A meu amado Senhor, que não se poupou em Seu amor a um verme como eu.
Não creio no falso evangelho,
aquele que não me serve de espelho:
que não dá nome a meus pecados,
pelo qual os tolos são enganados;
que promete vida fácil, sem dores,
que promete felicidade sem cruz,
que vende tantos favores,
que entrega trevas, e não luz;
que promete bênçãos de Deus em troca de oferta,
oferecidas aos incautos por gente esperta;
que promete para esta vida o que só terei na eternidade,
que faz o homem maior do que Deus. Falsidade!
Eu rejeito o falso evangelho e seu falso Deus!
Eu creio no evangelho da velha Bíblia, que não esconde que há sofrimento para os que são Seus, para aqueles que são da divina família.
Creio no que a antiga Bíblia ensina, e isso é mais do que uma bela doutrina: que sou um vil pecador; que nada merecia senão a morte; que Deus me amou – e que amor! – e, por amor, mudou minha sorte!
Que Cristo morreu por mim, pagando a dívida que era minha, pois eu não podia pagar pelos pecados que eu tinha! E que Ele estará comigo até o fim!
Ela ensina que a salvação foi dada a mim por graça, por abundante graça, por graça e nada mais. E até o final da vida estarei em Cristo assim, por graça, por abundante graça, por graça e nada mais.
Ela também mui claramente me diz
que ainda não serei totalmente feliz,
mas que até o fim de minha jornada,
carregarei minha cruz, que pode ser bem pesada:
não serei poupado de sofrimento, enfrentarei dias de muitas lágrimas e tormento; por vezes andarei sem saber para onde ir, quase pensando em desistir;
serei atacado por dúvida inclemente, passarei pelo fogo ardente, me sentirei sozinho, mesmo cercado pelos meus, pensarei ter sido esquecido até por Deus!
Serei severamente tentado e, infelizmente, muitas vezes derrotado. Mas poderei me erguer e continuar, se o pecado reconhecer e o abandonar.
Poderei cair muitas vezes,
mas tenho Aquele que por mim sangrou;
Ele é o Deus dos deuses,
Ele é o que desde sempre me amou!
Mas sei – oh, indescritível alegria!
– que naquele assombroso dia,
na glória com meu Senhor,
Ele enxugará de meus olhos toda lágrima, e esquecerei toda a dor.
Então, olharei para o eterno Cordeiro de Deus que morreu em meu lugar,
no sublime trono nos céus,
de onde me chama para com Ele estar,
olharei para Suas mãos feridas,
mãos para mim tão queridas,
feridas cruelmente por amor a mim,
e serei eternamente por elas lembrado
– não poderei esquecer jamais: só estou ali, bem-aventurado, por graça, por abundante graça, por graça e nada mais.
(scs, 19316)
(Publicado originalmente em 9.4.16. Republicado em 6.8.18.)
“Mas entre todos os filhos de Israel nem mesmo um cão moverá a sua língua, desde os homens até aos animais, para que saibais que o Senhor fez diferença entre os egípcios e os israelitas” (Êx 11.7).
O quê? Deus tem poder sobre a língua dos cães! Ele pode impedi-los de latir? Sim, é isso mesmo! Ele pode impedir um cão egípcio de perturbar um cordeiro do rebanho de Israel. Deus cala cães, e cães entre os homens, e o grande cão no portão do inferno? Então, vamos seguir em frente sem medo.
Se Deus impede cães de moverem a língua, pode também parar os dentes deles. Eles podem fazer um barulho terrível, e ainda não nos farão nenhum dano. Ainda assim, quão doce é o silêncio! Quão delicioso é passar entre os inimigos e perceber que Deus faz com que fiquem em paz conosco! Como Daniel na cova dos leões, nós estamos ilesos em meio a destruidores.
Oh, que hoje essa palavra do Deus de Israel seja verdadeira para mim! O cão me preocupa? Eu falarei a meu Senhor sobre ele. “Senhor, ele não se importa com meus argumentos; fala Tu a palavra de poder, e ele se deitará. Dá-me paz, ó meu Deus, e permita-me ver Tua mão tão distintamente nisso que eu perceba claramente a diferença que Tua graça fez entre mim e os ímpios!”
“Quem há entre vós que tema ao Senhor e ouça a voz do Seu servo? Quando andar em trevas, e não tiver luz nenhuma, confie no nome do Senhor, e firme-se sobre o seu Deus” (Is 50.10).
Ouvir o Senhor, obedecer a Sua voz, e ainda andar nas trevas! Ou, colocado de outra maneira, andar nas trevas, e ainda temer a Deus e obedecer a Sua voz! Podem essas coisas coexistirem? O Espírito Divino escreveu por intermédio do profeta Isaías as palavras desse texto, de maneira que, assim como Isaías 50.10 permanece escrito, assim a resposta divina deve ser: “Sim!”.
Antes de tudo, precisamos dizer que o Senhor permite que Seus filhos às vezes passem por tempos de profundas trevas devidos aos assaltos de Satanás, com o intuito de trazê-los a uma fé pura em Sua Palavra, ainda que a própria experiência deles pareça ser contrária a ela.
Uma palavra para o oprimido
Estamos escrevendo para esses filhos de Deus, e não para aqueles que estão se regozijando na consciente presença de seu Senhor e em sua aceitação mediante o sangue. Muitos desses jamais pisaram as profundezas a que nos referimos aqui. Aos tais, nossa mensagem talvez não faça sentido.
Mas é para as pobres, torturadas, angustiadas almas, que sabem o que é lutar com espíritos perversos nos lugares celestiais, que nossa mensagem se destina. As trevas estão perto, trevas essas que podem ser sentidas; o escudo da fé quase lhes caiu da mão, e o brilho dos inflamados e grossos dardos lançados agilmente em sua direção pelo mal é tudo o que elas vêem. Elas não podem ter descanso à parte de Deus, porém parecem tê-Lo perdido. Nada é real para elas além das trevas.
O diabo não triunfará!
Esse é um quadro belo? Para os outros pode até parecer, mas não para quem se encontra nessa situação. Nós, que o pintamos, sabemos por nossa própria experiência que não é. O diabo, que triunfaria em nossa agonia, também sabe que não é. Porém, ele não triunfará. “Ó inimiga minha, não te alegres a meu respeito; ainda que eu tenha caído, levantar-me-ei; se morar nas trevas, o Senhor será a minha luz” (Mq 7.8). Talvez até mesmo agora ele encontre você com os aleluias da fé, mas não de sentimentos, em seus lábios, enquanto você aponta para o sangue do Cordeiro.
“Eis que tudo quanto ele tem está na tua mão” (Jó 1.12), Deus disse a Satanás em relação a Jó. Mas apenas até certo ponto Satanás poderia cumprir seu desejo. Pobreza, desfalecimento, doença, acusações injustas dos amigos, e, aquilo de que tratamos aqui, trevas espirituais, tudo isso sobreveio a Jó. “Eis que se me adianto, ali [Deus] não está”, ele clama em sua angústia; “e torno para trás, não O percebo. Se opera à esquerda, não O vejo; se se encobre à direita, não O diviso” (23.8,9). No entanto, Deus ainda estava ali todo o tempo.
Três laços sutis
Parece haver três laços sutis do diabo, pelos quais as almas são levadas às trevas, que geralmente estão entrelaçados uns com os outros.
O diabo usa as próprias palavras de Deus para levar as almas para as trevas. Se ele as citou ao Mestre na tentação no deserto (Mt 4.1-11), quão pronto estará para empregar o mesmo método com os servos. Ele conhece bem o ponto fraco e a história de cada um que deseja derrubar. Para uma mente legalista, ele citará textos que a levarão à agonia da introspecção e de atos infrutíferos que são seu resultado. Vamos dar apenas um exemplo.
O diabo confunde Tiago 5.16 e outras passagens para fazerem significar que os pecados do passado, que estão debaixo do sangue, devem ser confessados a outras pessoas. Mas quem o faz procura em vão ter paz dessa maneira. A memória sempre trará novos fantasmas à consciência. Apenas o sangue de Jesus Cristo os removerá. Nenhum ato de humilhação diante dos outros, como essas confissões, terá proveito, pois o pecado foi contra Deus.
A raiz do mal reside aqui: a alma não vê completamente o valor do sangue de Cristo.
O rei Davi, convencido de ter quebrado o quinto e o sétimo mandamentos, foi constrangido a clamar: “Contra Ti, contra Ti somente pequei” (Sl 51.4). Dessas “obras mortas” de auto-humilhação, dessas penitências protestantes[1], seja limpo pelo sangue, assim como dos pecados que pensam ter sido expiados por ele. Usamos a palavra “expiação” com conhecimento de causa. A raiz do mal reside aqui: a alma não vê completamente o valor do sangue de Cristo. Ela não enxerga que cada pecado, cada parcela da velha e corrupta vida, foi sepultada em Sua cova, e que não temos o direito de desenterrar o que Ele ali colocou.
Isso nos leva a pensar no segundo laço.
O diabo usa o assunto da consagração para levar almas às trevas. É dito aos cristãos que “rendam tudo”, que “consagrem plenamente” a si mesmos a uma “entrega absoluta”. Novamente, o diabo dirige os pensamentos interiores dos que ouvem isso. Consciências escrupulosas são torturadas com questões quanto ao que deve ser “entregue”, e os resultados são com freqüência um estado de pesadelo espiritual.
Mas a graça de Deus vai muito mais longe que isso! É Deus que opera em nós o querer e o efetuar (Fp 2.13). “Consagrem-se ao Senhor.” Sim, mas consagrem-se no sentido espiritual. “Encham suas mãos”, encham-nas com Cristo, levem Cristo a Deus. Digam a Ele que não podem entregar tudo, nada mais do que podem fazer para serem abençoados. Digam a Ele que tudo tem de ser por graça, que sofrerão uma bancarrota espiritual à parte da graça, mas que se lançam à graça para fazerem o que não podem por si mesmos. Digam também que confiam Nele daqui por diante, para escrever Suas leis na mente para as conhecerem, e no coração para as cumprir. Digam que morreram Nele, que foram sepultados com Ele, que ressuscitaram com Ele, e agora, como vivos dentre os mortos, confiam Nele para que viva Sua vida de ressurreição por meio de vocês.
É graça ao longo de todo o tempo. Aprendamos a magnificar a graça de Deus. A cada novo vislumbre de nossa própria impotência para desejar ou fazer, tanto em relação à consagração como em tudo o mais, glórias à graça que se responsabiliza em fazer tudo, e tenhamos um Cristo novo para todas as nossas necessidades.
Agora, passemos para o terceiro laço.
O diabo usa as palavras de outros cristãos para levar as almas às trevas. Paulo disse que agora conhecemos em parte (1Co 13.12). O maior santo, ainda que tenha sido aperfeiçoado no amor, ainda é imperfeito no conhecimento. Ele conhece apenas em parte. Não é essa a razão pela qual às vezes um cristão atribulado na alma se torna em dor para um companheiro crente? Os outros não entendem o que fazer com uma cana trilhada que não deve ser quebrada (Is 42.3); e novamente a cena descrita no Cântico dos Cânticos é promulgada: “Acharam-me os guardas que rondavam pela cidade; espancaram-me, feriram-me” (5.7). Desse modo, o cristão é levado cada vez mais para as trevas.
Existe purificação!
Sim! Existe purificação! Ouse crer que, não importando o que seja, aquilo que desvie sua visão do amor de Deus não é Dele. Ouse crer que tudo o que minimiza Sua graça não é Dele. Ouse crer que o amor de Deus é para você. Ouse crer que a graça de Deus é para você. Agora mesmo, nas densas trevas, creia nesse amor e nessa graça. Abandone as idéias distorcidas sobre Ele que estiveram em curso pela malícia de Satanás. Erga o escudo da fé uma vez mais, e diga como Jó: “Ainda que Ele me mate, Nele esperarei” (13.15), e louve a Deus. Sim, louve-O agora. Não espere até que as trevas passem para louvá-Lo. O caminho para sair delas, e o caminho para os muros da salvação, é pelos portões do louvor. “Aquele que oferece o sacrifício de louvor Me glorificará; e àquele que bem ordena o seu caminho eu mostrarei a salvação de Deus” (Sl 50.23).
[1] A autora se refere a fórmulas litúrgicas de confissão pública de pecados usadas em certos cultos protestantes. Segundo ela, essas práticas são, elas mesmas, as “obras mortas” das quais o penitente precisa ser limpo pelo sangue de Cristo. (N. do R.)
“Porque, se perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai celestial vos perdoará a vós; se, porém, não perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai vos não perdoará as vossas ofensas” (Mt 6.14,15).
O Senhor não ficou satisfeito com este impressionante chamamento para a graça prática na oração prescrita a Seus discípulos: “E perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores” (v. 12), pois imediatamente depois completou com ênfase: “Se, porém, não perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai vos não perdoará as vossas ofensas” (v. 14).
Há tal confusão na cristandade quanto ao perdão dos pecados que a verdadeira força das solenes palavras do Senhor é grandemente perdida. A vasta maioria dos cristãos têm uma visão tão nebulosa da eterna redenção que temem crer na completa e permanente eficácia da obra de Cristo. As boas-novas, ou evangelho, de Deus são portanto despojadas de seu poder. Eles não são melhores do que um judeu que trouxe sua oferta, confessou seus pecados e foi embora com o conforto de que foi perdoado. Assim como este tinha de trazer sacrifícios com freqüência, assim os mal ensinados cristãos falam de sua necessidade de serem aspergidos de novo e de novo com aquele sangue, apesar de ter sido dito que ele foi derramado de uma vez por todas.
A vasta maioria dos cristãos têm uma visão tão nebulosa da eterna redenção que temem crer na completa e permanente eficácia da obra de Cristo.
Quanta cegueira, se não alegarmos nada mais, ao testemunho de Hebreus 10! O perfeito sacrifício fez cessar o imperfeito. Os adoradores uma vez limpos não têm mais consciência dos pecados; em evidente contraste com os sacrifícios levíticos, dos quais eram feitos lembrança ano após ano, os cristãos têm direito à remissão dos pecados. Cristo veio para remover o temporário e estabelecer o perpétuo. Assim sendo, quando Ele ofereceu um sacrifício pelos pecados, Ele eternamente [continuamente] sentou-se à mão direita de Deus. Ele tinha feito tudo perfeitamente a fim de apagar a culpa de Seus amigos (que haviam sido Seus inimigos), e assentou-se como prova de Seu triunfo, e está aguardando até que Seus inimigos, que O rejeitaram, e as obras deles sejam postos por escabelo de Seus pés. Então, Ele virá publicamente e pisará na rebelião aberta deles na consumação da era. Mas, para o cristão, o Espírito Santo testifica que de seus pecados e de sua anarquia Deus não se lembra mais. Agora, onde a remissão desses está, não há mais oferta pelo pecado: todas as coisas desse tipo são suplantadas e mais do que cumpridas em Cristo.
Mas, aqui, a fé falha, porque a Palavra de Deus não é recebida em sua divina e conclusiva autoridade; e, por causa disso, almas são defraudadas de paz e alegria ao crer; e toda a devoção a Deus é reduzida, apesar de termos sido comprados, como fomos, por um preço incalculável. Essa incredulidade ainda é aumentada por confundir coisas que se diferem, como nosso texto indica, com aquela completa redenção que repousa unicamente na cruz de Cristo. Ainda mais quando as benditas instituições da cristandade, como o batismo e a ceia do Senhor, foram tornadas ordenanças salvíficas, não figurativamente, mas intrinsecamente; e uma classe clerical se fez necessária e com direito divino de aplicá-las com o devido efeito aos leigos: uma invenção que sobrepujou as mais altas reivindicações do sacerdócio judeu, e em princípio nega o evangelho.
Mas, embora o Senhor, nem aqui ou em qualquer parte de Seu ensinamento no Monte, se refira à redenção que estava para realizar, Ele tinha uma importante lição para inculcar a Seus discípulos sobre cultivar um espírito de graça. Se o judeu em geral não podia elevar-se acima da lei na distância de Deus que ela produzia, acima do medo que encheu o grande mediador de tremores, e acima da prontidão em denunciar e amaldiçoar que ela gerou, a graça é a atmosfera na qual cristãos vivem e florescem. Sem dúvida, é mediante a justiça, mas, ao mesmo tempo, é a graça reinando.
O que era isso que atraía ao Senhor Jesus mesmo João, o batizador? O que era isso que, apesar de um ambiente de legalismo, por fim floresceu e deu frutos tão doces em Pedro e João e Tiago e um nobre exército de mártires e confessores? O que era isso que derreteu o coração de aço de Paulo e fez dele a mais ardente e sofredora testemunha de Jesus Cristo, e Ele crucificado, para o mundo? O que mais poderia começar com a mais orgulhosa, mais auto-satisfeita, obstinada e rebelde raça e transformá-la em pobres em espírito, em quem chora, em mansos, em quem tem fome e sede por justiça, em misericordiosos, em puros de coração, em pacificadores, em perseguidos por causa da justiça, e mesmo por amor a Ele, para quem a nação e seus sumos sacerdotes julgaram a crucificação ser justa, e assim cumpriram a Lei, os Salmos e os Profetas?
Assim como foram a graça e a verdade que deram vida aos discípulos, e a deram com abundância no poder da ressurreição de Cristo, assim se segue aquela plena e permanente remissão que Seu sangue assegura, e isso ininterruptamente. Mas o pecado tolerado interrompe a comunhão com nosso Deus e Pai, e necessita a advocacia de Cristo para limpar os pés que foram contaminados, mediante o lavar de água pela palavra. Seu sangue retém intacta sua virtude expiatória; mas a palavra é aplicada pelo Espírito em resposta ao Cristo elevado, e aquele que pecou se arrepende no pó e em cinzas. Pois “este [Cristo] é Aquele que veio por água e sangue” (1Jo 5.6). Nós precisamos de ambos, e temos ambos, e nada podemos fazer sem a água, assim como temos o sangue de uma vez por todas. Quem quer que ignore, ou (pior ainda) negue, a dupla provisão da graça, mina a redenção e confunde a verdade de Deus.
Você, que mantém ressentimentos e fica afagando as ofensas (freqüentemente exageradas, se não imaginadas) que outros lhe fizeram, tenha cuidado!
Agora o Senhor especifica que um espírito não-perdoador é intolerável para nosso Pai em Seu governo diário de Seus filhos. E não é de se admirar. Isso é como retornar da graça para a lei, de Cristo para o miserável ego. Conseqüentemente, como na oração, Ele recomenda com insistência graça com relação àqueles que podem nos ofender mesmo de modo muito doloroso, e amor, a respeito do qual Ele diz, alertando de modo leal e terno, que sua falta é, na prática, detestável a Seus olhos. “Porque, se perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai celestial vos perdoará a vós; se, porém, não perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai vos não perdoará as vossas ofensas”.
Você, que mantém ressentimentos e fica afagando as ofensas (freqüentemente exageradas, se não imaginadas) que outros lhe fizeram, tenha cuidado. Se você é cristão, está em total falta no tocante a esse dever característico, está muitíssimo diferente de Cristo. É preciso que alguém lhe diga que você está tão infeliz quanto está endurecido? Não é nada para seu espírito elevado, degradante quanto isso o é para um cristão, que seu Pai não lhe perdoe as ofensas? Não perca tempo com um estado tão ruim e orgulhoso e não entristeça mais o Espírito Santo de Deus que selou você. Não deixe o sol se pôr sobre sua ira, nem dê lugar para o diabo (Ef 4.26,27).
“E o povo sairá e colherá diariamente a porção para cada dia” (Êx 16.4).
“Diariamente a porção para cada dia”: essa era a regra que governava o conceder do maná, por parte de Deus, e o colhê-lo, por parte do homem. Essa ainda é a lei no trato da graça de Deus com Seus filhos. Uma visão clara sobre a beleza e a aplicação dessa regra é um maravilhoso auxílio para compreender como alguém, que se sente completamente fraco, pode ter a confiança e a perseverança de prosseguir vigorosamente por todos os anos de sua carreira na terra. Em certa ocasião, um paciente, que havia sofrido um sério acidente, perguntou ao médico: “Doutor, por quanto tempo precisarei ficar deitado?”. O médico respondeu: “Apenas um dia por vez”. Tal resposta ensinou ao paciente uma preciosa lição. Foi a mesma lição que Deus registrou para Seu povo muitos anos antes: “diariamente a porção de cada dia”.
Sem dúvida, foi por causa disso, e da fraqueza do homem, que Deus graciosamente determinou a alternância entre dia e noite. Se o tempo tivesse sido concedido ao homem na forma de um único e longo dia, certamente isso o teria exaurido e oprimido. A alternância entre dia e noite continuamente revigora e restaura a força do homem. Se o tempo não tivesse sido dividido, não haveria esperança para o homem, à semelhança de uma criança que recebesse um livro para que fosse lido de uma vez. Mas, se ao contrário, apenas uma lição por dia fosse dada a essa criança, ela conseguiria ler o livro com certa facilidade. Assim, o homem consegue gerenciar seus desafios quando eles são quebrados em pequenos pedaços e divididos em fragmentos. O homem somente precisa atender aos cuidados e ao trabalho daquele dia – “diariamente a porção para cada dia”. O resto da noite cai-lhe muito bem para poder começar de forma nova a cada manhã. Os erros do passado podem ser, assim, evitados e as lições podem ser aperfeiçoadas. Além disso, ele tem diante de si somente um curto dia para ser fiel. Os longos anos e a vida longa cuidarão de si; sua duração e seu peso nunca se tornarão fardos.
Na vida da graça, o encorajamento que essa verdade traz é tão doce! Muitas almas se inquietam ao considerar como serão capazes de colher e guardar o maná necessário para todos seus anos de peregrinação em um deserto tão árido. Essas almas nunca experimentaram o conforto indizível que há nas palavras “diariamente a porção para cada dia”. Essas palavras eliminam completamente todo o cuidado com o amanhã. Apenas o hoje é seu. O amanhã é do Pai. “Que garantia tenho de que conseguirei permanecer em Cristo por todos os anos durante os quais tiver de contender com a frieza, as tentações e as tribulações desse mundo?” Essa é uma pergunta que você não precisa fazer. O maná, como alimento e força para você, é concedido apenas diariamente. Sua única garantia do futuro é ser fiel no presente. Aceite e desfrute – e cumpra com todo seu coração – a parte que lhe cabe desempenhar hoje. Se você se alegrar na presença e na graça de Deus hoje, você se verá livre de toda dúvida e será capaz de confiar a Ele seu amanhã também.
Permaneça em Cristo, e que isso seja dia a dia.
Essa verdade nos ensina a atribuir grande valor a cada dia. Muito facilmente somos levados a pensar na vida como um grande todo e passamos a negligenciar o pequeno hoje, bem como esquecemos que são os dias que compõem o todo, e que o valor de cada dia depende de sua influência sobre o todo. Um dia perdido é como um elo quebrado no meio de uma cadeia e, freqüentemente, é necessário mais do que outro dia para efetuar o conserto. Um dia perdido influencia o seguinte, que fica mais difícil de ser guardado. Sim, um dia perdido pode pôr a perder aquilo que foi garantido por meio do cuidadoso trabalho realizado ao longo de meses ou até mesmo de anos. A experiência de muitos cristãos pode confirmar isso.
Cristão, permaneça em Cristo, e que isso seja dia a dia! Você já ouviu a mensagem: “A cada momento” – a lição de permanecer em Cristo dia a dia tem algo a mais para nos ensinar. No que se refere a momentos, em muitos deles não há nenhum exercício direto da mente sendo feito por você, e o permanecer acontece no recôndito mais profundo do coração, guardado pelo Pai, a quem você se encomendou. Mas é precisamente esse trabalho que precisa a cada dia ser renovado para o dia que se inicia – trata-se de um renovar específico da rendição e da confiança necessários para viver a vida a cada momento. Deus ajuntou os momentos e os atou em feixes, para que pudéssemos valorizá-los adequadamente.
Pela manhã, ao olharmos para o dia adiante de nós, ou à noite, ao olharmos para trás, ponderando os momentos vividos, aprendemos a valorizá-los e a usá-los adequadamente. A cada manhã, à medida que o Pai cumprir Sua promessa de lhe conceder o maná necessário para aquele dia – não somente para você, mas também para todos os que participam com você –, apresente-se a Ele com amor, reafirmando aceitar a posição que lhe foi dada em Seu amado Filho. Acostume-se a considerar essa atitude como sendo uma das razões pelas quais Deus estabeleceu a alternância entre o dia e a noite. Deus lembrou-se de nossa fraqueza e fez provisão para ela. Permita que cada dia tenha seu próprio valor do ponto de vista de seu chamamento para permanecer em Cristo.
Ao acordar de manhã, quando seus olhos começarem a contemplar o novo dia, aceite-o nos seguintes termos: “Este é um dia, apenas um dia, mas é um dia concedido para que eu possa permanecer e crescer em Cristo Jesus”. Seja um dia de saúde ou de doença, de lutas ou vitórias, receba-o com gratidão e seja este o principal pensamento: “Mais um dia que o Pai me concedeu; neste dia posso e devo ser mais intimamente unido ao Senhor Jesus”. E ao perguntar-lhe ao Pai: “Será que você pode confiar em Mim, apenas por este dia, que Eu o guardarei e o farei permanecer em Meu Filho e mantê-lo-ei produzindo fruto?”, você não poderá dar qualquer outra resposta a não ser: “Confiarei e não temerei”.
Seja um dia de saúde ou de doença, de lutas ou vitórias, receba-o com gratidão e seja este o principal pensamento: “Mais um dia que o Pai me concedeu”.
A porção diária era dada a Israel cedo de manhã, a cada manhã. Aquela porção diária era para ser usada e deveria servir de alimento ao longo de todo o dia, mas tanto o conceder como o colher eram o trabalho da manhã. Isso sugere que o poder para viver bem um dia e para permanecer o dia todo em Cristo depende fortemente daquele período matinal. “Se as primícias são santas, também a massa o é” (Rm 11.16a). Durante o dia, há momentos de intensa ocupação no corre-corre das tarefas ou nos atropelos dos homens em que somente o cuidado do Pai pode manter intacta nossa conexão com o Senhor Jesus. O maná, colhido de manhã, era o alimento consumido ao longo de todo o dia. Somente quando o cristão consegue garantir, de manhã, um momento a sós com Deus, para renovar de forma distinta e eficaz a comunhão de amor com seu Salvador, é que o permanecer pode ser guardado ao longo de todo o dia. O simples fato de poder proceder assim já é motivo de grande gratidão. No sossego e no frescor de cada manhã, o cristão pode contemplar o dia que se descortina diante de si. Ele pode considerar as responsabilidades e as tentações e, por assim dizer, vivenciá-las de antemão diante de seu Salvador, lançando sobre Ele todas as coisas. Cristo é tudo de que o cristão precisa: seu maná, seu alimento, sua força, sua vida. De manhã, o cristão pode colher a porção daquele dia. Ele deve ver que Cristo é a provisão para todas as necessidades que esse dia possa trazer, e pode prosseguir na certeza de que o dia será de bênção e de crescimento.
À medida que a lição sobre o valor e a obra de um único dia é acolhida no coração, o aprendiz, inconscientemente, é guiado até o ponto de ganhar o segredo do “cada dia, continuamente” (Êx 29.38b). O bendito permanecer, que é aprendido por fé para cada dia, é um crescimento contínuo e cada vez mais pleno. Cada dia de fidelidade traz bênçãos para o dia seguinte, e torna a confiança e a rendição mais fáceis e abençoadas. É assim que cresce a vida cristã: à medida que entregamos nosso coração por inteiro à tarefa de cada dia, esse mover passa a ocorrer durante todo o dia e, a partir daí, opera todos os dias. Assim, permaneceremos em Cristo a cada dia separadamente, todo o dia continuamente e dia após dia sucessivamente.
São os dias que compõem a vida: aquilo que antes parecia alto demais, grandioso demais e inatingível, agora foi concedido à alma que se contentou em tomar e usar “a porção para cada dia” (Êx 16.4), “cada coisa em seu dia” (Ed 3.4). Mesmo sobre a terra ouve-se a voz: “Bem está, servo bom e fiel. Sobre o pouco foste fiel, sobre muito te colocarei; entra no gozo do teu Senhor” (Mt 25.21). Nosso dia a dia torna-se uma maravilhosa experiência de comunhão da graça diária de Deus e nosso louvor diário: “Bendito seja o Senhor, que de dia em dia nos carrega de benefícios”, “para pagar os meus votos de dia em dia” (Sl 68.19; 61.8b). Passamos a compreender as razões de Deus de nos suprir diariamente como certamente Ele o faz: apenas, mas plenamente, o necessário para cada dia. Assim nos apresentamos em Seu caminho, o caminho de pedir diariamente e de esperar apenas o que é necessário – mas que é plenamente suficiente – para aquele dia. Desse modo, passamos a contar nossos dias, não baseados no raiar do sol, ou no trabalho que realizamos ou na comida que comemos, mas em função da renovação do milagre do maná: a bênção da comunhão diária com Ele que é a vida e a luz do mundo. A vida celestial, à semelhança da terrena, não se interrompe e é contínua. O permanecer em Cristo a cada dia traz para esse dia sua respectiva bênção. Permanecemos Nele a cada dia e durante todo o dia. “Senhor, faz com que seja essa a porção de cada um de nós”.
Então, disse Jesus a Seus discípulos: “Se alguém quiser…”. A palavra “quiser” aqui significa “desejam”, como no versículo “todos os que piamente querem viver” (2Tm 3.12). Isso significa “estar determinado”. “Se alguém quiser [desejar] vir após Mim, renuncie-se a si mesmo, tome sobre si sua cruz [não uma cruz, mas a sua cruz] e siga-Me”. E em Lucas 14.27, Cristo declarou: “E qualquer que não levar a sua cruz e não vier após Mim, não pode ser Meu discípulo”. Portanto, não é uma opção. A vida cristã é muito mais do que subscrever um sistema de verdades, adotar um código de conduta ou submeter-se a ordenanças religiosas. Acima de tudo, a vida cristã é uma experiência pessoal de comunhão com o Senhor Jesus. E, apenas na proporção em que sua vida é vivida em comunhão com Cristo, você estará vivendo a vida cristã – somente nesta medida.
A vida cristã é uma vida que consiste em seguir a Jesus. “Se alguém quiser vir após Mim, renuncie-se a si mesmo, tome sobre si sua cruz e siga-Me”. Espero que você e eu ganhemos distinção pela proximidade com que seguimos a Cristo, e então teremos de fato comunhão íntima com Ele. Existe um grupo descrito nas Escrituras do qual é dito: “Estes são os que seguem o Cordeiro por onde quer que vá”. Mas, infelizmente, há um grupo, um grande grupo, que parece seguir o Senhor de forma irregular, espasmódica, ocasional e distante, não de todo o coração. Há muito do mundo e deles mesmos na vida deles, e tão pouco de Cristo. Três vezes mais feliz será aquele que, como Calebe, perseverar em seguir o Senhor.
Acima de tudo, a vida cristã é uma experiência pessoal de comunhão com o Senhor Jesus.
Ora, amados, nosso principal interesse e objetivo é seguir a Cristo, mas existem dificuldades pelo caminho. Existem obstáculos na vereda, e é a eles que a primeira parte de nosso texto se refere. Você nota que a palavra “siga-Me” vem no final. “A si mesmo” fica no caminho, e o mundo com suas milhares de atrações e distrações é um obstáculo; portanto, Cristo diz: “Se alguém quiser vir após Mim [primeiro], renuncie-se a si mesmo [segundo], tome sobre si a sua cruz e [terceiro] siga-Me”. E aí nós aprendemos a razão pela qual tão poucos cristãos professos seguem a Cristo de perto, clara e consistentemente.
O primeiro passo em direção ao seguir diário a Cristo é o negar a si mesmo. Há uma grande diferença, meus irmãos e irmãs, entre negar-se a si mesmo e a assim chamada auto-negação. A idéia popular, tanto para o mundo como entre os cristãos, é a de desistir das coisas que gostamos. Existe uma grande diversidade de opiniões sobre o que deveria ser abandonado. Há alguns que limitariam isso ao que é caracteristicamente mundano, como ir ao cinema, dançar e assistir às corridas. Há outros que limitariam isso a determinado período de tempo quando a diversão e outras coisas que são seguidas durante o resto do ano são rigidamente evitadas naquela época. Mas tais métodos, assim como os outros, só promovem o orgulho espiritual, pois certamente eu mereço algum crédito se desisto de tanta coisa! Ah, meus amigos, o que Cristo fala em nosso texto (que o Espírito de Deus aplique isso a nossa alma) como sendo o primeiro passo para segui-Lo é a negação do próprio eu, não simplesmente algumas coisas que agradam o eu, não algumas coisas que o eu deseja, mas a negação do próprio eu.
O que significa “Se alguém quiser vir após Mim, renuncie-se a si mesmo”? Significa, em primeiro lugar, abandonar sua própria justiça, mas quer dizer muito mais que isso. Significa parar de insistir sobre os próprios desejos, significa repudiar o próprio eu. Significa parar de considerar o próprio conforto, o sossego, a satisfação, o engrandecimento, os próprios benefícios. Significa acabar com o eu. Significa, amados, dizer com o apóstolo: “Para mim, o viver é…” , não o eu, mas “Cristo”. Para mim, o viver é obedecer a Cristo, servir a Cristo, honrar a Cristo, gastar-me para Ele. Esse é o significado! E, “se alguém quiser vir após Mim”, diz nosso Mestre, “renuncie-se, a si mesmo se negue”, ou seja, deixe o eu ser repudiado, ser aniquilado. Vemos isso, em outras palavras, em Romanos 12.1: “Apresenteis os vossos corpos por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus”.
Para mim, o viver é obedecer a Cristo, servir a Cristo, honrar a Cristo, gastar-me para Ele.
Agora o segundo passo para seguirmos a Cristo é tomar a cruz. “Se alguém quiser vir após Mim, renuncie-se a si mesmo, tome sobre si a sua cruz”. Ah, meus amigos, viver a vida cristã é algo mais do que ter uma vida fácil e tranqüila; é um compromisso sério. É uma vida que tem de ser disciplinada com sacrifício. A vida de discipulado começa com a auto-renúncia e continua com a auto-mortificação. Em outras palavras, nosso texto se refere à cruz não apenas como um objeto de fé, mas como um princípio de vida, como um distintivo do discipulado, como uma experiência da alma. E, atentem! Assim como é verdade que a cruz foi o único caminho de Jesus de Nazaré para o trono do Pai, o único caminho para uma vida de comunhão com Deus, e da coroa ao final para o crente, é pela cruz. Os benefícios legais do sacrifício estão assegurados pela fé, quando a culpa do pecado é cancelada; mas a cruz só se torna eficaz sobre o poder do pecado que habita em nós quando nós a tomamos diariamente.
Eu quero chamar sua atenção para o contexto. Mateus 16.21 diz: “Desde então, começou Jesus a mostrar a Seus discípulos que convinha ir a Jerusalém, e padecer muitas coisas dos anciãos, e dos principais sacerdotes e dos escribas, e ser morto e ressuscitar ao terceiro dia. E Pedro, tomando-O de parte, começou a reprendê-Lo”. Pedro vacilou e disse: “Tem compaixão de Ti, Senhor”. Isso expressa a lógica do mundo. Este é o teor da filosofia do mundo: auto-proteção e egoísmo. Mas o que Cristo pregou não foi “poupar-se”, e sim “sacrificar-se”. O Senhor Jesus viu na sugestão de Pedro uma tentação de Satanás e afastou-o de Si: “Então, disse Jesus aos Seus discípulos: Se alguém quiser vir após Mim, renuncie-se a Si mesmo, tome sobre si a sua cruz e siga-Me”. Em outras palavras, o que Cristo disse foi: “Eu estou subindo para Jerusalém, para a cruz; se algum de vocês quiser Me seguir, há uma cruz para ele. E, como Lucas 14 diz: “Qualquer que não levar a sua cruz […] não pode ser Meu discípulo” (v. 27). Não apenas Jesus devia subir para Jerusalém e ser morto, mas todo aquele que o seguir deve tomar sua cruz. O “deve” é tão imperativo em um caso como no outro. A cruz de Cristo permanece única em seu caráter expiatório, mas, no viver diário, ela é compartilhada por todo aquele que passou da morte para a vida.
Assim como é verdade que a cruz foi o único caminho de Jesus de Nazaré para o trono do Pai, o único caminho para uma vida de comunhão com Deus, e da coroa ao final para o crente, é pela cruz.
Então, o que “a cruz” significa? O que Cristo quis dizer com “qualquer que não levar a sua cruz”? Meu amigos, se é deplorável que nesses últimos tempos uma pergunta como esse precise ser feita, é ainda mais deplorável que a grande maioria do próprio povo de Deus tenha concepções anti-bíblicas da razão da existência da “cruz”. O crente em geral parece considerar a cruz a que se refere o texto como qualquer aflição ou dificuldade que possa lhe sobrevir. Qualquer coisa que venha perturbar nossa paz, que seja desagradável à carne, que nos irrita, é vista como uma cruz. Um diz: “Bem, essa é minha cruz!”; outro diz que outra coisa é a cruz dele. Meus amigos, a palavra nunca é utilizada dessa forma no Novo Testamento. A palavra “cruz” nunca é encontrada na forma plural, nem precedida por um artigo indefinido: “uma cruz”. Note também que no texto, nossa cruz está ligada a um verbo na voz ativa, e não na passiva. Não é uma cruz que é colocada sobre nós, mas uma cruz que deve ser “tomada”. A cruz significa realidades definidas que incorporam e expressam as principais características da agonia de Cristo.
Outros entendem que “a cruz” se refere a deveres desagradáveis que eles cumprem sem disposição ou a hábitos carnais que rejeitam. Eles imaginam que tomam “a cruz” quando, empurrados pela consciência, se abstêm de coisas realmente desejadas. Tais pessoas invariavelmente transformam suas “cruzes” em armas para agredir outras. Elas ostentam sua auto-negação e andam por aí insistindo que as demais deveriam imitá-las. Tais concepções da “cruz” são tão farisaicas quanto falsas, e tão prejudiciais quanto errôneas.
Agora, na medida em que o Senhor me permitir, deixem-me mencionar três coisas que a cruz significa.
Primeiro, a cruz é a expressão do ódio do mundo. O mundo odiou o Cristo de Deus, e seu ódio foi plenamente manifesto na crucificação. Em João 15, sete vezes Cristo faz referência ao ódio do mundo contra Si e contra Seu povo; e apenas na proporção em que você e eu seguimos a Cristo, em que nossa vida seguir a Dele, em que deixarmos o mundo e estivermos em comunhão com Ele, então, o mundo nos odiará.
Nós lemos no Evangelho que um homem veio e apresentou-se a Cristo para ser Seu discípulo e pediu que primeiro pudesse ir e enterrar o pai, um pedido muito natural, realmente louvável, e a resposta do Senhor é quase atordoante. Disse Ele àquele homem: “Segue-me. […] Deixa aos mortos o enterrar os seus mortos” (Lc 9.59,60). O que teria acontecido àquele jovem se ele tivesse obedecido a Cristo? Eu não sei se ele obedeceu ou não, mas, se obedecesse, o que aconteceria? O que teriam pensado dele seus parentes e amigos? Seriam capazes de apreciar o motivo, a devoção que fez com que ele seguisse a Cristo e negligenciasse o que o mundo chamaria de um dever filial? Ah, meus amigos, se vocês seguem a Cristo o mundo pensará que estão loucos, e algumas pessoas encontram muita dificuldade em suportar as censuras contra sua sanidade. Sim, algumas que encontram na reprovação dos vivos uma provação mais difícil do que a perda dos mortos.
Outro jovem apresentou-se a Cristo para o discipulado e pediu ao Senhor que primeiro lhe deixasse ir despedir-se dos seus, um pedido muito natural. Então, o Senhor apresentou a “cruz”: “Ninguém, que lança mão do arado e olha para trás, é apto para o reino de Deus” (vv. 61,62). Pessoas de temperamento afetuoso se ressentem dos puxões que desatam os laços do lar, e os acham difíceis de suportar; mais difíceis ainda são as suspeitas dos amados e amigos de terem sido desprezados. Sim, a censura do mundo se torna muito real se estivermos seguindo a Cristo de perto. Ninguém pode segui-Lo e permanecer em harmonia com o mundo.
Outro jovem veio e apresentou-se a Cristo e, ajoelhando-se a Seus pés, O adorou e disse: “Bom Mestre, que hei de fazer …?”, e o Senhor apresentou-lhe a cruz: “Vende tudo quanto tens, reparte-o pelos pobres […] vem e segue-me” (18.18,22). E o jovem retirou-se triste. E Cristo ainda continuou a dizer, a vocês e a mim, hoje: “E qualquer que não levar a sua cruz, e vier após Mim, não pode ser Meu discípulo”. A cruz significa a reprovação e o ódio do mundo. Mas, assim como a cruz foi voluntária para Cristo, ela é voluntária para Seu discípulo. Ela tanto pode ser evitada quanto aceita, ignorada quanto “tomada”.
Mas, em segundo lugar, a cruz significa uma vida que é voluntariamente rendida à vontade de Deus. Do ponto de vista do mundo, a morte foi um sacrifício voluntário. Em João 10.17,18, lemos: “Por isto o Pai me ama: porque dou a Minha vida para tornar a tomá-la. Ninguém a tira de Mim, mas Eu de Mim mesmo a dou. Tenho poder para a dar e poder para tornar a tomá-la”. Porque Ele deu a vida? Veja o final do versículo 18: “Este mandamento recebi de Meu Pai.” A cruz foi a última exigência de Deus sobre a obediência de Seu Filho. Por isso, em Filipenses 2 é dito que Ele, “sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, mas esvaziou-se a Si mesmo, tomando a forma de escravo, fazendo-se semelhante aos homens; e, achado na forma de homem, humilhou-se a Si mesmo, sendo obediente até a morte…” – esse foi o clímax, esse foi o fim do caminho da obediência – “… e morte de cruz.”
Cristo nos deixou exemplo para que seguíssemos Seus passos. A obediência de Cristo deve ser a obediência do cristão – voluntária, não compulsória – voluntária, contínua, fiel, sem nenhuma reserva, até a morte. A cruz, portanto, significa obediência, consagração, rendição, uma vida à disposição de Deus. “ Se alguém quiser vir após Mim, renuncie-se a Si mesmo, tome sobre si a sua cruz e siga-Me”, e: “Qualquer que não levar a sua cruz […] não pode ser Meu discípulo”. Em outras palavras, caros amigos, a cruz significa o principio do discipulado, nossa vida sendo dirigida pelo mesmo principio que dirigiu a vida de Cristo: Ele veio aqui e não agradou a Si mesmo, nem devo eu procurar agradar a mim mesmo. Ele a Si mesmo se esvaziou; então, assim devo eu fazer. Ele ia por toda parte fazendo o bem: o mesmo deveria eu fazer. Ele não veio para ser servido, mas para servir: assim deveríamos agir. Ele se tornou obediente até a morte, e morte de cruz. É isto que a cruz significa: primeiro, a reprovação do mundo, porque nós nos opomos a ele e incitamos sua ira por nos separarmos dele, e por andarmos por uma direção diferente e por sermos dirigidos por princípios diferentes daqueles pelos quais ele é dirigido. Segundo, significa uma vida sacrificada a Deus – devotada a Ele.
Em terceiro lugar, a cruz significa sacrifício e sofrimento vicários. Vejamos 1João 3.16: “Conhecemos o amor nisto: que Ele [Cristo] deu a Sua vida por nós, e nós devemos dar a vida pelos irmãos”. Essa é a lógica do Calvário. Nós somos chamados à comunhão com Cristo, e devemos viver segundo os mesmos princípios que Ele: obediência a Deus e sacrifícios pelos outros. Ele morreu para que tivéssemos vida e, meus amigos, nós temos de morrer para que vivamos. Mateus 16.25 diz: “Porque aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á” – isso diz respeito a todo cristão, pois Cristo estava ali falando aos discípulos. Todo o crente que tem vivido uma vida egocêntrica, preocupado com seu próprio conforto, sua própria paz de consciência, seu próprio bem-estar, suas próprias vantagens e benefícios, essa “vida” irá se perder para sempre – tudo desperdiçado à luz da eternidade; madeira, feno e palha, que virarão fumaça. Mas, “quem perder a sua vida por amor de Mim, achá-la-á”, que quer dizer, alguém que não tem vivido considerando seu próprio bem-estar, seus próprios interesses, seu próprio benefício, sua própria promoção, mas tem sacrificado e gastado a vida a serviço dos outros por causa de Cristo; esse achará – o quê? –, ele a achará, não alguma outra coisa a mais: sua vida, não outra – a sua vida. Essa vida foi imortalizada, perpetuada, foi feita de materiais imperecíveis que sobreviverão ao teste do fogo do dia por vir. Ele “a” achará. Cristo morreu para que pudéssemos viver, e nós devemos morrer se quisermos viver! “Quem perder a vida por minha causa, achá-la-á”.
Novamente, em João 20, Cristo disse a Seus discípulos: “Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio” (v. 21). Para que Cristo foi enviado? Para glorificar ao Pai, para expressar o amor de Deus, para manifestar a graça de Deus, para lamentar sobre Jerusalém, para ter compaixão do ignorante e daqueles que estão fora do caminho, para labutar tão diligentemente que Ele não tinha tempo nem para comer, para viver uma vida de tão alto sacrifício que Seus familiares disseram: “Está fora de Si”, e: “Assim como o Pai Me enviou”, Ele diz, “também Eu vos envio”. Em outras palavras, “Eu vos envio de volta para o mundo do qual vos salvei. Eu vos envio de volta para o mundo para viverdes com a cruz estampada em vós”. Ó irmãos e irmãs, quão pouco “sangue” há em nossa vida! Quão pequeno é o levar o morrer de Jesus em nosso corpo (2Co 4.10)!
Estamos surpresos pelo fato de termos tão pouca vitória sobre o pecado que habita em nós?
Já começamos, de algum modo, a “tomar a cruz”? Estamos surpresos com o fato de estarmos seguindo Cristo tão de longe? Estamos surpresos pelo fato de termos tão pouca vitória sobre o pecado que habita em nós? Há uma razão para tudo isso. Em seu caráter expiatório, a cruz de Cristo permanece única, mas no viver diário a cruz deve ser compartilhada por todos os Seus discípulos. Legalmente, a cruz do Calvário anulou e afastou de nós nossa culpa, a culpa de nosso pecado, mas, meus amigos, eu estou perfeitamente convencido de que a única maneira de nos libertarmos do poder do pecado sobre nossa vida e de obter domínio sobre o velho homem dentro de nós é tornando a cruz parte da experiência de nossa alma. Foi na cruz que o pecado foi tratado legal e judicialmente; somente na medida em que a cruz for “tomada” pelo discípulo é que ela se torna uma experiência – matando o poder e a corrupção do pecado que habita em nós. E Cristo diz: “Qualquer que não tomar a sua cruz […] não pode ser Meu discípulo!”. Oh, que necessidade tem cada crente de ficar a sós com o Senhor e consagrar-se a Seu serviço!
“Portanto, resta ainda um repouso para o povo de Deus” (Hb 4.9).
“E vemos que não puderam entrar por causa da sua incredulidade” (Hb 3.19).
“Então, os filhos de Judá chegaram a Josué em Gilgal; e Calebe, filho de Jefoné, o quenezeu, lhe disse: Tu sabes o que o SENHOR falou a Moisés, homem de Deus, em Cades-Barneia por causa de mim e de ti. Quarenta anos tinha eu, quando Moisés, servo do SENHOR, me enviou de Cades-Barnéia a espiar a terra; e eu lhe trouxe resposta, como sentia no meu coração.
“Mas meus irmãos, que subiram comigo, fizeram derreter o coração do povo; eu, porém, perseverei em seguir ao SENHOR, meu Deus. Então Moisés naquele dia jurou, dizendo: Certamente a terra que pisou o teu pé será tua e de teus filhos, em herança perpetuamente; pois perseveraste em seguir ao SENHOR, meu Deus.
“E agora eis que o SENHOR me conservou em vida, como disse; quarenta e cinco anos são passados, desde que o SENHOR falou esta palavra a Moisés, andando Israel ainda no deserto; e agora eis que hoje tenho já oitenta e cinco anos; e ainda hoje estou tão forte como no dia em que Moisés me enviou; qual era a minha força então, tal é agora a minha força, tanto para a guerra como para sair e entrar. Agora, pois, dá-me este monte de que o Senhor falou aquele dia; pois naquele dia tu ouviste que estavam ali os anaquins, e grandes e fortes cidades. Porventura o SENHOR será comigo, para os expulsar, como o SENHOR disse.
“E Josué o abençoou, e deu a Calebe, filho de Jefoné, a Hebrom em herança. Portanto Hebrom ficou sendo herança de Calebe, filho de Jefoné, o quenezeu, até o dia de hoje, porquanto perseverara em seguir ao SENHOR, Deus de Israel” (Js 14.6-14).
Estou certo de que isso soará para muitos como voltar por um longo caminho e entrar em um reino muito vasto quando digo que nós, cristãos, estamos sendo constantemente confrontados com nosso cristianismo e desafiados por ele. Muitos de nós ainda não entraram realmente no cristianismo. O que quero dizer? Bem, por um motivo: a única porta para o verdadeiro cristianismo é a porta do descanso, o descanso da fé. O modo muito simples pelo qual o Senhor colocou isso em Seu apelo foi: “Vinde a Mim, todos vós que estais cansados e sobrecarregados, e Eu vos aliviarei” (Mt 11.28). Isso foi dirigido a uma multidão, e essas palavras geralmente são usadas nas mensagens evangelísticas para os não-salvos. O sentido do que o Senhor disse com essas palavras é dado na Epístola aos Hebreus – um significado muito mais profundo e completo do que aquele que é geralmente reconhecido no uso do singelo convite: “Vinde a mim […] e vos darei descanso”. Existe algo que devemos ouvir e detectar na frase: “Portanto, resta ainda um repouso para o povo de Deus” (Hb 4.9).
Uma presente entrada no descanso
Se olharmos o contexto, a referência é a algo no qual o povo de Deus não entrou. “E vemos que não puderam entrar por causa da sua incredulidade” (3.19). Eles não puderam entrar. Quem eram eles? O povo de Deus. É para o povo de Deus que ainda resta um descanso. Não coloquemos isso no futuro, pois esse não é o significado de modo algum; como se depois, quando nós chegarmos em Casa na glória, então, chegaremos no dia de descanso sabático, entraremos no repouso. Não é algo que acontece na tumba: a pessoa entrou no descanso. É, antes, alguma coisa que resta agora como algo presente para o povo de Deus, não na morte, mas na vida. Resta ainda o descanso.
Não me julguem elementar, pois vocês sabem no coração, assim como sei no meu, que esse assunto de descanso do coração, o descanso da fé, é uma questão continuamente viva, que está vindo à tona em todo o tempo. Uma das coisas que está faltando em muitos de nós é o repouso, ou, colocando de outra maneira, as coisas que mais nos caracterizam são a agitação frenética, a ansiedade e a incerteza – e todas elas são o oposto da tranqüila segurança, da quieta confiança, do espírito, da atitude e da atmosfera que diz a todo tempo: “Não se preocupem, não se precipitem, está tudo bem”. Uma coisa que nosso grande inimigo está sempre tentando fazer é perturbar, destruir isso e nos roubar isso, agitar-nos, afligir-nos, conduzir-nos, atormentar-nos, qualquer coisa que roube nosso descanso ou nos impeça de entrar nele.
É o descanso da fé, não o descanso da passividade, da indiferença e da falta de cuidado. Há muita diferença entre falta de cuidado e falta de preocupação. Resta, ainda deve ser alcançado, deve ser obtido, ainda existe, ainda está preservado um descanso para o povo de Deus – para o povo de Deus. Não temos o direito de ir aos não-salvos e persuadi-los a chegarem-se a Cristo e achar descanso até, e a menos, que nós próprios conheçamos esse descanso. Nosso testemunho e nosso ministério estão ameaçados, enfraquecidos, limitados e desacreditados se nós mesmos não estivermos no repouso; e este é o objetivo da ação do inimigo com respeito a isso: tirar nosso crédito removendo de nós a primogenitura de nossa união com Cristo, Aquele que nunca está perturbado, nunca ansioso, nunca com dúvidas em qualquer questão a a respeito Daquele que reina. O repouso é o resultado exterior prático de nossa crença de que Ele é o Senhor, e de que o senhorio de Cristo está comprometido pela falta de descanso do povo de Deus.
Não temos o direito de ir aos não-salvos e persuadi-los a chegarem-se a Cristo e achar descanso até, e a menos, que nós próprios conheçamos esse descanso.
O descanso da fé deve ser nossa posição, não apenas na grande questão da justificação – mas se não estivermos alicerçados nela, não estaremos alicerçados em qualquer outro fundamento. Oh, o inimigo está atacando isso, mesmo com respeito ao povo de Deus; ele está sempre buscando desvalorizar isso; de certa forma buscando erguer novamente a questão da justificação, de estarmos apenas com Deus em nosso posicionamento, em nossa aceitação – que ainda não é plena e final em nosso estado apenas em Cristo; ou seja, não estamos finalmente perfeitos em nós mesmos, mas somente naquela união em relação ao que Cristo é. O inimigo nunca cessa de tentar diminuir isso, seus métodos são incontáveis, muito persistentes e muito vigorosos. O descanso da fé está nisso, mas também em cento e um outros aspectos das coisas práticas da vida cotidiana, coisas que não estão em nosso poder para arrumar, assegurar, estabelecer e fazer acontecer. Cada dia traz centenas de situações nas quais há a oportunidade de permanecermos no descanso da fé, naquela fé no Senhor que traz repouso. Assim, sutis são os modos do inimigo que sempre nos dirá que é algo muito pequeno com que preocuparmos o Senhor; “é um mero incidente, por que levar ao Senhor? Ele é maior e tem coisas mais importantes do que essa aí para fazer! Por que tentar fazer do Senhor nosso garoto de recados (digo-o com reverência), apenas para fazer todas as coisinhas que queremos que sejam feitas?” Se nessas coisas o testemunho é preservado pelo descanso, então, é algo grande para o Senhor, não algo pequeno. Se nessa questão a glória do Senhor corre risco de sofrer, então, é algo realmente muito grande. Talvez seja um incidente do dia-a-dia – sim, de muitas, muitas maneiras no cotidiano, você e eu podemos perder o equilíbrio, o descanso e a tranqüila confiança como se perdêssemos nossa espiritualidade, e o Senhor perde muito, pois isso prova que em algum lugar faltou fé, e, com isso, o repouso se foi. Esse é um lado. É um desafio para nós, um real desafio.
A necessidade de fé
“E vemos que não puderam entrar por causa da sua incredulidade.” Não puderam – incredulidade paralisadora, desqualificante e incapacitante. Isso significa que, o quanto antes encararmos toda essa questão e a resolvermos, tanto quanto possível, melhor. Por 38 anos Israel esteve trancado, detido, andando em círculos, por assim dizer, nesta única questão de crer ou não em Deus. Ela foi levantada, digo novamente, de diversas formas. Ela apareceu em questões físicas, pois uma vida no deserto era fisicamente um grande desafio. O Senhor não mudou as condições físicas. Ele chamou os filhos de Israel a uma grande mudança neles mesmos primeiramente; as condições físicas seriam ajustadas quando Ele obtivesse a mudança dentro deles. Quando a questão da fé Nele foi resolvida, então, o Senhor tratou com o que era físico. A questão fora levantada nas áreas circunstancial, emocional, intelectual e volitiva; o desafio fora feito a todas elas de várias maneiras. Podemos considerar toda a experiência deles e ver como cada um tinha uma forma peculiar de desafiar a fé, e esse desafio mudava quase diariamente em seus aspectos e formas, porém era sempre o mesmo. Ocorreu em todas as áreas, e o Senhor jamais o mudou, ou impediu nem permitiu que toda a gama de condições fosse alterada, focando sempre apenas em um ponto: o que importava era o homem interior, e, enquanto esse ponto não fosse decidido, o Senhor lidava com todas as outras coisas.
A coisa é mais profunda: é uma questão de simplesmente crer em Deus; fé resoluta, confiança em Deus.
Bem, isso é muito compreensível. Não pensemos que é necessariamente essa ou aquela coisa que contribui para nossa condição. Podem ser fatores contribuidores, podem ser uma grande prova, podem ter muito peso sobre nós. As questões físicas – sim, elas pesam, tornam a situação extremamente difícil, fazem um monte de diferença. As circunstâncias nas quais temos de viver fazem muita diferença, tornando a situação demasiadamente difícil. Dizemos: “Se tão-somente o Senhor tratasse com essa questão física ou com essas circunstâncias ou algo mais! Tudo acontece por causa disso, que é sua causa, sua razão”. Essa é nossa maneira de arrazoar, mas de maneira nenhuma é o pensamento do Senhor. A coisa é mais profunda: é uma questão de simplesmente crer em Deus; fé resoluta, confiança em Deus. O Senhor está tentando nos tirar de nossa variável e volátil vida da alma, na qual estamos à mercê de todos os nossos sentimentos, pensamentos, razões e todas essas coisas, e nos colocar em um reino em que, em espírito, somos firmes. Este é o ponto sobre o qual tudo ficaria fixado, segundo o salmo: “Seu [do povo] coração não estava firme nele [em Deus]” (78.37), e em torno disso todos aqueles quarenta anos transcorreram. A chave para isso é espiritual; testados por todas as outras circunstâncias, por todos os outros meios, por fim constataram que era uma questão espiritual. Ser fortalecido com poder por Seu Espírito no homem interior (Ef 3.16) é a resposta a isso tudo. O outro modo de agir, então, dá lugar a esse; pelo menos devemos ganhar ascendência sobre o outro enquanto não é removido.
Fé em Deus, o segredo da coragem
Voltemos à palavra em Josué. Daquela primeira geração, apenas dois homens saíram do reino da alma: Josué e Calebe. Eles triunfaram nesse reino e sobre ele primeiro, e depois o Senhor os trouxe para fora, mas o fato é que o descanso da fé, que era o segredo do triunfo deles enquanto estavam nele, foi trazido tão bela e magnificentemente à luz em Josué 14. Penso que é algo excelente. Calebe, um dos dois, vem a Josué. Ele é agora um homem velho, mas ainda vivendo pela fé na posição que tomou com o Senhor anos antes. Ele tomou essa posição quando foi um dos espias e quando a grande maioria, a esmagadora maioria, trouxe seu péssimo testemunho. Os demais olharam para Deus através de suas circunstâncias, esses dois homens contemplaram suas circunstâncias através de Deus – e isso fez toda a diferença. Calebe tomou essa posição de olhar para tudo através de Deus, e ainda vive nessa posição; e agora, como um homem velho, vem a Josué, e, enquanto todos os outros estão recebendo suas heranças em posições agradáveis, fáceis e prósperas, “em que cada paisagem era agradável”, Calebe diz: “Dê-me esta montanha onde estão os gigantes e as grandes cidades muradas, esse país montanhoso! Dê-me esta montanha!”
Oh, queridos amigos, existe muito a ser dito sobre isso, mas ficarei contente, por ora, em apresentar este desafio ao meu coração e ao de vocês: O que estamos buscando? Uma herança fácil, uma horta em que trabalhar, algo que responderá a nosso toque imediatamente e nos dará satisfação? Buscamos uma terra florescente? A fé que trouxe Josué e Calebe ao descanso de coração antes do descanso da terra era este tipo de fé: “Dê-me uma possibilidade difícil! Eis aqui uma situação cheia de dificuldades, cheia de ameaças, cheia de adversidades; não obstante ser quase uma proposta aterradora, dê-me uma chance ali!” Vemos o desafio. As dificuldades nos aterrorizam ou apenas apresentam uma grande oportunidade para o Senhor? “De que o Senhor falou aquele dia […] como o Senhor disse.” Como estamos encarando as grandes dificuldades? E elas existem! Existem problemas! E essas montanhas parecem se empilhar umas sobre as outras à medida que prosseguimos. Às vezes, o que está diante de nós parece ser uma perspectiva impossível, uma situação desesperadora. Talvez para nós individualmente, por alguma razão dentro de nós ou fora de nós, ou para a obra para a qual fomos chamados, para o ministério, o testemunho que está posto diante de nós, aquilo parece tão completamente desesperador, a montanha é impossível. Bem, e daí? “Dê-me esta montanha!” Nada a não ser uma fé real em Deus pode considerar as coisas desse modo e dizer: “Tudo bem. É difícil, não há dúvidas sobre isso, é uma proposta naturalmente aterradora, uma perspectiva desesperadora; não obstante, nós a tomaremos no nome do Senhor. Como o Senhor falou… O Senhor” olhando para a montanha através do Senhor, e não para o Senhor através da montanha.
As dificuldades nos aterrorizam ou apenas apresentam uma grande oportunidade para o Senhor?
Creio que esse seja o tipo de fé de que precisamos, que conduz ao descanso. Uma montanha – sim, uma montanha alta o bastante, uma montanha de fato, uma montanha circunstancial, uma montanha da perspectiva da obra. Naturalmente, faríamos a coisa certa, a sábia, a coisa do senso comum: “Não, não tocaremos nisso!” Mas a fé diz: “Não vou tentar contornar a montanha, não vou virar as costas para ela e fugir. Dê-me esta montanha!” Eu quero essa fé, você a quer. Não é apenas nossa coragem natural, nossa natureza tenaz, nossa pugnacidade que fará isso. Sabemos bem que nada temos; se deixados por nossa conta, seria melhor desistir. Mas o Senhor está desafiando, e Calebe vem como uma repreensão para nós. Ao final de uma longa vida – quando pensaríamos que talvez fosse o tempo dele herdar um belo jardinzinho e um chalé em algum lugar onde o trabalho fosse fácil e pudesse, então, descansar – ele diz: “Dê-me esse monte onde há gigantes e cidades muradas! Dê-me esta montanha!” Sua escolha foi uma coisa difícil, pois era uma oportunidade para o Senhor.
É provável que muito em breve sejamos trazidos, de modo muito prático, ao encontro de situações como as que temos descrito, mas consideremos o Senhor nelas. Vamos ter de enfrentar com naturalidade o que serão dificuldades aterradoras, por dentro e por fora, que querem arrancar nosso coração, mas, oh!, a essa quieta e repousante segurança e confiança em nosso Deus, a qual diz: “Dê-me esse monte como uma oportunidade de experimentar o Senhor!”
E assim fez Calebe – em Hebrom, e isso é outra história (Hebrom é uma longa história). Devemos conhecê-la, pois Hebrom foi um lugar maravilhoso nos propósitos de Deus. Davi fora primeiramente coroado rei lá, antes de o ser em Jerusalém. Hebrom significa “comunhão”. Há uma grande herança em Hebrom. Hebrom está assegurado para homens e mulheres com o tipo de fé de que falamos, que não querem escapar de suas dificuldades e do caminho árduo. Que a tomemos na força do Senhor, e que Ele tenha uma oportunidade de mostrar que pode fazer o que seria naturalmente impossível. O Senhor nos dê essa fé!
O primeiro dia de Adão nesta Terra foi um sábado. Deus criou o homem no sexto dia, e o primeiro dia completo que o homem teve foi o sábado, que se tornou o primeiro dia para ele. Considerado no Novo Testamento ― em que Deus termina e aperfeiçoa Sua nova obra de criação no Senhor Jesus e entra em Seu descanso –, é o sábado de Deus, e lá nós começamos. Aquele é nosso primeiro dia: o descanso de Deus.
Começamos em algo que já é perfeito. Essa é a base do “pacto eterno”. Alcançar o significado disso é ver o que é o “pacto eterno”, é começar sobre a base perfeita e crescer a partir dela. O que importa não é como nos vemos ou como nos sentimos a esse respeito, mas é o lugar de Deus para nós. O fato é que em Jesus Cristo você e eu nunca seremos mais perfeitos do que somos agora. Esses aperfeiçoamentos podem ser lavrados em nós progressivamente; entretanto, no que diz respeito à base de nossa aceitação, somos “aceitos no Amado” (versão King James), e Ele satisfaz completamente ao Pai, que veio a descansar Nele. Essa obra é perfeita.
Nossa aceitação está sempre fundamentada em o objetivo de Deus ter sido alcançado. Até que isso esteja bem estabelecido, não temos nada em que nos firmar quando Deus começar a trabalhar em nós. Não se esqueça disso. Se, quando Deus começa a lidar conosco em disciplina e castigo, em treinamento, moldagem e formação, passamos em dado momento qualquer a dizer: “Isso está acontecendo porque sou tão mau, tão perverso, e o Senhor tem de fazer algo comigo para que eu seja aceitável”, então, já abandonamos nossa base. Nunca seremos mais aceitáveis; no entanto, Deus faz muito em nós. Fomos aceitos, não com base no que somos – não importando quão bons ou maus fôssemos –, mas com base no Amado. “Aceitos no Amado.”
Nós cantamos – e eu desejo que isso habite mais e mais profundamente em nosso coração – que Suas perfeições são a medida de nossa própria aceitação. É ali que começamos. Bendito seja Deus, que essa é a base de confiança! E, quando o Senhor começa a nos tomar em Sua mão e sentimos quão abomináveis criaturas somos, isso nunca implica por um instante sequer que não sejamos aceitos. O pacto eterno significa aqui, em primeiro lugar, que somos aceitos com base na satisfação de Deus com Seu Filho. Se fôssemos aceitos com base em nós mesmos, e permanecêssemos em nós mesmos, não haveria pacto eterno e absolutamente nenhuma base segura. Tudo dependeria de como estivéssemos a cada dia. Mas não, a questão não é quem somos ou seremos. A base está firmada em Cristo. Deus está apenas trabalhando para tornar real em nós o que é verdadeiro em Seu Filho, mas Ele não muda a base para isso. Que não abandonemos nossa base.
Diversos exemplos que servirão para incentivar ou avisar o cristão que deseja servir a seu Senhor
Nos versículos 1, 22 e 23 dessa pequena e preciosa carta de Paulo, ele faz menção de seis cooperadores que estavam com ele na prisão em Roma.
(É interessante observar quantas vezes encontramos grupos semelhantes de sete irmãos no Novo Testamento. Eis alguns exemplos:
• Em João 21.2, seis irmãos acompanham Pedro quando este diz: “Vou pescar”.
• Em Atos 6, sete irmãos são escolhidos para administrar o ministério cotidiano às viúvas.
• Em Atos 10, Pedro e mais seis irmãos vão à casa de Cornélio.
• Em Atos 20, Paulo e mais seis irmãos esperam sete dias para poder partir o pão com a igreja em Trôade.)
Vamos considerar as qualidades desses homens que se encontravam na companhia de Paulo, e por fim, o próprio Paulo.
1. Timóteo, servo recomendado. Timóteo é mencionado pela primeira vez em Atos 16.1-3. Lemos a respeito dele: “Do qual davam bom testemunho os irmãos que estavam em Listra e em Icônio”. Como é importante que o servo de Deus tenha a confiança e a recomendação de irmãos que o conhecem.
Todo serviço cristão deve ser baseado na igreja local, e todo o servo de Deus deve sair para servir a Deus em plena comunhão e com o apoio de seus irmãos. Convém observar como Timóteo foi habilitado por Deus (1Tm 4.14; 2Tm 1.6) e enviado por Deus (1Tm 1.18). Todavia, a posse de alguns dons e a convicção do chamamento de Deus não dão ao obreiro o direito de trabalhar independentemente, sem ligação com sua igreja local. Pela recomendação a igreja se envolve no serviço do obreiro, e o próprio obreiro sente o benefício das constantes orações e do interesse da igreja.
2. Epafras, servo de intensa oração. Em Colossenses, carta escrita e enviada ao mesmo tempo que a carta a Filemom, lemos mais a respeito de Epafras (4.12,13). Ele era da igreja em Colossos: “Que é dos vossos, servo de Cristo”. Paulo destaca as orações deste servo, indicando:
a) o fervor delas: “Combatendo […] em orações”. A palavra traduzida como “combatendo” é semelhante, no original, à palavra que descreve a oração do Senhor Jesus no jardim de Getsêmani: “Posto em agonia, orava mais intensamente” (Lc 22.44). Epafras orava com todo o coração e com toda a sua força.
b) a persistência delas: “Combatendo sempre”.
c) a particularidade delas: “Por vós em oração”, isto é pelos cristãos em Colossos, e não somente por eles, mas também pelos irmãos em Laodicéia e em Hierápolis, como o v. 13 indica.
d) a objetividade delas: “Para que vos conserveis firmes, perfeitos e consumados em toda a vontade de Deus” (v. 12).
3. Marcos, servo restaurado. João Marcos, sobrinho de Barnabé, acompanhou Paulo e Barnabé em sua primeira viagem missionária, mas, quando chegaram a Perge, na Panfília, no sul da Ásia Menor, Marcos apartou-se deles, voltou para Jerusalém e não os acompanhou naquela obra (At 13.13; 15.38).
Outras referências no Novo Testamento, e especialmente as palavras de Paulo em Atos 15.38, dão a entender que, embora seu tio Barnabé o levasse consigo depois para a evangelização de Chipre, isso foi uma falha da parte de Marcos.
Porém, é muito agradável ver como Paulo se alegra com a restauração de Marcos ao serviço do Senhor. Em Colossenses 4.10, Paulo escreve com respeito a ele: “Vos saúda […] Marcos, o sobrinho de Barnabé, acerca do qual já recebestes mandamento; se ele for ter convosco, recebei-o”. Isso indica que Marcos estava de novo com Paulo. Em 2Timóteo 4.11, chegando perto do fim de sua “carreira”, Paulo manda a Timóteo a seguinte mensagem: “Toma Marcos e traze-o contigo, porque me é muito útil para o ministério”.
Contudo, a mais impressionante evidência da restauração de Marcos é o fato que lhe foi concedido o privilégio de ser um dos quatro homens escolhidos para escrever, inspirados pelo Espírito Santo, os quatro livros que registram a vida, a morte e a ressurreição do Filho de Deus. Esse servo, que falhou e foi restaurado, foi escolhido para descrever o serviço incansável e devotado do Servo perfeito!
Deus não é só o Deus de salvação, mas também de restauração; e todas as Suas obras são perfeitas.
4. Aristarco, servo e companheiro. Em relação a Paulo, Aristarco é chamado de companheiro na viagem (At 19.29), companheiro de prisão (Cl 4.10) e cooperador (Fm 24). Todas essas expressões indicam que Paulo dava muito valor ao companheirismo desse irmão. Seu nome sugere que era de família nobre, mas veio a ser ainda mais ilustre, sendo, como Jabez, homem de oração (1Cr 4.9,10), e ainda mais nobre, como os homens de Beréia, que “de bom grado receberam a palavra, examinando cada dia nas Escrituras” (At 17.11).
Como é bom ter um homem assim como companheiro na obra do Senhor, mesmo nas privações das viagens e da prisão.
5. Demas, servo que desapontou. É evidente que, na ocasião do envio da carta a Filemom, Demas ainda era um “cooperador” apreciado do apóstolo Paulo. Mais tarde, porém, Paulo tinha de lamentar a respeito dele: “Demas me desamparou, amando o presente século” (2Tm 4.10).
É fácil ficar orgulhoso perante a apostasia de outros e pensar que nunca faríamos tal coisa. Contudo, convém reconhecer o fato de que sempre estamos em perigo de cair. É só começar a seguir um pouco mais “de longe” (como Pedro em Mt 26.58), e logo estamos de volta ao mundo (como Pedro no v. 69, “assentado fora”).
Prezado leitor cristão, nunca imagine que a carne, a velha natureza, tenha melhorado depois de sermos cristãos há alguns anos. O próprio Paulo, depois de vários anos no serviço ao Senhor, disse: “Em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum” (Rm 7.18). Se nos aproximarmos do mundo, estaremos em grande perigo, pois é disso que a carne ainda gosta. Uma vez que estamos no mundo não somos mais úteis ao Senhor.
O nome Demas quer dizer “popular”. Talvez isso indique a causa de sua queda. A popularidade tem sido um laço para muitos.
6. Lucas, servo meticuloso. Paulo tinha consigo naquele tempo dois dos quatro homens que seriam usados por Deus para escrever os Evangelhos. Além de seu Evangelho, Lucas escreveria Atos também.
Na pequena introdução de seu Evangelho, Lucas faz menção do método que usou na preparação desse livro: “Pareceu-me também a mim conveniente descrevê-los [os fatos] a ti, ó excelente Teófilo, por sua ordem, havendo-me informado minuciosamente de tudo desde o princípio” (1.3). Essas palavras mostram como ele juntou os fatos, investigando tudo e verificando as fontes das informações (a palavra traduzida “princípio” pode indicar “origem” também, como na ARA). Depois ele colocou tudo em ordem, escrevendo com método. Tal é o homem que Deus usou para escrever o precioso terceiro Evangelho.
Que exemplo e inspiração para todos nós a fim de realizarmos com zelo a obra do Senhor.
7. Paulo, servo que refletia a Cristo. Deixamos por último o melhor dos sete, e aquele que é o modelo para todos! Muitos artigos seriam necessários para dizer tudo a respeito de Paulo. Porém, a pequena carta dele a Filemom revela o fato mais importante em sua vida e em seu serviço: Cristo estava nele, Cristo vivia nele, e para ele o viver era Cristo (Gl 2.20; Fp 1.21).
De modo muito lindo vemos nessa carta a manifestação do Espírito de Cristo no apóstolo Paulo. A carta foi mandada a Filemom pelas mãos de Onésimo. Esse era servo de Filemom, mas havia fugido, provavelmente levando consigo algumas coisas que roubara da casa de seu senhor. Encontrando-se com Paulo em Roma, arrependeu-se e creu no Senhor Jesus. Agora salvo e irmão amado (Fm 16), Onésimo volta a casa de Filemom, e, diz Paulo: “Se me tens por companheiro, recebe-o como a mim mesmo. E, se te fez algum dano ou te deve alguma coisa, põe isso à minha conta. Eu, Paulo, de minha própria mão escrevi; eu o pagarei” (vv. 17-19).
Que lindo reflexo do amor daquele que restituiu o que não furtou (Sl 69.4), pagando nossa dívida e levando sobre Si nossas iniqüidades (Is 53.6). Paulo era uma verdadeira epístola de Cristo (2Co 3.3), escrita, não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo. Que nós sejamos assim também, imitando a Paulo como ele era imitador de Cristo (1Co 11.1).
“Quando orares, entra no teu aposento e, fechando a tua porta, ora a teu Pai que está em secreto” (Mateus 6.6).
Fomos criados para ter comunhão com Deus. Deus nos fez a Sua própria imagem e semelhança para que fôssemos ajustados à comunhão, fôssemos capazes de entendê-Lo e de apreciá-Lo, de entrar em Sua vontade e de nos deleitarmos em Sua glória. Porque Deus é onipresente e Aquele que a tudo vê, Ele poderia viver no gozo de uma inquebrável comunhão em meio a toda obra que tivesse para fazer. Dessa comunhão, o pecado nos roubou.
Nada além dessa comunhão pode satisfazer tanto o nosso como o coração de Deus. Foi isto que Cristo veio restaurar: Ele veio devolver a Deus Suas criaturas perdidas e nos devolver a tudo para o que fomos criados. A comunicação com Deus é a consumação da bem-aventurança tanto na terra como no céu. Isso ocorre quando a promessa, tão freqüentemente dada, se torna uma experiência completa: “Estarei contigo, jamais te deixarei nem te abandonarei”, e quando podemos dizer: “O Pai está sempre comigo”.
Essa comunicação com Deus foi estabelecida para ser nossa o dia todo, quaisquer que sejam as circunstâncias que nos rodeiem. Porém, usufruir dela depende da realidade da comunicação em nosso aposento, a sós. O poder para manter uma comunhão íntima e satisfatória com Deus o dia todo dependerá totalmente da intensidade com a qual buscamos guardá-la na hora de nossa oração secreta. O essencial é a comunhão com Deus.
Nosso Senhor ensina que este deve ser o segredo íntimo da oração secreta: fechar a porta e orar a nosso Pai, que está em secreto. A primeira e principal coisa é perceber que ali em secreto você tem a presença e a atenção do Pai. Saiba que Ele vê e ouve você. Mais importante que todos os seus pedidos, mesmo que urgentes, mais importante do que toda a sua sinceridade e seu esforço para orar corretamente é a certeza viva, como a tem uma criança, de que seu Pai o vê, que agora você O encontrou e que, com os olhos Dele em você e os seus Nele, você agora desfruta de uma verdadeira comunicação íntima com Ele.
Cristão, em seu aposento secreto você “corre o risco” de colocar a oração e o estudo bíblico no lugar da viva comunhão com Deus, o vivo intercâmbio de dar a Ele seu amor, seu coração e sua vida, e receber o amor, a vida e o Espírito Dele. Suas necessidades e suas declarações, seu desejo de orar humilde e sinceramente com fé talvez o ocupem tanto que a luz do semblante de Deus e a alegria do amor Dele não podem entrar em você. Seu estudo bíblico pode ser tão interessante para você que mesmo a Palavra de Deus se torna um substituto para o próprio Deus, se torne o maior impedimento para a comunhão, porque mantém a alma ocupada em lugar de guiá-la a Deus. E saímos para o trabalho diário sem o poder de uma permanente comunhão, porque no momento devocional matutino a bênção não foi adquirida.
Que diferença faria na vida de muitos se todas as coisas na vida fossem subordinadas a isto: “Quero ao longo do dia andar com Deus; meu horário da manhã é a hora em que meu Pai entra em um compromisso definitivo comigo e eu com Ele para que assim seja. Que poder será concedido pela consciência de que Deus assumiu a responsabilidade por mim e que Ele está indo comigo; vou fazer Sua vontade o dia todo em Seu poder; estou pronto para tudo o que possa vir”. Que nobreza haveria na vida se a oração secreta não fosse somente um pedir por uma nova sensação de conforto, luz ou poder, mas a entrega da vida somente por um dia no certo e seguro cuidado de um Deus poderoso e fiel. A separação dos outros, em solidão com Deus, é, com certeza, a única forma para viver em comunhão com outros no poder da bênção de Deus.
Ficamos abismados de que, mesmo à luz de registros bíblicos muito claros, ainda há quem tenha a audácia de sugerir que é errado para aqueles que sofrem no corpo ou na alma expressar suas orações por libertação em termos de: “Se for da Tua vontade”. Dizem que, quando a aflição chega, Deus sempre deseja a cura. Que Ele não tem nada a ver com sofrimento, e que tudo o que devemos fazer é reivindicar, pela fé, a resposta que buscamos. Somos exortados a exigir o “Sim” de Deus antes que Ele o pronuncie.
Fora com tais distorções da fé bíblica! Elas são concebidas na mente do Tentador, que deseja nos induzir a transformar fé em mágica. Nem todo o amontoado de discurso piedoso pode transformar essa falsidade em doutrina verdadeira.
Às vezes, Deus diz não. Às vezes, Ele nos chama para sofrer e morrer, mesmo quando desejaríamos exigir o contrário.
Nunca outro homem orou mais veementemente que Cristo no Getsêmani. Quem acusará Cristo de não ter orado com fé? Ele colocou Seu pedido diante do Pai suando sangue: “Passa de Mim este cálice” (Lc 22.42).
A oração de Jesus foi direta e sem ambigüidades. Ele gritou por alívio. Ele pediu que o cálice terrivelmente amargo fosse removido. Cada centímetro de Sua humanidade se encolhia diante do cálice. Ele implorou ao Pai que O libertasse de Seu dever. Mas Deus disse “não”. O caminho do sofrimento era o plano de Deus. Era a vontade de Deus. Era Sua vontade pura e inalterada. A cruz não era uma idéia de Satanás. A paixão de Cristo não foi resultado de contingências humanas. Não foi uma maquinação acidental de Caifás, Herodes ou Pilatos. O cálice foi preparado, entregue e administrado pelo Deus Onipotente.
Jesus colocou uma condicional em Sua oração: “Pai, se queres…”. Jesus não “apresentou e reivindicou”. Ele conhecia Seu Pai muito bem para saber que essa poderia não ser a vontade Dele. A história não termina com as palavras: “E o Pai se arrependeu do mal que havia planejado, afastou o cálice, e Jesus viveu feliz para sempre”.
Essas palavras se aproximam da blasfêmia. O evangelho não é um conto de fadas. O Pai não entraria em acordos sobre o cálice. Jesus foi chamado para tomá-lo até a última gota. E Ele o aceitou. “Todavia, não se faça a Minha vontade, mas a Tua”.
Esse “todavia” é a suprema oração da fé. A oração da fé não é uma ordem que colocamos diante de Deus. Não é a presunção de um pedido atendido. A autêntica oração da fé é aquela que se assemelha à oração de Jesus. É sempre apresentada num espírito de submissão. Em todas as nossas orações devemos permitir que Deus seja Deus. Ninguém diz ao Pai o que Ele deve fazer, ninguém, nem mesmo o Filho. Orações devem sempre ser pedidos feitos com humildade e submissão à vontade do Pai.
A oração da fé é a oração da confiança. A própria essência da fé é confiança. Confiamos que Deus sabe o que é melhor. O espírito de confiança inclui o espírito de disposição para fazer o que o Pai deseja que façamos. Este tipo de confiança foi personificado em Jesus no Getsêmani.
Embora o texto não seja explícito, é claro que Jesus deixou o jardim com a resposta de Deus para Seu pedido. Não há nenhuma blasfêmia ou amargura; Sua comida e Sua bebida eram fazer a vontade do Pai (Jo 4.34). Uma vez que o Pai disse “não”, o assunto estava resolvido. Jesus se preparou para a cruz. Não fugiu de Jerusalém, mas entrou na cidade com o semblante determinado.
“Também dizei a Arquipo: Atenta para o ministério que recebestes do Senhor, para o cumprires” (Cl 4.17).
Terminando sua carta à igreja em Colossos, Paulo chamou a atenção de um daqueles irmãos de uma maneira que também chama nossa atenção. Quem era Arquipo? Qual era seu ministério? Por que Paulo achou necessária essa exortação pessoal numa carta pública? Embora tenhamos poucas informações nas Escrituras sobre Arquipo, podemos descobrir algumas coisas sobre ele que também são importantes para nossos dias.
Comparando essa carta com a carta a Filemom, ficamos convencidos de que Arquipo é o mesmo citado em Filemom 2, que era parente de Filemom e Afia, e ajudava muito na igreja em Colossos, que se reunia na casa de Filemom.
Paulo o chamou de “companheiro de lutas”, indicando que, em seu ministério, Arquipo enfrentava dificuldade e oposição do mesmo tipo que Paulo enfrentava no ministério a favor daquela igreja. Em Colossenses 2, Paulo revela que essa “luta” era principalmente contra os falsos ensinadores que estavam procurando infiltrar-se naquela igreja. Esses confiavam em seus “raciocínios” e “filosofias” sobre a pessoa do Senhor Jesus Cristo (vv. 4,8). Ensinavam a necessidade de não comer certas comidas e de guardar o sábado (v. 16). Baseavam seus ensinos nas “visões” que receberam (v. 18). Tudo isso nos mostra que o ministério de Arquipo era também lutar contra estas “doutrinas dos homens”, ensinando o valor da pessoa e da obra do Senhor Jesus Cristo, em quem “habita corporalmente toda plenitude da Divindade” (Cl 2.9).
Nós temos a mesma luta hoje, com tantas seitas falsas propagando idéias baseadas em sabedoria humana, na lei, em visões, etc. Um pouco de meditação aqui revelará que os erros ensinados hoje são idênticos à situação em Colossos, quando Paulo e Arquipo lutavam pelo Evangelho verdadeiro. Não podemos nos calar sobre este grande perigo satânico que procura infiltrar, misturar e destruir o testemunho verdadeiro do Senhor Jesus Cristo com seu fermento ecumênico. A maneira mais usada por Satanás hoje não é a perseguição violenta, mas a imitação e a mistura com as denominações, até a igreja local perder completamente sua função divina como “santuário de Deus” e se tornar parte de uma organização humana com seu evangelho social que somente produz muito joio e pouco trigo. Não devemos ser enganados pelo crescimento rápido dessas seitas — “eles procedem do mundo; por esta razão falam da parte do mundo, e o mundo os ouve” (1Jo 4.5).
Notamos também que Arquipo recebeu este ministério “do Senhor”. Não foi um ministério escolhido por ele, nem dado por anjos ou por homens. Paulo nem precisava explicar para Arquipo qual era o ministério dele; ele bem o sabia, e a igreja em Colossos também sabia como era importante aquele ministério em dias de muitos falsos ensinos.
Como Arquipo, todos os filhos de Deus receberam um ministério do Senhor. “Servi uns aos outros, cada um conforme o dom que recebeu” (1Pd 4.10). Não podemos escolher nosso serviço ao Senhor; é Ele quem escolhe para nós. Se procurarmos fazer algo que Ele não escolheu, haverá confusão e não bênção; mas, quando todos os membros do Corpo sabem, e fazem, seu trabalho, haverá paz e bênção e crescimento na igreja.
Por que esta exortação pessoal numa carta pública? Sem dúvida, foi uma surpresa para Arquipo ouvir seu nome mencionado por Paulo dessa maneira. Parece que não havia motivo visível para essa mudança na atitude do apóstolo, e claramente Arquipo não estava sob disciplina, ou Paulo não podia encorajá-lo assim sem primeiro saber de seu arrependimento e restauração à comunhão da igreja.
Contudo, alguma coisa tinha acontecido para o desanimar no ministério. Provavelmente, ele estava cansado e pensava em “parar um pouco” ou que já tinha cumprido seu trabalho. Paulo não podia esconder sua preocupação por dois motivos: a igreja precisava muito do ministério de Arquipo, e também Arquipo estava perdendo o galardão que o Senhor queria lhe dar mais tarde. “Se perseveramos, também com Ele reinaremos; se O negarmos, Ele por Sua vez nos negará” (2Tim 2.12).
Parece-nos que há muitos “Arquipos” nas igrejas que conhecemos, e para falar a verdade, quem entre nós não sente a tentação de “parar um pouco” na luta? Temos de lembrar que o único motivo justo para parar é quando chegarmos ao “fim” (Hb 6.11), quando o Senhor nos chamar para o descanso, ou por Sua vinda ou pela morte. João Batista “completou sua carreira” (At 13.25), mas somente quando desceu sobre seu pescoço a espada de Herodes. Paulo completou sua carreira, mas somente quando o tempo de sua partida tinha chegado (2Tm 4.6).
Não existe aposentadoria no serviço de Deus! Quando alguém falou sobre aposentadoria a um estimado e ativo servo de Deus, agora com Ele, mas naquele tempo com mais de noventa anos, ele respondeu que Satanás tinha trabalhado muito mais do que ele e nem pensava em parar, mas de fato trabalha mais agora do que nunca!
Gostaríamos de saber mais sobre o resultado desta exortação de Paulo. Sem dúvida, foi forte o remédio! Arquipo já está com Cristo, passou o tempo de servir. Será que podemos duvidar do valor da exortação que recebeu? Cremos que ele será sempre grato pelo “remédio” que recebeu naquele dia, mesmo que tenha sido uma injeção bastante dolorida na hora!
Esta exortação foi colocada na Escritura, não somente para Arquipo, mas também para cada um de nós. Seria muito triste, depois de ter corrido bem, parar agora, tão perto do fim da corrida, e perder o prêmio. Que Deus encoraje a cada um de nós a cumprir o ministério que Ele nos deu, pois, embora a luta seja grande, o fim está perto e a vinda do Senhor está próxima.
Agora desejo com Cristo viver,
com Ele a carreira acabar;
pois sei que, no meio das perturbações,
com Jesus sempre em paz posso estar.