? Pode realmente ser dito que você tomou a mesma atitude tomada por aquele povo? Você conhece algumas das perversas e terríveis coisas que eles disseram em sua rebelião, quando o coração deles se afastou do Senhor. Eles, de fato, disseram: “Não queremos mais esse Senhor. Não queremos mais ter esse Senhor.” Isso pode ser dito de você? Bem, então, nessa situação, o Senhor se torna o inimigo daqueles, e será seu inimigo enquanto você estiver naquela posição; Ele não pode estar a seu favor enquanto você estiver lá. Mas se não é assim com você, e, a despeito de todas as fraquezas, falhas, faltas, imperfeições (sim, nós nunca estaremos sem alguma coisa que possa ser condenada em nós), não obstante tudo isso, seu coração é para o Senhor, é seu desejo seguir com Ele, então, Ele não é adversário. Sim, há muitas imperfeições, mas Ele não é adversário. Ele será quando nós, como aquele povo, deliberada e positivamente nos voltarmos e nos rebelarmos contra o Senhor e dissermos: “Não obedeceremos, não seguiremos!”. Então, Ele será nosso adversário. Isso significa que Ele tem de nos levar a julgamento.

 

O amor do Senhor pelos rebeldes

Mas, mesmo assim, a terceira fase é muito abençoada: “Todavia se lembrou […]” (v. 11). Mesmo quando Ele tem de ser adversário dos israelitas por causa da atitude que eles adotaram, o fim disto é que Ele “se lembrou […] de Moisés”. Ele lembrou de Sua Palavra, e a última fase é que Ele volta em amor para restaurar. No final, o Senhor alcança até mesmo os rebeldes. “[…] e até para os rebeldes […]” (Sl 68.18), diz a Palavra. “Ele conhece a nossa estrutura; lembra-se de que somos pó” (103.14). Você é um daqueles que, às vezes, de fato desviou-se no coração, com dureza, amargura e ácida indisposição, contra o Senhor por causa da dificuldade do caminho e você se tornou realmente rebelde contra ele, e o inimigo disse: “A coisa toda é sem esperança. Veja que você chutou a porta, e isso é fim!” Oh, como esse inimigo irá tomar o controle de tudo para usar para sua destruição! Mas, mesmo que tenha feito isso, o fim é: Ele “se lembrou”. É uma maravilhosa abertura outra vez de Seu amor para os rebeldes.

Eles estão seguindo com o Senhor; eles sofrem adversidade, mas isso não significa que Ele esteja contra eles. Eles se rebelaram contra Ele, e Ele os tem de levar à disciplina, e naquele momento Ele poderia ser contra eles. Mas aquilo não precisa ser a situação estabelecida e permanente. “A sua misericórdia dura para sempre” (106.1). Se em nosso coração, vez por outra, temos nos tornado amargos, temos sentido que o Senhor foi muito duro e que o caminho não pode ser o caminho de Seu amor, se nós temos nos detido em pensamentos amargos e rebeldes, Satanás vem para tentar consolidá-los numa situação inalterável, que fechará para sempre a porta nos termos do pecado imperdoável. No entanto, o Senhor lembrará Sua Palavra, e Seu amor é manifestado, o qual, na verdade, nunca mudou. Eu espero que não haja muitos que tenham deserdado e se rebelado. Se você é um desses, esta é uma palavra de conforto e encorajamento para você.

O aspecto principal da palavra, no entanto, é para a maioria de nós que, enquanto o coração é para o Senhor, encontra muito aperto, muitos caminhos fechados, muita redução, muita privação, muito do que para a vida natural parece ser um caminho de trevas; porém, isso não significa que o Senhor é contra nós, mas exatamente o oposto. O Senhor está após um alargamento que é muito mais do que um alargamento da vida aqui. Pois, se tivermos tudo aqui, e ainda formos pequenos na medida de Cristo, o que teríamos ganho? Ganhamos nada. Assim, se o alargamento de Cristo parece significar a redução do ego e do mundo, isso é evidência de que o Senhor é por nós, e não contra nós. “Em toda a adversidade deles, Ele não foi seu adversário.” Em todo aperto deles, Ele não era contra eles.

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1Antes da palavra hebraica tsâr, “adversário, problema, angústia, etc.”, בכל צרתם לא, (a terceira da direita para a esquerda) não há verbo. A Young’s Literal Translation of the Holy Bible, de 1898, e a Literal Translation of the Holy Bible, de 1976, vertem o versículo como indicado por Austin-Sparks. (N.T.)

(Traduzido por Francisco Nunes do livreto The Lord’s Attitude To His Children In Adversity, de T. Austin-Sparks, publicado pela Emmanuel Church, Tulsa, Oklahoma. A maior parte dos textos de Austin-Sparks são transcrições de suas mensagens orais. Os irmãos que as transcrevem não fazem nenhuma edição ou aprimoramento. Por isso, o texto conserva bastante de seu caráter oral, o que, em muitas circunstâncias, não permite uma tradução mais apurada. Se houver qualquer sugestão para aprimoramento desse trabalho, por favor, deixe um comentário.)

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Simulação, exagero e predomínio (T. Austin-Sparks)

Da revista A Witness and A Testimony de jan/fev de 1970, pp. 15-18

 

Intérpretes da Bíblia estão convencidos de que as palavras ostensivamente dirigidas ao “rei de Babilônia” em Isaías 14 têm um contexto mais amplo que só pode ser exaurido se visto como referência a um antigo ser angélico. Essa convicção é fortemente apoiada por outras declarações e alusões em diferentes partes da Bíblia, como Judas 6, 2Pedro 2.4 e Lucas 10.18.

Se isso é verdade, então, o que é dito torna claro os três passos que levaram à queda de Satanás. Eles também indicam a queda de muitas coisas que tiveram um bom começo. Há um ensinamento muito solene e valioso aqui, apesar do assunto não ser agradável.

1. Simulação

“Serei semelhante ao Altíssimo” (Isaías 14.14)

Há muitas passagens nas Escrituras que mostram que um dos principais métodos de Satanás é a imitação de Deus e da verdade de Deus. Tanto é assim que ênfase e importância tremendas são colocadas no discernimento espiritual como dom e marca do ungido. De fato, isso é uma característica daquele que é espiritual, do homem espiritual. Podemos dizer que uma obra e função primária do Espírito Santo é o discernimento. É dito que o Espírito Santo tem, ou Ele é representado tendo, “sete olhos”, que significa a perfeição da visão espiritual. Podemos aqui introduzir outro parágrafo de muito peso de Tozer:

 

Poderia ser essa nossa mais crítica necessidade?

“Quando vemos o cenário religioso hoje, somos tentados a nos fixar em uma ou outra fraqueza e dizer: ‘É isso que está errado com a Igreja. Se isso for corrigido, poderemos recapturar a glória da Igreja primitiva e ter tempos pentecostais de volta conosco outra vez.’

“Essa tendência de supersimplificar é, em si mesma, uma fraqueza, e devemos nos guardar sempre dela… Por essa razão, estou hesitante em apontar para qualquer defeito na cristandade de hoje e fazer todos os nossos problemas saírem dele apenas. Que a assim chamada “religião da Bíblia” está sofrendo rápido declínio em nosso tempo é tão evidente que não é preciso prová-lo; mas exatamente o que está trazendo esse declínio não é fácil de descobrir. Somente posso dizer que tenho observado significativa falha entre cristãos evangélicos que podem se mostrar como a causa real da maioria de nossos problemas espirituais; e, sem dúvida, se isso for verdade, então, o atendimento daquela falha deve ser nossa mais crítica necessidade.

“A maior deficiência a que me refiro é a falta de discernimento espiritual, especialmente entre nossos líderes. Como pode haver tanto conhecimento bíblico e tão pouca percepção, assim como influência moral, é um dos enigmas do mundo religioso hoje. Eu penso que seja completamente acurado dizer que nunca houve um tempo na história da Igreja em que pessoas estivessem engajadas no estudo da Bíblia como estão hoje. Se o conhecimento da doutrina bíblica fosse alguma garantia de piedade, essa seria, sem dúvida, conhecida na história como a era da santidade. Em lugar disso, poderá bem ser conhecida como a era do cativeiro babilônico da Igreja ou a era do mundanismo, em que a Noiva de Cristo professa permitiu-se ser, de modo bem-sucedido, cortejada por incontáveis caídos filhos dos homens. O corpo dos crentes evangélicos, sob influências malignas, tem, durante os últimos 25 anos1, ido mais para o mundo em completa e abjeta sujeição, evitando apenas um pouco dos pecados mais grosseiros, como bebedice e promiscuidade sexual.

“Essa desgraçada traição que tomou lugar em plena luz do dia com o pleno consentimento de nossos mestres da Bíblia e evangelistas é um dos mais terríveis adultérios na história espiritual do mundo. No entanto, eu não posso crer que a grande sujeição tenha sido negociada por homens de coração mau que estabeleceram deliberadamente destruir a fé que herdamos de nossos pais. Muitas pessoas boas e de viver correto colaboraram com os colaboracionistas que nos traíram. Por quê? A resposta só pode ser: por falta de visão espiritual. Algo como uma névoa se estabeleceu sobre a Igreja como “a face da cobertura com que todos os povos andam cobertos, e o véu com que todas as nações se cobrem” (Isaías 25.7). Tal véu uma vez desceu sobre Israel… Aquela foi a hora trágica de Israel. Deus levantou a Igreja e temporariamente deixou de lado Seu antigo povo. Ele não podia confiar Sua obra a homens cegos. Certamente precisamos de um batismo de visão clara se quisermos escapar do destino de Israel… certamente uma das maiores necessidades é do surgimento de líderes cristãos com visão profética2. Nós desesperadamente precisamos daqueles que sejam capazes de ver pela névoa. A menos que eles venham logo, será muito tarde para essa geração. E, se eles vierem, iremos, sem dúvida, crucificar alguns deles em nome de nossa ortodoxia mundana. Mas a cruz é sempre o prenúncio da ressurreição. Mero evangelismo não é nossa necessidade presente. Evangelismo não faz mais do que estender a religião, seja ela do tipo que for. Ele produz aceitação para a religião entre grande número de pessoas sem dar muita reflexão à qualidade daquela religião. A tragédia é que o evangelismo atual aceita a corrente forma de cristandade como a verdadeira religião dos apóstolos e se ocupa em fazer convertidos a ela sem questionar nada. E, a todo tempo, estamos nos afastando mais e mais do padrão do Novo Testamento. Precisamos ter uma nova reforma. É preciso vir um violento rompimento com a pseudo-religião irresponsável, de louca diversão paganizada que se passa hoje pela fé de Cristo e que está sendo espalhada por todo o mundo por homens não-espirituais usando métodos não-escriturísticos para alcançar seus objetivos.” (A. W. Tozer)

 

Há várias coisas no Novo Testamento que foram estabelecidas para uma testemunha de Cristo, para a edificação do Corpo de Cristo, para a glória de Cristo, as quais, pelas mesmas razões, têm sido tomadas por Satanás e simuladas, imitadas e sendo dadas como substituto para as verdadeiras, mas isso tem sido feito, no final, para desacreditar Cristo e fazer o oposto a Sua divina intenção. Parece ser muito real que muitos queridos do povo de Deus estão enganados, perplexos e sendo levados para o erro. Mistura de erro com verdade tem sido sempre um método muito bem-sucedido de sedução, desde o início. Deus é imitado na idolatria, na adoração falsa. Cristo é imitado no anticristo. O Espírito Santo é imitado na liderança e nos dons. O homem é enganado por simulação física daquilo que é espiritual. Pessoas, sob a pressão de colapso nervoso, neurose, esgotamento, acusações e condenações espirituais correm para o psiquiatra. O método é levá-las a se libertarem de suas tensões por meio da auto-expressão, divulgando coisas ocultas e, em casos extremos, pela hipnose. Isso tem um efeito psicológico e o paciente se sente “maravilhosamente livre”. Expressão; expressão! Auto-expressão! Um homem disse ao autor [deste texto] que viera do psiquiatra sentindo que ele havia “nascido de novo”, alguma coisa melhor ainda que sua conversão! Mas – sim, mas! – tudo o que ele sentia regrediu, e ficou pior do que antes.

Psicologia, a ciência da psiquê, pode ser3 a obra-prima de Satanás na simulação do espiritual e, então, mergulha a alma nas mais profundas profundezas do desespero.

Ao lado de que uma liberação do espírito em oração e louvor, e algumas vezes ela pode ser experimentada por esses meios, e a comunhão é um grande instrumento para essa bênção, há a falsificação do canto coral barulhento e almático4 e da repetição desequilibrada. A música é, frequentemente, a maior bênção e o maior perigo. “No Espírito” é a máxima divina.

2. Exagero

Subirei sobre as alturas das nuvens” (Isaías 14.14).

Este parágrafo todo – Isaías 14.9-15 – é um exagero, se o termo significa “acumular, ir além do normal, levar ao excesso”, etc.

Subirei sobre…” tem este significado: “Eu vou exceder”. É a ambição correndo em delírio. É o orgulho em abundância. É algo não restringido por modéstia, humildade e dependência. É a extravagância. É algo adicionado ao que é correto e verdadeiro. É ultrapassar o limite. É a inflar-se. Isso é o perigo da alma apaixonada. Se Satanás não pode deter uma pessoa, ele vai derrubá-la. Se ele encontra devoção honesta, ele vai fazer com que ela se exceda. Se ele encontrar uma mente ativa, vai fazer com que um extra seja adicionado à verdade, para que a verdade se torne não-verdadeira.

No “rei da Babilônia” nós temos o exagero da personalidade. “Não é esta a grande Babilônia que eu edifiquei […]?” (Dn 4.30). O eu, o ego, é assertivo, pronunciado, sobrepujante. A liderança e a habilidade natural e o dom se tornam autocracia, ditadura, mesmo tirânica. Há muitas vezes uma linha fina entre autocracia e liderança espiritual, e é aqui que o discernimento é necessário. A primeira força, compele e se faz legal. A última vem de uma profunda história de sofrimento com Deus, estabelece um alto padrão e mantém-se nele. Isso pode ser difícil para a carne nos outros de aceitar, e eles podem interpretar isso erroneamente. Liderança é um dom divino e de grande importância. Ninguém irá muito longe sem isso. Por esse motivo, Satanás tem sempre marcado essa função e quem a possui com especial atenção para exagerá-la, e a derrota é seu verdadeiro objetivo. Dependência é o refúgio do líder espiritual, e o Senhor atenta muito plenamente para isso!

Há muitos movimentos exagerados em nosso tempo. O ensino é puxado até muito além de seu verdadeiro significado. Alguma coisa correta e boa e, então, a pitada de exagero. O propósito é ser muito espiritual, ter ensino avançado, mas a linha do real significado disso tem sido cruzada, e a confusão se segue por causa de uma ênfase desequilibrada. Isso tem sido muito freqüentemente a causa de seitas e grupos exóticos e excêntricos, e seu número é uma legião. A propensão ateniense era por “alguma novidade”, a qual normalmente significa alguma nova sensação. Quão poderosamente Satanás apoia tais exageros e faz o erro crescer sem proporções! Ele sabe muitíssimo bem que segue esse caminho para encher o mundo com pessoas desiludidas que em breve não creram em nada, principalmente na verdade. Foi exatamente isso que fez o apóstolo João apontar, de modo tão forte, quase veemente, a verdade com as expressões, repetidas de maneira constante: “Este é… Esta é… Isto é…”. Veja suas cartas e note a ênfase sobre a unção que ensina todas as coisas. O contexto é o anticristo e seus enganos.

3. Predomínio

Acima das estrelas de Deus exaltarei o meu trono […]” (Isaías 14.13).

Exaltar”. “Acima”. O objetivo, o alvo, o clímax da aspiração de Satanás. Isso soa fantástico e remoto. Mas não é tão remoto e impensável como parece à primeira vista. Não é esse o motivo e o estímulo de todos os poderes políticos? Se tão-somente percebermos isto: o colocar abaixo esta pretensão foi a razão para a Encarnação, pois todo pecado tem florescido dessa raiz. O nascimento, a infância, a vida adulta, o ensino e a cruz de Jesus Cristo foram um positivo contrabalanço para o poder e a glória mundanos. Ele nunca procurou “causar uma boa impressão”, atrair pessoas para Si ou para Sua causa por meio de prestígio, artifícios, glamor ou por mostra de glória natural.

Mesmo de sua glória e posição corretamente celestial Ele se esvaziou. Seu reino e Seu reinado não eram deste mundo.

Tudo isso foi para refazer algo que havia sido distorcido. Esse algo está em todos nós. Nós adoramos o ídolo do sucesso. Nós temos uma concepção totalmente falsa de força, poder e importância. Jesus veio para corrigir isso em Sua própria pessoa. “Fazes com [a fim de] que ele tenha domínio” (Sl 8.6).Sim, mas não auto-centrado. “Trazendo muitos filhos à glória” (Hb 2.10). Sim, mas à glória de Sua infinita graça, favor sem qualquer mérito! Nós reinaremos com Ele, sim, mas como adoradores do Cordeiro (cf. Ap 20.6)!

O teste para qualquer coisa é se ela realmente exalta Cristo. Não só em palavras, que podem ser uma forma de simulação e de exagero. A garota do templo possuída por demônios em Filipos podia patrocinar e pregar o evangelho, mas aquilo era uma coisa profunda de Satanás, e o apóstolo não estava barateando o evangelho para o diabo a fim de ganhar popularidade. A santidade de Cristo é o critério!

Assim, nós – muito brevemente, claro – notamos o caminho da maldição de Satanás, o caminho de sua queda. O julgamento sobre sua simulação, seu exagero e seu predomínio é: “E contudo levado serás ao inferno, ao mais profundo do abismo” (Is 14.15).

Que contra o que é falso, o Senhor produza a verdadeira similitude de Cristo, o verdadeiro magnificar de Cristo, a verdadeira exaltação e supremacia de Cristo!

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(Traduzido por Francisco Nunes de Simulation – Exaggeration – Predomination, publicado por Emmanuel Church, Tulsa, Oklahoma, EUA, 1995.)

1Como Tozer faleceu em 1963, e considerando-se que ele tenha escrito isso no último ano de vida, a afirmação se refere ao estado dos cristãos por volta do final da década de 1930! Infelizmente, a situação apenas piorou nos últimos 80 anos, incluindo os pecados que Tozer dizia serem ainda evitados. (N.T.)

2Com certeza, Tozer não estava se referindo àquilo que hoje é chamado de “profético”: dança, pintura, atos, declarações e outros tantos absurdos “proféticos”. A visão profética é de acordo com a Escritura: a denúncia de tudo aquilo que não é de acordo com a completa verdade Escriturística, que rouba o lugar de Deus como Senhor absoluto, que rouba o lugar de Sua Palavra como verdade absoluta, que entroniza o homem em lugar de Cristo, que desvia os filhos de Deus para homens em lugar de levá-los à submissão a Cristo. As “coisas proféticas” modernas são muito mais ocultismo e mundanismo do que a mínima prática profética bíblica. Tozer e Austin-Sparks podem ser considerados como profetas neste sentido bíblico. (N.T.)

3É importante notar que o autor não afirma que ela é, mas que pode ser. A psicologia desvinculada da verdade bíblica ignora a realidade do pecado, a natureza pecaminosa do homem, de sua inclinação espontânea para o mal, sua incapacidade de curar sua incapacidade de fazer somente o bem, etc. Ela propõe, grosso modo, que o homem faz o que faz mais por influência externa e que, por isso, tem condições de se curar, “reprogramando-se”, tomando novas atitudes e disposições. Isso, sem dúvida, é uma falsificação da obra profunda e única do Espírito Santo. (N.T.)

4Neologismo para traduzir o termo soulical, indicando o que tem origem na alma, procede da alma, diz respeito apenas à alma. (N.T.)

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