Categorias
Amor Cristo Cruz Encorajamento Hinos & Poesia Humildade

Torna-me um cativo

Torna-me um cativo, Senhor,
e, então, livre serei.
Força-me a render minha espada,
e conquistador serei.
Eu me afundo nos temores da vida
quando sozinho fico;
aprisiona-me em Teus braços,
e forte será minha mão.

Meu coração será fraco e pobre
até encontrar o seu mestre;
não procede dele nenhuma ação confiável;
ele varia com o vento.
Ele é incapaz de se mover livremente
enquanto Tu não forjares grilhões para ele;
escraviza-o com Teu amor inigualável,
e imortal ele reinará.

Meu poder será débil e tímido,
enquanto eu não aprender a servir;
ele carece do fogo necessário para brilhar,
e da brisa para revigorar-se.
Meu poder não pode conduzir o mundo
até que ele mesmo seja conduzido;
a bandeira de meu poder só pode ser desfraldada
quando soprares do céu.

Minha vontade não é minha própria,
até que a tornes Tua;
se ela subissse ao trono de um monarca,
ela teria de resignar a sua coroa.
Minha vontade só fica firme,
em meio à estrondosa luta,
quanto em Teu peito se apóia
e descobre sua vida em Ti.

(George Matheson)

Categorias
Andrew Murray Cristo

Cristo sempre aceitará a fé que coloca sua confiança Nele.

(Andrew Murray)

Categorias
Bíblia Ciência Citações Ministério Serviço cristão

Aos pregadores (Agostinho)

“Frequentemente, até um não cristão sabe algo sobre a terra, os céus e os outros elementos deste mundo, sobre o movimento e a órbita das estrelas e até sobre o tamanho e as posições relativas delas, sobre os eclipses do Sol e da Lua que podem ser previstos, sobre os ciclos dos anos e das estações, sobre os tipos de animais, plantas, rochas e assim por diante, e esse conhecimento ele considera como certo pela razão e pela experiência.

Ora, é coisa vergonhosa e perigosa que um pagão ouça um cristão falando sobre o significado da Sagrada Escritura e dizendo absurdos sobre esses temas; e devemos fazer de tudo para impedir tal situação embaraçosa, na qual as pessoas desmascaram vasta ignorância de um cristão e riem-se dele.

A vergonha não é tanto pelo fato de um indivíduo ignorante ser ridicularizado, mas porque pessoas que estão fora do abrigo da fé passam a pensar que nossos escritores sagrados tinham tais opiniões e, para grande perda daqueles por cuja salvação trabalhamos, os autores de nossas Escrituras são criticados e rejeitados como homens incultos.

Se as pessoas veem um cristão equivocado numa área que elas próprias conhecem bem e o escutam defender suas opiniões tolas sobre nossos livros, como irão acreditar nesses mesmos livros a respeito de assuntos como a ressurreição dos mortos, a esperança da vida eterna e o reino dos céus, quando acham que as páginas desses livros estão cheias de falsidades a respeito de fatos que elas mesmas passaram a conhecer com base na experiência e na luz da razão?

Intérpretes descuidados e incompetentes das Sagradas Escrituras trazem problemas e tristezas incontáveis para seus irmãos mais sábios quando são pegos emitindo suas opiniões falsas e enganosas e são criticados por aqueles que não se submetem à autoridade de nossos livros sagrados. Pois então, para defender suas afirmações completamente tolas e obviamente inverídicas, tentam usar as Sagradas Escrituras como prova, e até recitam de memória muitas passagens que eles acham que dão apoio à sua posição, embora não entendem nem o que dizem nem as coisas sobre as quais querem argumentar”.

Categorias
Cristo Serviço cristão Sofrimento T. Austin-Sparks Vida cristã

A comunhão dos Seus sofrimentos (T. Austin-Sparks)

Publicado pela primeira vez na revista A Witness and A Testimony de set/out de 1951, vol. 29-5

Leitura: 2Coríntios 1.3-5; 6:8-13; 2.4; 11.23-28; 1Coríntios 4.9-13; 2Coríntios 1.8-10

 

“As aflições de Cristo são abundantes em nós” (2Co 1.5).

 

Há uma grande quantidade de temas sumarizada nas passagens que acabamos de ler, mas o que tenho no coração para dizer vai se limitar a duas coisas: em primeiro lugar, os sofrimentos e o sofrimento, e, em segundo, a necessidade e os valores do sofrimento.

 

O fato e o alcance dos sofrimentos

Pouco precisa ser dito, eu penso, quanto ao fato dos sofrimentos. Sabemos que o povo de Deus não está isento de sofrimentos. Isso, eu acho, não precisa ser detalhado. Mas há muitos sofrimentos em que entramos por sermos o povo de Deus; isso, talvez, precise de alguma consideração. Há sofrimentos que podemos trazer sobre nós mesmos, sofrimentos desnecessários, mas eu não estou pensando sobre esses. Estou falando sobre os sofrimentos de Cristo, do fato deles, e que eles são a porção comum do povo de Deus, e que, quando eles vêm sobre nós, não há nada de errado nisso. De fato, veremos antes de passarmos por eles que é exatamente o contrário.

Mas quando você pensa sobre esses sofrimentos, com Paulo como seu grande exemplo e intérprete, você é levado a ver que eles não são apenas incidentes, coisas locais ou terrenas. Mesmo quando eles tomam forma e coloração legal e terrena em razão de situações, circunstâncias e eventos, eles têm um alcance muito maior do que qualquer coisa incidental, local, temporal, terrena. O alcance desses sofrimentos não é menos do que espiritualmente universal. Eles vão além de nós mesmos, de nosso círculo, de nossa vida, de nosso tempo, e além de tudo aqui e agora. Eu usaria a palavra “dispensacional”, mas ela pode, talvez, ser mal interpretada. Os sofrimentos de Paulo superam a dispensação e são virtuosos hoje, depois de tantos séculos, e tem tocado cada esfera do celestial e do diabólico. Esses sofrimentos são mais do que apenas incidentes na vida, mesmo que dolorosos. Eles são colocados dentro de uma vasta esfera de significado e eficácia. Eles são, em geral, uma amostra de um vasto e poderoso sistema de antagonismo a tudo o que é de Cristo.

Devemos, portanto, aceitar o fato de tais sofrimentos, e ajustar-nos para o significado espiritual disso. Se você e eu mantivermos a idéia de que a vida cristã deve ser um piquenique perpétuo, vamos nos meter em todo tipo de dificuldades, perplexidades e decepções. Se procurarmos escapar dos sofrimentos de Cristo, estamos cortando as próprias entranhas de nossa digna vida temporal espiritual. Devemos nos acautelar disso. Temos de aceitar o fato de que, sendo do Senhor aqui, nossa herança é uma herança dos sofrimentos de Cristo, e não devemos tentar evitá-los.

 

O sofrimento dentro dos sofrimentos

Eu usei as palavras os sofrimentos e o sofrimento, o plural e o singular. O sofrimento, isto é, o sofrimento que está dentro dos sofrimentos. Às vezes, é o sofrimento que traz os sofrimentos. Tome Paulo, por exemplo, e o sofrimento a que ele se refere em 2Coríntios 1.8-10: “A tribulação que nos sobreveio na Ásia”. A palavra “tribulação” é de uma raiz latina que significa “um mangual1”, e retrata o manejo de um mangual sobre o corpo nu de um homem amarrado, sendo machucado, quebrado e espancado; é uma palavra forte. Paulo diz que foi o que aconteceu com ele na Ásia. “Fomos sobremaneira agravados mais do que podíamos suportar, de modo tal que até da vida desesperamos. Mas já em nós mesmos tínhamos a sentença de morte […]”. “Nós tivemos resposta a nossa pergunta, e a resposta foi: é a morte!”

Isso é o sofrimento dentro dos sofrimentos. Não pense, nem por um momento, que era apenas uma coisa física. Um homem que podia passar por todas essas experiências, registradas por Paulo, e que podia dizer que partir e estar com Cristo era muito melhor, não tinha medo de morrer. De modo nenhum! Deve ter havido algum sofrimento dentro dos sofrimentos. “Sobremaneira agravados mais do que podíamos suportar”: isso era algo interior; não era algo por ele estar desesperadamente doente, podendo morrer a qualquer momento. O que era, então? Sua situação pode ter sido devida ao relatório que veio a ele sobre as condições de Corinto, pois foi nessa época que ele recebeu as notícias do terrível estado de coisas em Corinto, registrado nessas cartas, e ele fala: “Além das coisas exteriores, me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas” (2Co 11.28). Mesmo que tenha sido doença física que o assaltou, sabemos que a doença do corpo é muitas vezes causada pela tristeza de coração, e os sofrimentos exteriores são, por vezes, o resultado de angústia interior Assim, temos o sofrimento dentro dos sofrimentos.

Há um sofrimento espiritual por amor a Cristo, ao qual Paulo se refere nessa porção como “sentença de morte”, que apesar de estar além de nossa explicação, parece sugerir que ele entrou em um estado espiritualmente terrível por causa de certas condições. Se eu fosse tentar descrever a situação, eu diria que Paulo havia recebido aquelas notícias terrivelmente más sobre as coisas na igreja em Corinto, com mais, talvez, de outros lugares também, e ele tinha desabado sob seu sofrimento e disse: “Vale a pena? Não é tudo em vão? Não é uma situação totalmente sem esperança? Eu não estou desperdiçando minha vida ao derramá-la para essas pessoas?”

Quando você começa algo assim, não há fim. Você pode afundar mais e mais até que as águas do desespero gradualmente cheguem perto de você. Você tenta orar e não consegue, pois um homem com dúvidas nunca pode orar. Ele pode chorar, mas não pode orar. Um homem que é levado a esse tipo de coisa não pode orar; o céu está fechado. E Paulo, por assim dizer, se questiona e diz: “Qual é o significado disso?” A resposta é: “É a morte; ao longo dessa linha é a morte. Se você chegar lá, não há caminho de volta e nenhuma maneira de sair. Isto é o fim de tudo: a morte!”

Eu não vou prosseguir para ver como Paulo chegou ao ponto de virada e a tão grande livramento. Isso não está em nossa atual consideração. Meu ponto neste momento é que a morte aqui era espiritual, não física. Ele estava provando algo da verdadeira natureza da morte. A morte é uma sensação de ser excluído de Deus, de céu sendo fechado, de não haver caminho nem saída, confinado e aprisionado, no final de tudo, e que isso é registrado em e sobre sua alma. Isso é mais do que a morte física. Alguns de nós, mais de uma vez, teriam ficado felizes em morrer fisicamente. Mas coisa diferente é a morte espiritual, e ela é terrível, é assustadora; não há alegria nela. Provar isso é saber alguma coisa sobre os sofrimentos de Cristo. Esses sofrimentos podem ser conhecidas por meio de outras passagens, mas não estamos aqui tentando definir em detalhes toda a gama de sofrimentos de Cristo, mas apenas enfatizando o fato deles.

 

A necessidade e os valores dos sofrimentos de Cristo

Qual é a aplicação para nós? Cada um de vocês terá de fazer a própria aplicação, pois eu não sei por que fui levado a essa mensagem; somente o Senhor conhece Sua própria sabedoria. Mas há algumas questões muito práticas vinculadas a isso; e assim chegamos à segunda parte de nosso assunto, ou seja, a necessidade e os valores desse tipo de sofrimento. Vamos deixar estabelecido, de uma vez por todas, que os sofrimentos de Cristo são uma necessidade absoluta. Eu vou dizer uma coisa muito forte: se você não sabe nada sobre os sofrimentos de Cristo, há algo de errado com você como cristão. Eu não estou, é claro, falando de quem recentemente entrou na vida cristã, embora o sofrimento às vezes seja encontrado desde o início. Mas a obediência e a fidelidade em breve levam à experiência de alguma forma dos sofrimentos de Cristo. Se você está evitando tais sofrimentos, se está se rebelando contra eles, você está assumindo uma direção totalmente errada. Eles são a verdadeira porção dos filhos de Deus. Eu não digo que vocês terão cada um deles na mesma medida ou do mesmo tipo, mas vocês vão tê-los. Peça ao Senhor caso seus maus momentos não estejam, afinal, de acordo com isso. Você tem pensado deles meramente como circunstâncias, como decepções, trabalhando para seu infortúnio, sua desvantagem. Mas veja se eles não estão, na verdade, ligados com sua vida espiritual, se eles não têm uma relação com seu crescimento espiritual. Interrogue-se, examine esta questão.

 

Realidade pelo sofrimento

Eles são necessários por vários motivos. Em primeiro lugar, para manter as coisas reais, práticas e atualizadas. O Senhor não vai permitir que qualquer um de nós viva de um passado, sobre uma teoria, sobre uma tradição, sobre uma doutrina apenas como doutrina. Ele vai nos permitir viver apenas do que é real, prático e atualizado, e, sendo nós feitos como somos, não viveremos assim a não ser que isso seja feito em nós. Eu poderia fazer muitas confissões pessoais agora, mas elas seriam de muito valor, exceto a título de ilustração. Se eu conheço mesmo apenas um pouco sobre o Senhor e as coisas do Senhor, posso dizer-lhe, de modo perfeitamente franco, que é por causa do sofrimento. Eu não poderia e não teria aprendido a não ser que o Senhor me fizesse aprender, e me ensinou em uma escola muito profunda e prática, na qual as coisas são mantidas sempre em dia e onde cada mínima parte do ministério surgiu de alguma nova experiência. É uma lei que se aplica a todos nós. O fato é que esses sofrimentos são absolutamente essenciais para manter as coisas reais; e você sabe tão bem quanto eu que as pessoas querem realidade. Elas têm o direito de dizer: “Como você conhece isso? Você já provou isso? Como foi para estar nas horas mais profundas da vida, quando as coisas estavam além de seu poder? Teve de provar que eram verdade?” Se não formos capazes de dizer de todo coração em absoluta sinceridade: “Descobri que Senhor é assim em minha experiência real. Eu coloquei a verdade para um teste completo e provei-a”, somos uma fraude. O Senhor não tem lugar para fraudes; por isso Ele nos mantém em dia. A realidade vem pelo sofrimento.

 

Crescimento pelo sofrimento

Progresso e crescimento também são garantidos por esse meio. Toda a natureza declara isso. Crescimento, desenvolvimento, aumento são por meio do poder que cria um rangido e um gemido e uma dor no organismo; e na vida espiritual é assim também. Nós falamos sobre as dores do crescimento. Creio que isso é considerado não científico agora, mas é uma frase muito útil. Sim, existem dores de crescimento, e os sofrimentos de Cristo nos membros de Seu corpo estão relacionados ao crescimento. A diferença é esta: no que temos chamado de dores de crescimento é o crescimento que está realmente acontecendo que provoca as dores, enquanto aqui, no que temos diante de nós, são as dores que produzem o crescimento posterior. Nós crescemos por meio de sofrimento, não há nenhuma dúvida sobre isso. Mostre-me uma vida espiritual madura, e você me mostrará a personificação de muito sofrimento de algum tipo, nem sempre físico, uma vida que passou por muitas coisas. Paulo encontrou seu ponto de virada aqui: “Para que não confiássemos em nós, mas em Deus, que ressuscita os mortos” (2Co 1.9). Uma nova descoberta das profundezas. Onde ele tocou o fundo, descobriu Deus de uma nova maneira: “Deus, que ressuscita os mortos”. Tal saber Dele vem ao longo dessa linha. Os valores do sofrimento estão lá.

 

Habilidade pelo sofrimento

Mas, então, observe novamente o que ele diz nesse primeiro capítulo: “Deus […] que nos consola em toda a nossa tribulação, para que também possamos[…](vv. 3,4). Oh, há muito nisso! Fala de um estoque no comércio, os meios para servir, não é mesmo? Muitas vezes podemos ter momentos ruins por causa de nossa falta de habilidade em muitos aspectos, comparando-nos com outras pessoas e deplorando nossa falta de habilidade nesse aspecto ou naquele. Mas, afinal, qual é a maior habilidade? A melhor e mais frutífera habilidade é ser capaz de ajudar as pessoas nas experiências profundas da vida espiritual, ser capaz de explicar-lhes o significado dos tratos de Deus com elas, ser capaz de mostrar-lhes qual deve ser o resultado de tudo, ser capaz de dar-lhes algum apoio por meio de conselho que vem do conhecimento real – algo do conforto que nós mesmos recebemos de Deus. Isto é o serviço real, isto é a edificação do Corpo de Cristo, a Casa de Deus: ser realmente capaz, de uma forma espiritual, de fortalecer os aflitos. Isso vem mediante o sofrimento.

Você está passando por isso, está tendo um momento difícil? O que o está colocando para baixo? Você é do Senhor? Sua vida é comprometida com Ele? Então, veja se você realmente pode, de modo correto e preciso, separar seu momento de dor de sua vida espiritual. Se puder, tudo bem! É só pôr tudo isso de lado como a porção comum de qualquer um que não é cristão. Não, você não pode separar isso. Estão ligados. Isso terá um efeito sobre você, de uma forma ou de outra, seja para aumento espiritual ou para perda espiritual. Mas, oh!, vamos nos ajustar. Se os sofrimentos de Cristo abundam sobre nós, eles são os sofrimentos de Cristo. Eles podem ser sofrimentos de alma, podem ser no plano físico, podem ser uma combinação de ambos, mas o Senhor é soberano nesses sofrimentos, para fins grandes, benéficos e valiosos.

Termino lembrando você desta outra palavra que o apóstolo dirigiu aos coríntios: “E escrevi-vos isto […] para que conhecêsseis o amor que abundantemente vos tenho” (2.3,4). Você não pode ter amor sem sofrimento. As duas coisas andam juntas, e marcam você, sua disposição de sofrer, sua atitude com relação ao sofrimento, provando seu amor pelo Senhor. Muitas pessoas não estão experimentando os sofrimentos de Cristo por não terem amor suficiente por Seu povo. Se você realmente tem um coração de amor por um filho de Deus, você vai sofrer por aquele filho de Deus. Se você tem um coração de amor pelo povo de Deus, você vai sofrer pelo povo de Deus. Se você tem um coração de amor por uma pessoa do povo do Senhor que Ele uniu a você, você vai sofrer por essa pessoa. Se você tem um coração de amor por seu Senhor, você vai sofrer com seu Senhor quando vir o nome Dele desonrado e seus interesses anulados ou pervertidos. Nosso amor é a medida de nosso sofrimento. Se nosso sofrimento é pequeno, pode ser que o grande erro seja que nosso amor é muito pequeno.

___

1Instrumento com que se malha cereal, composto de dois paus (o mango e o pírtigo) ligados por uma correia. Bras. Chicote, relho. Fonte: aulete.uol.com.br/mangual.

(Traduzido por Francisco Nunes do livreto The Fellowship of His Sufferings, de T. Austin-Sparks, publicado pela Emmanuel Church, Tulsa, Oklahoma, reimpresso em 2000. A maior parte dos textos de Austin-Sparks é transcrição de suas mensagens orais. Os irmãos que as transcrevem não fazem nenhuma edição ou aprimoramento. Por isso, o texto conserva bastante de sua oralidade, o que, em muitas circunstâncias, não permite uma tradução mais apurada. Se houver qualquer sugestão para aprimoramento desse trabalho, por favor, deixe um comentário.)

Categorias
Deus Encorajamento Escatologia Oração Sofrimento T. Austin-Sparks Vida cristã

O esconderijo da Sua força

Há não muito tempo, encontramos uma carta numa antiga revista A Witness and A Testimony1, que foi escrita em janeiro de 1945; e, mesmo sabendo o que, na Inglaterra, as pessoas haviam sofrido nos intensos anos da II Guerra Mundial, parece que a tinta ainda está úmida e isto foi escrito para o Corpo de Cristo ontem.

Amados de Deus,

Que tempo de testes para a fé os santos enfrentam exatamente agora! E que tempo de fúria satânica! O que isso tudo significa? Parece haver somente duas respostas. Ou o Senhor está preparando movimento novo, e talvez final, para a consumação de Seu propósito na terra – o qual requer um estado que irá garantir profundidade, força e permanência, de modo que aquela plenitude real deverá marcar a recolha das colheitas para a glória em Sua manifestação – ou este é o fim de uma fase e o Senhor está vindo para os frutos maduros. Se Apocalipse 12 representa uma situação do fim dos tempos, então há muita coisa aqui que se ajusta com aquilo. As palavras aqui são, sem dúvida, proféticas, pois Apocalipse não foi escrito como história, mas como profecia em sua maior parte, isto é, não o que era passado, mas o que era naquele momento e o que viria a ser. O grande tema desse capítulo é: “Agora é chegada a salvação, e a força, e o reino do nosso Deus, e o poder do seu Cristo; porque já o acusador de nossos irmãos é derrubado” (v. 10; grifos do autor).

Salvação aqui é “livramento de cada calamidade, vitória sobre inimigos, recuperação de doença e libertação do cativeiro”. O reino e a autoridade [poder] aqui referidos são resistidos pelo grande acusador, e uma grande batalha nos céus é travada para lograr o estabelecimento deles [o reino e a autoridade] pela emancipação dos eleitos tirados da esfera do poder de Satanás. Isso não joga luz sobre o teste de fé e o intenso conflito pelo qual os santos estão passando? Aqui está a explicação para as manifestações de resposta à oração há tanto tempo esperadas, as libertações postergadas, a passagem do poder de Deus da esfera temporal para a espiritual em nossa experiência: “O esconderijo da Sua força”.

A combinação de fé testada em relação às coisas visíveis e o intenso conflito na vida espiritual é muito verdadeiro em relação a esse assunto. Conforme clamamos por “salvação” em um ou outra de suas formas, e temos ficado apenas conscientes do conflito e da demora, o acusador vem e levanta perguntas sérias sobre nosso relacionamento com Deus e do relacionamento de Deus conosco. É a velha pergunta: “Se és Filho de Deus…” Assim, nós somos derrubados, ele acusa e busca fazer-nos aceitar que fomos colocados de lado, que fomos dispensados, que Deus não tem mais o que fazer conosco. O triunfo sobre isso é por testemunhar contra ele por meio do sangue do Cordeiro, pela declaração de nosso testemunho e pela eliminação do interesse próprio e de não amar-preocupar-se com a vida até a morte. O resultado é que ele é derrubado, e isso é a natureza e o objetivo da provação e da batalha. Que imensa questão está amarrada a uma pequena palavra: se. “Se… então, por quê?” Essa foi a pergunta de Gideão. Que foi apresentado a Cristo.

Mas, louvado seja Deus, o fim é revelado: o acusador é derrubado e o reino, o poder, a autoridade de Deus e de Seu Cristo são vistos chegando. Apesar de não querermos sugerir que um complexo-de-satanás deva ser desenvolvido, queremos instar que uma olhada para além das coisas, para a parte e o lugar dele nelas, será uma grande libertação da paralisia das próprias coisas. Quer estejamos vivos para isso ou não, “temos que lutar […] contra as hostes espirituais da maldade” (Ef 6.12; grifo do autor), e somente quando atacarmos as forças espirituais por trás das coisas, na infinita virtude do sangue do Cordeiro, poderemos permanecer de posse da chave da situação. Mas vamos lembrar do valor do “eles” (Ap 12.11). É necessária uma ação coletiva, e nós precisamos tomar com muito mais seriedade a oração unida contra as forças espirituais. Assim, qualquer que seja o significado imediato da presente experiência, a necessidade é a mesma: um povo com força espiritual para levar à derrubada de Satanás, ou em situações e posições específicas ou na sua expulsão final das regiões celestiais.

Que o Senhor nos fortaleça com poder para essa batalha que, conforme Ele desejar que enfrentemos, teremos no novo ano.

Vosso, em Sua vida e esperança
T. Austin-Sparks

Irmãos, ao lermos essa carta, a frase “O esconderijo de Sua força” destaca-se, e nós só a encontramos uma vez na Escritura, em Habacuque 3.4. Quando uma frase ou palavra é mencionada somente uma vez na Palavra de Deus, usualmente se refere a algo que é importante para Deus e para Seu povo. Habacuque é um pequeno livro profético que foi, provavelmente, escrito ao mesmo tempo em que Jeremias profetizou e a nação de Israel, como um todo, estava em um estado de idolatria e apostasia, como “aconteceu nos dias de Ló”.

Pouco se sabe de Habacuque além do que está em seus escritos, que nos permitem imediatamente reconhecer que era um guerreiro de oração, profundamente comprometido com o propósito de Deus. Ele era um homem que devia ter uma comunhão sem sombras com seu Senhor, pois três capítulos de seu livro são escritos em forma de colóquio, o que significa um discurso mútuo entre os que são íntimos e familiarizados um com o outro.

Assim, Habacuque e o Senhor estão mantendo uma comunhão recíproca, Espírito a espírito, alma a alma, profundeza a profundeza. Quando o discurso mútuo começa, vemos que Habacuque está desencorajado por não poder ver na esfera temporal que Deus estava trabalhando nas coisas de acordo com Seu plano: os ímpios governavam e pareciam não sofrer julgamento e os justos estavam sofrendo grandemente.

Habacuque ora (1.1-4):

“Até quando, Senhor, clamarei eu, e tu não me escutarás? […] Por que razão me mostras a iniqüidade [problemas, com referência especial à natureza e às conseqüências da malignidade], e me fazes ver a opressão [injustiça que vem para o justo e o honesto]?”

“Até quando, Senhor! Até quando!” Habacuque perguntou isso como muitos de nós o fazem em tempos de tribulação. No entanto, algo que precisamos saber é que o clamor de Habacuque não é por seus desejos pessoais, mas está orando em nome de todos aqueles que sofrem nos tempos maus.

Deus responde a Habacuque (vv. 5-11):

“Vede entre os gentios e olhai, e maravilhai-vos, e admirai-vos; porque realizarei em vossos dias uma obra que vós não crereis, quando for contada. […]” O Senhor menciona do julgamento que estava por vir. Ele diz a Habacuque que, não importa quão ruins as coisas possam parecer no reino natural, Ele está trabalhando nelas de acordo com o conselho de Sua própria vontade.

Habacuque continua o discurso com seu Senhor, por vezes ainda desencorajado, mas também encorajado, pois diz (vv. 12-17; 2.1):

“Sobre a minha guarda estarei e sobre a fortaleza me apresentarei e vigiarei, para ver o que falará a mim, e o que eu responderei quando eu for argüido.”

Deus lhe responde e lhe diz que Seu propósito e conselho certamente virá no tempo que Ele determinou (2.2-20):

“A visão é ainda para o tempo determinado, mas se apressa para o fim e não enganará; se tardar, espera-o, porque certamente virá, não tardará.” E diz que, durante o tempo da espera, a fé do fiel será provada! “O justo pela sua fé viverá.”

Esta é a única ordem que o Senhor dá a Habacuque: “Mas o justo pela sua fé viverá”. Nessa escritura, a palavra “mas” é muito importante. É uma conjunção adversativa, marcando geralmente um contraste distintivo, uma contradistinção em relação a tudo que o cerca. Em outras palavras, o Senhor está dizendo: “Quando as coisas parecem piorar, quando o inimigo parece estar conseguindo vencer, o justo deve viver por sua fé”. O Senhor está dizendo a Habacuque que a vida dele deve ser um contraste distinto, deve ser diametralmente oposta a tudo que Satanás instiga no mundo ou no meio do povo de Deus. Habacuque deve viver e se mover e ter seu ser na esfera da fé.

Então, o Senhor continua a falar do julgamento, bem como muitas palavras proféticas que seriam (e são) muito difíceis para os fiéis entenderem. No entanto, bem no meio de todo esse julgamento, Ele espantosamente declara:

“Porque a terra se encherá do conhecimento da glória do Senhor, como as águas cobrem o mar. […] Mas o Senhor está no seu santo templo; cale-se diante dele toda a terra.” (2.14,20)

Quando Deus partilha isso com Habacuque, o profeta irrompe numa gloriosa oração que é um salmo de louvor bem como uma oração de guerra do Espírito. Pois, mesmo que possa parecer que todas as coisas não estejam funcionando de acordo com o propósito de Deus, Habacuque vem a perceber que o exato oposto é verdadeiro: Deus está de fato ocultando Seu poder, e no reino invisível o inimigo está sendo derrotado e os eleitos de Deus estão sendo libertados para a gloriosa liberdade dos filhos de Deus.

“[…] e ali estava o esconderijo da sua força. […] e os montes perpétuos foram esmiuçados; ou outeiros eternos se abateram, porque os caminhos eternos lhe pertencem” (3.4,6).

Amados, vamos nos tornar guerreiros de oração, tal como Habacuque, por unir-nos aos justos de todas as eras que, no meio de suas provações, viveram pela fé no Filho de Deus, e vamos, no Espírito, abraçar o encargo de nosso Senhor para Seu povo (o nome Habacuque implica “aquele que abraça o encargo”) e cantar como Habacuque:

“Porque ainda que a figueira não floresça
nem haja fruto na vide;
ainda que decepcione o produto da oliveira
e os campos não produzam mantimento;
ainda que as ovelhas da malhada sejam arrebatadas
e nos currais não haja gado;
todavia eu me alegrarei no Senhor,
exultarei no Deus da minha salvação.
O Senhor Deus é a minha força,
e fará os meus pés como os das cervas
e me fará andar sobre as minhas alturas”
(vv. 17-19).

Amém! Amém! Amém!

____
1 Essa revista, Uma Testemunha e um Testemunho, cujo editor era T. Austin-Sparks, não é mais publicada. Ele partiu para o Senhor na primavera de 1971.

(Traduzido por Francisco Nunes do livreto The hiding of His power, publicado em 1994 por Emmanuel Church, Tulsa, Oklahoma, EUA, sem indicação de autoria.)

Categorias
Apologética Ciência Cosmovisão Criação Ferramentas

I Encontro nacional de fé e ciência para o século XXI

Para informações, clique aqui.

Para inscrição, clique aqui.

Categorias
Apologética

Defesa da fé

O cristianismo tem sido, com sucesso, atacado e marginalizado… porque aqueles que professam a fé são incapazes de defendê-la do ataque, mesmo que os argumentos dos adversários sejam profundamente falhos.

(William Wilberforce)

Categorias
Bíblia Cristo Cruz Deus Espírito Santo Estudo bíblico Evangelho História Igreja Salvação Testemunho Vida cristã

O fundamento da Igreja e a fé (Mauro Meister)

Em Mateus 16 temos a narrativa de um diálogo entre Jesus e seus discípulos durante um “retiro espiritual” que fizeram pelas “bandas de Cesaréia de Filipe” (v. 13). Afastado das multidões, das controvérsias com os fariseus e outros adversários, das tremendas demandas diárias que recebia de todos à volta, o Senhor chama aqueles que estavam mais próximos à reflexão, para lhes mostrar alguns dos fundamentos sobre os quais a “sua igreja” seria continuada e firmada na face da terra.
Com a excelência da pedagogia que sempre é evidente nos Evangelhos, nosso Senhor começa a sua lição sobre os fundamentos da Igreja com uma pergunta que vai levar a uma outra: “Quem diz o povo ser o Filho do Homem?”.  Certamente, o simples invocar do nome “Filho do Homem” já faria com que os discípulos refletissem a respeito das mais diversas conversas e discussões acaloradas, tidas depois das leituras dos textos da Torá aos sábados na Sinagoga. Quem é o “Filho do Homem” segundo os Salmos ou o Daniel, ou mesmo na forma como a expressão é empregada para chamar o profeta Ezequiel?  Quem é esse a quem tanto esperamos, era a pergunta no ar?
A resposta estava pronta, mostrando que havia algumas principais correntes de interpretação entre os doutos, correntes essas que se espalhavam na opinião do povo: João Batista, Elias, Jeremias ou algum dos profetas… (v. 14). Mal sabia o povo que o Filho do Homem já andava entre eles a cerca de 30 anos, e pouquíssimos o reconheceram, dentre eles, alguns cegos, exatamente para mostrar que o real problema da humanidade não é a cegueira física, mas a cegueira espiritual.
Continuando com a sua sutil e certeira pedagogia, Jesus faz, então, a pergunta que realmente interessa: “Mas vós, continuou ele, quem dizeis que eu sou?” (v. 15). Observe que a associação é imediata: “o Filho do Homem” e quem “eu sou”.  Aqui está a primeira lição direta: Jesus é o Filho do Homem anunciado no Antigo Testamento.
Como é usual, Pedro sai na frente ao dar a resposta. É peculiar de Pedro adiantar-se em falar e agir. E a resposta de Pedro é direta: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (v. 16). A resposta é carregada de conceitos teológicos fundamentais que são trazidos pelos textos da Lei, dos Salmos e dos Profetas. Em resumo, Pedro faz uma associação teológica dizendo que o Filho do Homem é o mesmo Messias, que é o Cristo e que este mesmo é o Filho do Deus vivo, e, afinal, era este homem que estava diante dos seus próprios olhos na região de Cesaréia de Filipe. A partir desta realidade, aprendemos alguns importantes princípios no diálogo que se desenvolve.
Princípio da Revelação
Na resposta do diálogo, Jesus mostra, então, o primeiro grande fundamento sobre o qual a sua igreja está firmada: a iluminação do Espírito Santo sobre a Revelação, ou como chamarei aqui, o Princípio da Revelação.  O Senhor Jesus diz que não foi carne ou sangue que fizeram Pedro reconhecer esta verdade revelada nas Escrituras e agora exposta diante de seus próprios olhos, mas o próprio Deus. Esta é uma das fundamentais diferenças entre o cristianismo e outras religiões. A revelação que vem da parte de Deus e que corresponde à realidade dos fatos. Jesus é aquele que a Escritura diz que ele é. Jesus é aquele que ele mesmo diz ser. Jesus é aquele que Deus diz ser! Temos aqui três ideias básicas. Primeiro, que a revelação passada se cumpre em Cristo, afinal, ele é o Messias prometido. Segundo, que a revelação presente, na encarnação do Filho do Deus vivo, é superior. Não no sentido de que a revelação anteriormente dada fosse imperfeita, mas agora, ela é completa e plena. Tudo o que Deus quis revelar, mostrou-nos no seu Filho (Hb 1.3; Jo 1.18). E terceiro, aprendemos que a iluminação individual é fundamental. O verso 17 nos ensina que Deus revelou a Pedro esta verdade. Os escribas, fariseus e todos os estudiosos da época tinham as mesmas fontes que Pedro tinha, mas foi Pedro quem conectou os pontos da revelação passada com a revelação presente diante dos seus olhos. Esta mesma verdade é viva hoje quando, pela iluminação do Espírito Santo, percebemos na Escritura a verdade de Deus. Crer na revelação da Palavra de Deus é uma bem-aventurança: “Bem-aventurado és, Simão Barjonas”. Sobre esta revelação é que a fé da Igreja deve ser fundamentada.
Princípio da Edificação
A resposta de Jesus a Pedro começou com uma troca de palavras: você disse que eu sou o Cristo, e eu digo, Simão Barjonas (Simão filho de Jonas), que você é pedra (o significado do apelido de Simão, Pedro). Jesus usa deste trocadilho para trazer à luz uma das mais importantes verdades a respeito da fé da Igreja: “Sobre esta pedra edificarei a minha igreja” (v. 18).
O catolicismo romano imediatamente interpretou o jogo de palavras, Pedro e pedra, como sendo a mesma palavra e nisto construiu a doutrina do papado, sendo Pedro o primeiro desta suposta sucessão. Mas há aí uma falácia. Quando Jesus diz “esta pedra”, não refere-se a Pedro, mas à verdade pronunciada por Pedro: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. É sobre esta verdade que a Igreja irá subsistir, a obra do Filho de Deus. O próprio Pedro, refletindo sobre esta verdade, fala-nos em sua primeira epístola: “Por isso, na Escritura se diz: Eis que ponho em Sião uma principal pedra angular, eleita e preciosa; e quem nela crer não será confundido” (1Pe 2.6).
A grande lição aprendida aqui é que a Igreja de Jesus nunca poderá ser edificada sobre fundamentos humanos. Sempre que interferimos e nos colocamos no lugar do fundamento verdadeiro encontramos diante de nós uma igreja falsificada, trasvestida e irreconhecível como igreja de Cristo.
Princípio da Propriedade
Da mesma forma como a igreja não pode ter fundamentos lançados por homens, ela não pode ter homens como seus proprietários! No final do verso 18, o Senhor Jesus usa a expressão “minha igreja”. A igreja é dele, sua noiva, pela qual ele tem verdadeiro zelo e compromisso. Com base nesta verdade é que são feitas muitas promessas à Igreja e a respeito da Igreja, dentre elas, a de que vai ele apresentá-la sem mancha, ruga ou mácula.
O Senhor sabe que é necessário cumprir toda a sua obra pela Igreja, para que possa resgatá-la de forma completa. Por isto mostra aos seus discípulos:  “Desde esse tempo, começou Jesus Cristo a mostrar a seus discípulos que lhe era necessário seguir para Jerusalém e sofrer muitas coisas dos anciãos, dos principais sacerdotes e dos escribas, ser morto e ressuscitado no terceiro dia” (v. 21). Ele diz “minha igreja”  porque ele é o único dono dela, trabalhou até a morte para que pudesse comprá-la com seu sangue e ninguém mais pudesse clamar posse sobre ela e seus membros. A Igreja de Jesus não existiria como tal sem a sua morte e ressurreição, o que lhe dá completa posse dela.
Princípio da Autoridade
Por último, podemos perceber o princípio da autoridade de Cristo sobre a sua Igreja. Para demonstrar este princípio temos, em primeiro lugar, a afirmação desta autoridade: “E as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (v.18b). O conceito é, de certa forma, muito simples: o fato da Igreja ter a autoridade da revelação de Deus, ser a propriedade e a edificação de Cristo, não há nada neste mundo, nem o próprio inferno, que possa se colocar contra ela e vencer. Assim, a verdadeira Igreja de Cristo não tem o que temer; não há poderes que possam terminá-la, porque ela pertence a Cristo. Aliás, opor-se à obra de Cristo na Igreja é obra de Satanás e é por isto que Pedro é repreendido severamente ao opor-se, quando foi dito que era necessária a morte e ressureição do Senhor.
Por outro lado, a verdadeira Igreja trabalha como uma agência do céu aqui na terra. O Senhor afirma: “Dar-te-ei as chaves do reino dos céus; o que ligares na terra terá sido ligado nos céus; e o que desligares na terra terá sido desligado nos céus” (v.19). Veja que o texto é muito claro em dizer que a ordem da ação de ligar e desligar começa no céu e é implementada na terra pela Igreja. Acredito que aqui temos o ensino claro, somado ao contexto de Mateus 18.15-18, onde aparece a mesma expressão, que a Igreja tem a obrigação de admitir e demitir aqueles que não cogitam das coisas de Deus. A Igreja tem a responsabilidade de abrir e fechar a porta para que as “portas do inferno” não operem dentro dela mesma. Logo, a Igreja na terra deve viver na busca de realizar a vontade soberana do Pai do céu.
E como, afinal, esta fé deve ser vivida aqui na terra?
“Então, disse Jesus a seus discípulos: Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me.  Porquanto, quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á; e quem perder a vida por minha causa achá-la-á.  Pois que aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? Ou que dará o homem em troca da sua alma?  Porque o Filho do Homem há de vir na glória de seu Pai, com os seus anjos, e, então, retribuirá a cada um conforme as suas obras.  Em verdade vos digo que alguns há, dos que aqui se encontram, que de maneira nenhuma passarão pela morte até que vejam vir o Filho do Homem no seu reino” (16.24-28).
O que o texto nos mostra é que a vida de fé na igreja deve ser vivida em torno da cruz! É, com certeza, uma vida de negação dos padrões da individualidade egoísta para viver os padrões da vida do bem-aventurado. Da mesma forma como era necessário que o Senhor fosse a Jerusalém para passar pela cruz, o cristão toma a sua cruz e segue a Jesus nos passos da ressurreição.
__________________________
Sobre o autor: Mauro Meister é graduado pelo Seminário Presbiteriano do Sul. Fez mestrado em Teologia Exegética do Antigo Testamento no Covenant Theological Seminary e doutorado em Línguas Semíticas, com especialização em hebraico, na Universidade de Stellenbosch, na África do Sul. É pastor da Igreja Presbiteriana Barra Funda, em São Paulo, presidente do Conselho de Educação Cristã e Publicações da Igreja Presbiteriana do Brasil e membro do Conselho Editorial da Cultura Cristã (Casa Editora Presbiteriana). Atua no campo da educação básica como Diretor Executivo da Associação Internacional de Escolas Cristãs (ACSI). É autor do livro “Lei e Graça” (2003) e de artigos na revista Fides Reformata, da qual é co-editor.
(Fonte)
Categorias
Cristo Deus Disciplina Encorajamento Espírito Santo Estudo bíblico Igreja Jonathan Edwards Oração Santidade Serviço cristão Vida cristã

Como se conduzir na caminhada cristã (Jonathan Edwards)

Carta de Jonathan Edwards a uma jovem, escrita no ano de 1741

Minha querida jovem amiga,

Como era do seu desejo que eu a mandasse, por escrito, algumas diretrizes em como conduzir-se a si mesma em sua Caminhada Cristã, agora o faço. As doces lembranças das coisas maravilhosas que vi em sua igreja inspiram-me a fazer qualquer coisa que estiver a meu alcance, contribuindo para a alegria e prosperidade espirituais do povo de Deus que aí está.

1. Aconselho-te a manter o esforço e o fervor na religião, como se estivesse em seu estado natural, procurando converter-se. Aconselhamos pessoas com convicção a serem fervorosas e violentas para o Reino dos Céus; mas elas não devem ser menos vigilantes, trabalhadoras e fervorosas na seara quando já convertidas, porém, ainda mais, pois há infinitas coisas a mais a se fazer. Por ser esta uma característica que nos falta, muitas pessoas, em poucos meses de conversão, começam a perder seu doce e vivo senso das coisas espirituais, crescendo geladas e em trevas, “desviando-se da fé e a si mesmos se atormentando com muitas dores” (1 Tm 6; 10), enquanto se tivessem atentado às palavras do apóstolo em Filipenses 3; 12-14, seus caminhos seriam como “a luz da aurora, que vai brilhando mais e mais até ser dia perfeito” (Pv 4; 18)

2. Não deixe de procurar a Deus, de jejuar e orar pelas mesmas coisas que exortamos a pessoas não-convertidas a orar e jejuar, tendo você já passado por este processo. Ore para que seus olhos estejam abertos, para que receba a visão correta, conhecendo-te a ti mesma, e para seus pés descansem em Deus. Que você veja a glória de Deus e Cristo, e tenha o amor de Cristo derramado em todo o teu coração. Aqueles quem tem a muitas destas coisas, ainda assim precisam orar por elas, pois ainda há tanta cegueira, dificuldade, orgulho e corrupção, que necessitam ter o trabalho de Deus sobre eles a fim de receber luz e vida, sendo trazidos da escuridão para a maravilhosa luz de Deus, recebendo como que uma nova conversão e ressurreição dos mortos. Há poucos deveres convenientes a um não-convertido que também não o são, de certa maneira, para o povo de Deus.

3. Quando ouvir a um sermão, ouça por si mesma. Mesmo que provavelmente o que está sendo pregado seja para não-convertidos ou para aqueles que, de outras maneiras, estão em diferentes circunstâncias que você. Assim, deixe com que a principal intenção de sua mente seja a ponderação: em quais aspectos isto é aplicável a mim? E em que posso melhorar para o próprio bem de minha alma?

4. Apesar de Deus ter perdoado e esquecido seus pecados, não os esqueça: lembre-se sempre deles, de como era uma escrava sem esperança na terra do Egito. Traga à memória suas ações de pecado antes de sua conversão, assim como o apóstolo Paulo está sempre mencionando sua antiga atitude de blasfêmia, em que perseguia o Espírito e maltratava o povo de Deus, humilhando seu coração, dizendo ser “o menor dos apóstolos”, indigno de “ser chamado apóstolo”, “menor dos santos” e “o maior dos pecadores”. Confesse sempre seus pecados a Deus e deixe com que este texto esteja sempre em sua mente: “para que te lembres e te envergonhes, e nunca mais fale a tua boca soberbamente, por causa do teu opróbrio, quando eu te houver perdoado tudo quanto fizeste, diz o SENHOR Deus.” (Ez 16; 63)

5. Lembre-se que você tem muito mais motivos para lembrar-se e humilhar-se dos seus pecados agora, desde que se converteu, do que antes. Tudo isso se deve a suas muitas obrigações para com a vida com Deus, olhando para os escolhidos de Cristo, amando sempre sua amabilidade, apesar de toda a sua falta de valor desde sua conversão.

6. Esteja sempre vigilante para com seu contínuo pecado e não pense que você se preocupa muito com ele. Ainda sim, não esteja desencorajada nem permita que ele anule seu coração, pois, apesar de sermos exageradamente pecadores, temos um Advogado com o Pai, a saber, Jesus Cristo, o Santo. O sangue cuja preciosidade, o mérito cuja retidão, a grandeza cujo amor e fé infinitamente sobrepujam as mais altas montanhas de nossos pecados!

7. Quando começar a orar, ou tomar parte na Ceia do Senhor, ou participar de qualquer outra atividade de adoração, venha a Cristo como Maria Madalena fez!  Venha, e coloque-se aos Seus pés, e os beije, derrame perante Ele o doce óleo perfumado de amor oriundo de um coração puro e quebrantado, como ela derramou o perfume precioso de sua jarra de alabastro! “E eis que uma mulher da cidade, pecadora, sabendo que ele estava à mesa na casa do fariseu, levou um vaso de alabastro com unguento e, estando por detrás, aos seus pés, chorando, regava-os com suas lágrimas e os enxugava com os próprios cabelos; e beijava-lhe os pés e os ungia com o unguento.” (Lc 7; 37-38)

8. Lembre-se que orgulho é a pior víbora do coração, o grande distúrbio da paz da alma e da doce comunhão com Cristo: foi o primeiro pecado e se encontra bem baixo na fundação da obra de Satanás, sendo muito dificilmente arrancado fora, pois é o mais escondido, secreto e arruinador de todas as luxúrias, inserindo insensibilidade no meio da religião e até mesmo sob a desculpa de humildade. “O temor do SENHOR consiste em aborrecer o mal; a soberba, a arrogância, o mau caminho e a boca perversa, eu os aborreço.” (Pr 8:13)

9. Que você faça um correto julgamento de si mesma, vendo sempre nos outros as melhores descobertas, o melhor conforto, pois têm esses dois lados: uns te fazem menor e insignificante, como uma criança. Outros, animam e consertam seu coração em uma disposição firme em negar-se a Deus, passar tempo com Ele e por Ele.

10. Se em algum momento você se encontrar em dúvidas sobre o estado de sua alma, em partes escuras e sem sentido, é necessário rever sua experiência passada. Mas não invista muito tempo e esforços neste caminho. Ao contrário, disponha-se com todo o seu ser a procurar ardentemente uma nova experiência, nova luz, novas ações de fé e amor. Uma nova descoberta da gloriosa face de Cristo fará mais sobre aterrorizadoras nuvens negras do que examinar experiências passadas durante um ano, sob as melhores nuances que podem dar.

11. Quando pouco se exercita a graça e a corrupção prevalece juntamente com o medo, não tente tirar isto de seu coração de qualquer outra maneira além de reviver o amor a Deus. Assim, o medo será efetivamente expulso, como a escuridão desaparece de um quarto quando os deliciosos raios de sol penetram-no.

12. Quando aconselhar e alertar as pessoas, o faça com vontade e afeição, com firme convicção. Lembre-se que estará falando ao seu próximo deixando que suas palavras contenham expressão de sua própria pequenez, mas também da graça soberana que te faz diferente.

13. Se você organizar encontros devocionais com jovens mulheres como você, uma vez a cada certo tempo, além de participar de outros encontros gerais, será muito proveitoso e útil.

14. Em quaisquer dificuldades, necessidades ou longos períodos de escassez, qualquer caso específico, para você ou outros, separe um dia para oração secreta e jejum. Gaste o dia, não tão somente pelas petições que faz, mas procurando seu coração olhando para sua vida, confessando seus pecados perante Deus. Não como se costuma fazer quando se ora publicamente, mas como um resumo a Deus de todos os pecados de sua vida, desde a infância, antes e depois da conversão, incluindo as circunstâncias e decaídas em relação a eles, apresentado diante d’Ele todas as particulares abominações de seu coração da maneira mais completa possível.

15. Não permita que os adversários da cruz reprovem a verdadeira religião. Quão retamente deveriam se comportar os filhos remidos e amados do Filho de Deus! Ainda, “caminhem como filhos da luz e do dia” e “adquira a doutrina de Deus seu Salvador”. E, especialmente, pondere sobre as virtudes cristãs que te fazem parecida com o Cordeiro de Deus. Seja humilde e submissa de coração, pura, celestial, amando a todos. Faça atos de amor aos outros e auto-negação pelos outros. Que haja em você uma disposição em pensar sobre os outros maior do que em você mesma.

16. Na sua vida, caminhe com Deus e siga a Cristo como uma pequena, pobre e desprotegida criança tomando a mão de Cristo. Mantenha seus olhos nas marcas das feridas em Suas mãos e lado, donde veio o sangue que te purifica do pecado, escondendo sua nudez nas vestes brancas celestiais.

17. Ore frequentemente pelos ministros da igreja de Deus, especialmente para que Ele continue seus glorioso trabalho que tem começado, até o dia da terra estar cheia de Sua glória.

FONTE: http://gracegems.org/26/Edwards_letter.htm

Tradução: Projeto Castelo Forte

(Fonte)

Categorias
Alvin Plantinga Apologética Bíblia Ciência Deus Modernismos

Religião e ciência (Alvin Plantinga)

A ciência empírica ocidental moderna tem certamente sido o desenvolvimento intelectual mais impressionante desde o séc. XVI. A religião tem marcado presença desde há bastante mais tempo, é claro, e está hoje em crescimento, talvez como nunca o esteve antes. (É verdade que há a tese do secularismo, segundo a qual a ciência e a tecnologia, por um lado, e a religião, por outro, estão inversamente relacionadas: à medida que a primeira cresce, a segunda diminui. Contudo, o ressurgimento da religião e da crença religiosa em muitas partes do mundo levantam dúvidas consideráveis a esta tese.) A relação entre estas duas grandes forças culturais tem sido tumultuosa, multifacetada e confusa. Este artigo concentrar-se-á na relação entre ciência e as religiões teístas: cristianismo, judaísmo, islamismo, sendo o teísmo a crença de que há uma pessoa imaterial todo-poderosa, omnisciente e perfeitamente boa que criou o mundo, criou os seres humanos “à sua imagem,” e a quem devemos reverência, obediência e fidelidade. A maior parte deste artigo aplicar-se-á também às variedades monoteístas e henoteístas de budismo e hinduísmo.

Há muitos problemas e questões importantes nesta área; este artigo concentrar-se-á apenas em alguns deles. A questão que talvez mais salte à vista é se a relação entre religião e ciência se caracteriza pelo conflito ou pela concórdia. (Claro que é possível que exista simultaneamente conflito e concórdia: conflito no que respeita a certos aspectos, e concórdia noutros.) Esta questão será o ponto central do artigo. Outras questões importantes a considerar serão a natureza da religião, a natureza da ciência, as epistemologias da ciência e, em particular, da crença religiosa, e a questão de como a última figura no conflito ou concórdia (alegado ou efectivo) entre a religião e a ciência.

1. A natureza da ciência e a natureza da religião

1. 1. Ciência

A primeira coisa a dizer, aqui, é que é extremamente difícil caracterizar estes fenómenos. Primeiro, considere-se a ciência: o que é exactamente a ciência? Como podemos caracterizá-la? Quais são as condições necessárias e suficientes para que uma dada investigação ou teoria ou tese seja científica, faça parte da ciência? Está longe de ser fácil sabê-lo. Propôs-se várias condições essenciais da ciência. Segundo Jacques Monod, “O crucial do método científico é o postulado de que a natureza é objectiva […] Por outras palavras, a negação sistemática de que o “verdadeiro” conhecimento possa ser obtido interpretando a natureza em termos de causas finais […]” (Monod 1971, 21, itálico de Monod). Na década de 1930, o eminente químico alemão Walter Nernst defendeu que a ciência, por definição, exige um universo infinito; logo, a teoria do Big Bang, afirmou, não é ciência (von Weizsäcker 1964, 151). Outra restrição proposta: a ciência não pode envolver juízos morais, ou juízos de valor mais em geral.

Há obviamente uma conexão íntima entre a natureza da ciência e o seu objectivo, as condições sob as quais algo é ciência bem-sucedida. Há quem diga que a ciência é explicação (seja isto posto, ou não, ao serviço da verdade). Há quem afirme (os realistas) que o objectivo da ciência é apresentar teorias verdadeiras; outros afirmam que o objectivo da ciência é fornecer teorias empiricamente adequadas, sejam verdadeiras ou não (van Fraassen 1980). Há quem diga que a ciência não pode lidar com o subjectivo, mas apenas como que é público e partilhável (e, portanto, os relatos sobre a consciência constituem uma matéria mais adequada de estudo científico do que a própria consciência). Há quem diga que a ciência só pode lidar como que é repetível; há quem o negue. No furor sobre o ensino do “Desígnio Inteligente” (DI) nas escolas públicas, houve quem dissesse que as teorias científicas têm de ser falsificáveis, e, dado que a proposição de que as coisas vivas (os coelhos, por exemplo) foram concebidas por um ou mais agentes inteligentes não é falsificável, o DI não é ciência. Há quem faça notar que muitas teses eminentemente científicas — por exemplo, há electrões — não são falsificáveis isoladamente: o que é falsificável são teorias completas sobre electrões. E apesar de a proposição de que as coisas vivas foram concebidas por um ser inteligentenão ser falsificável isoladamente, a proposição de que um ser inteligente concebeu e criou coelhos de meio quilo que vivem em Cleveland é claramente falsificável (e falsa). O primeiro grupo pode responder que esta proposição sobre coelhos de meio quilo é apenas equivalente, na verdade, às suas implicações empíricas, i.e., à proposição de que há coelhos de meio quilo que vivem em Cleveland, de modo que o pedaço sobre quem os concebeu desaparece, na verdade. O segundo grupo pode então retorquir que, sendo assim, o mesmo tem de se aplicar às teorias sobre electrões; mas nesse caso as teorias sobre electrões são apenas equivalentes, na verdade, às suas implicações empíricas, de modo que os electrões desaparecem.

Há ainda quem afirme que a ciência se limita ao “naturalismo metodológico” (NM) — a ideia de que nem os dados para uma investigação científica nem uma teoria científica podem referir-se apropriadamente a seres sobrenaturais (Deus, anjos, demónios); assim, não se poderia apropriadamente propor (como parte da ciência) uma teoria segundo a qual a irrupção recente de comportamentos estranhos e irracionais em Washington D.C. se deve ao aumento de comportamentos demoníacos nessa área. Como saber se o NM é realmente uma limitação essencial da ciência? Há quem diga que é apenas uma questão de definição; é o caso de Nancey Murphy: “[…] há o que poderíamos chamar ateísmo metodológico, que é por definição comum a toda a ciência da natureza” (Murphy 2001, 464). E continua: “Trata-se simplesmente do princípio de que as explicações científicas procedem em termos de entidades e processos naturais (e não sobrenaturais).” De modo semelhante, Michael Ruse: “ Os criacionistas crêem que o mundo começou milagrosamente. Mas os milagres estão fora dos limites da ciência, que por definição lida apenas com o natural, o repetível, o que é regido por leis” (Ruse 1982, 322). Por definição do quê? Por definição do termo “ciência,” supostamente. Mas há então quem pergunte: que dizer do Big Bang? Se afinal for irrepetível, teremos de concluir que não pode ser estudado cientificamente? E considere-se a tese de que a ciência, por definição, lida apenas com o que é regido por leis — leis da natureza, supostamente. Alguns empiristas (em particular, Bas van Fraassen) defendem que não há leis da natureza (só há regularidades): se tiverem razão, seguir-se-á que não há coisa alguma para ser estudada pela ciência? Além disso, apesar de algumas pessoas argumentarem que o NM é uma limitação essencial da ciência, outras põem isso em causa: mas pode uma disputa séria ser resolvida citando apenas uma definição?

Apresentar condições necessárias e suficientes plausíveis da ciência está consequentemente longe de ser trivial; e muitos filósofos da ciência desistiram do “problema da demarcação,” o problema de propor tais condições (Laudan 1988). Talvez o melhor que podemos fazer é apontar para exemplos paradigmáticos de ciência e exemplos paradigmáticos de não-ciência. Claro que pode ser um erro supor que estamos aqui perante uma só actividade, e um só objectivo. As ciências são muitíssimo variáveis; há o género de actividade que ocorre em ramos muitíssimo teóricos da física (por exemplo, investigações sobre o que aconteceu nos primeiros 10-43 segundos, ou a tentativa de descobrir como sujeitar a teoria das cordas a verificação empírica). Mas há também o género de projecto exemplificado por uma tentativa de saber como a população de touconderos respondeu à devastação da selva amazónica ao longo dos últimos vinte e cinco anos. No primeiro tipo de explicação pode fazer sentido pensar que o que se quer é uma teoria empiricamente adequada, pondo-se pelo menos temporariamente entre parêntesis a questão da verdade da teoria. Mas o mesmo não acontece em casos do segundo tipo; aqui, nada servirá a não ser a verdade sóbria.

O mesmo acontece com o naturalismo metodológico. Alguns projectos científicos são claramente limitados pelo NM (veja-se abaixo); uma condição de adequação teórica, nesses casos, será certamente que a explicação em causa seja naturalista. Mas é o NM em si parte da própria natureza da ciência enquanto tal? Segundo Isaac Newton, que se diz muitas vezes ter sido o maior cientista de todos os tempos, as órbitas dos planetas cairiam no caos sem intervenção externa; consequentemente, propôs que Deus ajustava periodicamente as suas órbitas. Apesar de esta ser uma hipótese de que já não precisamos, será óbvio que acrescentá-la à explicação de Newton dos movimentos dos planetas tem como resultado algo que não é realmente ciência? Isso parece desnecessariamente excessivo.

Talvez devamos ver o conceito de ciência como um daqueles conceitos aglomerativos para os quais Tomás de Aquino e Ludwig Wittgenstein chamaram a atenção. Talvez haja várias actividades bastante diferentes a que damos o nome “ciência;” estas actividades relacionam-se entre si por semelhança e analogia, mas não há uma actividade única que seja apenas ciência em si. Há projectos para os quais o critério de sucesso envolve fornecer teorias ¬verdadeiras; há outros onde o critério de sucesso envolve fornecer teorias que são empiricamente adequadas, sejam ou não também verdadeiras. Há projectos limitados pelo NM; há outros projectos que não têm essa limitação. Estes projectos ou actividades caem todos sob o significado do termo “ciência;” mas não há uma actividade única da qual todos sejam exemplos. (Do mesmo modo, o xadrez, o basquetebol e o póquer são todos jogos; mas não há um jogo único do qual todos sejam versões.) Talvez o melhor que podemos fazer, com respeito à caracterização da ciência, é dizer que o termo “ciência” se aplica a qualquer actividade que seja 1) uma actividade sistemática e disciplinada que visa descobrir a verdade sobre o mundo,1 e 2) tem um envolvimento empírico significativo. Isto é, evidentemente, vago (quão sistemática? Quão disciplinada? Quanto envolvimento empírico?) e talvez demasiado tolerante. (A astrologia conta como ciência, ainda que seja má ciência?) Apesar de tudo, temos muitos exemplos excelentes de ciência, e exemplos excelentes de não-ciência.

1.2. Religião

Se é difícil explicar a natureza da ciência, não é muito mais fácil dizer o que é exactamente uma religião. Claro que há muitíssimos exemplos: cristianismo, islamismo, judaísmo, hinduísmo, budismo e muitos outros. Que características são necessárias e suficientes para que algo seja uma religião? Como distinguimos uma religião de um modo de vida, como o confucionismo? Não é fácil dizer. Nem todas as religiões envolvem a crença em algo como o Deus todo-poderoso, omnisciente e moralmente perfeito das religiões teístas, ou até em seres sobrenaturais. (Claro que uma maioria substancial das religiões envolve tais crenças.) Com respeito à nossa investigação, o que é de especial importância é a noção de uma crença religiosa: como tem de ser uma crença para ser religiosa?

Uma vez mais, não é fácil dizer. Para citar uma vez mais o furor quanto ao desígnio inteligente, há quem diga que a proposição de que há um arquitecto inteligente do mundo vivo é religião, e não ciência. Mas nem toda a crença que envolva um arquitecto inteligente — na verdade, nem toda a crença que envolva Deus — é religiosa. Segundo o livro de Tiago do Novo Testamento, “os demónios crêem [que Deus existe] e enchem-se de terror”; as crenças dos demónios não são, presumivelmente, religiosas.2 Uma pessoa poderia propor teorias sobre um ser omnipotente, omnisciente e sumamente bom como parte crucial de um sistema metafísico: a crença em tais teorias não tem de ser religiosa. E que dizer de um sistema de crenças que responde às mesmas grandes questões humanas a que dão resposta os exemplos óbvios de religiões? Questões sobre a natureza fundamental do universo, e do que é sumamente real e básico nele, sobre o lugar dos seres humanos nesse universo, sobre se há pecado ou algo análogo e, se há, o que fazer quanto a isso, se temos de tentar melhorar a condição humana, se os seres humanos sobrevivem às suas mortes e como deve agir uma pessoa racional. Uma vez mais, não é fácil dizer; talvez não. A verdade aqui é, talvez, que uma crença não é religiosa apenas em si. A propriedade de ser religiosa não é intrínseca da crença; é antes uma propriedade que uma crença adquire quando funciona de certo modo na vida de uma dada pessoa ou comunidade. Para ser uma crença religiosa, a crença em questão teria de estar apropriadamente conectada com atitudes caracteristicamente religiosas por parte do crente, nomeadamente atitudes de veneração, amor, compromisso, maravilhamento e afins. Considere-se alguém que crê que a pessoa de Deus existe, certamente, porque a sua existência ajuda a resolver vários problemas metafísicos (por exemplo, sobre a natureza da causalidade, a natureza das proposições, propriedades e conjuntos, e a natureza da função apropriada em criaturas que não sejam artefactos humanos). Contudo, esta pessoa não tem qualquer inclinação para venerar ou amar Deus, nenhum compromisso para tentar levar por diante os projectos de Deus no nosso mundo; talvez, como os demónios, odeie Deus e faça intencionalmente tudo o que pode para frustrar os propósitos de Deus no mundo. Para tal pessoa, a crença de que a pessoa de Deus existe não tem de ser religiosa. Deste modo, é possível que duas pessoas partilhem uma dada crença que funciona como religiosa na vida de apenas uma delas.

Consequentemente, é extremamente difícil apresentar condições necessárias e suficientes (informativas) tanto da ciência como da religião. Talvez para os nossos propósitos presentes isso não seja um problema sério; temos vários excelentes exemplos de cada uma delas, e talvez isso seja suficiente para a nossa investigação.

2. Epistemologia e ciência e religião

Há muitas questões epistemológicas interessantes quanto à ciência. Um tópico central tem sido a subdeterminação da teoria pelos dados: os dados a favor de uma teoria raramente implicam a teoria, caso em que haverá várias teorias empiricamente equivalentes — teorias com as mesmas consequências com respeito à experiência. Podem as teorias empiricamente equivalentes diferir em estatuto ou valor epistémico? Em caso afirmativo, o que faz a diferença? Neste caso é comum apelar para as chamadas virtudes teóricas, como a simplicidade, fecundidade, beleza, etc. O que pensar da “indução pessimista,” segundo a qual quase todas as teorias científicas do passado foram mais tarde rejeitadas? Deve isso reduzir a nossa confiança nas teorias científicas actuais? Das convicções científicas actuais, quantas constituem conhecimento, se é que algumas o são? E até onde vai o método científico? Haverá assuntos que a ciência não tem competência para lidar? É a ciência mais competente para lidar com uns assuntos do que com outros? Os modos científicos de proceder parecem ter sido mais bem-sucedidos nas ciências duras; as ciências humanas parecem ficar para trás. Haverá diferenças quanto à boa fundamentação epistémica entre as diferentes ciências, ou talvez entre as ciências duras e as ciências mais leves? Perguntas deste género, apesar de serem de grande interesse intrínseco, não são directamente relevantes para a nossa investigação. O que é mais importante ver é que a epistemologia da ciência é na realidade a epistemologia das principais faculdades cognitivas humanas: memória, percepção, intuição racional (lógica e matemática), testemunho, talvez a empatia de Reid, indução, etc. O que é característico da ciência é que estas faculdades são empregues de um modo particularmente disciplinado e sistemático, e que há uma ênfase particular na experiência perceptiva.

Com respeito à crença religiosa, também há várias questões epistemológicas. Haverá bons argumentos a favor da existência de Deus? Se não há, é isso importante? É a existência do mal, em todas as horríveis formas que exibe, indício contra a crença teísta? É algo que refuta da crença teísta? E quanto à questão do pluralismo: a religião conhece tantos tipos diferentes — cristianismo, islamismo, judaísmo, hinduísmo, budismo (com diferentes versões de cada tipo), mas também vários tipos menos comuns. Segundo Jean Bodin, “cada uma é refutada por todas” (Bodin 1975, 256); constituirá esta diversidade algo que refuta cada variedade particular de crença religiosa? Algumas doutrinas religiosas — Trindade, Incarnação, Expiação — não são fáceis de entender; significa isso que não podem ser conhecidas ou sequer ser objecto de crença racional? Se a crença religiosa se baseia na fé e não na razão, significa isso que é na melhor das hipóteses seriamente insegura, de modo que é apropriado falar de um “salto de fé” ou de “fé cega”? Estas questões têm sido mais aturadamente investigadas no que respeita à crença cristã; assim, este artigo incide principalmente em algumas questões que dizem respeito à epistemologia da crença cristã.

Para os nossos propósitos, talvez a questão epistemológica central seja esta: qual é a fonte da racionalidade, ou aval, ou estatuto epistémico positivo da crença religiosa, se é que o tem? É do mesmo género do que o que tem a crença nos ensinamentos da ciência actual? São os indícios a favor da crença religiosa, se é que existem, do mesmo género do que os indícios a favor das crenças científicas? Ou há uma fonte especial de estatuto epistémico positivo da crença religiosa? Esta é, na verdade, uma versão contemporânea de uma questão bastante antiga: a questão sobre a relação entre a fé e a razão. Relaciona-se com a questão de haver ou não argumentos cogentes (argumentos racionais, argumentos que emanam do que a razão nos dá) a favor da crença religiosa, e se a existência de argumentos cogentes é necessária para a aceitação racional da crença religiosa.

Aqui, há fundamentalmente duas perspectivas. Segundo o “indiciarismo,” a fonte do estatuto epistémico positivo da crença religiosa, se é que tem tal estatuto, é apenas a razão — o conjunto das faculdades racionais, incluindo, principalmente, a percepção, a memória, a intuição racional, o testemunho, etc. A fonte do estatuto epistémico positivo da crença religiosa é, consequentemente, a mesma que existe para a crença científica. Esta perspectiva remonta pelo menos a John Locke (1689) e tem representantes contemporâneos proeminentes. Deste ponto de vista, a existência de argumentos cogentes a favor da crença religiosa é uma condição necessária da aceitação racional dessa crença, ou pelo menos está intimamente relacionada com a aceitação racional. Algumas pessoas que aceitam este ponto de vista crêem que esses argumentos cogentes não existem; assim, rejeitam a crença religiosa por ser infundada e racionalmente inaceitável (Mackie 1982); outros sustentam que há de facto excelentes argumentos a favor do teísmo, e até especificamente a favor da crença cristã. Aqui o porta-voz contemporâneo mais proeminente seria Richard Swinburne, cuja obra dos últimos trinta anos, aproximadamente, teve como resultado o desenvolvimento mais poderoso, completo e sofisticado da teologia natural que o mundo viu até hoje (veja-se, e.g., Swinburne 1979, 2004; 1981, 2005).

A outra perspectiva principal, adoptada, por exemplo, por Tomás de Aquino (Summa Theologiae) e João Calvino (1559), é que 1) a crença em Deus e 2) os ensinamentos cristãos podem ser objecto de aceitação racional ainda que não existam argumentos cogentes a seu favor que partam do que a razão nos oferece; têm uma fonte de aval ou estatuto epistémico positivo independente do que a razão nos dá. Este ponto de vista tem também representação contemporânea proeminente (Alston 1991; Plantinga e Wolterstorff 1984; Plantinga 2000). Usando a terminologia de Calvino, há o sensus divinitatis, que é uma fonte de crença em Deus, e o testemunho interno do Espírito Santo, que é a fonte da crença nas doutrinas próprias do cristianismo. As crenças produzidas por estas fontes ultrapassam a razão no sentido em que a fonte do seu aval não é o que a razão nos dá; claro que não se segue que tais crenças são irracionais, ou contrárias à razão; nem se segue que há algo nelas de especialmente arriscado ou inseguro, ou incerto, como se a fé fosse necessariamente cega ou um salto no escuro. Na verdade, João Calvino define a fé como “um conhecimento firme e certo da benevolência de Deus para connosco […]” (Calvino 1559, p. 551, itálico meu). Deste ponto de vista, a religião e a fé têm uma fonte de crença apropriadamente racional independente da razão e da ciência; seria portanto possível que a religião e a fé corrigissem a ciência e a razão, e também que fossem por estas corrigidas.

Há alguma razão para pensar que se o teísmo for de facto verdadeiro, se realmente houver uma pessoa todo-poderosa, omnisciente e perfeitamente boa que criou o mundo e os seres humanos à sua imagem, então a crença religiosa será independente dos argumentos baseados na razão; não exigirá tais argumentos para ser racional ou ter estatuto epistémico positivo. Pois se o teísmo for verdadeiro, Deus presumivelmente quererá que os seres humanos conheçam a sua presença (e de facto a vasta maioria da população humana acredita em Deus ou algo parecido a Deus); disporá portanto as coisas de modo a que os seres humanos sejam capazes de ter conhecimento de si. Mas se o conhecimento de Deus dependesse dos argumentos teístas, ou de outros argumentos que resultam do que a razão nos dá, então, como afirma Tomás, só alguns seres humanos chegariam ao conhecimento desta verdade, e mesmo assim só depois de muito tempo, e com uma mistura substancial de erro.

3. Conflito e concórdia

3.1. Concórdia

Comecemos com a concórdia. Os primeiros pioneiros e heróis da ciência ocidental — Copérnico, Galileu, Kepler, Newton, Boyle, etc. — eram todos seriamente cristãos, ainda que ocasionalmente, como no caso de Newton, não fossem cristologicamente ortodoxos. Além disso, muitos autores (Foster 1934, 1935, 1936; Ratzsch 2009) fizeram notar que a crença teísta e a ciência empírica exibem uma concórdia profunda, combinando-se bem entre si. Isto resulta em parte das doutrinas da criação que as religiões teístas abraçam — em particular, dois aspectos dessas doutrinas. Primeiro, há a ideia de que Deus criou o mundo, tendo também consequentemente, é claro, criado os seres humanos. Além disso, criou os seres humanos à sua imagem. Ora Deus, segundo a crença teísta, é uma pessoa: um ser que tem conhecimento, afeição (gosta de umas coisas e não de outras) e vontade executiva, podendo agir com base nas suas crenças para atingir os seus fins. Uma das características centrais da imagem divina nos seres humanos é, então, a capacidade para formar crenças e adquirir conhecimento. Como afirmou Tomás de Aquino, “Uma vez que se diz que os seres humanos foram feitos à imagem de Deus em virtude de terem uma natureza que inclui um intelecto, tal natureza é à imagem de Deus sobretudo em virtude de ser o que mais consegue imitar Deus” (ST Ia q. 93 a. 4). Deus criou portanto quer os seres humanos quer o mundo, e dispôs as coisas de modo a que os primeiros conheçam o segundo. Concebendo a ciência no seu nível mais básico como o projecto de adquirir conhecimento de nós e do nosso mundo, é claro, desta perspectiva, que a doutrina da imago dei subscreve este projecto. Na verdade, a ciência é um exemplo claro do desenvolvimento e aprofundamento da imagem de Deus nos seres humanos, tanto individual como colectivamente.

Segundo, há o pensamento de que a criação divina é contingente. Segundo o teísmo, muitas das propriedades de Deus — a sua omnisciência e omnipotência, a sua bondade e amor — são-lhe essenciais: tem-nas em todos os mundos possíveis em que existe. (E uma vez que, segundo o pensamento teísta, Deus é um ser necessário, existindo em todos os mundos possíveis, tem essas propriedades em todos os mundos possíveis.) Mas isso não acontece, contudo, com a sua propriedade da criação. Deus não está obrigado, pela sua natureza ou seja pelo que for, a criar o mundo; trata-se, antes, de uma acção livre da sua parte. Além disso, quando Deus cria, não está obrigado a fazê-lo de qualquer modo particular, nem a criar quaisquer tipos particulares de seres; que tenha criado os tipos de coisas que efectivamente encontramos é uma vez mais contingente, uma acção livre da sua parte.

É esta doutrina da contingência da criação divina que subjaz ao carácter empírico da ciência ocidental moderna (Ratzsch, 2009). Pois o domínio do necessário é (na sua maior parte) o domínio do conhecimento a priori; é onde temos a matemática e a lógica e grande parte da filosofia.3 O que é contingente, por outro lado, é o território ou domínio do conhecimento a posteriori,4 o género de conhecimento produzido pela percepção, memória e os métodos empíricos da ciência. Esta relação entre a contingência da criação e a importância do empírico foi reconhecida desde muito cedo. Assim, escreveu Roger Cotes, no prefácio ao Principia Mathematica, de Newton:

“Sem dúvida alguma, este mundo, tão diversificado com essa pluralidade de formas e movimentos que nele encontramos, de nada poderia provir senão da vontade perfeita de Deus, dirigindo-o e presidindo-o.

É desta fonte que essas leis, a que chamamos leis da natureza, fluíram, e nas quais se vê muitos traços do mais sábio engenho, mas nem a mínima sombra de necessidade. Esta,consequentemente, não devemos procurar partindo de conjecturas incertas, mas antes descobrir pela observação e pela experimentação.” (Cotes 1953, 132-133; itálicos meus)

O que vimos é que, de certo modo, a crença teísta sustenta a ciência moderna ao permitir ou sancionar todo o projecto da investigação empírica; afirma-se também por vezes que a ciência sustenta a crença teísta. Neste caso, há vários argumentos, que historicamente se agruparam em dois tipos básicos: biológicos e cosmológicos. Um exemplo do primeiro tipo é o argumento proposto por Michael Behe (Behe, 1996), segundo o qual algumas estruturas ao nível molecular exibem uma “complexidade irredutível.” Estes sistemas exibem várias partes que se ajustam delicadamente e interagem entre si, sendo que todas têm de estar presentes e funcionando apropriadamente para que o sistema faça o que faz; a eliminação de qualquer das partes impediria o seu funcionamento. Entre os fenómenos que Behe cita encontra-se o estolho bacteriano, os cílios usados por vários tipos de células para se locomoverem, entre outras funções, a coagulação do sangue, o sistema imunitário, o transporte de materiais nas células e a sequência incrivelmente complexa e em cascata de reacções bioquímicas e acontecimentos que ocorrem na visão. Tais estruturas e fenómenos irredutivelmente complexos, defende, não poderiam ter surgido por evolução darwinista gradual, passo-a-passo (sem a intervenção da mão de Deus ou de qualquer outra pessoa); em qualquer caso, a probabilidade de isso acontecer seria diminuta. Estes são exemplos que apresentam, pois, o que Behe denomina um desafio liliputiano ao darwinismo cego; se ele tiver razão, constituem também um desafio colossal ao darwinismo. Mas não se limitam a pôr em causa o darwinismo; foram também, afirma, obviamente concebidos; que foram concebidos é tão óbvio como um elefante numa sala de estar: “para uma pessoa que não se sinta obrigada a restringir a sua procura a causas não-inteligentes, a conclusão directa é que muitos sistemas bioquímicos foram concebidos” (Behe, p. 193). Outros, por exemplo, Paul Draper (2002) e Kenneth R. Miller (1999, 130-64), argumentam que Behe não provou o que pretendia.

Um segundo tipo de argumento a favor do teísmo parte do ajustamento delicado aparente de vários parâmetros físicos. A partir dos anos sessenta e do começo dos setenta, os astrofísicos, entre outros, deram-se conta que várias das constantes físicas básicas têm de se situar dentro de limites muito estreitos para que a vida inteligente se desenvolva — em qualquer caso, de um modo semelhante ao que pensamos que efectivamente ocorreu. Assim, B. J. Carr e M. J. Rees:

“As características básicas das galáxias, estrelas, planetas e do mundo quotidiano são essencialmente determinadas por algumas constantes microfísicas e pelos efeitos da gravitação […] Vários aspectos do nosso universo — alguns dos quais parecem pré-requisitos para a evolução de qualquer forma de vida — dependem muito delicadamente de “coincidências” aparentes entre as constantes físicas.” (Carr e Rees, 1979, 605).

Por exemplo, se a força da gravidade fosse mais forte, ainda que ligeiramente, todas as estrelas seriam gigantes azuis; se fosse muito ligeiramente mais fraca, todas seriam anãs vermelhas; em nenhum desses casos poderia a vida ter-se desenvolvido (Carter 1979, 72). O mesmo se pode dizer das forças nucleares fracas e fortes; se qualquer delas tivesse sido ainda que ligeiramente diferente, a vida, em qualquer caso a vida do género que temos, não poderia provavelmente ter-se desenvolvido.

Aparentemente, a vida é possível apenas porque o universo está a expandir-se na proporção exactamente necessária para evitar o colapso. E no passado o ajuste delicado teve de ser ainda mais extraordinário:

“[…] sabemos que teve de ter havido um equilíbrio muito delicado entre os efeitos contrários da expansão explosiva e da contracção gravitacional que, na época mais recuada sobre a qual podemos sequer fingir falar (denominada tempo de Planck, 10-43segundos depois do Big Bang), teria correspondido ao grau incrível de precisão representado por um desvio da unidade no seu rácio de apenas uma parte em 10 elevado à sexagésima.” (Polkinghorne 1989, 22)

Outros exemplos: o valor da constante cosmológica, do valor da expectativa de vácuo do campo de Higgs, e o rácio da massa entre o protão e o electrão têm de estar delicadamente ajustados num grau incrível para que o universo permita a vida (Barr 2003, 123-130). Uma explicação particularmente bem informada e tecnicamente pormenorizada de alguns destes ajustamentos delicados encontra-se em Robin Collins, “Evidence of Fine-Tuning” (Collins 2003). Há quem considere que estas enormes coincidências aparentes substanciam a tese teísta de que o universo foi criado por um Deus pessoal que tem a intenção de que haja vida, e na verdade vida inteligente; consideram que o ajustamento delicado oferece os elementos para um argumento teísta apropriadamente restringido. Estes argumentos assumem várias versões; talvez a mais bem-sucedida delas seja a que argumenta que a probabilidade epistémica destes fenómenos de ajuste delicado é muito maior sob a hipótese teísta do que a sua probabilidade epistémica sob a hipótese ateísta do acaso. Aqui, a conclusão não é (enquanto tal) que o teísmo é provavelmente verdadeiro, mas antes que o teísmo é muito mais bem sustentado por estes fenómenos do que a hipótese do acaso (Swinburne 2003; Collins 1999).

As objecções são muito diversificadas. Há quem ofereça estes argumentos, em particular quem está associado ao chamado movimento do “Desígnio Inteligente,” considerando-os contribuições para aciência e não para a filosofia ou para a teologia; a objecção mais comum é que não obedecem às condições necessárias para ser ciência, em particular porque a conclusão, que o universo foi concebido por um ser inteligente, não é falsificável. Outros há (como vimos) que respondem que a falsificabilidade não é comummente uma propriedade de proposições individuais, mas antes de teorias completas, e que as teorias que envolve o desígnio inteligente podem muito bem ser falsificáveis.

Uma objecção mais interessante aos argumentos do ajuste delicado é a sugestão da “multiplicidade de universos”: talvez haja muitíssimos universos ou mundos diferentes, talvez em número infinito; as constantes cosmológicas assumem diferentes valores em mundos diferentes, de modo que muitíssimos conjuntos diferentes de tais valores (talvez todos os possíveis) são exemplificados num ou noutro mundo. Não poderia haver um ciclo eterno de “Big Bangs,” seguidos de expansão até um certo limite, e depois uma contracção até ao “Big Crunch,” no qual os valores cosmológicos são arbitrariamente reiniciados? (Dennett 1995, 179) Alternativamente, não poderia ter ocorrido que no Big Bang houve uma inflação inicial enorme, resultando daí muitos cosmoi, com muitos valores diferentes nas suas constantes físicas? Em qualquer dos casos não é surpreendente que num ou noutro dos universos resultantes, os valores das constantes cosmológicas sejam tais que permitam a vida. Nem é surpreendente que o universo em que nos encontramos tenha valores que permitam a vida; não poderíamos existir em qualquer outro. Sendo assim, o argumento do ajuste delicado não é eficaz: a probabilidade de haver ajuste delicado dada a hipótese da pluralidade de mundos juntamente com o ateísmo é pelo menos tão grande quanto a probabilidade do ajuste delicado juntamente com o teísmo. Há respostas (por exemplo, que nesta maneira de ver as coisas teria de haver um gerador de universos que estivesse, também ele, delicadamente ajustado (Collins 1999), ou que mesmo que seja provável que alguns universos estejam delicadamente ajustados, continua a ser verdade que a probabilidade de que este universo esteja delicadamente ajustado não é afectada pela sugestão do pluriverso (White 2003)) e respostas às respostas, etc.; não há consenso, o que não é surpreendente, quanto a saber se estes argumentos do ajuste delicado são bem-sucedidos.

3.2. Conflito?

A doutrina cristã da criação sustenta uma concórdia profunda entre a crença cristã e a ciência; contudo, é claro que é compatível com este género de concórdia que também haja conflito. Muitos autores afirmaram existir conflito, ou até guerra, entre a religião e a ciência (Draper 1875; White 1895). Isto é certamente demasiado forte; mas é óbvio que a relação entre as duas nem sempre tem sido suave e irénica. Há o famoso incidente de Galileu, muitas vezes retratado como uma disputa no seio da hierarquia católica, representando as forças da repressão e da tradição, a voz do velho mundo, a mão morta do passado, e, por outro lado, as forças do progresso e a suave voz da razão e da ciência. Este modo de ver a questão é simplista (Brooke 1991, 8-9); em causa estavam muitos outros factores. O pensamento aristotélico dominante do dia era fortemente apriorístico; logo, parte do que estava em causa era uma disputa sobre a importância relativa da observação e do pensamento a priori na astronomia. Em causa estavam também questões sobre o que a Bíblia cristã (e judaica) ensina nesta área: será que uma passagem como a de Josué 10:12-15 (em que Josué ordenou ao Sol para se imobilizar) favorece o sistema ptolemaico em detrimento do coperniciano? E é claro que as questões habituais de poder e autoridade estavam também presentes.5

Mais recentemente, um lugar central de alegado conflito tem sido a teoria da evolução. Este pânico particular está, é claro, ainda muito presente. Muitos fundamentalistas cristãos aceitam uma interpretação literal da narrativa da criação dos primeiros dois capítulos do Génesis; consideram por isso incompatíveis as explicações darwinistas contemporâneas das nossas origens e a fé cristã, pelo menos tal como a entendem. Muitos fundamentalistas darwinistas (como o falecido Stephen J. Gould lhes chamava) aceitam essa moção: também eles defendem que há conflito entre a evolução darwinista e a crença cristã ou teísta clássica. Os contemporâneos que defendem esta perspectiva do conflito incluem, por exemplo, Richard Dawkins (1986, 2003) e Daniel Dennett (1995). Uma parte importante do alegado conflito depende da crença cristã de que os seres humanos e as outras criaturas foram concebidos — concebidos por Deus; segundo a evolução, contudo (pelo que dizem Dawkins e Dennett), os seres humanos não foram concebidos, sendo antes produto do processo cego sem direcção da selecção natural, operando sobre uma fonte de variação genética como a mutação genética. Eis Dawkins:

“Apesar das aparências em contrário, o único relojoeiro na natureza é as forças cegas da física, ainda que aplicadas de uma maneira muito especial. Um verdadeiro relojoeiro é dotado de antevisão: concebe as suas engrenagens e molas, e planeia as suas interconexões, tendo em mente um propósito futuro. A selecção natural, e o processo automático cego, inconsciente, que Darwin descobriu, e que sabemos hoje ser a explicação da existência e da forma aparentemente dotada de propósito de toda a vida, não tem em mente qualquer propósito. Não tem mente e não tem seja o que for em mente. Não planeia em função do futuro. Não tem qualquer visão, antevisão, não vê coisa alguma. Se podemos dizer que desempenha o papel de relojoeiro na natureza, é o relojoeiro cego.” (Dawkins 1986, 5)

Outros autores fazem notar que este suposto conflito está longe de ser óbvio. A característica central da doutrina moderna da evolução é que a força motriz do processo é a selecção natural, peneirando uma forma de variação genética, sendo a mais popular a mutação genética aleatória. Não faz parte da teoria a afirmação de que estas mutações ocorrem apenas ao acaso no sentido em que esse termo sugere que não têm causa; são aleatórias apenas no sentido em que não emergem do plano arquitectónico das criaturas que as sofrem, e não ocorrem para melhorar a capacidade reprodutiva do organismo. Eis Ernst Mayr, o decano da biologia do pós-guerra: “Quando se afirma que a mutação ou variação é aleatória, isto quer simplesmente dizer que não há qualquer correlação entre a produção de novos genótipos e as necessidades adaptativas de um organismo no meio ambiente em causa” (Mayr 1998, 98). Sendo assim, a evolução, tal como é actualmente formulada e entendida, é perfeitamente compatível com um deus que orquestre e supervisione todo o processo; na verdade, é perfeitamente compatível com essa teoria que Deus cause as mutações genéticas que são peneiradas pela selecção natural. Quem defende que a evolução mostra que a humanidade e as outras coisas vivas não foram concebidas, defendem os seus oponentes, confundem uma interpretação naturalista da teoria científica com a própria teoria. A afirmação de que a evolução demonstra que os seres humanos e as outras criaturas vivas não foram concebidas, contra todas as aparências, não faz parte nem é uma consequência da teoria científica, mas antes um acrescento metafísico ou teológico (van Inwagen 2003).6

Uma segunda área de alegado conflito tem a ver com a acção divina no mundo. Segundo a religião teísta clássica, Deus criou o mundo; também o sustém e preserva, mantendo-o em existência. Sem a sua actividade de preservação, o mundo desapareceria como a chama de uma vela ao vento. Assim, há criação e preservação; mas, afirmam as religiões teístas clássicas, há também acção divinaespecial, acção que vai além da criação e da preservação. Há milagres relatados tanto na Bíblia judaica como na cristã: a separação das águas do Mar Vermelho, por exemplo, assim como Jesus caminhando sobre as águas, o fornecimento de alimento a cinco mil pessoas, e o renascimento dos mortos. Os milagres são igualmente relatados no Alcorão. Muitos crentes não pensam que estas acções divinas especiais se restringem aos tempos bíblicos: ainda hoje Deus responde às orações e efectua curas milagrosas. Além disso, segundo o modo cristão de pensar, Deus opera nos corações e espíritos dos seus filhos, de modo a produzir a fé; Tomás de Aquino chamou a esta actividade divina “o incitamento interno do Espírito Santo” e João Calvino chamou-lhe “o testemunho interno do Espírito Santo.” Todos estes seriam exemplos de acção divina especial.

Ora, há quem veja aqui um conflito com a ciência moderna. Entre esses autores conta-se Langdon Gilkey:

“[…] A teologia contemporânea não espera, nem fala, de acontecimentos divinos assombrosos à superfície da vida natural e histórica. O nexo causal no espaço e no tempo que a ciência e filosofia do Iluminismo introduziram na mentalidade ocidental […] é também pressuposto pelos teólogos e estudiosos modernos; uma vez que participam no mundo moderno da ciência, tanto intelectual como existencialmente, dificilmente poderiam fazer outra coisa. Ora, este pressuposto de uma ordem causal entre os acontecimentos fenoménicos, e portanto da autoridade da interpretação científica dos acontecimentos observáveis, faz uma grande diferença no que respeita à validade que se atribui às narrativas bíblicas, e portanto ao modo como se entende o seu significado. Subitamente, uma vasta panóplia de feitos divinos e acontecimentos registados na escritura não são já encarados como se tivessem efectivamente acontecido […] Seja o que for que os hebreus acreditavam, nós acreditamos que as pessoas bíblicas viviam no mesmo contínuo causal do espaço e do tempo em que nós vivemos, e portanto um contínuo em que não ocorrem quaisquer prodígios divinos nem se ouve quaisquer vozes divinas.” (Gilkey 1983, 31)

Claro que muitos filósofos e cientistas concordariam. O problema é, supostamente, a acção especialde Deus no mundo; não há qualquer problema particular no que respeita à criação e preservação, mas a acção divina para lá disso é largamente considerada incompatível com a ciência moderna. Onde se considera exactamente que surge a incompatibilidade? Ao que parece, a ideia é que a actividade divina especial seria incompatível com as leis da natureza que a ciência põe a descoberto. Eis o distinto biólogo H. Allen Orr:

“Não que algumas facções de uma religião invoquem milagres: muitas facções de muitas religiões o fazem. (Afinal, Moisés separou as águas e Krishna curou os doentes.) Concordo, é claro, que nenhum cientista sensato pode tolerar tais excepções no que respeita às leis da natureza.” (Orr, 2004)

Ora, Gilkey, como outros autores, pensa aparentemente em termos de uma mundividêncianewtoniana, segundo a qual o universo é como uma máquina gigantesca que funciona segundo as leis postas a nu pela ciência. Mas isto não é suficiente para a teologia do afastamento e da não-intervenção destes teólogos. Afinal de contas, o próprio Newton, supostamente, aceitava a mundividência newtoniana, mas propôs que Deus ajustava periodicamente as órbitas planetárias, que sem isso, segundo os seus cálculos, dariam gradualmente para o torto. O que Gilkey e os seus amigos acrescentam aqui, aparentemente, é o determinismo: a ideia de que as leis da natureza, juntamente com o estado do universo em qualquer momento dado, implicam o estado do universo em qualquer outro momento. A fonte clássica aqui é Pierre Laplace:

“Devemos encarar o estado presente do universo como o efeito do seu estado anterior e como a causa do que se lhe seguirá. Dado, por um instante, um espírito que pudesse compreender todas as forças que animam a natureza, e a situação respectiva dos seres que a compõem — um espírito suficientemente vasto para analisar estes dados — esse espírito abrangeria na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e do menor dos átomos; para ele, nada seria incerto e o futuro, como o passado, estaria presente aos seus olhos.” (Laplace 1796)

É a mundividência de Laplace que aparentemente anima Gilkey, et al. Vale a pena fazer notar, contudo, que o determinismo e a mundividência laplaciana não se seguem da ciência clássica. Isto porque as grandes leis da conservação deduzidas das leis de Newton são formuladas para sistemasfechados ou isolados. Eis Sears e Zemansky (1963):

“O princípio da conservação da energia afirma que a energia interna de um sistema isolado permanece constante. Esta é a formulação mais geral do princípio da conservação da energia.” (p. 415)

As leis de Newton (tal como a posterior física da electricidade e do magnetismo de Maxwell) aplicam-se a sistemas isolados ou fechados; descrevem como o mundo funciona desde que o mundo seja um sistema fechado (isolado), não estando sujeito a qualquer influência causal externa. Mas não faz parte da mecânica newtoniana nem da ciência clássica em geral a declaração de que o universo material é realmente um sistema fechado. (Como poderia uma coisa dessas ser verificada experimentalmente?) Logo, nada há na ciência clássica (pelo menos nesta área) que seja incompatível com Deus mudar a velocidade ou direcção de uma partícula, ou de todo um sistema de partículas (ou, já agora, com a criação ex nihilo de um cavalo adulto). A energia, a força cinética e coisas do género conservam-se num sistema fechado; mas a tese de que o universo material é de facto um sistema fechado não faz parte da física clássica; é um acrescento metafísico ou teológico. Logo, não há conflito entre a física clássica e a acção divina especial no mundo.

Esta imagem clássica, laplaciana, foi, evidentemente, ultrapassada pelo desenvolvimento da mecânica quântica, que começou nos primeiros pares de décadas do séc. XX. Segundo a mecânica quântica, associado a qualquer sistema físico, um sistema de partículas, por exemplo, há uma função de onda cuja evolução ao longo do tempo é regida pela equação de Schrödinger para esse sistema. Ora, o interessante no que respeita à mecânica quântica é que, ao contrário da mecânica clássica, não especifica nem prevê uma configuração única para este sistema de partículas num momento futuro do tempo, t. A função de onda atribui um valor em t a cada uma das configurações possivelmente resultantes das condições iniciais; pela aplicação da regra de Born a esses valores, obtemos uma atribuição de probabilidades a cada uma dessas possíveis configurações em t. Assim, não nos é dito que configuração irá de facto resultar (dadas as condições iniciais) quando o sistema é medido em t; ao invés, é-nos dada uma distribuição de probabilidades para os muitos resultados possíveis. É claro que os milagres (a separação das águas, o renascimento dos mortos, etc.) não são incompatíveis com estas atribuições. (Sem dúvida que a tais acontecimentos seriam atribuídas probabilidades muito baixas; mas é claro que não precisamos da mecânica quântica para saber que tais acontecimentos são improváveis.) Além disso, em interpretações em termos de colapso, como as de Ghirardi, Rimini e Weber, há muito espaço para a actividade divina. Na verdade, Deus pode ser afinal a causa dos colapsos, e do modo como ocorrem (i.e., sendo P a possibilidade que é efectivada em t, pode ser Deus a causa de P se efectivar em t). (Isto poderia talvez ser visto como um meio caminho entre o ocasionalismo e a causalidade secundária.) Com o advento da mecânica quântica, portanto, parece haver ainda menos razão para ver a acção divina especial no mundo como uma coisa que de algum modo é incompatível com a ciência.

Contudo, muitos autores inteiramente cientes da revolução da mecânica quântica vêem mesmo assim um problema na acção divina especial. Por exemplo, há o “Divine Action Project” (Wildman 1988-2003, 31-75), uma série de conferências e publicações com quinze anos que começou em 1988. Até agora, estas conferências resultaram em seis volumes de ensaios, envolvendo pelo menos cinquenta ou mais autores de vários campos da ciência, juntamente com filósofos e teólogos, incluindo muitos dos mais proeminentes autores da área. A maior parte destes autores consideram problemática a acção divina especial. Isto porque crêem que uma explicação satisfatória da acção de Deus no mundo teria de ser não-intervencionista, como Wildman afirma. Eis Arthur Peacocke, comentando uma certa proposta de acção divina:

“Deus teria de ser concebido como alguém que efectivamente manipula micro-acontecimentos (aos níveis, atómico, molecular e, segundo alguns autores, quântico) nestas flutuações iniciais do mundo natural para produzir os resultados a nível macroscópico que Deus quer. Mas tal concepção da acção de Deus […] não seria então diferente em princípio da intervenção de Deus na ordem da natureza, com todos os problemas que isso evoca com respeito a uma crença racionalmente coerente em Deus como o criador dessa ordem.” (Peacocke 2004)

O projecto é assim, aparentemente, desenvolver uma concepção da acção divina especial (acção para lá da criação e da preservação) que não envolva intervenção. Mas o que seria a intervenção na imagem da mecânica quântica? Não é fácil dizer. Na verdade, não é fácil ver como a intervenção poderia ser diferente da acção divina para lá da criação e da preservação. Contudo, se não há qualquer diferença entre elas, a acção divina especial seria apenas intervenção, caso em que o projecto de desenvolver uma concepção da acção divina especial que não envolva intervenção não é promissora.

Mesmo assim, uma terceira área de alegado conflito entre a crença religiosa e a ciência tem a ver com as diferentes atitudes epistémicas associadas a cada uma delas. Eis, por exemplo, John Worrall:

“A ciência, ou antes, a atitude científica, é incompatível com a crença religiosa. A ciência e a religião estão num conflito irreconciliável […] Não há maneira de ter uma mentalidade apropriadamente científica e ser um verdadeiro crente religioso.” (Worrall 2004, p. 60).

Na ciência, a atitude epistémica dominante (segundo esta tese) é a investigação empírica crítica, propondo teorias que são sustentadas hipotética e temporariamente; estamos sempre dispostos a abandonar uma teoria a favor de uma sucessora mais satisfatória. Na crença religiosa (e.g., cristã), a atitude epistémica da  desempenha um papel importante, uma atitude que difere tanto quanto à fonte da crença em questão, como na disponibilidade para a abandonar.

Outros autores (Ratzsch, 2004), contudo, fazem notar que não há aqui obviamente um conflito. É claro que essas duas atitudes são diferentes, e talvez não possam ser assumidas simultaneamente com respeito à mesma proposição. Mas mostra isso um conflito entre a ciência e a crença religiosa? Talvez alguns modos de formar crenças sejam apropriados numa área e outros modos noutras áreas. Para que tenhamos um conflito, temos de acrescentar que a atitude epistémica científica é a única apropriada a qualquer área de actividade cognitiva. Esta tese, contudo, não é em si parte da atitude científica; é uma declaração epistemológica, a favor da qual se exige argumentação substancial (mas que até agora não é visível). Além disso, não parece que os próprios cientistas assumam a atitude epistémica científica (acima caracterizada) com respeito a tudo o que acreditam, ou mesmo com respeito a tudo o que acreditam como cientistas. Assim, é comum que os cientistas acreditem que houve passado, e na verdade dizem-nos muitas vezes há quanto tempo a Terra, ou a nossa galáxia, ou até o universo inteiro, se formou. Os cientistas raramente sustentam esta crença — que houve passado — em resultado da investigação empírica; nem comummente a sustentam desse modo hipotético, crítico, procurando sempre uma alternativa melhor.

Consequentemente, nestas áreas é difícil encontrar conflito entre a crença religiosa teísta e a ciência contemporânea.

4. Onde  conflito?

Parece haver outras áreas da ciência, contudo, que produzem conflito. Primeiro, há a disciplina relativamente nova mas em rápido crescimento da psicologia evolutiva. A alma e coração deste projecto é o esforço para explicar traços distintamente humanos — a nossa arte, humor, ludicidade, poesia, sentido de aventura, gosto por histórias, a nossa música, a nossa moralidade e a nossa religião — em termos da nossa origem e história evolutiva. E aqui encontramos realmente teorias incompatíveis com a crença religiosa. Um tópico importante nesta área tem sido o comportamento altruísta — comportamento que promove a boa adaptação reprodutiva de outra pessoa às custas da boa adaptação reprodutiva do próprio altruísta. Como explicar que haja pessoas como os missionários e a Madre Teresa, pessoas que dedicam as suas vidas ao serviço dos outros, dando pouca atenção às suas próprias perspectivas reprodutivas? Herbert Simon procura explicar o altruísmo de um ponto de vista evolutivo, em termos de dois mecanismos, a docilidade e a racionalidade limitada:

“As pessoas dóceis tendem a aprender e acreditar no que pensam que os outros membros da sociedade querem que elas aprendam e creiam. Assim, o conteúdo do que aprendem não será completamente analisado quanto ao contributo dado à boa adaptação reprodutiva.

Devido à racionalidade de grupo, o indivíduo dócil será muitas vezes incapaz de distinguir entre os comportamentos socialmente prescritos que contribuem para a boa adaptação e o comportamento altruísta [i.e., o comportamento socialmente prescrito que não contribui para a boa adaptação]. De facto, a docilidade irá reduzir a inclinação para avaliar de modo independente quão contribui um comportamento para a boa adaptação […]. Em virtude da racionalidade de grupo, a pessoa dócil não pode adquirir a aprendizagem pessoalmente vantajosa que fornece o incremento de boa adaptação sem adquirir também os comportamentos altruístas que têm como custo a sua diminuição.” (Simon 1990, 3, 4)

A teoria de Simon foi cuidadosamente trabalhada e bem desenvolvida, sendo de considerável interesse; é também incompatível com a crença religiosa. Segundo esta teoria, a explicação do comportamento altruísta consiste em não se ver que o comportamento em questão compromete a boa adaptação evolutiva. Assim, segundo a teoria de Simon, a resposta à pergunta “Por que razão se comporta a Madre Teresa de um modo que compromete a sua boa adaptação evolutiva?” é “Devido à racionalidade de grupo, ela é incapaz de ver que o seu modo de se comportar compromete a sua boa adaptação.” De uma perspectiva cristã, esta não é de modo algum a resposta correcta, que seria algo como “Ela quer seguir o exemplo de Jesus, fazendo o que pode para ajudar os pobres e doentes.”

Outro exemplo desta área é fornecido por muitas teorias da religião e da crença religiosa. Segundo algumas destas teorias, a crença religiosa é falsa, mas adaptativa; segundo outras, é falsa e contra-adaptativa. Um exemplo do primeiro grupo seria a teoria proposta por David Sloan Wilson, que afirma que a religião é uma adaptação de grupo: “Muitas características da religião, como a natureza dos agentes sobrenaturais e as suas relações com os seres humanos, podem ser explicadas como adaptações concebidas para permitir que os grupos de seres humanos funcionem como unidades adaptativas” (Wilson 2002, p. 51). A crença religiosa, afirma, é fictícia, mas adaptativa a nível de grupo: promove a cooperação, o respeito mútuo e a solidariedade, permitindo assim que o grupo se saia bem em competição com outros grupos.

Que a religião possa funcionar como uma adaptação de grupo é, evidentemente, consistente com a crença teísta; e que dizer do pedaço sobre a crença religiosa — a crença teísta, por exemplo — ser fictícia? Como poderia a tese de que a pessoa de Deus não existe fazer parte da ciência empírica? E mesmo que o pudesse, a teoria de Wilson, ao que parece, estaria em terreno mais sólido se esse acrescento teológico facilmente eliminável fosse excluído. O que não é tão fácil de excluir é a tese de que a crença religiosa (ao contrário da memória, crenças perceptivas, intuição racional) é produzida por faculdades cognitivas ou processos que não visam a produção de crenças verdadeiras. Segundo Wilson, estes processos ou faculdades têm uma função que lhes foi conferida pela evolução; mas essa função não é a de produzir crenças verdadeiras. É antes a função de produzir crenças que promovam a cooperação e a solidariedade; em última análise, a sua função é fornecer crenças que são adaptativas, i.e., promovem a boa adaptação reprodutiva.

Neste ponto, uma comparação com a perspectiva de Sigmund Freud da crença teísta pode ser esclarecedor. Freud sustenta que a crença teísta é uma ilusão. Isto não significa que seja falsa (apesar de Freud pensar que é falsa); o que significa é que a crença teísta é produzida por um processo cognitivo (sonhar alto) que não se “orienta pela realidade”; o seu propósito não é a produção da crença verdadeira, mas (neste caso) uma crença que permita ao crente evitar a depressão e apatia que se instalaria se ele visse claramente a miserável chocante condição em que os seres humanos se encontram. A perspectiva de Wilson é assim como a de Freud, uma vez que também ele propõe que a crença teísta é produzida por faculdades cognitivas que não se orientam pela realidade. Ao passo que Freud assume uma perspectiva pessimista da crença teísta, Wilson é muito mais elogioso:

“Em primeiro lugar, muitas crenças religiosas não estão separadas da realidade […] Ao invés, estão intimamente conectadas com a realidade, motivando comportamentos que são adaptativos no mundo real — um feito espantoso quando nos damos conta da complexidade exigida para ficarmos conectados neste sentido prático […]. A adaptação é o padrão máximo contra o qual a racionalidade tem de ser ajuizada, juntamente com todas as outras formas de pensamento. Os biólogos evolucionistas devem entender este aspecto especialmente bem porque estão cientes de que uma mente bem adaptada é em última análise um órgão de sobrevivência e reprodução.” (Wilson 2002, p. 228)

Apesar de Wilson dirigir palavras simpáticas à religião, a sua tese de que a crença religiosa não visa a verdade é incompatível com a crença religiosa teísta. Segundo o cristianismo, por exemplo, a fé, incluindo a crença nos aspectos essenciais da fé cristã, é uma dádiva divina; e o processo de a produzir no crente (o incitamento interno do Espírito Santo, segundo Tomás de Aquino, o testemunho interno do Espírito Santo, segundo João Calvino) visa realmente a verdade e tem como função a produção de crença verdadeira.

Assim, há um conflito entre a ciência e a religião. O que o explica? Várias coisas, sem dúvida; mas parte da explicação encontra-se no naturalismo metodológico, uma restrição muitíssimo aceite na ciência. Segundo o naturalismo metodológico (NM), ao fazer ciência temos de proceder “como se Deus não fosse dado,” para usar as palavras de Hugo Grócio. O que significa isto exactamente? Há várias sugestões; eis uma delas. Segundo o NM, 1) o conjunto de dados (o modelo) de uma teoria apropriadamente científica não pode referir Deus ou outros agentes sobrenaturais (anjos, demónios), ou empregar o que sabemos ou pensamos saber por meio da revelação (divina). Assim, os dados para uma teoria não incluiriam, por exemplo, a proposição de que houve recentemente um surto de possessão demoníaca em Washington, D. C. 2) Uma teoria científica apropriada não pode referir Deus ou quaisquer outros agentes sobrenaturais, nem empregar o que sabemos ou pensamos saber por meio da revelação. Assim, se o modelo contiver a proposição de que houve um surto de comportamentos bizarros e irracionais em Washington, D. C., não seria apropriado propor uma teoria que envolvesse a possessão demoníaca para o explicar. 3) Note-se, para começar, que a probabilidade ou plausibilidade de possíveis teorias e a sua capacidade para explicar os dados, assim como as suas implicações empíricas, é sempre relativa a uma série de informações de fundo ou umabase epistémica. A terceira restrição é, então, que a base epistémica de uma teoria apropriadamente científica não pode incluir proposições que impliquem obviamente7 a existência de Deus ou quaisquer outros agentes sobrenaturais, ou proposições que sabemos ou pensamos que sabemos por meio da revelação. Pois considere-se alguém que de facto aceita as linhas principais de uma das religiões teístas, e trabalha na área da psicologia evolucionista. Sem dúvida que irá honrar o NM como restrição à sua actividade científica. Se o fizer, para todos os propósitos científicos irá eliminar do seu corpo de dados as proposições que impliquem obviamente a existência de Deus ou de outros seres sobrenaturais, tal como o que ela sabe ou pensa que sabe por meio da fé ou da revelação. Mas então ela poderá muito bem produzir teorias do género que temos vindo a apontar, teorias incompatíveis com a religião teísta.

Uma área bastante diferente, mas com a mesma dialéctica: a crítica bíblica histórica (CBH). A CBH é diferente do comentário bíblico tradicional. O praticante deste último pressupõe que a Bíblia é a palavra de Deus, e tenta pôr a nu o significado do que é ensinado em várias partes da Bíblia. O praticante da CBH, por outro lado, põe especificamente entre parêntesis a crença de que a Bíblia é revelação divina, e tenciona ao invés estudá-la cientificamente. Assim, o falecido Raymond Brown, um estudioso católico das escrituras muitíssimo respeitado, crê que a CBH é “crítica bíblica científica” (Brown 1973, p. 6); dá origem a “resultados factuais” (p. 9); pretende que os seus próprios contributos sejam “cientificamente respeitáveis” (p. 11); e os praticantes da CBH investigam as escrituras com “exactidão científica” (pp. 18-19); veja- se também Meier 1991, p. 6. Estudar a Bíblia cientificamente, portanto, é estudá-la de um modo que obedeça às restrições do NM. (Veja-se também Sanders 1985, p. 5; Levenson 1993, p. 109; e Lindars 1986, p. 91).

Tem havido, como seria de esperar, uma tensão considerável entre a CBH, entendida deste modo, e os cristãos tradicionais, remontando pelo menos a David Strauss, em 1835: “Não, se fôssemos cândidos connosco mesmos, o que era história sagrada para o crente cristão é, para a porção iluminada dos nossos contemporâneos, apenas fábula.” Quanto a tensões contemporâneas, segundo Luke Timothy Johnson:

“Os investigadores do Jesus histórico insistem que temos de encontrar o “Jesus real” nos factos da sua vida antes da sua morte. A ressurreição é vista, quando chega a ser tida em consideração, em termos de uma experiência visionária, ou como uma continuação de uma “emancipação” que começou antes da morte de Jesus. Explícita ou não, a premissa operativa é que não há qualquer “Jesus real” depois da sua morte.” (Johnson 1997, p. 144)

E, segundo Van Harvey, “No que respeita ao historiador bíblico, […] não há praticamente qualquer crença tradicional popular sobre Jesus que não seja encarada com considerável cepticismo” (Harvey 1986, p. 193).

Uma característica absolutamente central da CBH é este esforço de ser científica. Claro que podemos perguntar-nos se a CBH, ou qualquer estudo histórico, é realmente ciência; os seus defensores dizem que o é, mas terão razão? Dada a dificuldade do problema da demarcação, contudo, não é provavelmente avisado transformar esta pergunta numa objecção. (Além disso, ainda que os estudos históricos deste tipo não sejam precisamente ciência, são certamente muitoparecidos à ciência.) E na medida em que a CBH exige a conformidade ao NM, quem a pratica põe entre parêntesis ou suspende ou põe de lado quaisquer perspectivas teológicas, ou o que é conhecido por revelação.8 Tal como acontece com a psicologia evolucionista, portanto, quem trabalha na CBH pode de facto aceitar uma ou outra religião teísta, mas no seu trabalho como praticante de CBH, chegar a conclusões incompatíveis com a sua crença religiosa. Até agora, portanto, temos aqui a mesma dialéctica que vimos na psicologia evolucionista: teorias incompatíveis com a religião teísta que resultam (pelo menos em parte) do NM.

Pelo menos nestas duas áreas, portanto, há um conflito entre as teorias científicas e a crença religiosa. Num aspecto muitíssimo importante, contudo, este conflito é superficial. Isto porque as teorias e teses da psicologia evolucionista e a CBH não precisam de refutar, nem sequer parcialmente,9 aqueles elementos da crença religiosa com os quais são incompatíveis — ainda que o teísmo esteja obrigado a levar a ciência muito a sério e ainda que se conceda que as teorias em questão constituem boa ciência. E isto precisamente porque o NM é encarado como uma restrição à actividade científica. Podemos ver isto como se segue. Como já foi sugerido, a investigação científica é sempre conduzida contra um pano de fundo de um corpo de dados, um corpo de conhecimento ou crença de fundo. Uma parte importante do NM, além disso, é que este corpo de dados não pode conter proposições que impliquem obviamente a existência de seres sobrenaturais, ou proposições que são aceites por meio da fé. Segue-se que o corpo de dados de um partidário de uma religião teísta irá conter o corpo científico de dados como uma parte própria; irá incluir todas as proposições que encontramos no corpo científico de dados, além de outros — talvez os que são específicos da crença cristã. Suponha-se agora que uma dada teoria — a teoria do altruísmo de Simon, ou a teoria da religião de Wilson, ou uma explicação minimalista da vida e actividade de Jesus — é de facto ciência apropriada, e que é de facto a resposta teórica mais plausível e cientificamente mais satisfatória aos dados, dado o CCD, o corpo científico de dados. Isto significa que do ponto de vista do CCD, juntamente com os dados actuais, essa teoria é o melhor ou mais plausível resultado. Mesmo assim, isso não dá automaticamente a um crente algo que refuta aquelas suas crenças com as quais a teoria é incompatível. Isto porque o CCD é apenas uma parte do seu corpo de dados. E pode muito bem acontecer que uma proposição P seja a resposta plausível, dada uma parte da minha base de dados (juntamente com os dados actuais), que P seja incompatível com uma das minhas crenças, e que P não me dê algo que refute essa crença.

Por exemplo, suponha-se que lhe digo que o vi ontem à tarde no centro comercial. Então, com respeito a parte do seu corpo total de dados — a parte que inclui o seu conhecimento de que eu lhe disse que o vi lá, juntamente com o seu conhecimento de que eu tenho uma visão decente e sou, de ordinário, confiável, etc. — a coisa certa a pensar é que você esteve no centro comercial. Contudo, suponhamos, você sabe perfeitamente que não esteve lá; lembra-se de ter estado toda a tarde em casa, pensando sobre o naturalismo metodológico. Aqui, a coisa certa a pensar da perspectiva de uma parte própria do seu corpo de dados é que você esteve no centro comercial; mas isto não lhe fornece algo que refute a sua crença de que não esteve lá. Outro exemplo: podemos imaginar um grupo renegado de físicos extravagantes que se propõem reconstruir a física, recusando-se a usar crenças de memória, ou, se isso for demasiado fantasioso, memórias com mais de um minuto. Talvez algo se possa fazer nesta direcção, mas seria uma coisa pobre, insignificante, mutilada e fútil. E agora suponha-se que a melhor teoria, do ponto de vista deste corpo limitado de dados, é inconsistente com a relatividade geral. Deve isso preocupar os físicos mais tradicionais que usam o que sabem por meio da memória, assim como o que os físicos renegados usam? Penso que não. Esta física mutilada dificilmente poderia pôr em questão a física mais ampla, e o facto de, ao partir de uma parte própria do corpo científico de dados, algo inconsistente com a teoria da relatividade constituir a melhor teoria — esse facto dificilmente daria aos físicos mais tradicionais algo que refutasse a teoria da relatividade.

O mesmo ocorre no caso em discussão. O cristão tradicional pensa que sabe pela fé que Jesus era divino e que ressuscitou dos mortos. Mas então não tem de ficar impressionado pelo facto de estas proposições não serem especialmente objecto de prova com base no corpo de dados a que a CBH se limita — i.e., um corpo de dados restringido pelo NM e que portanto elimina qualquer conhecimento ou crença que dependa da fé. As descobertas da CBH, se é que o são, não têm de lhe dar algo que refute as suas crenças com as quais são incompatíveis. O que está em causa não é que a CBH, a psicologia evolucionista e outras teorias científicas não podem em princípio fornecer algo que refute a crença cristã;10 o que está em causa é apenas o aparecimento de teorias, nessas áreas, incompatíveis com a crença cristã não produz automaticamente algo que a refute. Tudo depende dos dados particulares aduzidos no caso em questão, e as implicações desses dados dado o corpo completo de dados do crente. No caso em questão, por exemplo, pode ser que, dado o CCD e o corpo relevante de dados, é improvável que Jesus tenha renascido dos mortos. Mas dado um corpo de dados que inclua não apenas o CCD mas também a crença em Deus, juntamente com as crenças especificamente cristãs de que Jesus é a segunda pessoa da Trindade encarnada, e que o Novo Testamento é uma fonte de informação fidedigna nestas questões — dadas estas coisas, a proposição de que Jesus renasceu dos mortos pode não ser improvável. Considerações semelhantes se poderiam fazer, é claro, para outras religiões teístas, e com respeito a outras supostas refutações científicas.

Uma pessoa poderia protestar que isto parece uma receita para a irresponsabilidade intelectual, para nos agarrarmos a crenças face aos dados. Não poderá um crente dizer sempre algo como isto, seja qual for a refutação que se apresente? “Talvez B (a crença a refutar) seja improvável com respeito a uma parte do que acredito,” poderá o crente dizer, “mas certamente não é improvável com respeito à totalidade do que acredito, totalidade essa que inclui, é claro, a própria B.” É óbvio que isto não pode estar certo; se estivesse, tudo o que hipoteticamente poderia refutar algo seria posto de lado deste modo, e a refutação seria impossível. Mas a refutação não é impossível; acontece por vezes que adquirimos algo que refuta uma crença B, ao descobrir que B é improvável com respeito a um dado subconjunto próprio do nosso corpo de dados. Segundo o livro de Isaías (41:9), Deus afirma “fui buscar-te aos confins da Terra,

chamei-te dos cantos mais remotos. Eu disse-te: Tu é que és o meu servo. Foi a ti que escolhi e não te rejeitarei.” Uma pessoa poderia acreditar que R, a proposição de que a Terra é um sólido rectangular, com cantos, na base deste texto; terá algo que refuta esta crença quando for confrontada com os dados científicos — fotografias da Terra vista do espaço, por exemplo — que a contrariam. Em qualquer caso, terá algo que refuta R se o resto da sua estrutura noética for como a nossa. O mesmo acontece com alguém que sustente crenças pré-copernicianas com base em textos como “A Terra permanece imóvel; não será deslocada” (Salmos 104:5). Por que há refutadores em alguns casos, mas não noutros? O que faz a diferença?

Eis uma sugestão. Considere-se uma crença religiosa B, incompatível com um resultado de uma teoria científica actual: B poderia ser, por exemplo, a crença de que a Madre Teresa era perfeitamente racional ao comportar-se daquele modo altruísta. Seja a teoria científica a explicação do altruísmo de Herbert Simon, e seja CDC o corpo de dados do crente. A nossa questão é se A, a crença de que a teoria de Simon é apropriadamente ciência (e que implica a negação deB), refuta B. Acrescente-se A ao corpo de dados de S; agora a questão correcta é, talvez, esta: é Bepistemicamente improvável com respeito à conjunção de A com CDC? Claro que a própria Bpoderia ser inicialmente um membro do CDC, caso em que não seria certamente improvável com respeito a ele. Se isso fosse suficiente para não refutar B, contudo, nenhum membro do corpo de dados poderia alguma vez ser refutado por uma nova descoberta; e isso não pode estar certo. Assim, apague-se B do CDC. Chame-se ao resultado de apagar B do corpo de dados de S “CDC reduzido com respeito a B” — “CDC-B”, abreviando.11 E agora a sugestão — chamemos-lhe “o teste por redução da refutação” — é que A refuta B apenas se B for apropriadamente improvável com respeito à conjunção de A com CDC-B.

Suponha-se que aplicamos este teste à crença B de que a Madre Teresa era racional ao comportar-se de modo altruísta, sendo A a crença de que a teoria de Simon do altruísmo é boa ciência e é incompatível com B; e suponhamos que S é um crente cristão. Para aplicar o teste por redução temos de perguntar se B é improvável com respeito à conjunção de A com CDC-B. A resposta, penso, é que B não é improvável com respeito a essa conjunção. Pois CDC-B inclui os dados empíricos, seja eles quais forem exactamente, usados por Simon, mas também a proposição de que nós, seres humanos, fomos criados por Deus e fomos criados à sua imagem, juntamente com o resto das ideias principais da história cristã. Com respeito à conjunção de A com esse corpo de proposições, não é provável que se a Madre Teresa tivesse sido mais racional, mais esperta, teria agido para aumentar a sua boa adaptação reprodutiva, em vez de viver de modo altruísta. Logo, no proposto teste por redução, o facto de que a teoria de Simon é boa ciência, e é mais provável do que improvável com respeito ao corpo científico de dados — esse facto não dá a S algo que refute o que ele pensa sobre a Madre Teresa.

Considere-se, por outro lado, a crença B* de que a Terra tem cantos e arestas, e os dados fotográficos contra essa crença: aqui, plausivelmente, o teste por redução tem como resultado que os segundos refutam B*. (É verdade que um cristão poderia pensar que a Bíblia é infalível, dado Deus ser o seu autor último; mas é claro que isso deixa em aberto a questão de saber o que visa Deus ensinar-nos na passagem em questão.) Assim, o teste por redução dá resultados sensatos nestes dois casos. Contudo, não pode estar certo em geral — mais exactamente, está certo em geral apenas aceitando um pressuposto muito importante, que o crente provavelmente rejeitará. Pois poderá acontecer, obviamente, que B tenha bastante aval em si mesma, aval que não obtém dos outros membros do CDC ou, na verdade, de quaisquer outras proposições. B pode ser básica com respeito ao aval; B pode obter aval de uma fonte diferente de qualquer fonte envolvida na teoria científica com a qual é incompatível. Se isso acontecer, o facto de B ser improvável com respeito a CDC-B não mostra que S tem algo que refuta B pelo facto de B ser improvável com respeito a CDC-B juntamente com a A relevante.

Como exemplo ilustrativo, você está a ser julgado por um dado crime; os dados contra si são fortes, e você é condenado. Contudo, você lembra-se muito claramente que no momento em que o crime ocorreu estava a passear sozinho no bosque. A sua crença de que estava a caminhar no bosque não se baseia em argumentos ou inferências de outras proposições. (Você não repara, e.g., que se sente um pouco cansado e que os seus sapatos têm lama, e que está um mapa da área no bolso do seu casaco, concluindo que a melhor explicação destes fenómenos é que esteve a caminhar no bosque.) Assim, considere-se o seu corpo de crenças, SCC, menos P, a proposição de que não cometeu o crime e estava a caminhar no bosque quando este foi cometido. Com respeito a SCC-P, P é epistemicamente improvável; afinal, você tem os mesmos dados do que o júri a favor de ¬P, e o júri está muito apropriadamente (ainda que erradamente) convencido de que você cometeu o crime. Contudo, você não tem aqui, certamente, algo que refuta a sua crença de que está inocente. A razão, é claro, é que P é para si uma fonte de aval independente do resto das suas crenças: vocêlembra-se disso. No caso destes, ter ou não algo que refute a crença P em questão irá depender, por um lado, da força do aval intrínseco que tem P, e, por outro lado, da força dos dados contra Pquanto a SCC-P. O aval intrínseco será muitas vezes mais forte.

O mesmo se aplica a crenças religiosas, se estas de facto tiverem aval intrínseco. Se S tem uma crença religiosa B e se B tiver aval do modo básico, então mesmo que a probabilidade de B quanto a CDC-B juntamente com a A relevante seja baixa, não se segue que A refuta B para S. Talvez o teste por redução ofereça uma condição necessária para que A refute B para S; é também suficiente apenas se as crenças religiosas não tiverem aval ou estatuto epistémico positivo de um modo básico, e apenas se não adquirem aval ou estatuto epistémico positivo de uma fonte além das que conferem esse estatuto às crenças científicas. É por isso, em parte, que a questão mencionada na secção 2 é importante.

5. Naturalismo e ciência

Examinámos até agora o alegado conflito entre a crença religiosa e a ciência, com respeito a várias áreas: evolução, acção divina no mundo, a diferença entre a atitude científica e a religiosa, psicologia evolucionista e CBH. Mas houve quem sugerisse um conflito entre a ciência e a religião (ou entre a ciência e a quase-religião) de um género totalmente diferente: entre o naturalismo e a ciência (Otte 2002; Plantinga 1993, 2002a; Rea 2002; Taylor 1963; há também sugestões disto em Nietzsche 2003 e no próprio Darwin 1887).

Ora bem, o naturalismo é muito diversificado. Primeiro, há a perspectiva de que a natureza é tudo o que há; não há seres sobrenaturais. Claro que isto é um pouco fraco como explicação do naturalismo; precisamos de saber o que é a natureza, e como poderiam ser os alegados seres sobrenaturais. Talvez um modo de proceder seja dizer que o naturalismo, concebido deste modo, é a perspectiva de que não há uma pessoa como o Deus do teísmo, ou algo como Deus (veja-se, por exemplo, Beilby 2002). Chame-se a isto “naturalismo1.” Outra variedade de naturalismo, “naturalismo científico,” como lhe poderíamos chamar, seria a tese de que não há entidades além das que são sancionadas pela ciência actual (Kornblith 1994).12 Dado que a ciência actual não sanciona seres sobrenaturais, o naturalismo científico implica o naturalismo1. Há também o que poderíamos chamar “naturalismo epistemológico,” segundo o qual, grosso modo, os métodos da ciência são os únicos métodos epistémicos apropriados (Krikorian 1994). Com a ajuda de um par de premissas razoavelmente óbvias, o naturalismo epistemológico implica também o naturalismo1, e eu irei usar “naturalismo” para referir a disjunção das três versões de naturalismo esboçadas. Os partidários do naturalismo, concebido deste modo, seriam (por exemplo) Bertrand Russell (1957), Daniel Dennett (1995), Richard Dawkins (1986), David Armstrong (1978) e muitos outros de quem por vezes se diz que subscrevem “a mundividência científica.”

O naturalismo não é, presumivelmente, uma religião. Num aspecto muito importante, contudo, é parecido a uma religião: pode-se dizer que desempenha a função de uma religião. Há o domínio de questões profundamente humanas a que uma religião tipicamente responde (veja-se acima, secção I): qual é a natureza fundamental do universo: por exemplo, é a mente primordial, ou a matéria (não mental)? O que há de mais real e básico na realidade, e que tipos de entidades exibe? Qual é o lugar dos seres humanos no universo, e que relação têm com o resto do mundo? Há perspectivas de uma vida depois da morte? Existe pecado, ou algo a análogo ao pecado? Se sim, que perspectivas existem de o combater ou ultrapassar? Onde temos de atentar para melhorar a condição humana? Há realmente um summum bonum, um bem mais elevado para os seres humanos, e se sim, o que é? Como uma religião típica, o naturalismo dá um conjunto de respostas a estas e outras questões semelhantes. Podemos portanto dizer que o naturalismo desempenha a função cognitiva de uma religião, e portanto é sensato concebê-lo como uma quase-religião.

Acresce que muitos pensadores, remontando pelo menos a Nietzsche (2003) e possivelmente a William Whewell (Curtis 1986), fizeram notar uma implicação potencialmente preocupante da teoria da evolução. A preocupação pode ser formulada como se segue. Segundo o darwinismo ortodoxo, o processo da evolução é conduzido principalmente por dois mecanismos: mutação genética aleatória e selecção natural. O primeiro é a fonte principal de variabilidade genética; em virtude da segunda, uma mutação que resulte num traço transmissível geneticamente e que aumente a boa adaptação irá provavelmente espalhar-se por essa população e ser preservada como parte do genoma. São os comportamentos e traços que aumentam a boa adaptação que são recompensados pela selecção natural; o que é penalizado são traços e comportamentos que dificultam a boa adaptação. Ao produzir as nossas faculdades cognitivas, a selecção natural irá favorecer as faculdades e processos cognitivos que resultem em comportamento adaptativo; não se importa nem um pouco com a crença verdadeira (enquanto tal) nem com as faculdades cognitivas que conduzem de modo fidedigno à crença verdadeira. Como afirmou o psicólogo evolucionista David Sloan Wilson, “a mente bem adaptada é em última análise um órgão de sobrevivência e reprodução” (Wilson 2002, 228). Se as nossas mentes servem para algo, não é a produção de crenças verdadeiras, mas antes a produção de comportamento adaptativo: que a nossa espécie tenha sobrevivido e evoluído garante, no máximo, que o nosso comportamento é adaptativo; não garante, nem sequer torna provável, que os nossos processos de produção de crenças sejam na sua maior parte fidedignos, ou que as nossas crenças sejam na sua maior parte verdadeiras. Isto porque o nosso comportamento poderia perfeitamente ser adaptativo, mas as nossas crenças serem tão frequentemente falsas como verdadeiras. O próprio Darwin se preocupou aparentemente com esta questão:

“Comigo, levanta-se sempre a dúvida horrível de as convicções da mente humana, que foi desenvolvida a partir da mente dos animais inferiores, terem ou não algum valor, ou serem realmente dignas de confiança. Confiaria alguém nas convicções da mente de um macaco, se é que em tal mente há quaisquer convicções?” (Darwin 1887)

Podemos formular brevemente a dúvida de Darwin como se segue. Seja R a proposição de que as nossas faculdades cognitivas são fidedignas, N a proposição de que o naturalismo é verdadeiro e E a proposição de que nós e as nossas capacidades cognitivas surgimos dos processos apontados pela teoria evolucionista contemporânea: qual é a probabilidade condicional de R dado N&E? I.e., qual é o valor de P(R | N&E)? Darwin receia que seja muito baixo.

Mas é claro que só a evolução natural que não seja guiada dá origem a esta preocupação. Se a selecção natural for guiada e orquestrada pelo Deus do teísmo, por exemplo, a preocupação desaparece; Deus usará todo o processo, presumivelmente, para criar criaturas do género que quer, criaturas à sua própria imagem, criaturas com faculdades cognitivas fidedignas. Assim, é a evolução que não é guiada, e as crenças metafísicas que implicam a evolução que não é guiada, que dão origem a esta preocupação quanto à fiabilidade das nossas faculdades cognitivas. Ora, o naturalismo implica que a evolução, se ocorre, não é realmente guiada. Mas então, segundo esta sugestão, é improvável que as nossas faculdades cognitivas sejam fidedignas, dada a conjunção do naturalismo com a proposição de que nós e as nossas faculdades cognitivas surgimos por meio da selecção natural, peneirando a variação genética aleatória. Sendo assim, quem crê nesta conjunção terá algo que refuta a proposição de que as nossas faculdades são fidedignas — mas se isso for verdadeiro, terá também algo que refuta qualquer crença produzida pelas suas faculdades cognitivas — incluindo, é claro, a conjunção do naturalismo com a evolução. Assim se vê que essa conjunção é auto-refutante. Se o for, contudo, tal conjunção não pode racionalmente ser aceite, caso em que há um conflito entre o naturalismo e a evolução, e portanto entre o naturalismo e a ciência.

Podemos formular esquematicamente o argumento como se segue:

  1. P(R | N&E) é baixa.
  2. Quem aceitar N&E e vir que 1 é verdadeira, tem algo que refuta R.
  3. Quem tem algo que refuta R tem algo que refuta qualquer outra crença que tenha, incluindo a própria N&E.
  4. Logo, quem aceitar N&E e vir que 1 é verdadeira, tem algo que refuta N&E; logo, N&E não pode ser racionalmente aceite.

Claro que esta é uma versão concisa e meramente esquemática do argumento; não há aqui espaço para as necessárias qualificações.

A defesa de 1 seria algo como o seguinte. Primeiro, para evitar a influência do nosso pressuposto natural de que as nossas faculdades cognitivas são fidedignas, pensemos não sobre nós, mas sobre criaturas hipotéticas muito parecidas connosco, existindo talvez noutra parte do universo; e suponha-se que N e E são verdadeiras com respeito a elas. De seguida, note-se que o naturalismo implica aparentemente o materialismo (quanto aos seres humanos); a ciência actual não sustenta a existência de almas imateriais ou mentes ou eus. Assim, considere-se que o naturalismo inclui o materialismo. O que seria uma crença, deste ponto de vista? Presumivelmente, algo como um acontecimento ou estrutura de longo prazo no sistema nervoso — talvez um grupo estruturado de neurónios conectados e relacionados de certos modos. Tal estrutura neuronal terá propriedadesneurofisiológicas (“propriedades NF”): propriedades que especificam o número de neurónios envolvidos, o modo como estes neurónios estão conectados entre si e com outras estruturas (como músculos, glândulas, órgãos dos sentidos, outros acontecimentos neuronais, etc.), a cadência e intensidade médios dos disparos neuronais em várias partes deste acontecimento, e os modos como estas cadências de disparos mudam ao longo do tempo e em resposta aos dados de entrada de outras áreas. Se este acontecimento for realmente uma crença, contudo, terá também conteúdo; será a crença de que p, para uma dada proposição p — talvez a proposição de que o naturalismo está na berra hoje em dia.

Qual é a relação entre as propriedades NF, por um lado, e as propriedades do conteúdo — propriedades como ter como conteúdo a proposição de que o naturalismo está na berra hoje em dia —, por outro? Talvez a posição mais popular aqui seja o “materialismo não redutor” (MNR): as propriedades do conteúdo são distintas mas são sobrevenientes relativamente às propriedades NF.13A sobreveniência pode ser ou lógica, em termos latos, ou nómica. Neste último caso, haveria leis psicofísicas relacionando as propriedades NF com as propriedades do conteúdo: leis do géneroqualquer estrutura com tais e tais propriedades NF terão tal e tal conteúdo. Estas leis serão presumivelmente contingentes (no sentido lógico lato ou no sentido metafísico). No primeiro caso, haverá também tais leis, mas serão necessárias e não contingentes.

Ora, tome-se qualquer crença B da parte de um membro dessa hipotética população: qual é a probabilidade (epistémica) de que B seja verdadeira, dado N&E e o materialismo não redutor — qual é o valor de P(B | N&E&MNR)? O que sabemos é que B tem um certo conteúdo (chamemos-lhe “C”), e (podemos admitir ou conceder) ter B é adaptativo nas circunstâncias em que a criatura se encontra. Qual é então a probabilidade de que C, o conteúdo de B, seja verdadeiro? Bem, qual é a probabilidade de que a lei psicofísica relevante L que liga as propriedades NF e as propriedades do conteúdo produza uma proposição verdadeira como conteúdo neste caso? Ter B é adaptativo, nas circunstâncias em que a criatura se encontra; exibir as propriedades NF sobre as quais C sobrevém causa comportamento adaptativo. Mas porquê pensar que o conteúdo conectado às propriedades NF por L será verdadeiro nas circunstâncias desta criatura? O que conta como adaptatividade são as propriedades NF e o comportamento que estas causam; não importa se o conteúdo sobreveniente é verdadeiro. As propriedades NF são de facto adaptativas; mas isso não fornece qualquer razão, até agora, para pensar que o conteúdo sobreveniente é verdadeiro. Ter B é adaptativo em virtude de causar comportamento adaptativo, e não em virtude de ter um conteúdo verdadeiro. Claro que se o teísmo for verdadeiro, então os seres humanos (ao contrário dessas hipotéticas criaturas, para quem o naturalismo é verdadeiro) são feitas à imagem divina, o que inclui a capacidade de conhecimento; assim, Deus escolheria presumivelmente as leis psicofísicas de modo a que, nas circunstâncias relevantes, a neurofisiologia produza conteúdo verdadeiro. Mas nada disto é verdadeiro dado o naturalismo; supor que as propriedades do conteúdo que são adaptativas conduzem também, na sua maior parte, a conteúdo verdadeiro, seria um optimismo totalmente injustificado.

Assim, qual é o valor de P(B | N&E&MNR)? Bem, dado que a verdade de B não faz diferença quanto à adaptatividade de B, esta poderia efectivamente ser verdadeira, mas é igualmente provável que seja falsa; teríamos de calcular que a probabilidade de que é verdadeira é mais ou menos a mesma do que a probabilidade de que é falsa. Mas isto significa que é improvável que o crente em questão tenha faculdades cognitivas fidedignas, i.e., faculdades que produzem uma preponderância suficiente de crenças verdadeiras em relação às falsas. Por exemplo, sendo assim, se o crente em questão tiver mil crenças independentes, cada uma delas tendo igual probabilidade de ser falsa ou verdadeira, a probabilidade de, digamos, 3/4 delas serem verdadeiras (e isto seria uma exigência modesta de fiabilidade) seria muito baixa — menos de 10-58. Assim, P(B | N&E&MNR), aplicada a estas criaturas, será baixa. Mas é claro que o mesmo se aplicaria a nós, se o naturalismo fosse verdadeiro: P(B | N&E&MNR), aplicada a nós, seria igualmente baixa.14

Este é o argumento para a primeira premissa. Segundo a premissa 2, quem vê isto e também aceitaN&E tem algo que refuta R, uma razão para a abandonar, para deixar de crer nela. A defesa oferecida desta premissa é por meio de uma analogia partindo de casos claros. Suponha-se que acredito que há uma droga — chamemos-lhe XX — que destrói a fiabilidade cognitiva; eu acredito que 95% dos que ingerem XX perdem a fiabilidade cognitiva. Suponha-se ainda que eu acredito agora que ingeri XX e que P(R | ingeri XX) é baixa; tomadas conjuntamente, estas duas crenças dão-me algo que refuta a minha crença inicial ou pressuposto de que as minhas faculdades cognitivas são fidedignas. Além disso, não posso apelar para qualquer das minhas outras crenças para mostrar ou argumentar que as minhas faculdades cognitivas ainda são fidedignas; qualquer dessas outras crenças está também agora sob suspeita ou está comprometida, tal como R. Qualquer outra crença B é um produto das minhas faculdades cognitivas: mas então, ao reconhecer isto, e tendo algo que refuta R, tenho também algo que refuta B. Claro que haverá muitos outros exemplos: chego ao mesmo resultado se acreditar que sou um cérebro numa cuba e que P(R | sou um cérebro numa cuba) é baixa; o mesmo se aplica à versão cartesiana clássica da mesma ideia (nomeadamente, que fui criado por um ser que gosta de me enganar) e também para cenários mais corriqueiros, por exemplo, a crença de que enlouqueci (talvez porque tenha sido contaminado com a doença das vacas loucas). Em todos estes casos, tenho algo que refuta R.

Ora, segundo a premissa 3, quem tem algo que refuta R, tem algo que refuta qualquer crença que considere que é um produto das suas faculdades cognitivas — que são, é claro, todas as suas crenças. Essa pessoa tem portanto algo que refuta a própria N&E; quem aceita N&E (e vê que P(R | N&E) é baixa) tem algo que refuta N&E, uma razão para duvidar dela ou rejeitá-la ou para ser agnóstico com respeito a ela. Nem poderia essa pessoa obter indícios independentes a favor de R; o processo de o fazer iria é claro pressupor que as suas faculdades são fidedignas. Ela estaria a apoiar-se na precisão das suas faculdades para acreditar que os alegados indícios estão de facto presentes e que são de facto indícios a favor de R. Thomas Reid (1785, 276) formulou este aspecto como se segue:

“Se a honestidade de um homem é posta em causa, seria ridículo basearmo-nos na sua própria palavra, seja ele honesto ou não. O mesmo absurdo há ao procurar provar, por qualquer tipo de raciocínio, provável ou demonstrativo, que o nosso raciocínio não é falacioso, dado que o que está em causa é o nosso raciocínio ser ou não digno de confiança.”

O argumento conclui que a conjunção de naturalismo com a teoria da evolução não pode ser racionalmente aceite — em qualquer caso, por alguém que seja posto ao corrente deste argumento e veja a conexão entre N&E e R.

Como seria de esperar, este argumento tem sido controverso. Várias objecções lhe foram levantadas (Beilby 1997; Ginet 1995, 403; O’Connor 1994, 527; Ross 1997; Fitelson e Sober 1998; Robbins 1994; Fales 1996; Lehrer 1996; Nathan 1997; Levin 1997; Fodor 1998). Houve respostas a estas objecções (Plantinga 2002a; 2003), respostas a estas respostas (Talbott, 2010), etc.; não há qualquer consenso com respeito ao argumento. Se o argumento for correcto, contudo, e N&E não puder ser racionalmente aceite, então há um conflito entre o naturalismo e a evolução; não se pode racionalmente aceitar ambos. Assim, há um conflito entre o naturalismo e uma das bases principais da ciência contemporânea. Na medida em que o naturalismo é uma quase-religião em virtude de desempenhar a função cognitiva de uma religião, há uma espécie de conflito entre a religião e a ciência —não entre a religião teísta e a ciência, mas entre o naturalismo e a ciência.

 

Tradução: Desidério Murcho

Artigo originalmente publicado em The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Summer 2010 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = http://plato.stanford.edu/archives/sum2010/entries/religion-science/.

 

Agradecimentos

Pelos conselhos sábios e boas sugestões, agradeço a Brian Boeninger, Thad Botham, E.J. Coffman, Robin Collins, Tom Crisp, Chris Green, Jeff Green, Marcin Iwanicki, Nathan King, Dan McKaughan, Dolores Morris, Brian Pitts, Luke Potter e Del Ratzsch.

 

Notas

  1. Mas o que dizer do empirista construtivo e do instrumentalista? Bem, em qualquer caso visam fazer previsões verdadeiras, ou teorias que visam fazer previsões verdadeiras, ainda que não teorias verdadeiras.
  2. Distinguimos aqui entre a crença em Deus e a crença de que Deus existe. crença em Deusinclui a crença de que Deus existe e, além disso, envolve confiar em Deus, fazer dos seus os nossos propósitos, identificarmo-nos com ele e/ou com os seus propósitos, venerá-lo, comprometermo-nos com ele, etc.
  3. Há excepções. Você usa um computador para calcular o produto de um par de números com seis algarismos; o computador devolve um certo número n. O seu conhecimento de que o produto é de facto n — que é, evidentemente, necessário — é a posteriori; depende do seu conhecimento a posteriori de que o computador apresenta respostas correctas. Denomino o mundo efectivo “α;” então, é uma verdade necessária que (digamos) houve uma guerra civil em α, mas a única maneira de você conhecer esta verdade necessária é a posteriori.
  4. Houve quem afirmasse haver verdades contingentes de que temos conhecimento a priori.Outros afirmam que isto é um erro; veja-se Plantinga 1974, p. 8, n. 1.
  5. “Se existisse uma explicação simples, seria antes em termos da habitual autoridade societal implacável na supressão da opinião minoritária, e, no caso de Galileu, com o aristotelismo, e não o cristianismo, no lugar de autoridade.” (Drake 1980, v).
  6. A sugestão não é que nenhuma teoria científica pode conter elementos metafísicos; a sugestão é apenas que esta afirmação particular é claramente metafísica, e também claramente um acrescento: não faz parte da teoria evolucionista tal como esta é actualmente entendida.
  7. “Impliquem obviamente”: segundo a maior parte das crenças teístas tradicionais, a existência de Deus é uma verdade necessária. Se o for, contudo, todas as proposições a implicariam, de modo que a condição em questão tem de ser formulada com maior circunspecção.
  8. Devo sublinhar que a CBH é um projecto, e não um instrumento. Os instrumentos usados pelos especialistas em crítica bíblica histórica — conhecimento da língua, cultura e história relevante, crítica da resposta do leitor, crítica narrativa, ideias das ciências sociais — são também, é claro, instrumentos dos comentadores bíblicos tradicionais, assim como de quem levanta as questões levantadas pelos especialistas em crítica bíblica histórica, mas de uma perspectiva não limitada pelo NM.
  9. Algo que refuta uma crença B que eu tenha é outra crença D que adquiro tal que, dada a minha série particular de crenças e a força com que as mantenho, não posso racionalmente continuar a aceitar B desde que aceite D; se D for algo que refuta parcialmente B, então não posso continuar a aceitar (acreditar) B com a mesma força.
  10. Suponha-se que se descobre uma série de cartas e as últimas técnicas de datação as localizam na primeira parte do séc. I; nas cartas mais antigas os apóstolos planeiam o embuste, e nas mais recentes congratulam-se por ter tudo corrido muito bem… Veja-se van Fraassen (1993), p. 322.
  11. Claro que temos também de eliminar proposições que implicam B, e talvez certas proposições probabilisticamente relacionadas com B. Em geral, haverá mais de uma maneira de o fazer. Sem entrar em pormenores, digamos (um pouco vagamente) que CDC-B é qualquer subconjunto de CDC que não implica B e, à parte isso, é maximamente semelhante a CDC.
  12. Alternativamente, o naturalismo científico deve ser visto como a injunção ou resolução de não tolerar quaisquer entidades que não sejam sancionadas pela ciência contemporânea; see van Fraassen (2002).
  13. Ou, para acomodar o externismo quanto ao conteúdo (“o significado não ‘tá na cabeça”), relativamente às propriedades NF juntamente com certas propriedades do meio ambiente. Esta qualificação estará pressuposta mas não mencionada no que se segue.
  14. Podemos argumentar de modo semelhante a favor da baixa probabilidade de R dado N&E e o materialismo redutor, a ideia de que as propriedades de conteúdo são apenas propriedades NF (complexas); limitações de espaço não permitem apresentar aqui o argumento.

 

Bibliografia

  • Alston, W. P., 1991, Perceiving God. Ithaca, NY: Cornell University Press.
  • Aquinas, T., Summa Theologiae. (Traduzido pelos Padres da English Dominican Province). Westminster, MD: Christian Classics, 1981. (originalmente publicado em 1267-1273).
  • Armstrong, D., 1978, Universals and Scientific Realism. Cambridge: Cambridge University Press.
  • Barr, S. M., 2003, Modern Physics and Ancient Faith. Notre Dame: Notre Dame University Press.
  • Behe, M., 1996, Darwin’s Black Box. New York: The Free Press.
  • Beilby, J., 1997, “Is Evolutionary Naturalism Self Defeating?”, International Journal for the Philosophy of Religion 42:2, 69-78.
  • —, (org.) 2002, Naturalism Defeated?: Essays on Plantinga’s Evolutionary Argument against Naturalism. Ithaca, NY: Cornell University Press.
  • Bodin, J., 1975, Colloquium Heptaplomeres de rerum sublimium arcanis abditis, escrito por volta de 1593 mas publicado pela primeira vez em 1857. Trad. inglesa de Marion Kuntz. Princeton: Princeton University Press. A citação é da tradução de Kuntz.
  • Brooke, J. H., 1991, Science and Religion: Some Historical Perspectives. Cambridge: Cambridge University Press.
  • Brown, R., 1973, The Virginal Conception and Bodily Resurrection of Jesus. New York: Paulist Press.
  • Calvin, J., 1559, Institutes of the Christian Religion. John T. McNeill (org.) and Ford Lewis Battles (tr.) Philadelphia: Westminster Press, 1960. (A página referida diz respeito à edição de 1960.)
  • Carr, B.J., and M. J. Rees, 1979, “The Anthropic Principle and the Structure of the Physical World” Nature 278, (April 12) 605-612.
  • Carter, B., 1979, “Large Number Coincidences and the Anthropic Principle in Cosmology,” inConfrontation of Cosmological Theories with Observational Data. M. S. Longair (org.), Dordrecht: D. Reidel Pub. Co., pp. 291-298.
  • Collins, R., 1999, “A Scientific Argument for the Existence of God: The Fine-Tuning Design Argument” in Reason for the Hope Within. Michael Murray (org.), Grand Rapids, MI: Eerdmans.
  • —, 2003, “Evidence for fine-tuning,” in God and Design. Neil Manson (org.) New York: Routledge.
  • Cotes, R., 1953, Newton’s Philosophy of Nature; Selections from his writings. New York: Hafner Library of Classics.
  • Curtis, R., 1986, “Are Methodologies Theories of Scientific Rationality?,” The British Journal for the Philosophy of Science. 37:1, 135-161.
  • Darwin, C., 1887 The Life and Letters of Charles Darwin Including an Autobiographical Chapter, Francis Darwin (org.) London: John Murray, Albermarle Street, Vol. 1, pp. 315-316.
  • Dawkins, R., 1986, The Blind Watchmaker; why the Evidence of Evolution Reveals a Universe without Design. New York: Norton.
  • —, 2003, A Devil’s Chaplain. Boston, MA: Houghton Mifflin.
  • Dennett, D., 1995, Darwin’s Dangerous Idea. New York: Simon and Schuster.
  • Draper, J. W., 1875, History of the Conflict between Religion and Science. New York: D. Appleton and Co., 5th org.
  • Draper, P., 2002, “Irreducible Complexity and Darwinian Gradualism: a Reply to Michael J. Behe” Faith and Philosophy, 19:1, 3-21.
  • Fales, E., 1996, “Plantinga’s Case Against Naturalistic Epistemology,”Philosophy of Science63:3, 432-451.
  • Fitelson, B., and E. Sober, 1998, “Plantinga’s Probability Arguments Against Evolutionary Naturalism”, Pacific Philosophical Quarterly 79:2, 115-129.
  • Fodor, J., 1998, “Is Science Biologically Possible?” (The 1998 Benjamin Lecture at the University of Missouri), in Beilby, 2002.
  • Foster, M.B., 1934, “The Christian Doctrine of Creation and the rise of Modern Natural Science”, Mind (October), XLIII (172) 446-468.
  • —, 1935, “Christian Theology and Modern Science of Nature (I)” Mind(October), XLIV (176) 439-466.
  • —, 1936, “Christian Theology and Modern Science of Nature (II)” Mind(October), XLV (177) 1-27.
  • Gilkey, L., 1983, “Cosmology, Ontology and the Travail of Biblical Language,” in God’s Activity in the World: the Contemporary Problem, Owen C. Thomas (org.), Chico, CA: Scholar’s Press.
  • Ginet, C., 1995, “Comments on Plantinga’s Two-Volume Work on Warrant,”Philosophy and Phenomenological Research, 55(2): 403-408.
  • Harvey, V., 1986, “New Testament Scholarship and Christian Belief”, in Jesus in History and Myth, R. Joseph Hoffman and Gerald A. Larue (orgs.) Buffalo: Prometheus Books.
  • Johnson, L. T. 1997, The Real Jesus. New York: Harper Collins.
  • Kornblith, H., 1994, “Naturalism: both Metaphysical and Epistemological,”Midwest Studies in Philosophy, Vol. XIX, Peter French, Theodore Uehling,Jr and Howard K Wettstein (orgs.) Notre Dame: University of Notre Dame Press.
  • Krikorian, Y., 1944, Naturalism and the human spirit. New: Columbia University Press.
  • Laplace, P. S., 1796, Exposition du système du monde; translated from the French by J. Pond. London: printed for R. Phillips, 1809.
  • Laudan, L., 1988, “The Demise of the Demarcation Problem.” in But is it Science?, Michael Ruse (org.), Buffalo, NY: Prometheus Books.
  • Lehrer, K., 1996, “Proper Function versus Systematic Coherence” in Warrant in Contemporary Epistemology: Essays in Honor of Plantinga’s Theory of Knowledge, Jonathan Kvanvig (org.), Lanham, MD: Rowman & Littlefield
  • Levenson, J., 1993, “The Hebrew Bible, the Old Testament, and Historical Criticism” in The Hebrew Bible, the Old Testament, and Historical Criticism. Louisville: Westminster/John Knox Press. (Uma versão anterior deste ensaio foi publicada sob o mesmo título em Hebrew Bible or Old Testament? Studying the Bible in Judaism and Christianity, John Collins and Roger Brooks (orgs.) Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1990.)
  • Levin, M., 1997, “Plantinga on Functions and the Theory of Evolution,”Australasian Journal of Philosophy. 75:1, 83-98.
  • Lindars, B., 1986, “Jesus risen: bodily resurrection but no empty tomb,”Theology 89:90-96.
  • Locke, J., 1689, An Essay Concerning Human Understanding, org. with “Prolegomena” by Alexander Fraser. New York: Dover Publications, Inc., 1959.
  • Mackie, J. L., 1982, The Miracle of Theism. Oxford: Clarendon Press.
  • Maudlin, T., 2003, “Distilling Metaphysics from Quantum Mechanics,” The Oxford Handbook of Metaphysics, Michael Loux and Dean Zimmerman (orgs.) Oxford: Oxford University Press.
  • Mayr, E., 1998, Toward a New Philosophy of Biology; Observations of an Evolutionist. Cambridge: Harvard University Press.
  • Meier, J., 1991, A Marginal Jew: Rethinking the Historical Jesus. New York: Doubleday, volume um de três.
  • Miller, K., 1999, Finding Darwin’s God. New York: Harper-Collins.
  • Monod, J., 1971, Chance and Necessity. New York: Alfred A. Knopf.
  • Murphy, N., 2001, “Phillip Johnson on Trial.” in Intelligent Design Creationism and its Critics, Robert Pennock (org.), Cambridge, MA: MIT Press.
  • Nathan, N. M. L., 1997, “Naturalism and Self-Defeat: Plantinga’s Version”, Religious Studies33:2, 135-142.
  • Nietzsche, F., 2003, Nietzsche: Writings from the Notebooks, (Cambridge Texts in the History of Philosophy) Rudiger Bittner (org.), Kate Sturge (tr.) Cambridge: Cambridge University Press, Notebook 36, June-July 1885.
  • O’Connor, T., 1994, “An Evolutionary Argument Against Naturalism?” The Canadian Journal of Philosophy, 24(4), 527-540.
  • Orr, H. A., 2004, Letter to The New York Review of Books, May 13, 51:8, 47.
  • Otte, R., 2002, “Conditional Probabilities in Plantinga’s Argument,” inNaturalism Defeated? Essays on Plantinga’s Evolutionary Argument Against Naturalism, James Beilby (ed). Ithaca: Cornell University Press.
  • Peacocke, A., 2004, “Problems in Contemporary Christian Theology,”Theology and Science,2(1), 2-3.
  • Plantinga, A., 1974, The Nature of Necessity. Oxford: Clarendon Press.
  • —, 1993, Warrant and Proper Function New York: Oxford University Press, Chap. 10.
  • —, 2000, Warranted Christian Belief. Oxford: Oxford University Press.
  • —, 2002a, “Introduction: The Evolutionary Argument Against Naturalism,” in Naturalism Defeated? Essays on Plantinga’s Evolutionary Argument Against Naturalism., James Beilby (org.), Ithaca, NY: Cornell University Press.
  • —, 2002b, “Reply to Beilby’s Cohorts,” Naturalism Defeated? Essays on Plantinga’s Evolutionary Argument Against Naturalism, James Beilby (org.) Ithaca, NY: Cornell University Press.
  • —, 2003, “Probability and Defeaters,” Pacific Philosophical Quarterly 84:3, 291-298.
  • Plantinga, A., and Wolterstorff, N., 1983, Faith and Rationality. Notre Dame, IN: University of Notre Dame Press.
  • Polkinghorne, J., 1989, Science and Creation: the Search for Understanding. Boston: New Science Library; New York: Random House.
  • Ratzsch, D., 2004, “The Demise of Religion: Greatly Exaggerated Reports from the Science/Religion “Wars”” in Contemporary Debates in Philosophy of Religion. Michael Peterson and Raymond Van Arragon (orgs.) Oxford: Blackwell.
  • Ratzsch, D., 2009, “Humanness in their Hearts: where science and religion fuse” in The Believing Primate: Scientific, Philosophical and Theological Reflections on the Origin of Religion. Jeffrey Schloss and Michael Murray (orgs.) Oxford, pp. 215-245.
  • Rea, M., 2002, World Without Design: the Ontological Consequences of Naturalism. Oxford: Clarendon Press, cap. 8.
  • Reid, T., 1785, Essays on the Intellectual Powers of Man, Derek Brookes (org.) University Park: Pennsylvania State University Press, 2002. (A página diz respeito à edição de 2002.)
  • Robbins, W., 1994, “Is Naturalism Irrational?” Faith and Philosophy 11: 2, 255-259.
  • Ross, G., 1997, “Undefeated Naturalism,” Philosophical Studies 87, 2 (August): 159-184.
  • Ruse, M., 1982, Darwinism Defendorg. Reading, MA: Addison-Wesley.
  • Russell, B., 1957, “A Free Man’s Worship” in Mysticism and Logic. Garden City, New York: Doubleday Anchor Books.
  • Sanders, E. P., 1985, Jesus and Judaism. Philadelphia: Fortress Press.
  • Sears, F. W., and Zemansky, M. W., 1963, University Physics, 3rd edition. Reading, MA: Addison-Wesley Pub. Co., Inc.
  • Simon, H., 1990, “A Mechanism for Social Selection and Successful Altruism,”Science, 250(4988): 1665-1668.
  • Swinburne, R., 1979, 2004, The Existence of God. Oxford: Clarendon Press.
  • —, 1981, 2005, Faith and Reason. Oxford: Clarendon Press.
  • —, 2003, “The argument to God from fine-tuning reassessed” in God and Design: The Teleological Argument and Modern Science, Neil Manson (org.), London: Routledge.
  • Talbott, W., 2010, “More on the Illusion of Defeat” in The Nature of Nature, Bruce Gordon and William Dembski (orgs.).
  • Taylor, R., 1963, Metaphysics. Englewood Cliffs, NY: Prentice Hall.
  • van Inwagen, P., 2003, “The compatibility of Darwinism and design” in God and Design: The Teleological Argument and Modern Science, Neil Manson (org.), London: Routledge.
  • van Fraassen, B., 1980, The Scientific Image. Oxford: Clarendon Press.
  • —, 1993, “Three-sided scholarship: comments on the paper of John R. Donahue, S.J.,” inHermes and Athena, Eleonore Stump and Thomas Flint (orgs.), Notre Dame: University of Notre Dame Press.
  • —, 2002, The Empirical Stance. New Haven: Yale University Press, ch. 2.
  • von Weizsäcker, C.F., 1964, The Relevance of Science. New York: Harper and Row.
  • White, A. D., 1895, History of the Warfare of Science with Theology.
  • White, R., 2003, “Fine-tuning and multiple universes.” in God and Design, Neil Manson (org.), London: Routledge.
  • Wildman, W., 1988-2003, “The Divine Action Project, 1988-2003,” Theology and Science 2/1 (2004): 31-75.
  • Wilson, D. S., 2002, Darwin’s Cathedral: Evolution, Religion and the Nature of Society. Chicago, IL: University of Chicago Press.
  • Worrall, J., 2004, “Science Discredits Religion,” in Peterson and Van Arragon, 2004.

(Fonte)

Categorias
Apologética Augustus Nicodemus Lopes Ciência Criação

A relação entre fé e ciência

Categorias
Apologética Deus Encorajamento Heresias Modernismos Soberania Sofrimento

A tragédia de Santa Maria (Solano Portela)

A tragédia de Santa Maria está na mente de todos os brasileiros. Mais de 230 mortes – a maioria de jovens, deixando centenas de famílias enlutadas, como consequência do terrível incêndio. O que era uma noite de diversão transformou-se em um rio de lágrimas que transborda por todo o país. Mais uma vez, as últimas viradas de anos têm sido marcada por tragédias. Em janeiro de 2011, avalanches de terra e enchentes ceifaram centenas de vidas, na região serrana do Rio. Em 2008/2009 foram inundações e deslizamentos assoladores em Santa Catarina. Na transição 2009/2010 tivemos também mortes e prejuízos causados pelas águas, no sudeste do Brasil. Naquela ocasião escrevíamos, também, sobre o terremoto no Haiti e choramos com o conseqüente sofrimento chocante e intenso daquele evento que dizimou cerca de 200 mil pessoas. Três anos depois, aquele povo ainda geme com a orfandade, dissolução social, promessas não cumpridas pela “comunidade internacional” e com a extrema e endêmica corrução arraigada naquela terra. Isso porque ainda não nos saiu da memória o Tsunami de 26.12.2004, no Oceano Índico, quando pereceram cerca de 220 mil pessoas, situação recentemente lembrada no filme “O Impossível”.
Enquanto vemos as cenas de dor e tristeza, e avaliamos tudo isso, somos levados às Escrituras para procurar alguma compreensão trazida pelo próprio Deus, para esses desastres. É no meio dessas circunstâncias que decidimos recolocar aqui alguns pensamentos que já foram expressos neste Blog em posts anteriores.
Na ocorrência de tragédias devemos resistir à tentação de procurar respostas que diminuem a bíblica soberania e majestade de Deus, e conseqüentemente não fazem justiça à sua pessoa, ou aquelas que nos colocam com Deus – pontificando um julgamento divino sobre a situação imediata da ocorrência. Tais “explicações”, “conclusões” e “construções” aparentam ser plausíveis, mas revelam-se meramente humanas, pois contrariam a revelação das Escrituras. Esses tipos de respostas sempre aparecem, quando ocorrem desastres; quando diversas vidas são ceifadas e pessoas que estavam entre nós desaparecem, de uma hora para outra. Interpretações estranhas dessas circunstâncias não são novidade e nem têm surgido apenas em nossos dias.
Por exemplo, em novembro de 1755 a cidade de Lisboa foi praticamente arrasada por um grande terremoto. A conclusão emitida por padres jesuítas foi a de que: “Deus julgou e condenou Lisboa, como outrora fizera com Sodoma”. Voltaire (François Marie Arouet), que era um deísta, escreveu em 1756 “Poemas sobre o desastre em Lisboa”. Ali, ele culpa a natureza e a chama de malévola, deixando no ar questionamentos sobre a benevolência de Deus. Jean Jacques Rousseau, respondeu com “Carta sobre a providência”. Nela ele culpa “o homem” como responsável pela tragédia. Ele aponta que, em Lisboa, existiam “20 mil casas de seis ou sete andares” e que o homem “deveria ter construído elas menores e mais dispersas”. Ou seja, procurando “inocentar a Deus e a natureza” ele coloca a agência da tragédia no desatino dos homens, de maneira bem semelhante à que os especialistas contemporâneos e comentaristas da mídia adoram fazer.[1]
Quando do terremoto no Haiti, à semelhança do que ocorreu no Tsunami, alguns depoimentos de pastores, que li, falavam sobre a “mão pesada de Deus, em julgamento”; opinião semelhante à emitida quando do acidente com o avião que transportava o grupo “Mamonas Assassinas”, em 1996. No entanto, nenhuma pessoa tem essa capacidade de julgamento, que reflete apenas orgulho e prepotência.
 Mas outros procuram uma teologia estranha às Escrituras, para “isolar” Deus da regência da história. São os mesmos que, quando da ocorrência do Tsunami e do acidente ocorrido com o Vôo 447 da Air France em junho de 2009, emitiram a seguinte conclusão: “Diante de uma tragédia dessa magnitude, precisamos repensar alguns conceitos teológicos” (veja as excelentes reflexões sobre esse último desastre, no post do Augustus Nicodemus, neste mesmo blog). No entanto, em vez de formularmos nossa teologia pelas experiências, voltemo-nos ao ensinamento do próprio Jesus.
Graças a Deus que temos, em Lucas 13.1-9, instrução pertinente sobre como refletir sobre desastres e tragédias. A primeira tragédia tratada é aquela gerada por homens (Vs 1-3). Certos galileus haviam sido mortos por soldados de Pilatos. A Bíblia diz que “alguns” colocaram-se como críticos e juízes (a resposta de Jesus infere isso); deduziram que aqueles que haviam sofrido violência humana, sangue derramado por armas (um paralelo às situações que vivemos nos nossos dias) seriam mais pecadores do que os demais. No entanto, o ensino ministrado pelas Escrituras é o seguinte: Não vamos nos colocar no lugar de Deus. Não vamos nos concentrar em um possível juízo ou julgamento sobre as vítimas. Jesus, em essência diz: cuidem de si mesmos! Constatem os seus pecados! Arrependam-se!
Mas ele nos traz, também, um segundo tipo de tragédias. Esta que é referida é semelhante, guardadas as proporções, a essas enchentes e deslizamentos, ou ao terremoto do Haiti. São tragédias classificadas como “fatalidades”. Jesus fala da Torre de Siloé. O texto (Vs 4-5) diz que ela desabou, deixando 18 mortos. Jesus sabia que mesmo quando, aos nossos olhos, mortes ocorrem como conseqüência de acidentes, isso não impede que rapidamente exerçamos julgamento; não impede que tentemos nos colocar no lugar de Deus. E Jesus pergunta, sobre os que pereceram: “Acham que eram mais culpados do que todos os demais habitantes da cidade”? O ensino é idêntico: Não se coloquem no lugar de Deus; não se concentrem em um possível juízo ou julgamento sobre as vítimas; cuidem de si mesmos! Constatem a sua culpa! Arrependam-se!
O surpreendente é que Jesus passa a ilustrar o seu ensino com uma parábola (Vs.6-9). Ele fala de uma figueira sem fruto. Aparentemente, a parábola não teria relação com as observações prévias, mas, na realidade, tem. Ela nos ensina que vivemos todos em “tempo emprestado” pela misericórdia divina. O texto nos ensina que:
• Figueiras existem para dar frutos – o homem vinha procurar frutos – essa era sua expectativa natural. Todos nós fomos criados para reconhecer a Deus e dar frutos. Esse é o nosso propósito original.
• Figueiras sem frutos “ocupam inutilmente a terra”. O corte é iminente, e justificado a qualquer momento.
• O escape: É feito um apelo para que se espere um pouco mais, na esperança de que, bem cuidada e adubada, a figueira venha a dar fruto e escape do corte.
• Lições para o vizinho? Jesus não apresenta a figueira como um paralelo para fazermos uma comparação com outras pessoas – cujas existências foram ceifadas como vítimas de violência ou fatalidades. Ele quer que nos concentremos em nós mesmos, em nossas próprias vidas, pecados e na necessidade de arrependimento.
• Tempo emprestado: O que ele está ensinando e ilustrando, aqui, é que nós, você e eu, como os habitantes de Santa Maria, as vítimas do Tsunami, na Ásia, ou os habitantes do Haiti, vivemos em tempo emprestado; vivemos pela misericórdia de Deus; vivemos com o propósito de frutificar, de agradar o nosso proprietário e criador.

Creio que a conclusão desse ensino, é que, conscientes da soberania de Deus e de que ele sabe o que deve ser feito, não devemos insistir em procurar grandes explicações para as tragédias e fatalidades. Jesus nos ensina que teremos aflições neste mundo (João 1.33) – essa é a norma de uma criação que geme na expectativa da redenção. 1 Pe 4.19 fala dos que sofrem segundo a vontade de Deus. Lemos que não devemos ousar penetrar nos propósitos insondáveis de Deus; não devemos “estranhar” até o “fogo ardente” (1 Pe 4.12).

Assim, as tragédias, desde as locais pessoais até as gigantescas, de características nacionais e internacionais, são lembretes da nossa fragilidade; de que a nossa vida é como vapor; de que devemos nos arrepender dos nossos pecados; de que devemos viver para dar frutos.
Também, não cometamos o erro de diminuir a pessoa de Deus, indicando que ele está ausente, isolado, impotente. Como tantas vezes já dissemos, “Deus continua no controle”. Lembremos-nos de Tiago 4.12: “um só é legislador e juiz – aquele que pode salvar e fazer perecer”. Não sigamos, portanto, nossas “intuições”, no nosso exame dos acontecimentos, mas a Palavra de Deus. Como nos instrui 1 Pe 4.11: “ se alguém falar, fale segundo os oráculos de Deus”.
Em adição a tudo isso, não podemos cometer o erro de ser insensíveis às tragédias – Pv 17.5 diz: “o que se alegra na calamidade, não ficará impune”; mesmo perplexos, sabendo que não somos juízes nem videntes. Devemos nos solidarizar com as vítimas, na medida do possível e atravessar portas de contato e transmissão das boas novas divinas àqueles que Deus venha, porventura, colocar em nosso caminho.
 [1] Folha de S. Paulo 28/12/2004; Jornal do Commércio – Recife – 2/1/2005, de onde foram extraídas as citações desse trecho.
 ————————————————-
Adaptado de estudos e sermões proferidos em 2005, e de POST de janeiro de 2010
Sair da versão mobile